Revista de Divulgação Cultural (RDC) nº 91

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COLABORADORES André Souza Martinello.Bolsista Capes no Pós-Doutoramento no Programa de Pós-Graduação em História e Espaços na UFRN, Mestre em História (UFSC) e Mestre em Desenvolvimento Rural (UFRGS). Dimas da Cruz Oliveira. Pesquisador e professor, autor de Galilée, publicado por Le Nègre Éditeur, Aix en Provence, 2009. Dimas da Cruz Oliveira

Gabriel Quinelo. Artista plástico curitibano. Estudou na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Há 10 anos reside em Blumenau. Fabrício Bittencourt. Estudante de filosofia e assistente editorial na Edifurb. Autor de contos publicados nas antologias Conte uma Canção e Projeto Beta.

Julia Schaefer

Magali Moser. Doutoranda em Jornalismo na UFSC. Mestre pelo mesmo programa. Atuou como professora substituta da FURB entre 2014 e 2017. Maria José Ribeiro. Editora da Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação. Professora do Departamento de Letras da FURB e Doutora em Literatura (UFSC). Julia Schaefer. Acadêmica do Curso de Jornalismo da FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau).

Magali Moser

Juliana de Mello Moares. Mestre em História pela UFPR e doutora em História pela Universidade do Minho, Portugal. Realizou estágio pósdoutoral na Universidade de Lisboa. Professora na FURB. Jussara Bittencourt de Sá. Doutora em Literatura pela UFSC, é professora titular da Unisul, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e no Curso de Letras.

Mariana Furlan

Mariana Furlan. Jornalista formada pela Univali e pósgraduada em Fotografia pela mesma universidade. Trabalha como editora no Jornal de Santa Catarina, em Blumenau. Tarcísio Alfonso Wickert. Graduado e mestre em Filosofia pela PUCRS; Doutor em Filosofia pela UFSC e Humboldt Universität-Berliin. Professor de Filosofia na FURB.

Thiago Kistenmacher Vieira

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Thiago Kistenmacher Vieira. Graduado em História pela FURB. Escritor de contos. Atualmente estuda para ingressar no mestrado em Filosofia.

UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU REITOR João Natel Pollonio Machado VICE-REITOR Udo Schroeder

EDITORA DA FURB CONSELHO EDITORIAL Edson Luiz Borges Helena Maria Zanetti Orselli Moacir Marcolin Juliana de Mello Moraes Roberto Heinzle Márcia Oliveira Maria José Ribeiro EDITOR EXECUTIVO Maicon Tenfen ARTE Capa: Gabriel Quinelo Fotos da capa: Ruy Pratini Arte final: Fabrício Bittencourt Diagramação: Fabrício Bittencourt e Vilmar Schuetze DISTRIBUIÇÃO Edifurb

ISSN 0103-6033 LOGOMARCA A logomarca da nova RDC foi desenvolvida pelos estudantes do Curso de Publicidade e Propaganda da FURB, sob a orientação da Profa. Fabrícia Durieux Zucco. A eles os nossos agradecimentos. A RDC é uma publicação semestral da Editora da FURB. As opiniões expressas nas matérias e nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus respectivos autores. INTERESSADO EM SE TORNAR COLABORADOR? Rua Antônio da Veiga, 140 Bairro Victor Konder 89012-900 – Blumenau – SC E-mail: editora@furb.br Fone: (47) 3321-0329 PARA ASSINAR: E-mail: editora@furb.br Fone: (47) 3321-0329 DÚVIDAS, SUGESTÕES, COMENTÁRIOS: editora@furb.br

www.furb.br/editora

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SUMÁRIO Capa. Gabriel Quinelo Entrevista, 06. Fora da nova ordem musical O The Zorden se firma como uma das bandas mais criativas do sul do Brasil Internacional, 12 Coreia do Norte: a constituição de um país orwelliano As leis e o cotidiano de uma nação comandada por uma dinastia familiar Cultura, 18 O modernismo brasileiro em esquadros Uma análise do movimento que alterou a cultura nacional Atualidade, 27 Da RBS SC à NSC A história e os dilemas do monopólio da Rede Globo no sul do Brasil

História, 31 Entre tormentos e fogueiras Os métodos de tortura utilizados pela inquisição em território português Fotografia, 34 Cidade geométrica Um ensaio fotográfico que revela as nuances arquitetônicas de Blumenau Especial, 40 A reforma protestante de Martinho Lutero 500 anos de história, muitas vozes e inúmeras revoluções Reportagem, 44 O Projeto Bugio e a resistência dos primatas Desenvolvimento científico e o bem-estar do bugio ruivo Clássico, 48 O abecedário de Voltaire Algumas palavras do filósofo sobre questões universais ligadas à vida humana Resenha, 52 Contemplando um livro: Estética de Hegel Como o pensador desenvolveu uma das mais emblemáticas obras sobre o tema da beleza Mitologia, 56 Eros e Psiquê O mito central do amor Conto, 59 O tiro no escuro Conto inédito de Amilcar Neves Poesia, 66 Um gauche na eternidade Poesia de José Endoença Martins

EDITORIAL

A Reforma Protestante A capa da RDC 91 — que faz referência ao quadragésimo aniversário da revista — não poderia ser dedicada a outro tema que não a Reforma Protestante. Há exatos 500 anos, Martinho Lutero fixou as suas 95 teses nas portas da catedral de Wittenberg. Foi um gesto ingênuo e ao mesmo tempo corajoso. Em sua maioria, as teses questionam a autoridade papal e pregam contra a leviandade das indulgências (passaportes para o céu que a Igreja vendia aos fiéis). Todo mundo, atualmente, critica o papa ou qualquer figura que tenha o mais leve cheiro de autoridade, mas naquela época Lutero só não foi queimado ou enforcado porque teve a proteção de príncipes alemães que estavam exaustos de mandar dinheiro para o Vaticano. Na prática, as 95 teses impulsionaram a Reforma Protestante que mudaria o curso da Europa e redefiniria as bases da cultural ocidental. Uma nova forma de se relacionar com o divino passou a coexistir com o milenar domínio da Igreja Católica. A princípio Lutero queria que os fiéis se dirigissem diretamente a Deus, sem a intermediação de instituições terrenas, mas as circunstâncias o levaram a criar um culto que dispensava a intercessão dos santos e reduzia os sacramentos a dois essenciais: batismo e eucaristia. Para os historiadores, o êxito da Reforma se deve ao importante fato de que Lutero estava no lugar certo e na hora exata. A passagem da economia feudal para o nascente capitalismo exigia uma postura religiosa mais entusiasmada em relação à prosperidade, algo até então execrado pela Igreja Católica. Sociólogos como Max Weber (1864-1920) fundamentaram uma ideia que já estava clara aos olhares mais atentos: sem a “dignificação pelo trabalho” de Lutero, o capitalismo não teria as condições ideológicas necessárias para se desenvolver na Europa. Algumas das nações mais desenvolvidas do mundo são “protestantes”, e isso certamente significa alguma coisa. Mas a maior contribuição de Lutero, algo que escapa à esfera religiosa ou até mesmo econômica, tem a ver com o acesso que ele deu aos textos sagrados. Até então a Bíblia era difundida apenas em grego ou latim, línguas distantes do homem comum, de modo que a interpretação da palavra de Deus era monopólio dos padres. Lutero desejou que todos lessem a Bíblia, por isso deu um jeito de traduzi-la para o alemão. Ele estava lutando por suas convicções teológicas, mas ao mesmo tempo estava arriscando o pescoço para defender a importância do acesso ao Conhecimento. Se Gutemberg, com a invenção da imprensa, criou o hardware da leitura, Lutero forneceu o software ao quebrar o tabu de que a sabedoria seria divinamente reservada a homens especiais do clero e da nobreza. Isso fez com que o pai da Reforma se transformasse num dos maiores difusores do livro, um instrumento que proporcionaria revoluções ainda mais profundas que a religiosa. Não é por acaso que alguns dos maiores núcleos de leitores do planeta podem ser encontrados — de novo — em países de confissão luterana. O herói da nossa história também teve os seus pecados? Certamente. Além de demonizar os judeus, foi severo em demasia com os camponeses que, graças à rebelião inicial contra o catolicismo, rebelaram-se também contra os seus senhores. Nos mesmos escritos em que propunha reformas na “ordem do céu”, Lutero se preocupava em manter intacta a “ordem da terra”. Chegou a justificar muitos dos massacres que mancharam a Alemanha do seu tempo. É por isso que deve ser tratado como uma personalidade histórica, não como o portador de alguma verdade messiânica irretocável. Ele mesmo tinha consciência disso. “A doutrina não é minha”, escreveu no fim da vida. “Como pode convir a mim, um miserável saco de pó e cinzas, dar meu nome aos filhos e às filhas de Cristo”? Suplicou às primeiras comunidades protestantes que não se autodenominassem luteranas, apenas cristãs. Nisso não foi ouvido. Maicon Tenfen

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ENTREVISTA

Fora da Nova Ordem Musical Com estilo próprio e muitos planos para o futuro, o The Zorden se firma como uma das bandas mais criativas do sul do Brasil João, Eduardo e Rafael – os irmãos Martorano Salvador – bebem de todas as fontes para formar, com músicos fora da família, uma banda que valoriza o ecletismo das composições e a originalidade das performances. Com três CDs no currículo, clip exibido na MTV e parcerias com músicos eruditos, os integrantes do The Zorden acreditam que, apesar da longa caminhada até aqui, começam a deslanchar para novas e grandes possibilidades pro-

Fabrício: No álbum Mudanças vocês têm uma música chamada A Fonte. Eu reparei na letra que vocês citam os Rolling Stones, Mutantes, Miltons – imagino que seja o Milton Nascimento – e os Beatles. Vi também umas fotos da banda e percebi que o João Paulo tem um baixo igual ao do Paul McCartney. Isso já revela algumas influências recebidas pela banda. Têm outras? João Paulo: Eu sou muito fã do Clube da Esquina, do Lô Borges, Milton Nascimento, o que revela a influência da MPB na The Zorden, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Chico Buarque, Tom Jobim, Milton Nascimento, Tom Zé. Maicon: Mas vocês não se definem como uma banda de rock? João Paulo: Sim. Maicon: Porém as influências são as mais variadas. E nós percebemos isso também nas letras, que tem jogadinhas. Quem compõe a maioria é o João Paulo? Eduardo: O Rafael também faz muito das músicas, então é meio que dividido entre os dois, as músicas e as letras. Mas no último CD entraram muitas músicas do Marcos Annuseck, nosso guitarrista. Como trabalhamos todos juntos nos arranjos, então há um pouco de cada um.

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fissionais. O bate-papo a seguir foi realizado nas dependências da Universidade Regional de Blumenau, mais precisamente na Livraria Universitária, e contou com a participação de Júlia Schaefer, acadêmica do Curso de Jornalismo da FURB, e Fabrício Bittencourt, estudante de filosofia e assistente editorial na Edifurb. Agradecimentos sinceros aos entrevistados e entrevistadores. Maicon Tenfen

Rafael: A música é mais coletiva, a letra é que é mais personalizada.

Rafael: Mas hoje estão se misturando cada vez mais, é uma tendência. Sempre foi.

Eduardo: E aí entram as influências. Alguns dizem, ah, me lembrou tal banda, me lembrou Barão Vermelho, algo assim, nacional. Mas para nós, que sabemos das nossas influências, parece que não há. Ou melhor, há, porém tentamos ter características próprias como banda. É algo bom não ser igual a ninguém.

Maicon: Então o objetivo da banda sempre foi encontrar esse estilo próprio, ou vocês sonham com o grande hit?

Maicon: Nos anos 80 havia o “Rock Brasil”. A partir dos anos 90 parece que as coisas começaram a ficar mais variadas. Como o The Zorden se encaixa dentro disso? João Paulo: Acho que é algo geral e não somente do The Zorden. Rafael: Se bem que eu não vejo outras bandas fazendo o que nós estamos fazendo. Tem gente que acha que nossa banda seria enquadrada, se pensar nos padrões, no alternativo. Mas nós também não somos alternativos. Tampouco pop rock, também não somos MPB. Acho difícil definir o nosso estilo. Eduardo: Há os artistas novos, mas eles seguem um padrão. Por exemplo, tem o funk, tem o sertanejo, que são bem definidos.

Rafael: Acho que todo o artista busca ter um hit. Não que a gente faça uma música pensando só nisso. Mas é o caso da Pra te Encontrar, que é uma música do Marcos. Ela não ia entrar no CD. No fim o João Paulo arrumou um pouco a letra, ela entrou e se tornou o grande hit da banda. Não era para ser o trabalho da banda, mas no fim ela se tornou. João Paulo: O Marcos tinha feito uma melodia e foi cantando algo qualquer, mas eu percebi que a música tinha potencial. Então fiz uma história, peguei versos dele que já haviam sido escritos, fui modificando, contando uma história de um cara que vai em busca de um sonho. Ficou uma música boa. Maicon: Ficou linda. O clipe foi lançado em 2012, na animação do Belli Studio, que foi sem dúvida um grande momento. Mas e os outros grandes momentos da banda, para pensarmos na trajetória do The Zorden? Rafael: O concerto com a orquestra da FURB. Foram três peças muito importan-

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Ruy Pratini

Rafael, Eduardo e João Paulo: irmãos que nasceram em São Joaquim (SC), cresceram com a música e — claro! — acabaram por formar uma banda.

tes, porque é um sonho de qualquer músico ter suas músicas executadas junto de uma orquestra. Foi um momento muito legal, até mesmo pela presença do maestro Frank Graf. O sucesso da banda não é só tocar na rádio e aparecer na televisão. Isso é um reconhecimento da música erudita junto à música popular. Eduardo: E é o que está acontecendo hoje em dia. O Expresso gravou um DVD com a camerata de Florianópolis. O Dazaranha está gravando um acústico também com a camerata. Nós já havíamos feito isso lá com o Graf e foi muito bom. Na verdade fizemos duas noites, no aniversário da FURB e no aniversário de Blumenau. Rafael: E depois usamos os arranjos do Graf com a orquestra de Indaial. Fabrício: E como é que surgiu essa possibilidade de vocês tocarem com a orquestra da FURB? Rafael: Vez ou outra eu encontrava o Graf e sugeria fazermos um trabalho juntos. Então o Graf disse que eu deveria trazer as partituras e eu conversei com os outros membros da banda, escolhemos as músicas e escrevemos as partituras básicas, a melodia com as harmonizações e algu-

ma ideia de orquestração. Fomos à casa dele, tocamos a música, e a partir dali ele começou a escrever o arranjo orquestral. Ele não interferiu na nossa música, que já estava pronta. Apenas nos deu algumas ótimas dicas. Eduardo: Os arranjos dele serviram para gravarmos as músicas do segundo CD. Usamos muitos elementos que ele tinha feito. Tínhamos também a ideia de gravar com a orquestra, mas não conseguimos levá-la para o estúdio. As músicas foram gravadas e estão no álbum Mudanças. São três: Mudanças, Silêncio do Vento e Tapera. Julia: E essa questão do mundo da composição e o mundo do cover? Os bares dão preferência para bandas que tocam covers e não para aquelas que têm músicas autorais. Como é que vocês lidam com isso? João Paulo: Na verdade não é nem o bar que opta por isso, é o público que vai para curtir a noite e não para ouvir algo diferente. Então isso também é um problema, porque queremos acrescentar nossas músicas em shows, quando tocamos em bares. Mas agora já há algumas composições que o pessoal canta junto, como, por exemplo, Pra te Encontrar e algumas do novo CD.

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Rafael: Não somos contra o cover, mas isso atrapalha o trabalho autoral. Se as bandas ficarem somente interpretando, não se produzirá nada novo. Eduardo: Como tocamos em diversos eventos, temos que tocar outras coisas. Optamos por músicas que gostamos, tentamos agradar ao público e interpretamos muitas bandas dos anos 80. Talvez seja por isso que ficamos conhecidos. Começamos a tocar em bares e o pessoal dizia: ah, vamos ver os guris, eles tocam bem Beatles. Fomos colocando as nossas músicas e hoje temos composições bem conhecidas, um videoclipe que passou no Multishow e no canal Bis! Então teve uma repercussão nacional, recebemos e-mails de Minas Gerais, São Paulo. Algo muito legal. Mas começamos interpretando. Maicon: E qual foi o marco zero? Como é que começou a banda? Rafael: Na nossa casa sempre fomos muito incentivados na música. Eu comecei a me interessar muito por guitarra e uns amigos mais velhos me convidaram para tocar em uma banda. Eles pegavam uma música famosa de cada banda brasileira. O Eduardo entrou tocando teclado e depois foi para a bateria. Então entrou o João

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The Zorden - Divulgação

Ao longo das duas últimas décadas, o The Zorden meteu o pé na estrada para fazer shows, gravar composiões originais e conhecer o mundo, provando os

Paulo. Foi nessa época que fizemos outra banda chamada Tangers, uma banda cover de rock internacional. Maicon: Era a fase umbilical do The Zorden. Eduardo: Sim, fomos convidados para tocar e ficamos uns dois anos nessa banda. O João Paulo já estava se coçando para comprar um baixo. Tanto que uma vez fomos a Criciúma para comprar uma baixo para ele e ocorreu algo interessante... João Paulo: Nosso pai se empolgou e comprou o equipamento todo. Eduardo: E aí montamos a banda, o The Zorden, e começamos a ensaiar nos finais de semana. Nós morávamos aqui, o João Paulo ainda em São Joaquim, e o Cezar em Floripa. Nos juntávamos e tocávamos rock inglês. Em seguida o João Paulo veio morar em Blumenau, quando ele passou no vestibular em 1996. Nós tocávamos no Bistrô 69 profissionalmente, uma dupla de piano e bateria, um piano-bar.

Depois de duas décadas tocando, imaginaram que chegariam tão longe, com álbuns lançados, várias músicas compostas e clipes passando na TV? Rafael: Eu nunca imaginei abraçar a carreira de músico. Foi acontecendo, também não tínhamos grandes expectativas, fora a de tocar no Rock in Rio, mas isso infelizmente ainda não aconteceu (risos). A gente toca por aí, nos divertimos bastante tocando e temos uma ampla experiência, muitas histórias. Eduardo: Acho que soubemos aproveitar as oportunidades que foram aparecendo ao longo dos anos. Maicon: Vocês acham que seria melhor se vocês estivessem em um centro maior? Eduardo: Eu acredito que, se estivéssemos em Florianópolis, teríamos outra visibilidade, ainda mais São Paulo, Rio. João Paulo: Se bem que temos amigos que foram para São Paulo, Rio, e tiveram que voltar.

Rafael: Muita MPB e música de boemia que o pessoal pedia.

Julia: Eu fiquei curiosa quando você disse que há histórias que ninguém acredita sobre a banda e queria que vocês contassem algo.

Fabrício: Provavelmente, quando vocês começaram, tinham algumas expectativas.

Rafael: Nós já fizemos um show de dez horas de duração. Foi lá no Bistrô 69.

Maicon: E o que vocês tocavam?

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João Paulo: E foram dez horas sem intervalo. É que um dia estávamos bebendo cerveja com o Horácio Braun e ele perguntou: quanto tempo essa banda tem? Nós respondemos: 10 anos. E ele: então vamos fazer um show de 10 horas. Começamos às quatro da tarde e fomos até duas da manhã. Começamos nós três e fomos revezando com amigos nossos que convidamos para tocar. Tivemos muitas participações. Fabrício: Imagino que vocês já conheceram outros artistas brasileiros, ou até mesmo tenham aberto shows para outras bandas? Eduardo: Nós já abrimos para o Capital Inicial, Biquíni Cavadão, Nenhum de Nós, Barão Vermelho, Dazaranha... Fizemos muitas aberturas, inclusive aqui em Blumenau, e conhecemos muitos músicos, como o Geraldo Vandré. Eduardo: Ele estava desaparecido da mídia fazia alguns anos, mas por acaso veio até Blumenau para um projeto educativo. Estávamos tocando no Bistrô e alguém mandou um bilhete para nós: vocês poderiam tocar a música Para Não Dizer que não Falei das Flores? Pois o autor dela está aqui. Nós olhamos em volta e vimos um cara barbudo e pensamos que só poderia ser ele. Fizemos um intervalo e o Rafael foi falar com ele.

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triunfos e as dificuldades típicas das bandas brasileiras.

Rafael: Fui lá e perguntei: pediram pra tocar a sua música, o senhor permite? Ele respondeu que sim. Comecei a tocar, todos ficaram em silêncio, como num momento solene, o Vandré se levantou, veio ao lado do piano e chorou. Em seguida começou a tocar junto comigo uma melodia bem diferente. Eduardo: Só para deixar claro que o Rafael não cantou, somente tocou a música. Isso ficou diferente, pois todos gostam dessa música devido à letra. Ali ficou claro que a melodia também é bonita e acho que ele se sentiu homenageado por isso. Rafael: Ele comentou que chorou porque foi a primeira vez que a música não precisou da letra. Muitos diziam que ele era um músico inferior, mas isso mostrou que ele também era um grande melodista. O mais legal foi conversar com ele. Maicon: Vocês são da família Martorano Salvador e eu sei, pois li no livro do Fernando Morais, que o avô de vocês salvou a vida do Assis Chateaubriand. Como é que aconteceu essa história? Eduardo: Nós ouvíamos essa história desde pequenos. Quando o Fernando Morais foi escrever o livro sobre o Assis Chateaubriand, ele enviou o Moacir Pereira

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The Zorden - Divulgação

Eduardo, entre o clássico e o rock’n roll. A bateria como linha mestra das composições.

a São Joaquim para entrevistar o nosso avô como forma de coletar informações. O interessante é que o Fernando Morais contou no livro exatamente como o nosso avô contava, ele foi muito fiel. Inclusive, depois, o nosso avô foi dar uma entrevista também para o Guilherme Fontes, que foi quem comprou os direitos do livro, e apareceu também num documentário. Rafael: Na época iria estourar a Revolução de 30, que tinha por objetivo empossar Getúlio Vargas. O que houve foi que os revolucionários fizeram uma reunião e decidiram não avisar o Chateaubriand, um jornalista muito famoso e poderoso, mesmo sabendo que ele era simpatizante da causa, pois sabiam que ele publicaria uma matéria. Os revolucionários foram para Porto Alegre sem avisar e o Chateaubriand resolveu ir mesmo assim, pois estava louco da vida por não ter sido informado. Ele pegou um avião e voou até Florianópolis, onde já havia soldados para prendê-lo. Então ele se disfarçou de padre e conseguiu fugir, indo de carro em direção à serra. Até que derrubaram um poste de telégrafo, queimaram os documentos pessoais no meio da viagem para não serem identificados. Chateaubriand chegou a São Joaquim e disse quem era, mas os revolucionários desconfiaram e resolveram fuzilá-lo por ordens do Major Bibiano. Não, esse cara não é o Assis Chateaubriand! Como ele estaria aqui em São Joaquim?! E realmente não fazia muito sentido, já que ele era o homem mais poderoso do Brasil. Foi uma história de cinema. Nosso avô, que trabalhava para os Diários Associados do Chatô, apareceu e disse que tinha um documento com a assinatura dele. Mandaram o Chateaubriand assinar o registro do

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hotel, compararam a assinatura com a da carteirinha e perceberam que os garranchos eram iguais. Mas há mais um detalhe também, que nossa avó Joaca contava: Chateaubriand olhou pela janela, quando estava na fazenda de meu avô, e disse: o que é que eu estou fazendo aqui neste cu? (risos).

Por exemplo, The Who, The Doors, The Beatles. Por isso, The Zorden.

João Paulo: Essa ninguém sabe, é exclusiva para a RDC.

Rafael: Cada um tem a sua profissão. Eu sou arquiteto e professor de música. O João Paulo é revisor de livros, formado em Letras.

Maicon: Nunca pensaram em pegar essa história e fazer algo similar a um Faroeste Caboclo? Ou melhor, um Faroeste Serrano? Rafael: Acabei de pensar! (risos). Fabrício: O nome da banda tem alguma relação com a música dos Titãs, Desordem, lançada nos anos 80? Rafael: Sim, queríamos fazer uma homenagem à música, que fala da situação do Brasil. Mesmo porque achamos o rock algo fora do contexto brasileiro, por ser algo estrangeiro. Desordem simboliza isso. João Paulo: Essa música era a única que tocávamos bem. Todo ensaio era uma festa, vinha gente assistir e tomar cerveja. Mas quando ia chegando gente, sempre acabávamos tocando Desordem e não as músicas mal ensaiadas. Tanto que um amigo chegou e disse: eu não vou mais no ensaio deles, só ficam tocando Desordem. E acabou, por brincadeira, se tornando um apelido e depois o nome da banda. Maicon: Quem teve a ideia de escrever dessa maneira o nome da banda? Rafael: O que acontece é que toda banda estrangeira de que gostamos tem o T-H-E.

Julia: Hoje vocês fazem uma média de quantos shows por mês? João Paulo: Quatro. Julia: E vocês são músicos em tempo integral ou tem outras ocupações?

Eduardo: Eu estou mais para o lado da música. Estou envolvido somente com isso. Dou aula de música, toco na orquestra da FURB e toco com a banda. Julia: E há projetos para os próximos anos? João Paulo: Sim, temos CDs, novas composições. Eduardo: Temos também dois clipes que queremos lançar para esse novo álbum. Que seriam duas músicas de trabalho. Maicon: Quais são? João Paulo: Infância, que já está tocando nas rádios. Eduardo: É muito legal porque fala sobre nossa própria infância em São Joaquim. E a outra é Teu Olhar, com letra do João Paulo. Hoje em dia são necessários vídeos para trabalhar as músicas. Os CDs já estão todos nas plataformas digitais: Spotify, Google Play Music, Apple, Deezer. Estamos apostando nisso também, trabalhando muito na internet, e pretendemos continuar com os shows. Rafael: Fora que pretendemos expandir para outras áreas, como a literatura. Quem sabe algo maior, uma ópera rock!

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The Zorden - Divulgação The Zorden - Divulgação

Rafael, o mais velho: arranjos nos teclados, guitarra e vocal.

João Paulo: baixo à Paul McCartney e letras com um lirismo típico do Clube da Esquina.

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John Pavelka- Wikimedia Commons

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INTERNACIONAL

COREIA DO NORTE: A CONSTITUIÇÃO DE UM PAÍS ORWELLIANO Thiago Kistenmacher Vieira

As leis e o cotidiano de uma nação comandada por uma dinastia familiar

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stamos novamente diante de uma crise que envolve a Coreia do Norte. Não é novidade que o governo desse país, o mais fechado do mundo, conturba o cenário geopolítico mundial. A principal questão do momento gira em torno das resoluções e sanções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, que surgiram devido aos últimos testes nucleares e ameaças feitas por Pyongyang. Acompanhando o noticiário e pesquisando o mínimo sobre a Coréia do Norte, o nome do país sempre está associado à ditadura. Não que isso seja gratuito, evidente. No entanto, a tensão política é deveras complicada para ser resolvida com frases prontas e slogans ideológicos. Além do mais, nenhum de nós tem acesso aos bastidores dos governos, onde as estratégias do jogo são realmente arquitetadas.

Com medo de que a atual situação possa sair do controle, os Estados Unidos e países aliados aprovam medidas para um embargo às importações de petróleo feitas pela Coreia do Norte. O embargo, contudo, não se resume ao petróleo. Segundo o jornal El País, além do “ouro negro”, as sanções suspendem as vendas norte-coreanas do setor têxtil, sua segunda maior fonte de exportações, e cessa o envio de gás natural. Isso sem falar na impossibilidade de admitir outros trabalhadores norte-coreanos para além dos 93 mil que a Coreia do Norte já enviou ao exterior. Mas qual foi a réplica norte-coreana quando soube desses planos? Foi dizer por meio do embaixador Han Tae-song que seu país“fará os Estados Unidos sofrerem a maior dor pela qual terão passado em toda a sua história”.

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O governo norte-coreano também reivindicou um “congelamento para o congelamento”, exigindo que os EUA e a Coreia do Sul interrompam seus exercícios militares. Nikki Haley, a embaixadora dos EUA no Conselho de Segurança da ONU, considerou a proposta um insulto e anunciou que é chegada a hora de esgotar todos os meios diplomáticos. É claro que entre os jogadores desse xadrez não existem inocentes. Conforme Edouard Balladour expõe em seu livro La Fin de l’illusion Jacobine, por mais variadas que sejam as justificativas para a guerra, o verdadeiro objetivo é a manutenção ou a ampliação do poder. É notório que há países que exercem maior influência sobre a ONU e outras organizações. Os Estados Unidos, evidentemente, é um deles. Mas não é por isso que as intimidações de Kim Jong-un

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Romain75020 - Wikimedia Commons

Estátuas de Kim Il-sung, o Presidente Eterno da Coreia do Norte, e Kim Jong-il, seu filho, no Grande Monumento Mansudae, na capital Pyongyang.

podem ser justificadas. Suas jogadas agressivas colocam em risco milhões de vidas inocentes e, por essa razão, Pyongyang deve sofrer um xeque-mate antes de virar o tabuleiro de cabeça para baixo. Esse xeque-mate, contudo, é mais fácil de ser aplicado pela China do que pelos EUA ou pela ONU. Toda essa estratégia contra a Coreia do Norte encontra dois fortes opositores: China e Rússia. Enquanto a embaixadora norte-americana pede que o Conselho de Segurança da ONU amplie as sanções contra a Coreia do Norte e é apoiada pelo Reino Unido e pela França, a China e a Rússia demandam mais diálogo. Sabemos que a China, responsável por 90% das exportações do país vizinho, é a maior parceira econômica da Coreia do Norte e, por isso, sempre exerceu forte influência sobre o governo de Pyongyang. Mesmo que o país mais populoso do mundo costume titubear diante das sanções internacionais contra o governo norte-coreano, não aprovando o comportamento excessivo do ditador Kim Jong-un, o país anunciou um embargo relacionado às compras de carvão da Coreia do Norte até o final do ano. Mas a colaboração chinesa teve um preço: exigiu que os EUA fossem menos severos no que tange às punições contra seu aliado. Aqui podemos ver, mais uma vez, como a Coreia do Norte não está iso-

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lada. Sem o aval da China, é de se duvidar que Kim Jong-un ataque qualquer um dos países ameaçados. Apesar disso, as ações de um governante inebriado pelo poder devem ser acompanhadas de perto.

Se as sanções parecem não conter o aumento da agressividade norte-coreana e uma guerra direta contra o país poderia gerar uma catástrofe, o que fazer?

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m julho deste ano a Coreia do Norte testou por duas vezes mísseis Hwasong-14. Conforme apontado por especialistas no assunto, tais mísseis teriam a capacidade de atingir os EUA e alcançar cidades como Chicago e Los Angeles. A rígida resposta norte-americana a toda essa tensão pode ser lembrada a partir de uma das declarações do presidente Donald Trump. Ele disse que a Coreia do Norte veria “um fogo e uma fúria jamais vistos no mundo”. É uma declaração dura, sem

dúvidas. Mas esse tipo de situação limite acontece quando não há a “política da prudência”, como defendia o historiador Russell Kirk. E como se não bastasse isso tudo, no dia 14/09/2017, uma agência norte-coreana retornou às ameaças. Pronunciou-se dizendo que poderão “afundar” o Japão e fazer com que os Estados Unidos sejam reduzidos a “cinzas e escuridão” devido às resoluções e sanções da ONU. É sempre assim: um radicalismo alimenta o outro até que a diplomacia desça para os campos de batalha e/ou suba aos ares em forma de mísseis. Mas e a Rússia? Costuma-se falar muito da influência chinesa, todavia a Rússia, assim como a China, poderia cortar o fornecimento de petróleo para a Coreia do Norte. Além do mais, segundo Artim Lukin, da Universidade Federal do Extremo Oriente, “a Rússia e a China estão ambas interessadas na manutenção do regime da Coreia do Norte, que encaram como uma espécie de tampão em relação às alianças norte-americanas no Nordeste Asiático”. A respeito da instalação norte-americana do Terminal de Defesa de Área de Alta Altitude na Coreia do Sul, Maria Zajárova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, declarou que Moscou considera o armamento muito perigoso, dadas as tensões já existentes na península coreana. Segundo ela,

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Kok Leng Yeo - Wikimedia Commons

Depois de ser destruída durante a Guerra da Coreia, a capital norte-coreana foi reconstruída refletindo a visão do seu então líder Kim Il-sung.

os armamentos lá instalados só servirão para avolumar ainda mais os problemas. Aqui observamos, de novo, que a Coreia do Norte não passa de um peão que depende de peças maiores. Fica a pergunta: afinal de contas, as sanções funcionam ou não? Aparentemente, mesmo com todas as exigências para que a Coreia do Norte interrompa seus programas com armas nucleares e testes balísticos, a economia do país parece ter tido um leve crescimento. Ademais, como não existe um acordo entre todos os países envolvidos no jogo a respeito da quantidade de carvão necessária para a sobrevivência do povo nem sobre o que seria ou não um artigo de luxo, existe formas de burlar as sanções, isso para não falar do contrabando. Mas não é só isso. Há ainda outro ponto fundamental e que deve ser considerado em disputas de qualquer natureza: o ressentimento. Quanto mais sanções forem aplicadas, mais o ressentimento norte-coreano poderá crescer. Esse é um ressentimento antigo e que existe em razão dos bombardeios indiscriminados feitos pelos EUA durante a Guerra da Coreia e sustentados pela “teoria de terra arrasada”, criada pelo general Douglas MacArthur, que defendia bombardeios sobre “tudo que se movia”. E quanto mais corpo esse ressentimento ganhar, mais preocupantes serão

as ameaças. Nessa conjuntura, surgem outras dúvidas: se as sanções parecem não conter o aumento da agressividade norte-coreana e uma guerra direta contra o país poderia gerar uma catástrofe, o que fazer? Tentar negociar? Atacar a Coreia do Norte mesmo sabendo que o Japão, a Coreia do Sul e os EUA correm o risco de

Não são e não foram poucas as ideologias e teorias políticas que, ao longo da história, buscaram justificar as mais nefastas ditaduras a fim de construir aquilo que seus adeptos dizem ser um mundo melhor.

serem atingidos por mísseis carregados de insanidade política? A quem interessaria a guerra? Caso a Coreia do Norte fosse atacada, como lidar com a ira russa e chinesa? É preciso muita cautela antes de mexer com qualquer uma dessas peças. Assim, a julgar pelos fatos, é provável que nenhuma guerra ocorra, pois a contenda não se resume ao antagonismo EUA x Coreia do Norte.

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E é assim que voltamos à velha oposição: Rússia versus Estados Unidos. A antiga polarização política parece não ter fim. Pode-se dizer isso porque desde a Guerra da Coreia, ocorrida entre 1950 e 53, a sobredita polarização política tem efeitos na península coreana. Na época da Guerra da Coreia, ocorrida durante a Guerra Fria, havia uma clara rivalidade geopolítica entre os Estados Unidos e o governo da ex-União Soviética. Naquele contexto, em razão da disputa armada que existia entre as duas coreias, houve um sério risco de outro conflito de grandes proporções.

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vista disso, é importante compreender, para além da discussão apaixonada e dos debates superficiais alimentados por “memes” e slogans ideológicos, o que é a Coreia do Norte. Dias atrás lemos outra ameaça norte-coreana contra o Japão. O comunicado dizia que “quatro ilhas do arquipélago devem ser afundadas no mar por uma bomba nuclear do Juche. O Japão não é mais necessário para existir perto de nós”. Talvez o leitor esteja se perguntando, afinal: mas o que é o Juche? Acredito que concordamos que a Coreia do Norte seja uma ditadura, pois além de possuir somente um partido e não permitir eleições, o governo proíbe a prática de qualquer religião e censura toda a mídia.

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Kok Leng Yeo - Wikimedia Commons

Soldados do norte em prontidão na Zona Desmilitarizada da Coreia — 4km de largura e 238km de comprimento separam as duas Coreias.

Mas uma ditadura de que espécie? Seria o regime norte-coreano um país socialista alicerçado no marxismo clássico? Não. A Coreia do Norte é um país que, a despeito do apoio internacional que recebe de alguns países, segue uma ideologia diferente daquela do marxismo adotado pela antiga União Soviética. O Juche, que pode ser traduzido como “autossuficiência”, é, grosso modo, uma mistura de marxismo e nacionalismo. Criado por Kim Il-sung, o avô do atual ditador, o Juche é a ideologia que guia a Coreia do Norte e o Partido dos Trabalhadores, aliás, o único partido do país. Essa ideia tinha como objetivo consolidar sua independência e sua autossuficiência bélica e econômica. Foi criada durante a Guerra Fria com o propósito de cortar a influência soviética e acabar com os rivais de Kim Il-sung. Mas não só. Segundo a Constituição norte-coreana, o Juche nasceu também com o intuito de guiar uma luta revolucionária anti-japonesa. Desde 1950 que Kim Il-sung buscava apoio da União Soviética, que acabou se envolvendo significativamente com o aumento do poder militar norte-coreano. Hoje o Juche é uma ferramenta teórica utilizada pelo governo de Pyongyang para justificar seu sistema ditatorial. De acordo com o Artigo 3 da constituição norte-coreana, a República Popular Democrática da Coreia “é guiada em suas atividades pela ideia Juche, uma perspectiva de mundo centrada no povo, uma ideologia revolucionária para alcançar a independência das massas”. Não é preciso ler muito sobre o regime norte-coreano

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para saber que, ao contrário do que diz a constituição do país, o povo é o último a ser consultado a respeito da revolução que foi feita em seu nome. Outra questão relacionada ao Juche diz respeito ao culto à personalidade. Segundo essa ideia, o líder teria um cérebro impecável num corpo vivo. Essa é uma das razões pelas quais o povo deve ser fiel a ele. Impossível não se lembrar do dogma católico da infalibilidade papal no que se refere à fé ou à moral da Igreja. O tom laudatório relativo ao culto ao líder pode

A política é um jogo de interesses bem mais complexos do que a paixão política e os slogans ideológicos podem explicar, a humanidade sempre fez guerras e enquanto existir vai continuar fazendo.

ser observado no preâmbulo da constituição norte-coreana, facilmente encontrada na internet. Se o líder norte-coreano é absoluto, o que é o povo, aquela entidade em nome da qual vários genocídios foram perpetrados? No livro Rogue Regime: Kim Jong Il and the Looming Threat of North Korea, Jasper Becker analisa a política norte-coreana e traz alguns posicionamentos que refletem a compreensão do que seria esse povo. Um deles enuncia: “sem o líder,

que é o cérebro, e o partido, que é o nervo, as massas permanecerão como cadáveres porque elas não são mais do que braços e pernas”. Ainda que alguns intelectuais insistam em defender o regime fazendo todo tipo de malabarismo teórico, pareceres como esse reduzem o povo a meros peões que rei manipula segundo sua vontade. Concebidas como “cadáveres” porque “não são mais do que braços e pernas”, o que poderiam fazer as ditas “massas” em face das ameaças nucleares do líder Kim Jong-un? Ainda segundo a constituição, o lema do fundador da Coreia do Norte seria: “acreditar no povo como no paraíso”. Além disso, a constituição também aponta que o fundador da Coreia do Norte “sempre esteve com o povo, devotou toda sua vida a ele, tomou conta, os guiou com uma nobre política de benevolência e transformou toda a sociedade em uma grande e unida família”. Tente contestar o governo norte-coreano e veja como o sucessor de Kim Il-sung trata a sua “família”. Um país que nasceu como promessa de liberdade, segundo o portal Portas Abertas, ocupa pelo décimo quinto ano consecutivo o primeiro lugar no ranking de perseguição aos cristãos, sendo seguido pela Somália e pelo Afeganistão. Alguns podem argumentar que o país detenha outra religião ou filosofia espiritual. A questão não é essa. O problema não é ter outra religião que não seja o cristianismo, mas sim prender ou executar aqueles que a seguem. De acordo com o Artigo 59, “a missão das forças armadas da RPDC é salvaguardar os interesses do povo trabalha-

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Roman Harak - Wikimedia Commons

“Foto de família”: norte-coreanos posam em frente ao Palácio do Sol de Kumsusan — nele estão abrigados os corpos de Kim Il-sung e Kim Jong-il.

dor, para defender o sistema socialista e os ganhos da revolução da agressão e proteger a liberdade, a independência e a paz do país”. Não obstante, em alguns aspectos, o que vemos na prática é exatamente o contrário. As forças armadas da Coreia do Norte podem até continuar defendendo o regime socialista, no entanto, nada mais convence de que elas estejam dispostas a salvaguardar a liberdade e a paz do país. Diferente do que preconiza a constituição, as forças armadas, que apesar de serem chefiadas por Kim Jong-un e não terem tanta autonomia quanto gostariam perante seus grandes guardiões, servem somente como ferramentas para intimidar a comunidade internacional, colocando não só seu próprio povo em perigo, mas também várias outras populações.

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ão são e não foram poucas as ideologias e teorias políticas que, ao longo da história, buscaram justificar as mais nefastas ditaduras a fim de construir aquilo que seus adeptos dizem ser um mundo melhor. A ideologia Juche é mais uma delas, pois os fatos ocorridos na Coreia do Norte, como as execuções, censuras e perseguições, depõem contra aquilo que promete a teoria. Sendo uma ideia criada a partir de uma mente revolucionária disposta a moldar a realidade de um país conforme as abstrações de um líder, a ideologia Juche pode ser incluída naquilo que Edmund Burke (1729-1797) chamou de closet theories, ou “teorias de gabinete”. Revoltar-se contra um mundo injusto e violento não deve servir como pretexto para a criação de mais injustiça e

violência, como no caso da ex-União Soviética, que acabou por dividir a esquerda. Pouco antes de finalizar o presente texto, leio que o regime norte-coreano lançou outro míssil que passou sobre o Japão e alcançou uma distância de 3.700 quilômetros. O míssil caiu no mar durante a noite. O objetivo da Coreia do Norte, conforme declarou Kim Jong-un, “é estabelecer o equilibro de força real com os EUA e fazer os governantes americanos não ousarem a falar de opção militar conosco”.

A Coreia do Norte é um país que, a despeito do apoio internacional que recebe de alguns países, segue uma ideologia diferente daquela do marxismo adotado pela antiga União Soviética. Respondendo à provocação, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou que “depois de verem nossa capacidade, tenho mais confiança do que nunca de que nossas opções são não apenas efetivas, mas também esmagadoras”. Já o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, H.R. McMaster, disse que a diplomacia norte-americana está chegando ao fim. E o ciclo continua. Apesar de todas as perigosas ameaças feitas por Pyongyang e sua ideologia de “autossuficiência”, a Coreia do Norte é um peão que, para transitar

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pelo tabuleiro político, sempre necessitou de suporte internacional. Sozinho o país não poderia fazer muita coisa, por isso serve como um instrumento para que os verdadeiros reis desse jogo continuem disputando territórios, zonas de influência e poder, enquanto os povos dos países envolvidos correm o risco de desaparecer do mapa. Basta movimentar uma peça na direção errada para frustrar ainda mais qualquer esperança de paz. O ditador Kim Jong-un pode ser caricato, mas suas ameaças não são nada engraçadas. Toda essa confusão faz lembrar Carls von Clausewitz (1780-1931), que disse que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Se as sanções não funcionarem, talvez alguém queira se valer desses “outros meios” para que esse preocupante jogo político seja encerrado. Isso, claro, originaria conflitos com a China e a Rússia. Por isso mesmo é improvável que ocorra uma guerra real entre os EUA e a Coreia do Norte. Além do mais, danificaria aquilo com o qual as potências internacionais mais se preocupam: seu comércio exterior que, para eles, sabemos, sempre importou muito mais do que todos os milhões de vidas desperdiçadas. A política é um jogo de interesses bem mais complexos do que a paixão política e os slogans ideológicos podem explicar, a humanidade sempre fez guerras e enquanto existir vai continuar fazendo, sejam elas por meio de conflitos bélicos ou contra-informação. Espera-se que a situação não se agrave ainda mais e que algum dia a democracia dessa Coreia encontre seu verdadeiro norte.

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CULTURA

O MODERNISMO BRASILEIRO EM ESQUADROS Jussará Bittencourt de Sá

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e repente, em algum momento, queremos arte. Estamos como por entre os versos da canção. A vontade de escutar, ler, ver, sentir envolve como segunda pele. Precisamos da palavra, da imagem, do som... Procuramos palavras, as minhas e as deles, em todos os muros e murais. E em melodias, cifras, sussurros. Capturamos imagens. Precisamos da arte para lembrar, evadirmos de um momento, de um lugar. Precisamos da arte para marcar/testemunhar nossa presença humana. De fato, essa procura registra-se pela (e na) tradução dos sentimentos. O verbo e/ou o não verbo possibilita(m) o artista e o espectador. Escrever sobre arte implica pensar nossa existência. Sei bem que muitas obras representariam essa profusão de sentimentos que atropelam nosso pensamento no momento em que resolvemos refletir sobre a arte. Uma delas parece conjugar em tempo e modo esse instante: o poema Dedicatória, de Mario de Andrade. Os versos do poeta modernista poderiam nos dar pistas dessa magia alquímica: Lê com vagar. Repara/Para/A beleza do verso;/Vê como o vate ardente/ Sente/O mundo tão diverso!…/Mas, que não te entristeças;/Nessas/Linhas, não há verdade./Vive sempre a florida/Vida/Entre a felicidade. Mario de Andrade e suas linhas poéticas encontram eco/reflexo em Ernst Fischer: “A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente”. Pensar a arte também é decalcá-la da história, e esses versos de Mario de Andrade apontam do mesmo modo para o contexto de onde se decalca.

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Uma análise do movimento que alterou a cultura nacional. Período, arte e literatura Arte faz História A História humana tem suas linhas contadas pela Arte. Falar sobre arte também nos remete a pensar sobre a liberdade. Ambas ensejam reflexões sobre mudanças, rupturas, novos olhares, diferentes ideologias. Pontos e contrapontos. Percebo que muitos artistas conseguem mudar não só seu tempo, como também influenciar tempos futuros. Conforme sublinha o mesmo Fischer, “a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas a de abrir portas fechadas”. E é sobre os artistas e o abrir de portas que gostaria de destacar a Semana de Arte Moderna de 1922. No Brasil da República Velha (18891930), a Semana de Arte Moderna marcou as comemorações do primeiro centenário da Independência do Brasil e deflagraria o Movimento Modernista. Alguns alinhavos lançados nos anos anteriores dariam início a modernos bordados. Há cem anos, em 1917, a exposição de Anita Malfatti causou impacto. Mais de 50 obras. Formas provocativas. A revelação do novo aparecia em concepções bem-recebidas por Mario de Andrade e Di Cavalcanti. Entretanto, a mesma exposição seria criticada por Monteiro Lobato no artigo Paranoia ou mistificação?, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de dezembro de 1917.

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura (...) A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...) E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma “moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia-dúzia desses adjetivos “bombons” que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.”

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Fundado em 1911, o Teatro Municipal de São Paulo sediou os eventos da Semana de Arte Moderna nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922.

Outro acontecimento em 1917 foi o lançamento de A cinza das horas, de Manuel Bandeira. Os poemas foram compostos durante o período em que Bandeira lutava contra a tuberculose. Podemos observar os versos denunciando o sentimento de agonia diante do fim. Meu verso é sangue. Volúpia ardente. /Tristeza esparsa... remorso vão.../Dói-me nas veias. Amargo e quente/, Cai, gota a gota, do coração. Bandeira declarou que publicou o livro “ainda que sem intenção de começar carreira literária: desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente”. Em 1919, a composição em versos livres e a irreverência poética desenhariam as cores da obra Carnaval, de Manuel Bandeira, que continha uma crítica direta aos parnasianos: Enfunando os papos,/Saem da penumbra,/Aos pulos, os sapos./ A luz os deslumbra. // ... O sapotanoeiro,/Parnasiano aguado,/Diz: — “Meu cancioneiro/ É bem martelado. /Vede como primo/ Em comer os hiatos!/Que arte! E nunca rimo/ Os termos cognatos. //O meu verso é bom/Frumento sem joio./Faço rimas com/Consoantes de apoio.

Após lançados esses e outros pontos, o grande encontro dos Magos da Arte, realizado entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, entrou para a história da cultura brasileira. A irreverência — das ideias novas e conceitos e pré-conceitos artísticos —, emolduraria o modernismo. Foram três sessões literomusicais noturnas. A reunião de cerca de cem obras, quadros, poemas, esculturas e canções ilustrou o evento. A Semana foi polivalente. O professor Alfredo Bosi destaca que a formação dela foi articulada a “situações socioculturais que marcaram a vida brasileira desde o começo do século”. A influência europeia e o desejo de uma brasilidade sentavam juntos à mesma mesa. Ainda que contaminados pelos vanguardistas europeus, os artistas brasileiros evidenciaram uma renovação da linguagem. Urgia a ruptura com o passado, e, principalmente, a liberdade de criação. Segundo Elizabeth Travassos, a modernidade entraria com “ênfase na atualização estética e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso modo pelo romantismo, na música, e pelo parnasianismo, na poesia”.

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O escritor Guilherme de Almeida (1890-1969) declarou que “São Paulo devia, par droit de conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da libertação intelectual”. A Semana de Arte Moderna promoveu também a Klaxon, a primeira revista Modernista do Brasil, com lançamento em 15 de maio de 1922. Aludindo à barulhenta buzina de automóvel, Klaxon mostravase aberta à experimentação das novidades daquele moderno mundo que se iniciava. No editorial, a palheta da aquarela-identidade: Klaxon sabe que a vida existe. E, aconselhado por Pascal, visa o presente. Klaxon não se preocupará de ser novo, mas de ser atual. Essa é a grande lei da novidade. (...) Klaxon sabe que o progresso existe”. Entre outros artistas e escritores, participaram da revista Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral e Graça Aranha. A Semana de Arte Moderna provocou pela irreverência e matizou o quadro do Modernismo. Decorridos 95 anos, ainda pode ser considerada Moderna.

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O Modernismo da década de 1920 Um dos porta-vozes do Movimento Modernista de 1922, Menotti del Picchia (1892-1988), declarou: “rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’, no entanto, em matéria de arte e de política, São Paulo continua e continuará com a batuta e a liderança [...]”. Escrito antes de 1922, e só publicado em 1924, o romance Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, anteciparia a linguagem do Modernismo Brasileiro. Vale lembrar que a procura por uma identidade nacionalista própria, com liberdade de expressão, teve como protagonistas: Na Pintura: Anita Malfatti; Di Cavalcanti; Vicente do Rego Monteiro; Inácio da Costa Ferreira; John Graz; Alberto Martins Ribeiro; Oswaldo Goeldi. Na Escultura: Victor Brecheret, Hildegardo Leão Velloso e Wilhelm Haarberg, que pretenderam inovar pelas linhas e formas, romper com as tendências acadêmicas. Victor Brecheret recebeu destaque. Na Música: Heitor Villa-Lobos, Guiomar Novais, Frutuoso Viana e Ernâni Braga. Durante as três noites, Heitor Villa-Lobos escandalizou os puristas ao mesclar instrumentos populares de congado, folhas de zinco e tambores com a música de orquestra. Na Arquitetura: Antônio Garcia Moya e Georg Przyrembel. Os traços de Moya registraram influência espanhola e pré-colombiana, além de estilização indígena. No Teatro: Eugênia Álvaro Moreyra. A renovação teatral, as campanhas culturais e a divulgação do teatro foram contribuições de Eugênia, que atuou como atriz, diretora, tradutora e declamadora. Na Literatura: Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Renato de Almeida, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto. Manuel Bandeira estava doente durante o evento. A Arte representa a vida. As ideias efervesceram a arte. Ideologias. Conflitos. “Nenhuma fórmula para a moderna expressão do mundo. Ver com olhos livres”. Identidades pelas Artes em Movimentos e Manifestos A vida, as ideologias, os diferentes panoramas tonalizaram a década de 1920. As vidas representadas receberam cadências nos Movimentos e Manifestos do Modernismo da década de 1920. Um dos exemplos foi o Movimento Pau-Brasil. Idealizado por Tarsila do

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Amaral e Oswald de Andrade, o movimento conjugou as linhas da pintura com as dos versos e prosa. Este foi deflagrado quando, em 18 de março de 1924, o jornal carioca Correio da Manhã publicou o MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL, assinado por Oswald de Andrade. Em suas linhas, o Manifesto declarava que “a poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. A arte procurava por versos que redescobrissem o mundo e o Brasil. Linhas e formas imprimiam os ideais. As obras Morro da Favela (1924) e O mamoeiro (1925), de Tarsila, representavam, com intenso colorido, uma paisagem urbana brasileira, a ocupação dos morros. Era a temática tropical resgatada, a valorização da brasilidade em diferentes etnias, com a paisagem urbana das pequenas cidades. A influência cubista aparece pela simplificação e estilização das formas.

A influência europeia e o desejo de uma brasilidade sentavam juntos à mesma mesa. Ainda que contaminados pelos vanguardistas europeus, os artistas brasileiros evidenciaram uma renovação da linguagem. Urgia a ruptura com o passado, e, principalmente, a liberdade de criação.

Entretanto, marcando oposição ao que os literatos consideravam o “nacionalismo afrancesado” de Oswald de Andrade, ainda em 1924 Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado fundam o Movimento Verde-Amarelo. Os argumentos pontuavam o patriotismo com tendência nativista. Elegendo a “anta” como símbolo nacional, em 1927 o Movimento Verde-Amarelo transformou-se na Escola da Anta, ou Grupo Anta. “Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade. Seu totem não é carnívoro: Anta. É este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi. [...]”

Em maio de 1929, o Grupo da Anta publica no Correio Paulistano o Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo: “Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. Há sete anos que a Literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de os revelarmos, livres de todos os prejuízos”. Dos idealizadores do Grupo da Anta, o modernista Plínio Salgado, com base ideológica no fascismo italiano, empreenderia o integralismo. Pontuaram restrições à capacidade dos intelectuais brasileiros de pensarem o Brasil com independência intelectual. Nos versos de Menotti del Pichia, o homem foi sempre assim... /Em sua ingenuidade/teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,/e oculta-o sem saber se depois o achará...//E, quando vai buscar sua felicidade,/ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,/escondeu-a tão bem, que nem sabe onde está ! Outro movimento surgiria. A ideologia do Movimento Pau-Brasil foi aprofundada pelo Movimento Antropofágico. O movimento cultural tomou forma e foi tematizado no Manifesto Literário escrito por Oswald de Andrade. As linhas do Manifesto foram lidas para seus amigos na casa de Mario de Andrade e publicadas na Revista da Antropofagia. “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi, that is the question. (...) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Nos versos do poema Erro de Português, Oswald de Andrade canta: Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Esse movimento imprimiu-se como um divisor de águas para o Modernismo brasileiro. Questões sociais e coletivas começaram a ocupar espaço na arte antropofágica. Trata-se de um desdobramento do Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade. Teve duas fases (dentições): a primeira, com 10 números (1928 e 1929); a segunda, com publicação semanal, em 16 números, no jornal Diário de São Paulo (1929).

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A Prosa Modernista Todas as manifestações artísticas foram relevantes para o Modernismo. Em especial, é válido destacar a literatura. Esta colocou em cena, em sua primeira fase, escritores como Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. O interessante é também constatar que, décadas depois, obras desses autores receberiam uma nova roupagem na tela do cinema e da televisão. Em suas épocas, os romances e contos desenhados por provocações se insurgiram. Erotismo, ideologia política, crítica social e acontecimentos históricos eram, enfim, muitas das temáticas que percorriam as linhas da prosa dos nossos literatos. Concordo com Gaston Bachelard ao pontuar a arte também como “uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono”. A cada leitura, percebemos o jogo da linguagem. Ficção na realidade, realidade na ficção. Prosa-poesia, romance-cinema. A literatura em cena. Se, por um lado, a ficção é o tom que matizava as linhas literárias, por outro, a realidade influenciava os lances, enlaces e arremates mais fortes na tessitura da obra. O escritor recriava/ representava e provocava a vida de seu tempo pela palavra.

Tarsila do Amaral. O mamoeiro, 1925. (Instituto de Estudos Brasileiros — São Paulo).

Mario de Andrade: lições em contradições do verbo amar Por causa do romance Amar: Verbo Intransitivo, publicado em 1927, Mario de Andrade recebeu muitas críticas em virtude do desnudamento de um assunto que era vivenciado pela sociedade, mas não deveria ser discutido. A obra é colorida pela irreverência, pioneirismo e ambiguidade já instaurada pelo título. Amar é verbo intransitivo. Amar não permite transitar. Amar, verbo intransitivo não é composto por capítulos, mas por cenas, episódios-flashes. A transição de uma cena para outra acontece por meio da mudança de cenário, e é marcada apenas pelo espacejamento padronizado graficamente. A história aborda o envolvimento de um jovem de família da elite cafeeira paulistana, Carlos, 16 anos, com a empregada Elza/ Fräulein, 36 anos. Esta, embora desempenhe papel de governanta, é contratada pela família Sousa Costa para a iniciação sexual de Carlos. O enredo desenvolve-se basicamente em um bairro de São Paulo chamado Higienópolis. A casa da família burguesa do patriarca dr. Felisberto Sousa Costa é o principal cenário na trama. Embora não sejam fornecidas muitas informações sobre o perfil das perso-

Tarsila do Amaral. Morro da Favela, 1924. (Coleção Particular).

Tropical, de Anita Malfatti, 1917. (Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo).

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Exposição de Tarsila do Amaral no Rio de Janeiro, em 1929. Da esquerda para a direita: Pagu, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. nagens, o enredo é tecido por elementos e momentos com profundidade. A obra é densa e reflexiva. Muitos seriam os pontos a serem evidenciados. Podemos citar como exemplo o espaço da casa na obra de Andrade. De acordo com Bachelard, a casa se configura como “um verdadeiro cosmos”, o “primeiro universo”. A casa é abrigo, acolhe e faz sonhar; na casa pode-se desfrutar a solidão. Ainda segundo Bachelard, “a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”. Observo que no romance de Mario de Andrade, como palco principal da trama, a casa simboliza o poder da fábrica/ família. Em uma passagem da narrativa, o narrador comenta: Fräulein era pras pequenas a definição daquela moça... antipática? Não. Nem antipática nem simpática: elemento. Mecanismo novo da casa. Mal imaginam por enquanto que será o ponteiro do relógio familiar que reifica a personagem. Percebemos que a casa simboliza não só o primeiro universo, mas também a família, e, como tal, se insere como estrutura de poder perante a personagem. Ao longo da narrativa vamos confirmando que Fräulein é certamente um mecanismo ou ponteiro que determinaria a passagem na vida da família, em especial na vida de Carlos, e é, também, um mecanismo que desvela a hipocrisia familiar:

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Carlos entrara no quarto de Fräulein. Mal tivera tempo de. Porém já machucara a amante, cruzando as pernas sentado. Tatão, tão, tão! — Abra! Meu Deus! entra Sousa Costa — Que está fazendo aqui, diga! — Nada, papai... Flébil, flébil, nem se ouvia. Sousa Costa acreditou que era um grande artista dramático. Voltou-se pra Fräulein. Por lembranças românticas franziu a testa. — Ela não tem a culpa! De pé agora, relampeando em nítida franqueza, heroico. —O senhor tenha a bondade mas é de ir já pro seu quarto! Já vou lá também! Carlos baixou a cabeça, partiu. Francamente: não soube que partia. Não soube que chegou no quarto. Não soube que se encostou na guarda da cama, senão caía mesmo, plorúm! desmanchado no chão. Não soube o tempo que passou. Nada. Enxergou a porta se abrindo. (...) — Ela não recebeu dinheiro! — Ah?! então você pensa que ela partia assim, sem nada, não é!... Ao considerar já cumprido seu trabalho (ou se sentir ameaçada pelo possível envolvimento afetivo), Fräulein deter-

mina o fim de mais um tempo. Acorda o flagrante com Felisberto. Como podemos observar, ao encontrar o filho no quarto da alemã, se declara indignado com a indecência da situação. É uma casa de respeito. Assim, em nome da moral e dos bons costumes, Fräulein vai embora. Em 1975 foi lançado o filme Lição de Amor, dirigido por Eduardo Escorel, baseado em Amar, verbo intransitivo. A obra de Mario de Andrade jogava linhas para que outra obra fosse tecida. O filme aproxima a linguagem literária, teatral e cinematográfica. Seu elenco é protagonizado por Lilian Lemmertz, como Fräulein; Rogério Fróes, como Felisberto Souza Costa, Irene Ravache, como Laura Costa, e Marcos Taquenel, como Carlos. O filme foi vencedor do Festival de Gramado, recebendo os prêmios de melhor atriz, Lilian Lemmertz; melhor trilha sonora, Francis Hime; e melhor diretor, Eduardo Escorel. A Associação Paulista de Críticos de Arte concedeu a Irene Ravache o de Melhor Atriz Coadjuvante. O fato é que, mesmo publicado há quase um século, Amar, verbo intransitivo ainda provoca nossa leitura, tanto pela sua qualidade como por sua irreverência e pioneirismo. Ouso afirmar que, ainda, hoje, observado por outros focos, Amar, verbo intransitivo nda pode ser considerado, por alguns, politicamente incorreto.

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Alguns flashes das Memórias Sentimentais de João Miramar Outra obra que gostaria de destacar é o romance Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, publicado em 1924. Nesta, o modernista desenha a narrativa de forma peculiar, inovadora, conduzindo-nos à quebra de uma leitura tradicional e linear da história. Em sua totalidade, são 163 episódios curtos e numerados. Assemelha-se mais a uma sequência de filme do que capítulos de romance. As personagens sinalizam ironia caricatural, satirizando os diferentes tipos sociais da sociedade paulistana do início do século XX. O enredo apresenta a história de João Miramar. Filho de classe burguesa, viaja à Europa e retorna ao Brasil em virtude da morte da mãe. O protagonista casa-se com a prima Célia, e mantém, ao mesmo tempo, um romance com a atriz Mademoiselle Rolah. O desquite, a viuvez, a falência em virtude dos gastos com empreendimentos cinematográficos e o abandono da amante amadurecem João Miramar. Nos últimos fragmentos, o enredo apresenta o protagonista mais maduro. Este escreve as memórias a que o leitor tem acesso. No livro, Oswald de Andrade representa a São Paulo dos anos 20 e 30, por meio de flashes, como lugar de oportunidades e ascensão social. A forma como se apresenta a narrativa é algo peculiar. Assemelha-se à linguagem cinematográfica. São flashes do tempo. O tom lírico permeia cenas, como em “Pelada”: Agora todas as manhãs, eu surgia esperá-la na sala de visitas. Ela demorava-se mas descia rápida e atirava-se contra minha boca sensual e medrosa. Falávamos alto para disfarçar. Ela corria os dedos pelo teclado fazendo ressoar uma escala vadia pela casa. Uma vez olhou-me muito, deixou o tamborete e num gesto esbelto, descobriu-se toda levando aos ombros o ligeiro roupão em que se envolvia. E a branca e nua dos pequenos seios em relevo às coxas cerradas sobre a floração fulva do sexo, permaneceu numa postura inocente de oferenda. A leveza toca imagens da casa. A personagem é descrita com erotismo e leveza. São imagens que tonalizam o lírico-erótico encontro de João Miramar com Mademoiselle Rolah. Tempos depois, esta obra de Oswald de Andrade vai receber também espaço nas telas do cinema, pelas linhas do enredo do filme O Homem do Pau-Brasil, lançado em 1981.

Na obra dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, diferentemente do livro, o enredo também mostra a história do protagonista que viaja à Europa e retorna ao Brasil. Entretanto, no enredo cinematográfico, o protagonista é o jornalista e escritor Oswald de Andrade. Trinta personagens compõem o elenco. Dentre eles, Ítala Nandi, como Oswald de Andrade 1, Flávio Galvão, como Oswald de Andrade 2; Regina Duarte, como Lalá; Cristina Aché, como Dorotéa; Paulo Hesse, como Mario de Andrade; Carlos Gregório, como Menotti Del Picchia. Em 1981, O Homem do Pau-Brasil recebeu o troféu Candango de Melhor Filme e Melhor Atriz.

No Brasil da República Velha (1889-1930), a Semana de Arte Moderna marcou as comemorações do primeiro centenário da Independência do Brasil e deflagraria o Movimento Modernista. Os ingredientes e temperos d’ As Cinco Panelas de Ouro Outra obra modernista que provoca reflexões e também recebe outra linguagem é As Cinco Panelas de Ouro, de Antônio de Alcântara Machado. Publicado em Contos Avulsos, em 1936, tem ingredientes de um conto fantástico. Chamo a atenção para a atualidade de muitas questões colocadas em cena por Alcântara Machado. Esse conto provoca-nos uma leitura instigante. O enredo é ambientado no interior paulista, na década de 1930, na pequena cidade de Jataí. As questões políticas da época colocadas em cena são ingredientes nas panelas que preparam o enredo. Na história, embora composto pela ala Verdadeira e ala Legítima, o PRP é um partido único que controla o poder do lugar. Acontece a revolução de 1930. A política local está assim com um partido divido: Aqueles eram os perrepistas. Estes os oposicionistas. Luta local só. Os antiperrepistas também pertenciam incondicionalmente ao P. R. P. Até que veio o movimento revolucionário de outubro de 1930. (...) A revolução venceu no Rio! O Washington fugiu! (...) Mas de repente juntinho deles explodiu com tanta violência um Viva o Doutor Getúlio Vargas que os três até recuaram de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva.

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O misticismo é um ingrediente na trama. Esmeralda, esposa de Nicolau, um dos controladores da facção Verdadeira, tem sonhos que costumam se concretizar. Em um de seus sonhos, o pároco da cidade, já falecido, Padre Dito, informa a Esmeralda sobre a existência das cinco panelas de ouro que se encontram enterradas em seu túmulo. A notícia do sonho provoca, entre os moradores, corrida desenfreada pelo ouro. A religião, ou melhor, as religiões são temperos adicionados em porções de ironia à narrativa. No caso do Espiritismo, Alcântara Machado coloca em cena médiuns com dons e propósitos duvidosos. Por essa época Dona Esmeralda tinha seus dezesseisdezessete anos e já por qualquer coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois chorava, chorava depois ria... Dá uma boa médium, pensou Dona Gertrudes... Espiritismo é como música. No caso da Religião Católica, há críticas e ironia também. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro havia grossa patifaria. Sobre as religiões é interessante avaliar na trama que, em sonhos, é o Padre Dito que se comunica com a médium Esmeralda. Às ordens, Padre Dito. Você conhece meu túmulo? Conheço, sim senhor. No meu túmulo tem cinco panelas cheinhas de ouro. Sim senhor, Padre Dito. Você vá lá, desenterre as panelas. Ao sonho de Esmeralda, Alcântara Machado acrescenta ainda outro tema: a prática de enterrar tesouros em panelas. Esse tema/ingrediente permeia o imaginário em narrativas desde nossos antepassados. Muitos afirmam que se trata de uma prática dos imigrantes diante de uma situação de conflito. Esses, à mercê de serem obrigados a entregar seus pertences aos soldados, ou inimigos, colocavam o ouro da família em uma panela de cozinha e a enterravam em algum ponto da propriedade. Escondida a panela, ficaria segura para ser desenterrada depois de passado o conflito. No romance, é justamente a procura pelas panelas que provoca a morte de Nicolau, marido de Esmeralda. A obra de Alcântara Machado recebe, cinco décadas depois, uma adaptação para a televisão. A telenovela As Cinco Panelas de Ouro, de Sérgio Jockymann, composta por 20 capítulos, foi exibida pela TV Cultura em 1982. Na narrativa televisiva, às panelas são adicionados outros ingredientes. Nes-

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Wikimedia Commons.

No Rio de Janeiro, em 1936, reunião de escritores, artistas plásticos, políticos e comunicadores que de alguma forma colaboraram com o Modernismo.

se ponto a trama é protagonizada por Isolina da Silva Prates, filha de seu Zequinha da Silva, casada com Dadau Prates, porém grávida do ex-noivo, Afonsinho Henriques Mourão. O relacionamento amoroso, as suspeitas de traição são também ingredientes com sabor potencializado. Mais de trinta personagens compõem o elenco, protagonizado por Luiz Armando Queiroz, como Afonsinho Henriques Mourão; Elaine Cristina, como Isolina da Silva Prates; Renato Borghi, como Dadau Prates; Walter Breda, como Nicolau da Foz; Sandra Barsotti, como Esmeralda. Essas reflexões, embora breves, procuram evidenciar que a obra modernista toca e ilumina outras obras, o que nos permite pensar que a linguagem é a estratégia, é o jogo, é o canal. Por falar em canal, é interessante destacar também que essas obras adquirem ainda adaptações por meio de vídeos realizados por estudantes neste nosso tempo, que estão disponíveis no YouTube. E a assistência aos vídeos provocanos ainda outras e outras reflexões. Não há dúvida que muito se tem por falar sobre esses romances dos modernistas, muito mais ainda ficará latente em

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nosso dizer, ou melhor, ainda por dizer. De repente, dizer “com olhos livres”. Poesia: sobre alguns versos da Primeira Geração Modernista Umberto Eco afirma que cada pessoa que lê uma obra, cada leitura, mesmo que esta “professe os critérios técnico-estruturais, deve e pode encontrar uma relação emocional e intelectual, descobrir uma visão do mundo e do homem”. Na arte, artista e leitor projetam-se, encontram-se. A arte provoca, representa e redescobre o mundo, do artista e do leitor, com suas pluralidades e singularidades. Creio que, a cada olhar, cada momento, muitas e muitas percepções vamos apreendendo das artes que lemos. E assim, por versos das poesias dos escritores do primeiro momento do Modernismo, percorrendo por suas linhas, tento arrematar um pouco da vida suas essências. Dentre as muitas, localizo o tempo, seu estar no tempo, sua marcação. Percebo que, em diferentes cantares, podem também ser as linhas que entrelaçariam a poesia de Manuel Bandeira, Cassiano Ri-

cardo, Menotti Del Picchia e Guilherme de Almeida. Em Manuel Bandeira, o tempo, sua efemeridade e a enfermidade tonalizam os versos, no seu metapoema: DESENCANTO Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, deixando um acre sabor na boca. — Eu faço versos como quem morre”.

E, por entre as linhas, chegando com o Modernismo, o tempo, o passar das horas e seu ritmo. No tempo, a vida dança, como cantam os versos de Guilherme de Almeida:

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A DANÇA DAS HORAS Frêmito de asas, vibração ligeira de pés alvos e nus, que dançam, tontos, como dança a poeira numa réstia de luz... São as horas, que descem por um fio de cabelo do sol, e vivem num contínuo corrupio, mais obedientes do que o girassol. Dançando, as doze bailarinas tecem a vida; e, embora irmãs, não se vêm, não se dão, não se parecem as doze tecelãs! (...) Assim, depois que a estranha sarabanda na sombra se dilui, penso, vendo o outro bando que ciranda em torno do que fui, que há uma alma em cada gesto e em cada passo das horas que se vão: pois fica a sombra de seu véu no espaço, fica o silêncio de seus pés no chão!...

Em Dança das horas, a brevidade do “Desencanto”. A efemeridade na vibração ligeira, feixe de luz que está sempre por um fio. À procura pelo tempo nas linhas da poesia modernista, encontro O Relógio. Os relógios e o tempo nos instigam. Quando se é mais jovem, eles nos são encantadores. Depois que vieram para as algibeiras e para os pulsos, parece que nunca mais deixaram de habitar o corpo humano. Hoje, estão ainda mais próximos. Temos relógios “smartphones”, ou, ao contrário, “smartphones” relógios. Tanto faz. Depois de um tempo, os relógios, embora nos encantem ainda, podem nos assustar. Isso é fato para muitos de nós. “O Tempo não pára”. Vejo na arte e na vida o Tic-tac. Relógio do sol, relógio d’água, Stonehenge, La persistencia de la memoria, de Dali. Dos universos dos tempos, o tempo em versos. Nos versos d’O relógio, Cassiano Ricardo canta:

A literatura é provocativa. O relógio é matéria e ilusão. Ele, ao mesmo tempo que nos dá a consciência de que o tempo passa, nos ilude, fazendo-nos pensar que, ao medi-lo, temos domínio sobre ele. Conforme Cassiano Ricardo, Tic, “nunca é mais. Tac, sempre é menos. Tic, do não ser. Tac, e não do ser... Tic-tac”. Cassiano Ricardo marca a melodia da vida, tão breve quanto efêmera, num tic-tac que se esvai em que desabrochar.

Arte

A História humana tem suas linhas contadas pela Arte. Falar sobre arte também nos remete a pensar sobre a liberdade. Ambas ensejam reflexões sobre mudanças, rupturas, novos olhares, diferentes ideologias. Pontos e contrapontos.

Nesse jogo de linhas, ou melhor, de versos, o tic-tac da vida também é matéria poética de Menotti Del Picchia. Se o tempo é breve e a vida um desafio que nos escorre pelas mãos, é preciso cantar enquanto ainda vislumbramos a oportunidade; esgotar a voz que nos ecoa na garganta enquanto não se esgota a oportunidade, no desenrolar e no esvair-se da vida. Voo Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti. Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo. Que sabes tu do fim? Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para o mais alto. No deslumbramento da ascensão se pressentires que amanhã estarás mudo

Diante de coisa tão doída conservemo-nos serenos.

esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e

Cada minuto de vida nunca é mais, é sempre menos. Ser é apenas uma face do não ser, e não do ser. Desde o instante em que se nasce já se começa a morrer.

Diferentes universos, sentimentos uníssonos. Nas “(...) horas vêm/ as horas vão ... não em vão”. Ler os versos implica também conhecer e se reconhecer por entre os meandros das linhas que as tecem e delas se desdobram. Como não se reconhecer? Cabe a cada leitor a emoção descobrir...

de vitória. Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que um voo no tempo. Rumo do céu? Que importa a rota. Voa e canta enquanto resistirem as asas.

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A procura pela arte evidencia sua capacidade de registrar pela tradução dos sentimentos. O verbo e/ou o não verbo possibilita(m) o artista e o espectador. Independentemente da corrente ideológica que os modernistas seguiram, todos tinham o mesmo objetivo de tentar compreender a nacionalidade brasileira e procurar reconhecer uma identidade nacional. A arte das décadas seguintes apareceria engendrada das poções dos mágicos alquimistas. Decalcaram o verbo e o não verbo. Retornando a Mario de Andrade, em fala sobre seu tempo, observo que o escritor destacou a positividade do Modernismo. Conforme suas palavras, “manifesto especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”. Embora decorrido quase um século, percebo que muito ainda se tem a pesquisar, (re)ler, (re)descobrir e sentir sobre a Semana de Arte Moderna e os modernistas da década de 1920. Falar sobre o tema implica reflexões sobre um (uni)verso em constante movimento. A cada olhar há uma provocação, algo por se refletir. A arte dos modernistas se revela como poção/emoção com cores/sons, linhas e entrelinhas interpelantes, liberadoras. E, mesmo que proclamasse o novo, o efêmero, contrapondo-se ao passado, eterniza-se pelas palavras dos pares e dos contrários. Mas não apenas: o Modernismo de então ia de diacronias a ferrenhas sincronias — as âncoras — de onde se fez enunciado e enunciador em projeções que nos alcançam também contundentemente em nossa atualidade. Falar sobre arte é pensar sobre esse preciso/precioso... com sua magia alquímica que nos possibilita, além de tudo, transitar pelos tempos que não param...

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ATUALIDADE

DA RBS SC À NSC André Souza Martinello e Magali Moser

A história e os dilemas do monopólio da Rede Globo no sul do Brasil

T

alvez o entretenimento predominante na programação da TV Globo e o conjunto geral das temáticas apresentadas façam com que parte da população não a associe a posicionamentos político-partidários. O fato de o veículo Globo querer aparentar certo “empreendedorismo”, ligado à eficiência ou de possuir uma capacidade técnica de produção acaba por tornar os expectadores avaliadores – se não até avalistas – da programação do canal aberto (às vezes, sem questionar seus bastidores repletos de manipulação). A busca por efeitos de verdade que gerem credibilida-

de percorre todas as narrativas da Globo. No jargão popular, o “padrão Globo” parece relacionado ao que seria considerado de melhor na mídia brasileira. Tal concepção, se formada com base em parâmetros de programação de outros veículos, não deixa de ter caráter também duvidoso, pois resulta da baixa qualidade dos canais da televisão aberta no Brasil. Como lembra Luís Nassif, os demais “enfraquecidos” grupos de mídia no Brasil só expõem e reforçam a hiperconcentração de poder em torno da Globo. Sem o questionamento das formas da Globo ter assumido o gi-

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gantismo que possui, há uma tendência da audiência cativa ser seduzida pela absorção da programação do canal. Como consequência, além de espectadores fidelizados, estes passam a “avaliar” o veículo, como se os arranjos que levaram tal empresa a atingir um elevado grau de audiência não tivessem sido construídos por percursos pouco confessáveis. É preciso reforçar a reflexão de como a emissora se tornou um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo e não reduzir o debate à discussão se sua programação atinge, ou não, determinada expectativa.

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Dilermando Dias

Desde o lançamento da TV Catarinense, a primeira emissora da RBS em SC, a trajetória do grupo foi marcada por aproximações com as oligarquias.

Aparentemente, a Globo parece ser mais avaliada pelo gosto e interesse por sua programação do que pelo viés de tendência, ou posicionamento velado. É preciso lançar questionamentos pela maneira como adquiriu tal posição de prestígio e liderança; afinal, mesmo sem ter a propriedade das associadas, a Globo controla o conteúdo, a grade e os pacotes de comercialização, e pouco se tem chamado atenção para isso no país. Tal como Luis Nassif, que alerta como é esse domínio que caracteriza o imenso controle da Globo e não apenas a propriedade em si, mas o “domínio dos insumos”. O processo histórico da Globo é altamente político, mas sua força de representação social aparenta ser técnica. O debate deveria recair menos na elaboração do conteúdo e mais no entendimento da proporção da força e influência assumidas por determinados veículos de comunicação no Brasil. No presente texto, buscamos propor um trajeto a ser percorrido se desejarmos aprimorar as instituições que promovem a democracia no país. Eis aqui a proposta: em retrospectiva, elencamos a seguir o processo de instalação de uma filial da Rede Globo em uma unidade federativa do sul do Brasil. Nosso foco é a presença da RBS em Santa Catarina – durante mais de 30 anos – para, a partir desse caso, questionar as formas de concessões dos veículos de comunicação no Brasil. Como um claro dilema para amadurecimento das possibilidades de debates, que deveriam permitir espaços de divergências e convergências. Queremos transgredir o discurso competente, que acompanha a busca de autolegitimação da própria Globo.

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A

base da existência dos principais veículos de comunicação brasileiros – particularmente televisivos – se definiu na última ditadura vivida no país. Estudos recentes dão conta que durante os anos de 1975 e 1979, o Governo Federal promoveu a concessão de 22 emissoras de rádio e cinco de televisão para Santa Catarina, sendo distribuídas entre 20 contemplados.

O forte grau de concentração da mídia no Brasil, com monopólio do controle e sua relação com interesses econômicos e políticos geram um cenário muito “peculiar”. Concessões de veículos estaduais, regionais ou nacionais foram obtidas ou fortemente ampliadas em período ditatorial; e como é sabido, foram largamente realizadas também no eminente fim da ditadura, quando à época do governo José Sarney. Algo parecido já havia ocorrido no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), quando concessões ou legalizações de rádios foram operadas em tempo de fechamento político causado pela ditadura varguista. Por meio dela que as concessões também assim ocorreram, como forma de manter algum tipo de comunicação positiva e narrativa pró-governo. Quando a liberdade vai sendo restringida, as concessões

ocorrem aos atores mais alinhados a defender o posicionamento de quem lhes ofertou a concessão. No fundo, a tradição das comunicações é bastante ligada à política, basta ver os primeiros jornais em Santa Catarina no século XIX, extremamente e diretamente relacionados aos partidos políticos de então. No processo de redemocratização do país, não ocorreram suspensão ou questionamentos do controle das benesses e privilégios dos acessos obtidos – muitas vezes sem participação do Congresso, por exemplo, outras vezes, concedidas justamente a políticos – reforçando a continuidade dos veículos que foram “conquistados” em tempos ditatoriais. Mesmo que o país tenha feito um acordo entre os atores políticos a respeito do que ficou nominado de “Anistia ampla geral e irrestrita” e tenha desembocado numa progressiva democratização, é necessário questionar: o que a democracia ganha mantendo as concessões aos veículos de maneira ad eternum? Muitas vezes, como dito, veículos conquistados quase sempre sem uma real concorrência, sendo até hoje caráter eminentemente familiar das empresas de mídia, sem visibilidade pública de pleito de quando conquistaram suas concessões, como se as mesmas fossem um “bem” vitalício. Contraditoriamente, inclusive, muitos dos veículos, como a Globo, por exemplo, promovem um apoio discursivo a reformas econômicas flexibilizadoras de corte neoliberal, como promoção de vínculos de trabalho mais flexíveis. Mas não promove essa “rotatividade flexível” com a sua sempre renovada concessão. A Globo nunca parece querer essa total

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Ruy Pratini

A partir de 1979, o público catarinense passou a assistir à programação da Rede Globo através da RBS TV, uma empresa gaúcha de comunicações.

livre concorrência de mercado para si, embora proclame ser a “mercadofilia” o melhor receituário econômico ao país. Parte relevante das concessões ocorridas no Brasil não são periodicamente colocadas em análise, suspendidas ou avaliadas e novamente levadas à escolha; e pior, foi no momento de fechamento político que ocorreu literal cassação de concessões e, para mencionar um exemplo: o apoio a João Goulart e a oposição ao golpe de 1964 levaram a Excelsior a uma forte repressão dos governos militares que culminaram com a cassação da emissora. Sempre renovadas e com longuíssimos prazos, perpetua-se a posse de uma empresa tipicamente de domínio familiar, transmitida hereditariamente. No caso da filial da Rede Globo em Santa Catarina, fica evidentemente expresso o caminho bastante possível em uma ditadura, mas que deveria ser intolerável em um momento de amadurecimento da democracia. Elevado o grau de concentração dos veículos por um lado e uso de políticos para conquista (e concentração) de veículos; adentremos num caso assim: a RBS.

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undada em 1957 na cidade de Porto Alegre (RS), a Rede Brasil Sul, cuja sigla é RBS, assumiu a posição de maior grupo regional privado de mídia do País. A afiliada da Rede Globo nas mais meridionais unidades federativas brasileiras é um interessante caso de monopólio pouco contestado, tendo atingido por volta de 57 veículos e atuação direcionada ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina até 2016. Chega a ser difícil contabilizar o tamanho das marcas e empresas que estão ligadas

ao grupo RBS, sobretudo até 2016, quando a rede também dominava Santa Catarina. Foram quase 40 anos de atuação e concentração da RBS em Santa Catarina. E essa história precisa ser entendida tanto como um caso de “braço” avançado da maior rede de comunicação do Brasil (a conhecida Globo), como também um empecilho aos rumos dos debates públicos. Entre o início das operações do grupo no Estado de SC (1979) e o fim das operações da empresa em território catarinense (2016), a população testemunhou questionáveis episódios marcados pela aproximação entre a RBS e as forças políticas dominantes. Aliado a isso, houve também um enorme crescimento da rede.

Concessões de veículos estaduais, regionais ou nacionais foram obtidas ou fortemente ampliadas em período ditatorial; e como é sabido, foram largamente realizadas também no eminente fim da ditadura. O anúncio oficial da alteração de comando para o empresário Carlos Sanchez, do Grupo NC, e a mudança do nome de RBS para NSC, em alusão à expressão Nossa Santa Catarina, desde 15 de agosto de 2017, marcam o início de uma nova fase, porém, sem quaisquer expectativas de transformações em favor da qualidade da cobertura ou de uma fragmentação do conglomerado.

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A chegada do grupo fundado por Maurício Sirotsky em Santa Catarina foi por meio do canal 12, com o lançamento da TV Catarinense. Desde então, a RBS se apropriou – via compras e conquista de concessões – de cinco emissoras no Estado, nas regiões de Joinville, Blumenau, Criciúma, Chapecó e Joaçaba. Entre os veículos da RBS em Santa Catarina estavam emissoras de rádio (Atlântida de Florianópolis, Blumenau, Joinville, Criciúma e Chapecó, a CBN Diário na grande Florianópolis e a rádio Itapema de Florianópolis e Joinville) e os quatro maiores jornais do estado (Diário Catarinense, A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Hora de Santa Catarina). Além de um portal de internet (ClicRBS). Com a transição da propriedade do grupo, a troca da logomarca e de alguns nomes de jornais (como é o caso do ‘RBS Notícias’ para ‘NSC Notícias’) parece se restringir apenas a alterações simbólicas da nomenclatura. A dúvida fica com relação à política editorial e abrangência a serem adotadas, assim como por que não houve um contínuo processo de “divisão” ou novas concessões que evitassem manutenção dessa concentração. O simples fato de fazer uma contagem e contabilidade da dimensão do grupo já assusta quem não a conhece e percebe o tamanho do domínio em um Estado relativamente pequeno.

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m dos temores atuais diz respeito ao desconhecimento do grupo com relação ao novo campo assumido, reforçando o investimento de um capital originalmente farmacêutico agora vinculado à mídia com intenções de lucratividade e de influência

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Reprodução Youtube

A sigla do novo grupo de comunicação, NSC, Nossa Santa Catarina, foi escolhida por meio de uma campanha com consulta popular na internet.

política. O novo gestor da empresa, Sanchez, vem do ramo farmacêutico e não acumula experiência na área da comunicação, mas sim em investimentos no geral. Ainda que a RBS tivesse um teórico e pretenso Guia de Ética e Responsabilidade Social, com parâmetros ditos a serem seguidos pelas equipes de redação, por exemplo, em muitos momentos a aplicação dessas diretrizes foi abandonada em várias esferas do grupo. De todo o modo, pairam incertezas sobre as atividades, especialmente quando consideradas algumas ações tomadas pelo novo comando, com demissões e a redução da grade de programação destinada ao conteúdo local. As decisões anunciadas até aqui parecem priorizar apenas questões de ordem econômica/financeira, impondo preocupações do ponto de vista do conteúdo, com uma produção jornalística pautada em amenidades e orientada prioritariamente para a audiência (leia-se: mais espectadores para mais audiência para mais publicidade e poder). O forte grau de concentração da mídia no Brasil, com monopólio do controle reforçado ainda pela propriedade cruzada e sua relação com interesses econômicos e políticos geram um cenário muito “peculiar”, se comparado a outros países. Aliado a esses elementos, o baixo envolvimento e intervenção do Estado no setor, com a ausência de uma política de regulamentação e quase não presença de veículos estatais que garantam ponderações de opiniões, só agravam a situação. Se avaliados pelo ângulo de como chegaram a tal grau de concentração os grupos de mídia no Brasil, não se sabe ao certo se estaríamos ainda dentro de uma ordem democrática. A troca de comando da empresa em Santa Catarina parece ser um momento oportuno para reflexão e questionamentos acerca das concessões não democráticas dos veícu-

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los de comunicação, além dos monopólios e oligopólios, característicos do setor. A Globo guarda nessas suas parceiras regionais e associadas uma profunda dominação, quase discreta, porque também o excesso de concentração dos veículos não permite espaço para contestação dos absurdos do controle virtual da mídia brasileira. E também a forma como a questão é tratada, não como direito à comunicação, mas pelo viés de negócio, interfere perversamente no próprio sistema democrático. Como a condição básica para a promoção da cidadania é a garantia da circulação da informação, precisamos reconhecer o quanto ainda é necessário avançar neste aspecto, especialmente num país marcado por desigualdades de todo o tipo como o Brasil. Estudos acadêmicos constatam que o estado de Santa Catarina tem reforçado o poder dos monopólios da comunicação estadual, expressando um domínio quase exclusivista da Globo. Como uma das mais antigas afiliadas da Rede Globo de Televisão, a RBS é considerada “pioneira no modelo regional de televisão no país”. Outra característica do grupo são os fortes vínculos políticos e partidários com as elites dominantes, conforme apontaram diversas pesquisas. Já se chamou atenção para o alcance, prestígio e sucesso da RBS se explicarem com o vínculo à Rede Globo. Afinal, a informação que constitui a identidade do veículo catarinense também depende de aprovação da Globo. Não foram poucos os estudos que trataram dos riscos e sérias consequências à democracia sobre a concentração da propriedade na mídia, a partir do caso da RBS. Um dos trabalhos mais recentes, conduzido pelo pesquisador Daniel Pissa Giovanaz, publicado em 2015 como dissertação de mestrado em História, na Universidade Federal de Santa Catarina, foca na análise do grupo em Santa Ca-

tarina justamente a partir de suas articulações junto ao poder político e às elites econômicas em âmbito regional e nacional. Para isso, trata desde a disputa da concessão do Canal 12, de Florianópolis, na década de 1970, e o consequente estreitamento das relações entre a RBS e as oligarquias locais, que haviam respaldado a ditadura militar no Brasil. No contexto da comunicação regional brasileira, a RBS constitui-se um caso emblemático, como define o professor Itamar Aguiar, do Departamento de Sociologia da UFSC e reconhecido pesquisador do tema. Desde o lançamento da TV Catarinense, a primeira emissora da RBS em Santa Catarina, em 1979, a trajetória do grupo foi marcada por aproximações com as oligarquias. É considerado que a RBS teria reduzida chance na disputa se não apoiasse os Ramos ou os Konder Bornhausen. Portanto, fica claro o posicionamento do veículo nos bastidores. Os vínculos estabelecidos entre as elites locais e o grupo responsável por liderar a audiência dos veículos de comunicação no Estado deixam inevitáveis questionamentos sobre o grau de comprometimento da informação oferecida ao público. Se, antes a preocupação era com o monopólio do grupo sul-rio-grandense (como sócio e representante avançado da Globo, com influência regional) e suas interfaces com grupos políticos; no cenário atual, o temor não se apaga. Ao contrário, reacende o debate. Reiteramos a necessidade de rever o domínio das mídias, a concessões de longo prazo e a forma como ocorreram, além de provocar a discussão sobre a propriedade dos veículos de comunicação, sob pena de ofuscar a própria democracia. Especialmente em tempos marcados por retrocessos, perda de diretos e a guinada das forças conservadoras no acesso à condução do País por medidas, às vezes muito questionáveis e pouco democráticas.

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HISTÓRIA

Entre tormentos e fogueiras Buril e água-forte, aguarelada.

Juliana de Mello Moraes

Execução de condenados pela inquisição.

I

sabel Soares faleceu antes de receber qualquer sentença do tribunal inquisitorial. Mesmo após cinco dias de tratamentos médicos, incluindo uma sangria e alimentação enriquecida com ovos e marmelada, ela não resistiu. De acordo com o médico que atendeu Isabel, ela sucumbiu devido a “se lhe arrancarem de todo os nervos” e também lhe quebrarem o braço esquerdo. A morte de Isabel Soares ocorreu após os procedimentos inquisitoriais realizados para obter uma confissão durante o seu interrogatório. Embora os documentos não mencionem qual foi o método adotado, ela provavelmente enfrentou uma das técnicas mais utilizada na época, a polé, que consistia em sentar o réu num banco, atar seus pulsos atrás das costas com cordas, as quais estavam ligadas a roldanas, e içar a vítima pelas mãos, de onde poderia ser solta de forma lenta ou rápida, sem, contudo, tocar o chão. Isabel Soares faleceu em janeiro de 1635, em Évora, Portugal. Muitas outras pessoas tiveram destino idêntico no período.

Os métodos de tortura usados pela Santa Inquisição em território português

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ormalmente, quando pensamos em inquisidores, bruxas, demônios e fogueiras, lembramo-nos da Idade Média. Associamos essa época à ação de religiosos que, assombrados pela capacidade infinita do diabo em possuir pessoas — em especial as mulheres — perseguiam feiticeiras e bruxas. Também lembramos que aqueles considerados hereges suportavam a tortura nos interrogatórios. Localizar as ações inquisitoriais no medievo não está incorreto, contudo, o período de organização, crescimento e funcionamento constante da Inquisição em diferentes reinos ocorreu de fato no início da Idade Moderna Ocidental, ou seja, concomitantemente aos avanços marítimos de espanhóis e portugueses e do início da colonização das Américas.

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A partir do século XV, as monarquias ibéricas, Espanha e Portugal, apoiaram a fundação de tribunais inquisitoriais em seus territórios, proporcionando aos seus agentes uma vasta área de ação, incluindo diferentes continentes — Europa, Américas e Ásia. A extensão geográfica não descaracterizou os tribunais inquisitoriais. Embora tenham se transformado ao longo dos séculos, tinham como principal função a perseguição das heresias, de acordo com a jurisdição e o processo penal. Essa identidade se manifestava por meio das ações desenvolvidas pela instituição: inquirir, perseguir, encarcerar os suspeitos, aplicar-lhes os tormentos (torturas) para obter a confissão. Posteriormente, proferia-se a sentença aos réus, num evento

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LEGRAND, C, gravura : litografia, p&b.

Antigo palácio da inquisição de Lisboa.

público denominado auto-de-fé, quando os condenados à pena máxima eram entregues à justiça secular para serem purificados em fogueiras. É importante destacar que os inquisidores ou outros religiosos não aplicavam a pena capital, pois seus votos os impediam de realizar essa tarefa. Por isso, os sentenciados às fogueiras eram “relaxados à justiça secular”, ou seja, eram entregues aos oficiais seculares para serem executados pelo fogo. Entretanto, o condenado poderia, num último momento, abjurar ante um eclesiástico, recebendo a “misericordiosa” morte por estrangulamento antes de ser queimado. Nos territórios portugueses, a Inquisição possuía quatro tribunais com seus respectivos cárceres nos centros das cidades Évora, Lisboa, Coimbra e Goa (Índia). A configuração dos cárceres se assemelhava ao modelo conventual, formados por pequenas celas de uso individual. No entanto, as dimensões acanhadas dessas instalações e a sobrelotação favoreciam o descumprimento dessa prerrogativa, exigindo a realização constante de obras e reformas nos edifícios inquisitoriais ao longo do tempo. O tribunal da Inquisição de Lisboa instalou-se definitivamente no palácio dos Estaus em 1570. Para atender as exigências da instituição, a construção sofreu diversas reformas, incluindo ampliações para acomodar a prisão e demais aposentos destinados aos inquisidores e outros oficiais. O movimento do tribunal demandou constantes reparações e incrementos,

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contudo, a partir dos documentos inquisitoriais, sabe-se que, no início do século XVII, seus cárceres possuíam pelo menos 53 celas. As dimensões do edifício equivaliam à ampla área de atuação desse tribunal, pois englobava as dioceses centrais do reino e grande parte dos territórios de além-mar. As populações das feitorias do norte e centro da África, dos arquipélagos atlânticos (Açores, Madeira, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe), bem como aquelas da América estavam sob a alçada do inquisidor de Lisboa. A presença da inquisição nas terras de além-mar se manifestava por meio de distintas formas, seja através de agentes responsáveis pelo envio de denúncias (familiares do Santo Ofício), seja por meio de visitas in loco. Desse modo, os indivíduos incriminados de heresia nesses territórios, tanto homens como mulheres, eram enviados aos cárceres de Lisboa. Somente do Brasil foram remetidos 1076 indivíduos durante os 285 anos de existência da inquisição. Nesse período, os inquisidores portugueses proferiram mais de 40 mil sentenças e condenaram pelo menos 2 mil pessoas à fogueira. Comparativamente a outros reinos, como Castela (Espanha), a inquisição lusitana atuou com maior rigor, condenando mais indivíduos.

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tribunal da Inquisição poderia emitir a ordem de prisão se um indivíduo fosse citado em mais de duas denúncias, pois um único testemunho raramente poderia justificar a car-

ceragem. Após a detenção, o prisioneiro enfrentava diversos interrogatórios, iniciando com questionamentos sobre sua genealogia e seus conhecimentos da doutrina católica. Paralelamente, no intuito de obter a confissão, o inquisidor perguntava se o réu sabia os motivos para estar preso e quais culpas havia cometido. O período de encarceramento poderia variar entre meses ou anos, dependendo de fatores como o número de presos e o volume de trabalho dos agentes inquisitoriais, a gravidade das acusações e o modo como o réu se comportava. Caso se mostrasse arrependido, o processo decorria mais rapidamente. Entretanto, se o réu não assumisse suas culpas, o período de prisão se alongava. A insistência em negar seus crimes, ou seja, a falta de colaboração do réu, justificava a aplicação dos tormentos. O grau de violência a ser aplicada durante os interrogatórios ficava ao arbítrio do inquisidor. Era comum o uso da tortura durante os interrogatórios, uma vez que, além de contribuir para a confissão do réu, servia também de exemplo aos outros presos. Tal situação é descrita pelo médico francês Charles Dellon no livro Narração da Inquisição de Goa (1687). Preso pela inquisição portuguesa, apesar de não ter sofrido a tortura física ao longo dos 18 meses de confinamento, os temores e o sofrimento causados pelo rigor no tratamento diário, com constantes açoites e a solidão, resultaram em duas tentativas de suicídio. No entanto, Dellon sobreviveu e, após obter a

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liberdade, escreveu sobre sua permanência nos cárceres. Ele descreveu o cotidiano na prisão, destacando que, durante os meses de novembro e dezembro, ouvia todas as manhãs os gritos daqueles que eram levados ao tormento. O que julgava cruel, pois, como relata na página 92, “vi várias pessoas de ambos os sexos ficarem estropiadas após o terem sofrido”. Além da polé, outras técnicas compunham o rol de tormentos da inquisição portuguesa. O potro consistia em deitar o réu num instrumento de madeira, contendo duas roldanas na altura das pernas e outra dos braços. Colocava-se uma coleira para prender o indivíduo ao mecanismo, depois eram amarrados os membros inferiores e superiores, colocando-se duas cordas em cada braço e duas em cada perna. Em seguida, as cordas eram ligadas às roldanas, as quais eram lentamente apertadas em diferentes direções, dando-se voltas até chegar ao limite do mecanismo. O corpo do réu sofria a pressão em sentidos opostos, podendo provocar, além da dor, seu desmembramento. A aplicação de tormentos estava prevista nos regimentos inquisitoriais. Esses documentos regulavam o funcionamento da instituição, prescrevendo inclusive as regras para o emprego da tortura. Segundo as normas regimentais, a violência deveria cessar na ocasião em que o denunciado quisesse confessar; durante os interrogatórios era necessária a presença de um médico ou cirurgião para se certificar das condições físicas do réu, pois deveriam suspender a violência caso o indivíduo se mostrasse muito fragilizado; as mulheres só poderiam ser içadas na polé e nunca sujeitas ao potro. Porém, nem sempre as normas eram cumpridas. Além do descumprimento das regras, os constantes acidentes durante os interrogatórios resultavam em ferimentos graves, provocando marcas vitalícias nos denunciados ou mesmo a morte. Tais ocorrências suscitavam críticas entre os próprios religiosos. Em 1658, o bispo de Targa apontou as péssimas condições da sala dos tormentos de Lisboa em decorrência da umidade e da sujeira, além da necessidade de abolir o uso da polé, devido aos inúmeros desastres que ocorriam durante sua aplicação. Portanto, todas as etapas do processo inquisitorial causavam constrangimentos, temores e sofrimentos psicológicos e/ou físicos aos réus, pois ser denunciado ao inquisidor já gerava medo e desonra. O encarceramento consistia no isolamento, na submissão aos interrogatórios e possíveis torturas. A condenação, com exposição pública, provocava a infâmia e o completo descrédito social tanto do condenado quanto de seus parentes.

Contudo, o uso da tortura em interrogatórios não era algo exclusivo da Inquisição. Outras instâncias judiciais, inclusive de caráter civil, tinham na aplicação da tortura um meio legítimo para extrair confissões de seus suspeitos. Até meados do século XVIII, França, Inglaterra e Portugal permitiam o uso da violência para a obtenção de informações dos réus, bem como distintas formas de castigo corporal para os condenados. Marcar a ferro, açoitar ou prender o indivíduo com um colar de ferro a um poste ou pelourinho eram sentenças comuns na França daquele período. A sujeição, tortura e mutilação dos corpos se respaldavam na concepção de que tais atos colaboravam para o estabelecimento e manutenção da ordem. Por isso, o sistema jurídico previa o uso da violência física tanto em instituições religiosas quanto laicas. Os corpos eram mutilados, quebrados e queimados para o bem comum, atendendo a propósitos religiosos e políticos. Os espetáculos públicos de condenação, incluindo o auto-de-fé, exerciam o terror sobre seus públicos, mas também restauravam a integridade e o poder do Estado ou de Deus.

O uso da tortura em interrogatórios não era algo exclusivo da Inquisição. Outras instâncias judiciais, inclusive de caráter civil, tinham na aplicação da tortura um meio legítimo para extrair confissões.

Entretanto, no decorrer do século XVIII, alterações relacionadas à percepção corporal ampliaram o limiar da vergonha e do autocontrole. Ações como assoar o nariz, urinar ou defecar em público se tornaram repulsivas. Os manuais de civilidade recomendavam o controle das emoções e condenavam explosões sentimentais ou comportamentos agressivos. Esses são alguns sinais de mutações mais profundas que envolveram diversos âmbitos da vida em sociedade. Mudanças na arquitetura doméstica com a instalação de quartos de dormir, a difusão do retrato entre as pessoas comuns e a exigência da compostura e do silêncio durante os espetáculos teatrais e óperas sinalizavam para a maior individualização dos corpos.

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mbora, na segunda metade do século XVIII, intelectuais vinculados ao Iluminismo e juízes se mostrassem desfavoráveis à tortura e à violência, outros fenômenos, mais abrangentes, favoreceram a difusão e aceitação dessa nova concepção. A emergência da individualidade estimulou percepções mais positivas

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sobre o corpo. Compreendido como domínio individual, os corpos possuíam direitos e eram invioláveis. A partir de 1760, diversos estados europeus aboliram a tortura e estabeleceram punições mais humanas. Portugal eliminou a tortura nos processos inquisitoriais em 1774. Na França, a partir de 1788, proibia-se o uso da violência para extrair informações de condenados, enquanto o Parlamento britânico desautorizou a queima de mulheres na fogueira em 1790. Hoje, a preservação da integridade física é um direito básico. O respeito à dignidade e ao valor de cada pessoa são pontos centrais da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), e como enfatiza o artigo 5º - Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Por isso, houve grande perplexidade quando uma mulher de 25 anos morreu após ter sido queimada viva numa fogueira na Nicarágua em março de 2017. Vilma Trujillo García foi considerada possuída pelo demônio. De acordo com seus vizinhos e familiares, ela falava sozinha e parecia doente. O comportamento de Vilma exigia uma resposta da comunidade. Inicialmente, a prisão. Durante seis dias a mantiveram amarrada e confinada na casa do líder religioso. Todos oraram e jejuaram no intuito de colaborar com sua purificação. Essas ações, entretanto, não bastaram para auxiliar a jovem. Finalmente, outra mulher do grupo recebeu instruções divinas: deveriam colocar Vilma na fogueira para libertá-la do demônio. A cerimônia consistiu em amealhar lenha, acender a fogueira junto a uma árvore, onde ataram no tronco os pés e as mãos de Vilma. Ali ela queimou 80% do corpo, ficando com costas, coxas, seios e rosto carbonizados. Mas a agonia da vítima não cessou naquele momento. Ela foi retirada com vida da labareda e carregada durante quilômetros até conseguir algum atendimento médico. Ela faleceu depois de mais de 24 horas de sofrimento. Os rituais de tortura e perseguição, comumente associados ao passado, parecem estar mais próximos do que imaginamos. Afinal, o falecimento de Vilma Trujillo García nos recorda que as crenças na posse demoníaca, bem como nos poderes do fogo para libertar as almas, ainda persistem no século XXI. Contudo, diferentemente da Idade Moderna, hoje a inabilidade de reconhecer o direito à vida dos outros causa espanto, horror e revolta, enfim provoca comoção social. Esse caso nos lembra de que o maior desafio da contemporaneidade reside não apenas em impor a legislação, mas, como no passado, praticar a nossa empatia para encontrar na separação dos corpos a humanidade no seu exterior.

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FOTOGRAFIA

Acima e ao lado: Catedral São Paulo Apóstolo.

Cidade Geométrica Mariana Furlan

Um ensaio fotográfico que revela as nuances arquitetônicas de Blumenau

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ntes de ser cartão-postal, a arquitetura de Blumenau é pura geometria. Dura e bonita, como o que é concreto. A proposta destas imagens, de autoria de Mariana Furlan e que formaram a exposição Cidade Geométrica – Blumenau em Linhas e Ângulos, é oferecer pontos de vista novos e por vezes intrigantes de locais bem conhecidos da cidade. Foram fotografados o Teatro Carlos Gomes, a Catedral São Paulo Apóstolo, a Ponte de Ferro e a Ponte dos Arcos.

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A ideia resultou em uma experiência estética, com fotografias marcadamente geométricas e até abstratas. As imagens captam detalhes, sombras esquecidas, formas escondidas, cantos e quinas. E a partir das mesmas linhas, novas imagens foram “reconstruídas”. As fotos foram tema de exposição em 2010, e passaram pela biblioteca da Furb, Fundação Cultural de Blumenau e Neumarkt Shopping. Foi um projeto subsidiado pelo Fundo Municipal de Apoio à Cultura de Blumenau, aprovado em 2009.

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Ao lado e abaixo: Catedral São Paulo Apóstolo.

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Nesta página: Ponte dos Arcos.

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Nesta página: Teatro Carlos Gomes.

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Ponte de Ferro.

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ESPECIAL

A Reforma Protestante de Martinho Lutero Tarcísio Alfonso Wickert

500 anos de história, muitas vozes e inúmeras revoluções

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artinho Lutero, assim nomeado, construiu e formulou uma reforma religiosa sem precedentes para o mundo ocidental. Uma reforma que revolucionou e continua revolucionando as mentes e os corações de toda humanidade ocidental, uma reforma do Espirito Ocidental. Nesse sentido, “todos nós somos frutos da Reforma”, como afirma Carlos Sell. É necessário e fundamental entendermos que a Reforma está na base da modernidade, pois revoluciona as subjetividades do indivíduo e molda seu jeito de ser e agir.

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Lutero traz à luz do mundo grandes paradoxos doutrinários e existenciais. Um novo humanismo ressurge das cinzas da escravidão e da subjugação da miséria social e do analfabetismo legitimados pela Igreja do Sacro Império Romano. Coloca no centro das atenções o ser humano e sua dignidade, o ser humano como “medida de todas as coisas, daquelas que ele vê, e daquelas que ele não vê”, como afirmara Protágoras. É também nessa direção que Hegel afirma que “é através da reforma que os protestantes realizaram e realizam

sua revolução”. Lutero foi um ser humano que balançou o mundo com seu estilo político, pedagógico e epistêmico. Um teólogo com fortes argumentos filosóficos, um reformador, um revolucionário, um indignado com as injustiças sociais. Um cidadão que revoluciona o mundo não com as espadas, mas com ideias, métodos e pedagogias. Ele não abalou o mundo apenas pelas suas ideias e palavras, mas pelo sentido e sentimentos de dor e sofrimentos que produziram tais princípios e oposições à Igreja do Sacro Império Roma-

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Adolf von Donndorf.

Estátua de bronze de Martinho Lutero em Dresden. Obra de Adolf von Donndorf em 1885.

no. Conforme Vicente Themudo Lessa, “o processo de construção das ideias revolucionárias de Lutero veio em grande parte de seu próprio sofrimento durante a sua infância e adolescência e também de sua visão de mundo em relação ao sofrimento do Outro”. Lutero era um ser humano como qualquer um de nós, com sonhos, desejos, conflitos e sofrimentos. Cresceu numa vida de simplicidade e humildade. Aprendeu desde cedo os ofícios da vida e do trabalho. Filho de camponeses, nasceu no centro da Alemanha, em Eisleben, em 10 de novembro de 1483. Em uma de suas falas, Lutero assim se expressou: “meus pais eram muito pobres. Meu pai era um pobre lenhador e minha mãe carregou lenha muitas vezes para ter com que nos sustentar”.

Podemos afirmar que as condições sociais e econômicas fortaleceram seu orgulho pelos pais. O seu nome de batismo foi escolhido pelo seu pai, Hans Luther, para homenagear o santo do dia do seu batismo. Lessa nos lembra que seu nome tem muitas variações, por exemplo: Luder, Lüder, Ludher, Luther, Lutter, Lutherr, Lutherus, Lothar, Lotherius. Nos registros da Universidade de Erfurt, seu nome constava como Ludher e em Wittemberg como Ludeh e Luder. Adotou ele definitivamente a forma de Luther e daí Lutherus ou Lutero. Essas variações eram atribuídas ao fato de não haver uma língua padrão, mas

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vários dialetos durante o Império Romano. Cabe ainda ressaltar, sobre o aspecto acima, que “a língua de instrução eram as línguas clássicas como hebraico, latim e grego. Somente a classe mais alta da sociedade tinha acesso às leituras”. O nome de Lutero, ainda segundo Lessa, é vinculado ao termo latino lauter, que significa, claro ou puro e Cristiano I, eleitor da Saxônia, achava-o em verdade um teólogo lúcido e puro ( voll. Lauter und ein reiner theologus). Certo teólogo católico confessou: Lutero, justificais em verdade o vosso nome, escrevendo num estilo puro e claro (lauterus et limpidus).

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Hugo Vogel.

Martinho Lutero prepagando no Castelo Wartburg, pintura de Hugo Vogel (1882). Podemos considerar Lutero um grande pensador, filósofo e teólogo, construtor de uma ética social voltada aos mais necessitados e excluídos. Teve seus interesses voltados para as dimensões humanas e do evangelho, mas não para as instituições como a Igreja e a Universidade. Mas todo o seu legado teórico e prático se instaura e perpassa instituições como a Igreja e a Universidade. Lutero tem uma preocupação com os homens e as mulheres, quer que todos saibam ler e escrever, pois a educação é um processo de libertação. Nesse sentido que aos camponeses era reservada a ignorância, que pela Igreja a tudo deveriam se submeter para poder entrar nos reinos celestiais. Essa conduta tornou-se um forte alvo de Lutero contra a Igreja Católica.

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o dia 31 de outubro de 2017 comemoramos os 500 anos da Reforma. Nessa perspectiva Walter Altmann afirma que o “ centro da atenção será, sem dúvida, a pequena cidade de Wittenberg, na Alemanha, onde Lutero atuou e escreveu praticamente toda a sua volumosa obra”. Mas vale salientar que o movimento da Reforma, iniciado em Wittenberg, espalhou-se por todos os continentes, não se restringindo a uma Re-

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forma da Igreja do mundo germânico. O mesmo Altmann relembra e frisa que A Federação Luterana Mundial celebrará sua XII Assembleia Global em maio de 2017 em Windhoek, capital da Namíbia, um pais do Sul, em que metade da população é de confissão luterana, sob o tema evocativo da Reforma “Livres pela graça de Deus”, salientando nos três subtemas que a salvação, os seres humanos e a criação “não se vendem”, não são artigos comercializáveis. “Livres pela graça de Deus” traz implícito que Lutero não é propriedade das igrejas luteranas, mas denota um significado histórico que ainda está presente em nosso tempo presente, e que se estenderá para o futuro com igual relevância e sentido cristão. Sejamos gratos pela humanidade presente em Lutero, pois sua vida e sua história são em grande parte a nossa história. Contudo, segundo Altmann, Realce-se a liberdade obtida pela graça de Deus, mas em consciência das limitações e dos erros cometidos tanto pelo próprio

Lutero como pelas igrejas herdeiras de sua obra, mesmo quando não se esqueçam tampouco as numerosas obras sociais e educacionais que elas têm desenvolvido ontem e hoje. Acima de tudo, porém, deveria prevalecer o desafio de viver, em nosso tempo, a liberdade evangélica que ele tanto proclamou, desdobrada numa vivência de compromisso, compaixão e amor ao próximo, em solidariedade com “os mais pequeninos” e, não por último, comprometidos, em meio a um mundo dilacerado por conflitos e iníquas desigualdades, com renovado empenho em favor de um mundo que seja verdadeiramente caracterizado por justiça, paz e cuidado da criação. Irmanados com essa grande celebração dos 500 anos da Reforma, o pensamento de Lutero nos inspira e nos desafia constantemente a uma prática evangelizadora da libertação. Que o exemplo de Lutero, voltado para a justiça social e para uma educação emancipadora e libertadora, fortaleça e nos guie em nossos passos acadêmicos e em nossa vida cotidiana.

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REPORTAGEM

O Projeto Bugio e a Há 26 anos, o projeto trabalha em prol do desenvolvimento científico e bem-estar dos bugios-ruivos

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mundo como eu conhecia não existe mais. Até ontem me prendia em minha mãe e ela nos guiava de árvore em árvore. Quando eu sentia fome, me dava de mamar, afinal ainda sou um filhote, não estou acostumado a comer folhas. E era assim que eu estava ontem, agarrado em seus pelos, quando avistamos duas árvores estranhas. Não tinham folhas, nem a cor das que costumávamos pular. Eram ligadas por poucos galhos, mais finos, moles. Se eu pudesse, avisaria minha mãe para não pular neles. — Ah, meu Deus! — lamentou uma senhora. — O bugio-fêmea foi eletrocutado pela fiação dos postes. — Os fios estão desencapados — diz outra pessoa. — Vamos ligar para a empresa de distribuição de energia. No momento do choque, eu caí e tive que correr para um lugar seguro. Alguma força que desconheço fez a minha mãe não cair comigo. Ela ficou pendurada, presa, morta. Naquele momento eu paralisei. Tentava chamar, ela não se movimentava. Vocalizava para meus colegas, ninguém me atendeu. Achei que ia morrer. Depois de certo tempo, os humanos da empresa de energia chegaram em uma espécie de toca que se movimentava muito rápido. Cruelmente, puxaram a mamãe do tal galho desconhecido e a jogaram ao chão. Eles foram embora. Eu fiquei lá, com medo, fome, saudade. Tanto que desci da árvore e tentei correr para qualquer direção. Queria fugir daquele inferno. Mas fui pego. Levaram-me a um lugar novo. Lá tinham outros bugios como eu, a maioria mais velhos. Fiquei me perguntando por que eles não viviam na mata. As coisas não faziam sentido. Enquanto eu passava entre as gaiolas, percebi que alguns tinham limitações, como a falta de parte do rabo, ou até mesmo um braço.

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— Fica tranquilo, parceiro. Você está no Projeto Bugio. O pessoal aqui vai cuidar de você — contou a bugio-ruiva Ibirama. Ela foi levada até lá porque vivia em cativeiro com um grupo de humanos que não souberam cuidar dela. Neste primeiro instante pude perceber que os bugios estavam vivendo muito bem neste local. Eles comiam regularmente, brincavam, discutiam também, claro, mas conviviam de forma saudável. Quando o sol começou a se pôr naquele dia, todos vocalizaram juntos, o que fez com que eu me sentisse um pouco mais em casa. Mas não queria que os humanos me tocassem, não tinha vontade de me comunicar, tinha medo que me machucassem. Tentei fugir algumas vezes. Na mata, costumava ficar no alto, visualizando tudo de lá. Agora eu estava muito baixo, me sentindo constantemente ameaçado. Eles tentaram colocar em minha boca uma espécie de peito de um material que não era a minha mãe, e eu recusei. Também me deram frutas, as quais deixei de lado. Somente no outro dia, quando não aguentava mais a fome e cheguei à conclusão de que o meu mundo realmente tinha mudado, aceitei o peito de borracha e tomei o leite que não era da minha mãe, mas me alimentou. Também passei a mordiscar as frutas. Tinha que concordar com a Ibirama, esses humanos eram doces, pacientes, não queriam me machucar. Sei que se eu dependesse dos humanos da tal empresa de energia que jogaram minha mãe ao chão e me deixaram, teria morrido. Havia uma humana, com o tempo descobri que a chamam de Zelinda, que me recebeu com muito amor, assim como toda a sua equipe. Ela também me deu um nome. Agora, na minha nova vida, sou o Franklin.

Devido ao Projeto Bugio, a preservação do bugio-ruivo tem

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resistência dos primatas Nathan Neumann

Julia Schaefer

em sido assegurada, além de possibilitar diversas pesquisas quanto à espécie, o que tem feito do projeto uma importante referência do assunto em nível nacional.

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Fabrício Bittencourt - Editora da FURB

Localizado em Indaial e fruto de uma parceria entre a prefeitura local e a FURB, o Projeto Bugio já venceu prêmios e recebe cientistas de todo o mundo.

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Um projeto que começou quebrando barreiras

té quando você vai deixar isso acontecer? — perguntou Zelinda Maria Braga Hirano, jogando um bugio morto em cima da mesa do prefeito de Indaial, Victor Peters. Era 21 de março de 1991. O prefeito se assustou. — Ou o senhor toma uma providência, ou o município vai acabar matando todos os macacos. Doutora em biomedicina, Zelinda se incomodava porque sabia que os veterinários da cidade haviam aplicado um vermífugo de maneira errada, gerando uma toxicidade que, em vez de matar o verme, estava acabando com a vida dos animais. Foi a partir desse encontro que Peters criou a lei que instaurou o Centro de Pesquisas Biológicas e Observatório de Primatas, regulamentando e dando o primeiro passo ao projeto. Já com a autorização do Ibama e sem uma sede específica para a iniciativa, Zelinda passou a distribuir cativeiros nas casas de pessoas da comunidade. Eis que o grupo de escoteiros da cidade resolve mudar de localidade, o que cria uma oportunidade para Zelinda. A casa, inteira de madeira, com o chão de

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tijolos — aqueles em que nascem capins no meio, sabe?, diz, rindo — estava disponível. O prefeito ofereceu à pesquisadora, que aceitou na hora. Pediu apenas pedreiros para o auxílio na reforma. Peters disse que não tinha dinheiro, mas este problema definitivamente não ia parar Zelinda.

Além de prezar pela qualidade de vida e pesquisa para o desenvolvimento dos bugios, o projeto também tem o intuito de gerar consciência sobre a importância da preservação do primata. O resultado foi a substituição daquele chão de tijolos por um piso cheio de cor e personalidade. Ao olhar de relance, parece ter sido pensado o fato de os azulejos serem diferentes. Mas não. “Eu fiz uma campanha dizendo que quem doasse materiais de construção estaria ajudando os bugios”, informa Zelinda. “Então, se a pessoa tinha três azulejos, eu pegava”. Até as gaiolas tiveram o esforço pessoal da pesquisadora. “Eu colocava 15 pás de areia e cinco pás de cimento numa be-

toneira, acrescentava as britas e fazia o cimento”. Os estudantes também passaram a se envolver na construção, fazendo com que o espaço se tornasse um pouquinho de todos. “Virou uma favelinha isso aqui”, diz a professora, sem esconder o riso orgulhoso e cheio de amor. Com 26 anos de existência, o Projeto Bugio é o lar definitivo de 49 bugios-ruivos que foram trazidos pelo Ibama, pela polícia ambiental ou pela comunidade. Muitos dos que estão lá foram vítimas de atropelamentos ou choques elétricos, como é o caso da mãe do Franklin. Este fato nos alerta para o cuidado por parte do poder público e população em relação à proteção dos animais. Mantido por uma parceria entre a Universidade Regional de Blumenau (FURB) e a Prefeitura Municipal de Indaial, o projeto venceu inúmeros prêmios e recebe cientistas de todo o mundo, se posicionando como referência em relação ao estudo dos bugios da espécie Alouatta Clamitans em todo o país. A rotina dos recém chagados

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entro do Centro de Pesquisas Biológicas e Observatório de Primatas, a equipe tenta manter a vida dos macacos o mais parecida possível com a vida na floresta. A alimentação, por

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Zelinda Maria Braga Hirano - Acervo Pessoal

Doutora em biomedicina, Zelinda Maria Braga Hirano foi a principal responsável por dar o pontapé inicial para a criação do Projeto Bugio nos anos 90.

exemplo, acontece nos mesmos horários. Todos os procedimentos aplicados seguem técnicas de manejo que foram criadas pela equipe de Zelinda. Com o passar do tempo, essas técnicas foram acatadas por zoológicos do Brasil e do mundo. Quando um macaco novo chega, ele passa primeiramente por atendimento com o veterinário, que verifica possíveis problemas e aplica tratamentos. Depois disso, é adaptado à alimentação. Quando muito bebê, mama de hora em hora, inclusive de madrugada. Por isso, neste caso, os funcionários levam o macaco para casa. Quando faz um mês, o bebê passa a receber comida de duas em duas horas, e assim continua até poder permanecer o dia inteiro no Centro de Pesquisas, ingerindo a última porção às 17h. Esse processo é lento, dura em média seis meses. Daí em diante, eles passam a ganhar frutas, além da mamadeira. Por último é tirada a mamadeira. Para que eles adaptassem folhas à dieta, fez-se necessária uma técnica também criada no projeto. “Eu sentava dentro do cativeiro com uma bacia de folhas e fazia de conta que estava mastigando, ou comia alface e oferecia as folhas para eles”, explica Zelinda. Mas hoje os colaboradores não precisam fazer isso. “Como todo mundo aqui come folhas, eles observam os outros e aprendem”.

Quando o bugio chega filhote há também o problema do aquecimento dos corpos. No habitat natural, eles adquirem o calor da mãe. Por isso, no projeto ganham uma “mãe de pano”. São entregues bichinhos de pelúcia com bolsas de água quente. De acordo com Zelinda, antigamente, quando os primatas começavam a crescer, as “mães de pano” iam junto para o cativeiro. Mas como hoje existem outras mães, é realizado um processo de adoção. “A gente começa a aproximar a gaiola do filhote ao cativeiro de uma fêmea. E observamos o quanto eles se dão bem. Se der tudo certo, os dois passam a viver juntos”, esclarece a pesquisadora. Projeto Bugio é referência mundial

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utra constatação científica importante obtida no Centro de Pesquisa foi a de que o bugio se colore de vermelho ao longo da vida. A descoberta partiu da tese de doutorado de Zelinda, e concluiu que o bugio nasce marrom, e quando cresce vai liberando uma secreção que o torna vermelho. Machos e fêmeas vêm coloridos, mas é raro uma fêmea ganhar coloração avermelhada. E essa coloração no macho é determinante para o sucesso na reprodução. A presença de testosterona aumenta a possibilidade de

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confrontos entre machos, então “quando a fêmea vê um macho vermelhão na mata”, diz Zelinda, “ela sabe que ele venceu o que chamamos de ‘handcup da imunocompetência’. Ele conseguiu sobreviver, então é um bom macho para cruzar, tem good genes”. Por este motivo, Zelinda é chamada para dar palestras no mundo inteiro. Além de prezar pela qualidade de vida e pesquisa para o desenvolvimento dos bugios, o projeto também tem o intuito de gerar consciência sobre a importância da preservação do primata. O trabalho propõe responsabilidade social aos órgãos e comunidade. Quando fala sobre o Franklin, a professora transmite compaixão, mas guarda um sentimento de frustração quanto às entidades e pessoas que não se preocupam com a vida do bugio. “Se a gente não fizesse o socorro desse bebê, ele morreria ao lado da mãe”, explica. Zelinda não nega que seria muito mais feliz em ver todos os seus bugios soltos, vivendo naturalmente e crescendo na floresta. No entanto, tem consciência da relevância do trabalho desenvolvido todos estes anos. “Eu sei que é graças a isso que muitos foram salvos”, reflete. E graças a este trabalho, o Franklin e diversos outros bugios serão salvos. Um posicionamento de esperança e amor a uma espécie tão necessária para a saúde do meio ambiente.

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Nicolas de Largillière (1656 – 1746).

CLÁSSICO

O abecedário de Voltaire Algumas palavras do filósofo sobre questões universais ligadas à vida humana

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rançois Marie Arouet, ou Voltaire (1694-1778), como ficou conhecido, é uma das encarnações do Iluminismo e um dos homens mais brilhantes que a França já produziu. Senhor de uma pena mordaz e de uma escrita incansável, é dono de uma volumosa obra. Seus trabalhos na área da escrita são os mais variados, passando pela poesia, peças teatrais, ensaios e filosofia. Uma de suas marcas: a oposição aos preconceitos morais e à tirania. Entre suas mais famosas obras estão o romance satírico Cândido e o Dicionário Filosófico — do qual são reproduzidos alguns verbetes nas próximas páginas. De fato, foi por meio da escrita que Voltaire tornou-se famoso, sendo admirado tanto pelo povo, quanto por grandes monarcas como Frederico II, O Grande, da Prússia. O filósofo viveu pouco mais de 80 anos. Em 1791, dois anos após o início da Revolução Francesa, seus restos foram levados ao Panteão de Paris. Milhares de homens e mulheres acompanharam o cortejo. Na carruagem em que era conduzido havia a seguinte inscrição: “Ele deu à mente humana um grande ímpeto; ele nos preparou para a liberdade.”

É

Amizade

um tácito contrato entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Digo sensíveis, porque um monge, um eremita pode não ser mau e viver sem conhecer a amizade. Digo virtuosas, porque os malvados só conhecem cúmplices, os lúbricos têm companheiros de deboche, os ambiciosos, associados, os políticos arrebanham os de feitio faccioso, os homens vulgares e ociosos têm ligações apenas, os príncipes, cortesãos; mas os homens virtuosos e só eles têm amigos. Cetego era o cúmplice de Catilina e Mecenas o cortesão de Otávio; mas Cícero era amigo de Ático. Que contém então esse contrato entre duas almas ternas e honestas? As suas obrigações são, por isso mesmo, maiores e mais tênues, conforme o grau de sensibilidade e o número dos serviços prestados, etc.

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O fervor pela amizade foi mais intenso entre os gregos e os árabes do que entre nós. As histórias que esses povos inventaram sobre a amizade são admiráveis; nada temos que se lhe compare, somos um tanto rudes em tudo. A amizade era um tema de religião e de legislação entre os gregos. Os tebanos tinham até o regimento dos amantes: que belo regimento! Houve quem supusesse que se tratava de um regimento de sodomitas; puro engano; tomavam o acessório pelo fundamental. Entre os gregos, a amizade era prescrita pela lei e pela religião. A pederastia era tolerada pelos costumes de então; mas não se devem imputar à lei abusos vergonhosos. Adiante falaremos disso.

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A

Amor

mor omnibus idem. Temos aqui de recorrer ao físico; é o estofo da natureza que a imaginação bordou. Se queres fazer uma idéia do que seja o amor, olha os pardais do teu jardim; contempla os teus pombos; repara no touro que levam para junto da bezerra, nesse altivo garanhão que dois palafreneiros conduzem ao pé da meiga égua que o espera e desenrola a cauda para o receber; vê como os seus olhos brilham; ouve os seus relinchos; contempla aqueles saltos, aqueles caracoleias todos, as orelhas espetadas, a boca que se abre em breves convulsões, as narinas arfando, dilatadas, a respiração ofegante, as crinas erguidas que padanam, o imperioso movimento com que ele se lança à conquista do objetivo que a natureza lhe destinou; mas não tenhas inveja e pensa nas vantagens de que a espécie humana desfruta: compensam em amor tudo o que a natureza concedeu aos animais em força, beleza, agilidade, rapidez. E há até animais que desconhecem o prazer. Os peixes escamosos estão privados desse regalo: a fêmea expele para o lodo milhões de ovos; o macho que os encontra casualmente passa sobre eles e fecunda-os com o seu sêmen, sem para nada se importar com a fêmea donde provinham. A maioria dos animais que copulam atinge o prazer por um único sentido; e, logo que esse apetite foi satisfeito, tudo acabou. Nenhum animal, além de ti, conhece a delícia do beijar; o teu corpo é todo ele cheio de sensibilidade; são principalmente os teus lábios que gozam duma voluptuosidade que jamais se cansa e esse prazer só da tua espécie é apanágio; finalmente, em qualquer altura podes entregar-te ao amor, enquanto nos animais apenas numa época determinada é concedido. Se meditares nestas superioridades, dirás como o Conde de Rochester: “Num país de ateus, o amor faria adorar a Divindade”. Como os homens possuem o dom de aperfeiçoar tudo o que a natureza lhes deu, também aperfeiçoaram o amor. O asseio, os cuidados com o nosso corpo, tornando a pele mais delicada, aumentam o prazer do tato, e a vigilância da saúde torna os órgãos da voluptuosidade mais sensíveis ainda. Todos os outros sentimentos penetram a seguir no de amor, tal como os metais se amalgamam com o ouro: a amizade, a estima vêm em seu auxílio; os talentos do corpo e do espírito forjam novas e ternas cadeias.

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Nam facit ipsa suis interdum foemina factis, Morigerisque modis, et mundo corpore cultu, Ut facile insuescat secura vir degere vitam. (Lucrécio, Livro IV.) É principalmente o amor-próprio que aperta todos estes laços. Aplaudimonos intimamente com a nossa escolha e um ror de ternas ilusões é o ornamento da obra de que a natureza rasgou os alicerces. Também aí és superior aos animais; mas, se gozas tantos prazeres que eles ignoram, quantos desgostos não virás a padecer e de que eles não fazem a mínima idéia! Para ti, o que resulta mais horroroso ainda é que a natureza, em três quartas partes da terra, envenenou os prazeres do amor e as fontes da vida com uma doença terrível, à qual somente o homem está sujeito e que só a ele ataca, nos seus orgões. Não sucede com está malvada peste o que se verifica com tantas doenças, que são a consequência dos nossos excessos. Não foi o deboche que a introduziu. As Frinéias, as Laís, as Floras e as Messalinas não foram atacadas por ela; nasceu nas ilhas onde os homens viram na mais completa inocência e daí se espalhou pelo antigo mundo. Se algum dia foi possível acusar a natureza de desprezar a sua obra, de contradizer os seus próprios planos, de agir contra os seus fins, foi nessa ocasião. É então este o melhor dos mundos possíveis? Homessa! Pois se César, Antônio, Otávio nunca tiveram tal doença, era assim coisa tão impossível que ela poupasse Francisco I e não o levasse à cova, como aconteceu! Não, dizem os entendidos, o destino ordenou tudo pelo melhor... Quero crê-lo, mas é bem triste que seja assim.

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Moral

cabo de ler estas palavras numa declaração em catorze volumes, intitulada História do Baixo Império: “Os cristãos tinham uma moral; os pagãos, porém, não tinham moral alguma”. Ah! senhor le Beau, autor destes catorze volumes, onde foi aprender semelhante parvoíce? O que é então a moral de Sócrates, de Zaleucus, de Charondas, de Cícero, de Epicteto, de Marco Antônio? Não há senão uma moral, senhor le Beau, tal como não há senão uma geometria. Mas, dir-me-ão, a maior parte dos homens ignora a geometria. É certo; contudo, desde que as pessoas se apliquem um pouco no seu estudo, todas se opõem de acordo. Os agricultores, os operários,

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Jean Huber (1721-1786) retratou Voltaire em um conversa com camponeses em Ferney — localidade da Suíça na qual o filósofo residiu por algum tempo.

os artesãos nunca frequentaram cursos de moral; não leram os De Finibus de Cícero, nem as Éticas de Aristóteles; todavia, contanto que refletiam, são, sem o saberem, discípulos de Cícero: o tintureiro indiano, o pastor tártaro e o marujo inglês conhecem o justo e o injusto. Confúcio não inventou um sistema de moral tal como se edifica um sistema de física. Encontrou-o no coração de todos os homens. Esta moral estava no coração do pretor Festus quando os judeus o instaram a que fizesse morrer Paulo, que trouxera estrangeiros ao seu templo. “Sabei” disse-lhes “que nunca os romanos condenam pessoa alguma sem a ouvirem”. Se os judeus careciam de moral ou faltavam à moral, os romanos conheciamna e prestavam-lhe homenagem. A moral não reside na superstição, não reside nos cerimoniais, nada tem de comum com os dogmas. Não será demais repetir que todos os dogmas são diferentes e que a moral é a mesma em todos os homens que usam a razão. As-

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sim, a moral vem de Deus como a luz. As nossas superstições são apenas trevas. Leitor, reflete: ouve esta verdade; tiras as tuas consequências.

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Orgulho

m uma das suas cartas, Cícero escreve familiarmente a um amigo: “Dizei-me a quem desejais que eu mande dar as Gálias”. Noutra, lamentase de estar cansado das cartas de não sei que príncipes, os quais lhe agradecem o haver elevado as suas províncias a reinos, e acrescenta que nem sequer sabe onde ficam situados esses reinos. Pode ser que Cícero, que aliás vira muitas vezes o povo romano, o povo rei, aplaudi-lo e obedecer-lhe e que recebia agradecimentos de reis que nem sequer conhecia, houvesse experimentado alguns impulsos de orgulho e de vaidade. Conquanto este sentimento não seja de todo justificado em tão mesquinho animal como homem, poderíamos no entan-

to perdoá-lo a um Cícero, a um César, a urn Cipião; mas que nos confins de uma das nossas províncias meio bárbaras um homem que houver comprado urn cargo insignificante e feito imprimir versos medíocres decida estar orgulhoso, eis o que dá matéria para nos rirmos longamente.

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Senso Comum

xiste por vezes nas expressões vulgares uma imagem do que se passa no fundo do coração de todos os homens. Sensus communis significa, entre os romanos, não só senso comum mas também humanidade, sensibilidade. Como não valemos os romanos, a expressão significa entre nós apenas metade do que significa entre eles. Significa tão-só bom senso, razão grosseira, razão inicial, primeira noção das coisas ordinárias, estado médio entre a estupidez e a agudeza de espírito. “Esse homem não tem o senso comum” corresponde a injúria grossa. “Esse homem tem o senso comum” é uma

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injúria também; quer isto dizer que não é absolutamente estúpido e que carece daquilo a que se chama agudeza de espírito. Porém, de onde pode derivar a expressão senão dos sentidos? Quando inventaram esta expressão, os homens confessaram que nada entra na alma senão pelos sentidos; de outra maneira, como teriam empregado a palavra senso para significar raciocínio comum? Por vezes diz-se: “O senso comum é muito raro”; que significa esta frase? Significa que em muitos homens a razão inicial é travada no seu progresso por alguns preconceitos; e que esse homem, capaz de sãos juízos sobre determinado assunto, se enganará grosseiramente acerca de outros. O árabe, que será um bom calculador, um sábio químico, um astrônomo exato, acreditará no entanto que Maomé tem metade da lua escondida na manga. Que motivos o levarão a ir além do senso comum nas três ciências a que me referi, e a ficar abaixo do senso comum quando se trata da metade da lua? É que, nos primeiros casos, viu com os próprios olhos, aperfeiçoou a inteligência; e no segundo viu pelos olhos de outrem, fechou os seus, perverteu o senso comum que em si existe. Como é possível que se opere esta estranha reviravolta do espírito? Como é possível que as idéias que marcham no cérebro com passo tão regular e tão firme, quanto a grande número de objetos, falhem tão miseravelmente quando se trata de outro mil vezes mais palpável e mais fácil de compreender? Um tal homem conserva em si os mesmos princípios de inteligência; torna-se, pois, necessário que haja um órgão viciado, como acontece por vezes que o mais fino dos gastrônomos possa ter o gosto depravado no que respeita a uma espécie particular de comida. Como se viciou o órgão desse árabe que vê metade da lua na manga de Maomé? Por efeito do medo. Foi-lhe dito que, se não acreditasse na história da manga, a sua alma logo após a morte, ao passar na ponte estreita, tombaria para sempre no abismo; foi-lhe dito algo de bem pior: “Se alguma vez duvidares da manga, um derviche te designará como ímpio; outro te provará que és insensato, pois, tendo todos os motivos possíveis de credibilidade, não quiseste submeter a tua razão soberba à evidência; um terceiro te pronunciará ante o insignificante divã de uma insignificante província e serás legalmente empalado”. Tudo isto põe em terror pânico o bom do árabe, a sua mulher, a irmã e todo o resto da família. Têm bom senso sobre tudo o mais mas quanto a este artigo a sua imaginação está ferida, como a de Pascal, que via continuamente um precipício junto da sua cadeira. Mas acreditará o nosso

árabe, com efeito, na manga de Maomé? Não; esforça-se por crer; diz: “Isto é impossível mas é verdade; creio no que não creio”. Forma-se na sua cabeça, acerca da manga, um caos de idéias que receia deslindar; e eis o que verdadeiramente não tem o senso comum.

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Tirania

hama-se tirano o soberano que não conhece outras leis senão as do seu capricho, que se apodera dos bens dos súditos e que seguidamente os requisita para ir apoderar-se dos bens dos vizinhos. Não há tiranos destes na Europa. Costuma distinguir-se a tirania de um da tirania de muitos. A tirania de muitos seria a de uma classe que usurpasse os direitos das outras classes e exercesse o despotismo a coberto de leis por ela corrompidas. Não há também esta espécie de tiranos na Europa. Sob que tirania preferíeis viver? Sob nenhuma; mas, se tivesse de escolher, detestaria menos a tirania de um só que a tirania de muitos. Um déspota sempre beneficia com bons momentos; uma assembléia de déspotas, nunca. Se um tirano comete uma injustiça para comigo, posso desarmá-lo através da sua amante, do seu confessor ou do seu pajem; mas uma companhia de tiranos sisudos é inacessível a todas as seduções. Quando não é injusta, é pelo menos dura e nunca espalha favores. Se só tiver um tirano, estou quites ao me encostar-me quando o vejo passar, ou ao prosternar-me, ou batendo no chã com a testa, segundo o costume do país; mas, se houver uma companhia de cem tiranos, fico exposto a repetir cerimônia cem vezes por dia, o que se torna aborrecido a longo prazo, quando se não têm os joelhos adestrados. Se possuo uma quinta na vizinhança de um dos nossos senhores, sou esmagado; se litigo contra um dos parentes de um dos nossos senhores, fico arruinado. Que fazer? Receio que neste mundo estajamos reduzidos a ser bigorna ou martelo; feliz de quem escapa a esta alternativa!

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Virtude

que é a virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar a virtude ao que não seja fazeremme bem? Sou indigente, és liberal; estou em perigo, tu socorres-me; enganas-me, dizes-me a verdade; sou ignorante, tu ensinas-me; chamar-te-ei sem esforço virtuoso. Mas que faremos das virtudes cardiais e teologais? Algumas hão de continuar a ser ensinadas nas escolas. Que me importa que sejas temperante? Observas um preceito salutar, a tua saúde será melhor, felicito-te. Tens fé

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e tens esperança. Felicito-te ainda mais; a fé e a esperança abrir-te-ão o caminho da vida eterna. As tuas virtudes teologais são dádivas celestes; as cardiais são excelentes qualidades úteis à direção da tua vida; todavia, não são virtudes em relação ao teu próximo. O homem prudente faz bem a si, o virtuoso faz bem aos outros. São Paulo teve razão em dizer que a caridade é mais importante que a fé e a esperança. Mas como! Não admitiremos como virtudes senão as que sejam úteis ao próximo? E como posso admitir outras? Vivemos em sociedade; só é verdadeiramente bom para nós aquilo que faça o bem da sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso, usará um cilício; pois bem, será santo; mas não o considerarei virtuoso a menos que venha a praticar algum ato de virtude que aproveite aos outros homens. Enquanto permanecer só não é benfazejo nem malfazejo: para nós, é nada. Se São Bruno estabeleceu a paz entre as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, se orou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios; o que não participa deste comércio, não deve ser contado entre os virtuosos. Se esse Santo fosse do mundo, espalharia o bem, sem dúvida; mas, enquanto não for, o mundo terá razão em lhe recusar o nome de virtuoso; ele será para si e não para nós. Porém, dir-me-eis, se um solitário é guloso, bêbado, entregue a deboches secretos consigo mesmo, será um vicioso; logo, será virtuoso se tiver as qualidades contrárias. Não estou de acordo: trata-se de um homem vil, se tiver os defeitos a que aludis; mas não é vicioso, mau, passível de punição, em relação à sociedade que não sofre quaisquer prejuízos em consequência dos atos desse homem. É de presumir que, se ingressar na sociedade, fará o mal, será vicioso; é mesmo mais possível que venha a ser um homem maldoso do que um solitário temperante e casto, ou venha a ser urn homem de bem; pois, na sociedade, aumentam os defeitos e as boas qualidades diminuem. Há quem produza uma objecão mais forte: Nero, o Papa Alexandre VI e outros monstros da mesma espécie, espalharam benefícios; respondo com arrojo que foram virtuosos nesses dias. Alguns teólogos sustentam que o divino Imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico obstinado, que, não contente de comandar os homens, queria ainda por cima ser estimado por eles; que referia a si o bem que fazia ao gênero humano, que toda a vida foi justo, laborioso, benfazejo por vaidade e que se limitou a enganar os homens com as suas virtudes; e eu grito: “Meu Deus, dai-nos muitas vezes semelhantes patifes”.

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RESENHA

Contemplando um livro: Estética de Hegel Dimas da Cruz Oliveira

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orna-se difícil, quando repassamos a Estética de Hegel, furtarmo-nos à tentação de escrever algumas notas acerca daquelas páginas maravilhosas. Pertence, com efeito, a Estética à categoria dos livros inesquecíveis não apenas por seu conteúdo acabado, mas também por sua própria formação: trata-se, no caso, de uma imensa massa de conhecimentos eruditos que, tratados com suma elegância e bom gosto, servem assim a uma inteligência poderosa. E como seria de outro modo, quando sabemos que Hegel, excepcionalmente dotado e prematuro, aos quinze anos de idade já escrevia um diário intelectual em alemão e latim, e pouco tempo depois dissertava em latim sobre os mistérios astronômicos, no seu De Orbitis Planetarum? A Estética veio assim, num certo sentido, coroar o esforço de Hegel na compreensão do mundo artístico e do seu significado para a totalidade do mundo. Quando falamos de “arte” no contexto do pensamento de Hegel, falamos na verdade de um dos três estágios – os outros dois são a religião e a filosofia – nos quais o Espírito, qualquer que seja o sentido que lhe atribui o filósofo, deverá se apresentar.

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Como o pensador alemão, envolto em um turbilhão cultural e influenciado pelos ideais gregos, desenvolveu uma das mais emblemáticas obras sobre o tema da beleza

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alando sempre como filósofo, aliás, e entregue àquela “volúpia de pensar” sobre a qual Heidegger incessantemente fala, Hegel escreve um texto denso e profundo, cheio de surpresas, seja em alemão seja noutras línguas. Resta-nos portanto, como leitores curiosos, aceitar o desafio proposto pela dificuldade do texto, e procurar na Estética alguns dos muitos pontos luminosos que ela possui apesar do excesso de pensamento abstrato que a envolve. Quando encontramos aqueles pontos, então descobrimos que vale para a Estética o fino pensamento de Ortega y Gasset acerca das Preleções sobre a

Filosofia da História, de Hegel, que apresentam “momentos da mais esplêndida poesia; gêiseres cálidos, irisados, que se alçam no horizonte lunar da sua gélida dialética”. Aliás, o horizonte cultural da Alemanha na época era senão lunar pelo menos pouco convidativo do ponto de vista da cultura puramente humanista, “clássica”, como queria o próprio Hegel; a Estética deverá aparecer num momento em que os alemães se esforçavam a fim de afastar de si mesmos a pecha de “bárbaros” que ainda lhes era aplicada por Voltaire. Assim, numa empresa merecedora de toda a nossa admiração, poetas, artistas e filóso-

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Bildnis des Philosophen George Wilhem Friedrich Hegel. Jakob Schlesinger, 1831

Hegel é considerado, até mesmo por filósofos, um autor difícil de ser lido, todavia sua influência no pensamento ocidental é imensurável. fos alemães deverão, a partir da segunda metade do século XVIII, reivindicar a volta do “sonho grego”, isto é, o ressurgimento da cultura helênica, da Grécia enquanto sede imortal das musas que patrocinam as letras e as artes. Este sonho, que para muitos parecia simplesmente impossível, fazia arder o coração de Schiller, Goethe e do próprio Hegel, como descobrimos na Estética. Fazer o deus das artes, Apolo, cruzar a fronteira meridional; pedir-lhe que, deixando atrás de si a Itália, tomasse o rumo da Alemanha portando a sua lira: ad Apollinem, ut ab Italis cum lyra ad Germanos veniat! Assim desejava um poeta d’além Reno. Por isso podemos dizer que, malgrado os muitos obstáculos enfrentados pela cultura humanista, quando o pensamento de Hegel floresce os dias em que os alemães só conheciam aquela cultura através da França já iam longe; já era coisa do passado o gosto algo duvidoso ditado pela corte de Luís XIV. Agora o que a cultura nacional desejava era um contato direto com o deus grego e o seu cortejo de musas; daí derivam as insistentes invocações de Schiller à cultura grega não obstante a

enorme distância geográfica e cronológica que o separa do mundo helênico. No amor incondicional por Apolo e Diana se inspiram muitos dos versos do poeta, como aqueles que celebram as descobertas arqueológicas de Pompéia e Herculano: “Que maravilhas são essas? Nós pedimos a ti fontes de água potável / Ó Terra: mas o que nos devolve teu seio? / Vive-se também nos abismos? / Vive sob a lava uma nova estirpe? / Retorna o que dantes fugiu? / Vinde, gregos e romanos, / Vede, ressurge a antiga Pompéia / Constrói-se de novo a cidade de Hércules!”. Com Schiller, portanto, sem esquecermos Goethe, o deus da lira já tinha cruzado a fronteira alemã; muito, porém, ainda restava por fazer.

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este contexto de descobrimento, por assim dizer, da cultura grega por parte dos alemães, Hegel compôs a sua Estética. Para isso, entretanto, era-lhe necessário um órgão de observação direta, que permitisse a seu temperamento filosófico, menos afeito ao arroubo poético que o de Schiller, concentrar-se sobre o objeto da sua ciência, o belo, sem perder o equilíbrio, isto é, sem esquecer-se

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jamais daquele belo que encontramos na obra de arte clássica: o belo ideal de Platão. Esse órgão encontrou-o Hegel menos nos pensadores que o precederam, como Kant, por exemplo, do que no amante da arte grega, Winckelmann, cuja sublime História da Arte na Antiguidade marcou época. Foi Winckelmann um verdadeiro amante da Grécia visto que, embora nascido em meio à paisagem cheia de florestas da Alemanha do Norte, longe da luminosa Itália e da Grécia, ele soube instintivamente encontrar todos os segredos da arte antiga. É impressionante o testemunho de Madame de Staël a respeito de Winckelmann: “Conheciam-se eruditos que podiam ser consultados como livros; mas nenhum se fizera, por assim dizer, pagão com o fim de penetrar a antiguidade”. Deste modo, no exemplo de Winckelmann Hegel encontrou o foco de seu próprio entusiasmo pela arte da Grécia, aquela arte na qual o Espírito realiza uma perfeita união com a matéria; essa união foi percebida por Winckelmann como a ideia da arte. Portanto não se trata, na obra de Hegel, de realizar uma história geral da arte, de registrar a evolução dos estilos manifestada nas mais

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The Acropolis at Athens. Franz Leo von Klenze, 1846

Em meados do século XIX, artistas e filósofos alemães reivindicaram a volta do “sonho grego”, um retorno ao berço da cultura ocidental. diferentes ocasiões; porém, ao contrário, trata-se de seguir aquela ideia diretora através dos tempos. Nesse sentido, a arte mais antiga, a do Egito, ainda parece a Hegel ser monumentalidade fechada em si mesma, uma espécie de deus calado e envolto em mistério: “A arte do Egito é um Memnon que aguarda o amanhecer; o amanhecer do humanismo grego, com sua faculdade de falar”. Assim, a arte grega fala de si mesma como algo de original, é o espírito que se idealiza a si mesmo através do homem; embora não como um modelo a ser seguido; este foi, aliás, o erro fatal de todo academicismo e a fonte da sua insipidez; “clássico” é, sempre, o espírito reconhecido naquela arte e não um modelo rígido. Por outro lado não nos interessa, diz Hegel, saber os começos da arte: eles são sempre grosseiros e ainda envolvem, apenas, o despertar do espírito; tampouco nos seduz a ideia de catalogar a obra de arte de acordo com a perfeição dos meios técnicos que serviram à sua produção; nem devemos, muito menos, limitar nos-

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sa apreciação da arte à sua superfície. Ao contrário, busquemos na arte toda a vida que ela nos oferece; isso implica em possuirmos, também nós, a vida do espírito; essa vida, somente ela, aguça nossa sensibilidade criando em nós o desejo de contemplar o belo artístico. Somente este belo diz respeito à estética, ressalta Hegel, visto que mesmo o belo natural só é enxergado pela perspectiva do belo artístico: perante o espetáculo da natureza, só nos parece bela uma paisagem, ou o crepúsculo, por exemplo, quando somos capazes de descobrir neles o espírito oculto que lhes dá uma dimensão artística. É notável, a esse respeito, não somente o desenho artístico mas também aquela famosa água forte cultivada pelos alemães e ingleses na tradição dos grandes paisagistas holandeses.

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as a arte clássica é “a arte perfeita” porque “Na arte clássica, o sensível, o figurado, deixa de ser natural. Ainda se trata, de certo, da forma natural, mas que já está subtraída à indi-

gência da finitude e se conforma perfeitamente com o conceito”; no caso, o conceito da perfeição artística. Se a vida natural é transitória, longa é a vida que nasce da arte: ars longa, vita brevis. Na perfeição de um corpo belo o espírito, dantes concentrado em si mesmo, deus egípcio silencioso, agora fala não apenas ao próprio artista ou a um círculo refinado, mas a todo um povo se este povo for dotado para a vida do espírito. Foi assim que, não contentes com a beleza masculina ideal desenhada por Policleto, a beleza dos deuses, os gregos buscaram ainda, contrariamente ao que tantos críticos afirmam, “as deusas entre nós”, encontrando-as na famosa Laís, “A mais bela mulher”, diz Hegel, “que saiu nua das águas perante os olhos de toda a Grécia”. Mas se a arte clássica realiza a união, essa correspondência perfeita entre o sensível e o espiritual de que fala Hegel, não deve o mau uso do seu conceito extraviar nos. Não devemos admitir, por exemplo, que a arte italiana da renascença ou a arte francesa sob Luís XIV,

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sejam consideradas “clássicas”. Tinha esta última, com seus ademanes, pouco a ver com a Grécia; enquanto basta, com relação à Itália, lembrar o quanto encontramos de inteiramente não clássico, digamos, na influência flamenga sobre a pintura da Toscana-Úmbria! Aliás, como transparece na obra de Hegel, a escultura é a arte par excellence quando se fala na arte clássica, cabendo à pintura a melhor expressão da arte por ele chamada de “romântica”. “A escultura representa, na forma corporal, o espírito na sua unidade imediata, num estado de tranquilidade serena e beatífica, ao mesmo tempo que a forma, por sua vez, se acha vivificada pela individualidade espiritual”. Longo e quiçá tedioso seria repetir o trânsito das diferentes formas artísticas desde a primeira delas, a arquitetura, até à última, a sublime poesia, na Estética. O que impressiona é a sutileza, a penetração com a qual Hegel nos fala sobre a sucessão necessária daquelas formas e sua influência recíproca na formação de um todo orgânico. Também particularmente bela é a dissertação do filósofo sobre o templo, a domus Dei, a morada que o espírito escolheu para si mesmo na vastidão do mundo exterior. Se Deus só pode ser adorado enquanto espírito, se nenhuma obra de arte, mesmo a mais sublime, pode ser adorada, quão majestosa é a sede, o ponto sensível no qual aquele espírito vem manifestarse, entre as asas dos serafins, na Arca da Aliança, ou no âmago do templo, o sanctum sanctorum! E encontramos, depois, a fala de Hegel sobre as cores, a natureza delas, sua combinação recíproca ou contrastes acentuados, enfim o papel exercido por elas no conjunto da linguagem artística; eis aqui um forte traço da influência de Goethe na formação da Estética. Ainda temos o tratamento filosófico dos sons, que leva Hegel, assim como mais tarde levaria o poeta Hebbel a elogiar a graciosidade incomparável da língua italiana. Não se trata, entretanto, em momento algum, de mera digressão, de algo como “um excesso de sutileza germânica” voltado para o estudo do belo. Bem ao contrário, Hegel obedece a uma necessidade do seu próprio espírito ávido de beleza e verdade. Para ele a produção artística há de refletir a espiritualidade que se busca a si mesma naquela produção: “o espírito revê-se nos produtos da arte”. Daí surge a grandiosa afirmativa da dignidade da arte: feliz aquele povo para quem a arte representava o que há de mais elevado na alma humana; felizes, portanto, foram os gregos contemporâneos de Fídias e Péricles, ou os italianos da renascença. Para nós, sentencia Hegel, infelizmente já não possui a arte tão elevado papel cultural, malgrado os esforços de

Schiller, Goethe e tantos outros. “Já para nós a arte não possui o alto destino que outrora teve. Já, para nós apenas objeto de representação, a arte não possui aquele caráter imediato, aquela plenitude vital, aquela realidade que entre os gregos teve na época do seu florescimento”.

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nossa vida moderna, paradoxalmente muitíssimo mais confortável que a dos gregos, tornou-se também mais difícil e complexa: nós estamos demasiado envolvidos em interesses pautados pelo utilitarismo e que impedem o gozo desinteressado da arte. Schiller lamenta isso, ele se queixa da rapidez com que passou, após curta primavera, aquela “estação do amor”; ele, que em sua qualidade de poeta alemão daquele tempo, sempre a recordar os gregos, derramou sobre a arte seu coração ardente. Mas, fazer o quê? No estudo filosófico da arte, na estética, nos ensina Hegel, devemos encontrar consolação. Se ainda estudamos a ciência do belo, é porque não se extinguiu em nós o desejo de contemplar esse belo apesar das condições adversas que encontramos por nossa vez. Se já não somos,

Busquemos na arte toda a vida que ela nos oferece; isso implica em possuirmos, também nós, a vida do espírito; essa vida, somente ela, aguça nossa sensibilidade criando em nós o desejo de contemplar o belo artístico. absolutamente, dotados da mesma veia artística dos gregos, saibamos, pelo menos, buscar na obra de arte aquela aura de que nos fala um dos maiores herdeiros de Hegel, Walter Benjamin. Sem essa busca, mesmo as obras primas da arte não nos dizem nada; insensíveis à presença da aura são aqueles turistas que, em visita ao Museu do Louvre, exclamam diante da Mona Lisa: “como é pequeno o quadro!” Porque, de acordo com o brilhante ensaísta, “perceber a aura de uma coisa significa dotá-la da capacidade de olhar”; é o espírito que, por sua vez, nos contempla através da obra de arte. Somente os amantes do mistério ainda são capazes de entregar-se, na estética de Benjamin, à contemplação da obra de arte no sentido dos gregos. E por quê? Porque “creem eles que os monumentos e os quadros somente se apresentam sob o delicado véu que ao seu redor teceram o amor e a veneração de tantos admiradores no decurso dos séculos”.

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m outro traço marcante da Estética de Hegel é a sua unidade, um esforço imperial em prol da unidade; não importa a diversidade quase infinita das formas artísticas: elas deverão agrupar-se, sob o impulso do espírito, na unidade do conceito: arte simbólica, clássica, romântica. Servem esses conceitos, quer os compreendamos quer não, em toda a sua plenitude, para ordenar a filosofia da arte, e não podem ser tomados como absolutos. Com efeito, se tomada, toda a arte egípcia, por “simbólica”, tal como representada nos templos de Karnak e Luxor, por exemplo, como explicar a leveza, sentimentalismo, requinte e elegância encontrados nos monumentos de Tell-al-Amarna, sob a décima oitava dinastia? Se toda a arte grega é “clássica”, isto é, feita de equilíbrio e serenidade como querido por Winckelmann e reiterado por Hegel, o que representa o tão angustiado grupo do Laocoonte, no Museu do Vaticano? Por outro lado, se o conjunto da arte dita “romântica” reflete a unidade invisível da natureza humana e divina, a unidade concebida agora não mais como natureza sensível, mas como “espírito e verdade”, qual seria a explicação para o superficial neopaganismo às vezes encontrado naquela arte? O que existe de profundo e verdadeiramente cristão nas palavras do compositor alemão Richard Wagner: “Eu creio em Deus, Mozart e Beethoven, e na santidade da música”? Porque o grande risco que corremos hoje em dia, ao abordar o pensamento sobre a arte, é justamente este: o de proferir a respeito dela um “credo” artificial, afetado, imposto pela moda e despido de profundidade filosófica, senão vital, como salienta Hegel. Também é claro que as muitas observações dos críticos, sejam ou não simpatizantes do pensamento de Hegel, não diminuem nem um pouco a grandeza da Estética. Postado como um marco inconfundível entre o antes e o depois do pensamento sobre o belo, Hegel nos guia, nos estimula, nos leva a participar, enfim, daquela comunhão com o mundo ideal de que fala Platão. Abeberar-se nas perenes fontes gregas foi, assim, o recurso encontrado por Hegel a fim de fazer a vulgaridade moderna enxergar de algum modo o ideal de beleza da arte. Na contradição do horizonte histórico em que vivemos vê-se, de um lado, o perfil algo longínquo do Partenon e, do outro, a Bolsa de Valores; numa extremidade, os deuses da mitologia e os heróis homéricos, na outra os computadores de última geração; dispomos de recursos técnicos quase infinitos para a reprodução da obra de arte; faltanos porém, ao mesmo tempo, a posse do espírito que produziu essas obras: é possível conciliar essas tremendas contradições numa síntese definitiva, para usar a linguagem do próprio Hegel? Não sabemos. Sabemos, apenas, que é possível encontrar a síntese de todo espírito no espírito de Hegel.

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MITOLOGIA

Eros e Psiquê O mito central do amor Maria José Ribeiro

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história de Eros e Psiquê é um mito central no conjunto de narrativas que compõem a mitologia grega. É a história do Amor que amou a Alma. Psiquê é a alma personificada. É a mais bela de todas as mortais. Eros é a personificação do amor, o deus do amor, conhecido também entre nós pelo nome romano de Cupido. Apesar das diferentes genealogias a ele atribuídas, é geralmente considerado como o filho de Afrodite e Hermes. Em O Banquete, Platão destaca que Eros pode ser filho da Afrodite urânea, a dos amores etéreos, ou da Afrodite pandêmea, deusa do desejo brutal. Eros é representado por uma criança ou adolescente alado, numa alusão “à eterna juventude de todo amor profundo”, mas também a “uma certa irresponsabilidade”, nas palavras de Jean Chevalier. Mas, o que é um mito? Para a Literatura, é uma narrativa cujos encadeamentos temáticos e padrões de comportamento que ali se revelam ressurgem na tapeçaria de epopeias, romances, contos, poemas. Para Jung, mitos são sistemas que explicam a própria vida, num fluxo sempre a caminho da maturidade psicológica do ser. Desde o século IV a.C. com Evêmeno — “mitos são uma representação da vida passada dos povos”, passando por Platão — “mito é o que pertence à opinião e não à certeza científica”, até um mundo pós Freud e Jung, mitos “ajudam a perceber uma dimensão da realidade humana e trazem à tona a função simbolizadora da

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imaginação” (Dicionário de Símbolos de Gheerbrant e Chevalier e Gheerbrant). Vem da obra Mitologia grega (1991), do inesquecível Junito de Souza Brandão, uma maneira que encontrei de contar o amor de Eros e Psiquê, depois de muitas leituras e releituras do mito, ao longo dos anos, em vários livros. O autor registra que, apesar da origem grega, o mito de Eros e Psiquê chegou até nós organizado em forma de novela, em Metamorfoses, de Lucio Apuleio, escritor latino. O drama mítico de Eros e Psiquê representa o conflito entre alma e amor. Psiquê não conseguia encontrar noivo, porque era divinamente bela e os homens passavam a homenageá-la com devoção, nunca se aproximando dela como mulher. Sua perfeição comparada a dos deuses amedrontava. Seus pais foram ao oráculo, em busca de solução para o problema e a resposta foi mais ou menos a seguinte: — é preciso atá-la a um rochedo e oferecê-la em sacrifício a um terrível monstro. E assim foi feito. Mas eis que a moça foi levada para um belíssimo castelo, num profundo vale, pelo vento Zéfiro. Lá havia vozes para servi-la e à noite sentia a presença de alguém: era o marido, ninguém menos que o deus do amor, Eros. E Junito Brandão assinala: “Mas o êxtase em que murmura ‘esposo doce como mel’ ou ‘minha vida e amor’ é um êxtase de trevas. É um estado de desconhecimento e cegueira, uma vez que seu grande amor podia ser sentido e ouvido, mas não visto”. Psiquê

viveu feliz, até pedir para rever a família e falar com suas duas irmãs. Ciumentas da felicidade plena da caçula, as irmãs mais velhas sugeriram que ela se certificasse de que não estaria casada com o monstro do rochedo, acabando com o mistério e conhecendo o rosto do amado. Psiquê tentou ver a face do noturno companheiro, iluminando o leito com uma lamparina, e o deus do amor despertou ferido com uma gota de óleo quente. Eros fugiu e Psique, então completamente apaixonada, passou a vagar pelo mundo, por ter desrespeitado a advertência do marido de que, se contemplasse o seu rosto, nunca mais o veria. Começa um longo período de tormentos para Psiquê, vítima da raiva de Afrodite, mãe de Eros, cujos templos haviam sido esvaziados, pois a humanidade passara a homenagear aquela bela mortal como se fosse deusa. Afrodite impõe à moça tarefas cada vez mais difíceis de serem cumpridas. E Psiquê as vence uma a uma, auxiliada por elementos da natureza. São as famosas quatro tarefas de Psiquê: (1) separar uma grande quantidade de sete diferentes grãos, até o anoitecer daquele dia; (2) trazer à Afrodite flocos de lã de ouro que cobriam o dorso de ovelhas ferozes; (3) escalar um rochedo íngreme e trazer, num vaso de cristal, águas que alimentavam os dois rios infernais, Estige e Cocito, cujas nascentes eram guardadas por terríveis dragões; (4) ir ao Hades e receber das mãos de Perséfone um pote cujo conteúdo seria a beleza imortal e trazê-lo

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Antoni Stanislaw Brodowski, Oedipus and Antigone, 1828

Há diversos exemplos de intenso amor que acabam em tragédia nos mitos, como ocorre no muito conhecido encontro entre Édipo e sua mãe Jocasta.

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John William Waterhouse. Eco e Narciso, 1903

O jovem Narciso morreu ao ver a própria imagem num lago. Ele apaixonou-se perdidamente por si mesmo como o oráculo havia previsto.

para Afrodite. Nessa última tarefa, Psiquê não resistiu e abriu o pote, entrando em sono estígio. Eros, já curado do ferimento com óleo quente, chegou até ela e curou-a com uma de suas flechas, tocando-a levemente. Depois foi pedir a Zeus que intercedesse por eles. Zeus convocou uma assembleia e todos os imortais concordaram com o casamento. Psiquê foi levada até o Olimpo, onde Zeus ofereceu-lhe ambrosia, a bebida da imortalidade. Desse enlace nasceu logo depois uma menina, Volúpia, ou o prazer, a bem-aventurada. O mito de Eros e Psiquê fala de desafios, enganos e superação dos obstáculos impostos ao amor. A mitologia é repleta de encontros e desencontros que constituem interessantes episódios em torno do amor. Começo lembrando Ulisses e Penélope. Penélope personifica o amor que é certeza interior, firmeza, constância, persistência. É o amor que não cansa de esperar pelo retorno do amado, que partira para a guerra. Ao retornar da Guerra de Troia, Ulisses fica vagando no Golfo Pérsico por longos anos. Retorna ao seu reino, Ítaca, disfarçado de mendigo e Penélope o havia esperado por todo esse tempo, lançando mão de várias estratégias para não escolher um dos muitos pretendentes que a cortejavam. A morte de Ulisses era tida como certa entre todos, mas ele voltou ao seu reino. Penélope esperou pelo amado, apesar de todos os sinais contrários ao final feliz. O amor venceu o tempo.

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utra narrativa mítica em torno do amor é o mito de Orfeu. Orfeu desceu ao Hades para recuperar a amada Eurídice, após sua morte. No retorno, entretanto, olhou para trás e a perdeu

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para sempre. “Olhar para trás” é a única coisa que Orfeu não poderia ter feito nessa incrível jornada, enquanto o casal não ultrapassasse os limites do império das sombras. Estavam quase alcançando a luz, quando o grande poeta e músico foi vencido pela dúvida e tentou confirmar se a esposa o seguia. Perdeu Eurídice para sempre e, fiel a seu amor, repeliu todas as mulheres da Trácia. As Mênades, ultrajadas por sua fidelidade, fizeram-no em pedaços. Sua cabeça rolou pelo rio Hebro, enquanto seus lábios chamavam por Eurídece. O mito de Orfeu é longo e cheio de importantes detalhes e diferentes versões a cada episódio vivido pelo herói. Sua morte deu origem ao culto chamado orfismo. Mas isso daria um outro texto.

Para Jung, mitos são sistemas que explicam a própria vida, num fluxo sempre a caminho da maturidade psicológica do ser. Muitos exemplos de intenso amor acabam em tragédia nos mitos, como ocorre no encontro entre Édipo e Jocasta. O jovem Édipo, cujo oráculo tinha anunciado ao pai que deveria ser morto, ou o mataria um dia, casou-se com a própria mãe, sem o saber. Antes de conhecer seu grande amor Jocasta, em viagem, Édipo matou o próprio pai numa briga, ignorando totalmente o parentesco. Vergonha e estupor fazem Édipo furar seus olhos e Jocasta tirar a própria vida, ao descobrirem que eram mãe e filho, após a união amorosa entre os dois. Já no mito de Medeia, a heroína largou tudo para seguir seu grande amor, Ja-

são. Traída, executou uma terrível vingança. Com o objetivo de causar ao ex-marido a maior dor do mundo, matou os próprios filhos e os apresentou, assassinados, ao pai. Em outra narrativa, no famoso mito de Narciso, Eco morreu, transformandose num rochedo, após ser rejeitada pelo belo Narciso, que se irritara com esse insistente amor, humilhando-a de todas as maneiras. As amigas de Eco, ninfas, pediram vingança a Nêmesis, que condenou Narciso a amar um amor impossível. Narciso morreu ao ver a própria imagem num lago e apaixonando-se perdidamente por si mesmo, como o oráculo havia previsto. Algumas versões da história atestam que o jovem não conseguiu mais abandonar a sua bela imagem e morreu de inanição. Outros relatos afirmam que o mais belo dos seres teria mergulhado no lago, em busca da própria imagem e morrido afogado. Nesse lugar teria nascido uma linda flor, o narciso. Nos relatos míticos, o Amor põe em andamento terríveis vinganças, ou mostra sua face serena, que espera infinitamente, que é fiel, mesmo após a morte, ou desconfiando da morte. Cada uma das etapas do mito de Eros e Psiquê se refaz em todos os relacionamentos da mitologia: encontros, segredos, impedimentos, fugas, ferimentos, longos sonos de separação, ilusões, mortes, penas, desespero, vinganças, buscas, andanças pelo mundo, maledicências, arrependimentos, retornos. Esses passos do relacionamento amoroso revelados por Eros e Psiquê fazem parte de toda a Literatura produzida pela humanidade. E também constituem etapas da trajetória de cada ser no mundo.

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FICÇÃO Amilcar Neves

O tiro no escuro (um jogo de adivinhações)

Natural de Tubarão, SC, Amilcar Neves estreou na literatura em 1979 com o volume de contos O Insidioso Fato – Algumas Historinhas Cínicas e Moralistas. É autor de outra dezena de livros e detentor de prêmios literários nacionais e internacionais. Escrito em 1994, O Tiro no Escuro permaneceu inédito até o presente momento. A RDC se orgulha de publicar o conto em suas próximas páginas.

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arlinha sempre foi uma garota alegre — quando não sentia dor de dente. Mas, pelo jeito, o dente não parava mais de doer. Mãe uma vez levou-a a um psicólogo: — Não aguento mais essa menina, doutor. Dr. Fred — o nome do psicólogo é Frederico, mas ele prefere ser chamado de Fred, diz que é mais fácil de lembrar, além de criar um clima mais amistoso para as pessoas que o procuram — conversou um pouco com Mãe depois pediu que ela se retirasse e aguardasse na sala de espera. Ainda brincou com ela: — Quero escutar o som da voz de Carlinha, Mãe. Porque Carlinha não havia aberto a boca até aquela hora, quase quinze minutos já que ela e Mãe estavam sentadas à frente do psicólogo. Não porque não quisesse falar ou se recusasse a fazê-lo. Também não era muda nem nada. Carlinha muda, essa é boa! Carlinha sempre gostou de conversar com os amigos e sempre tinha coisas surpreendentes para dizer. Como a história da dor de dente, por exemplo. Mas essa vai ser contada mais adiante, tenham um pouco de paciência, por favor. Carlinha não abriu a boca porque, a cada vez que Fred lhe fazia uma pergunta, Mãe pulava na frente e respondia por ela. Isto é, dava a sua resposta, aquela que ela estava certa que devia ser a resposta da filha. Aí, sim: depois da terceira vez que

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isso aconteceu, Carlinha calou-se mesmo, deliberadamente. O homem perguntavalhe alguma coisa e ela, com ar de provocação e nariz empinado, virava-se para Mãe como se dissesse: “muito bem, diga-lhe o que eu acho disso e o que eu penso a respeito desse assunto.” Mãe não gostou nem um pouco do que chamou de gracinha do psicólogo, como depois comentou com Pai. Achou que havia um leve tom de censura na observação que ele lhe fez. Chegou até a fazer cara feia, para deixar bem claro que não aprovava o fato de deixar a filha a sós com um estranho. Na verdade, sentia-se escorraçada do consultório, e indignada, acima de tudo, porque jamais houve segredos entre ela e as filhas. Mesmo com Carlinha, a caçula. Não lhe agradava a perspectiva de permitir agora uma quebra da confiança mútua que devia existir entre mãe e filhas. Foi por isso que respondeu assim ao psicólogo: — Não se preocupe, doutor. Falar com ela ou comigo é a mesma coisa. Fred olhou para ela e parecia dispor de um imenso estoque de paciência, de um reservatório inesgotável de resignação. Sua calma era imperturbável: — Lógico, Mãe, claro que é a mesma coisa, não tenho a menor dúvida quanto a isso. Qual é a sua banda de rock preferida? Falo de banda internacional, evidente. Mãe arregalou os olhos. Isso lá é hora de falar em conjuntos de rock?, pensou com os seus botões. Então estou aqui,

pagando uma pequena fortuna pela consulta para esse aí vir falar na barulheira maluca que os jovens de hoje insistem em dizer que é música? Um sujeito assim só pode estar ficando meio lelé da cuca. Mesmo assim, mesmo pensando isso tudo, Mãe respondeu: — Detesto qualquer tipo de rock, doutor. Para lhe ser bem franca, nunca fui muito nem com a cara daqueles cabeludos da Inglaterra, que eram do meu tempo. — Os Beatles. — Esses. E já eram chegados numa droga. Hoje está pior ainda, só se encontram maconheiros e viciados de tudo quanto é tipo. Por isso que compõem essas coisas horrorosas que a gente vê por aí. — Sei. Gostaria de falar com Carlinha sobre rock internacional. A senhora vai ficar aborrecida com a conversa e não saberá dizer o que sua filha pensa a respeito de determinadas bandas. — Ela não gosta desse tipo de coisa. — E, por isso, a senhora vai esperar uns bons minutos lá fora. Há uma pilha de revistas Manequim e Caras que poderá folhear à vontade. — Eu arredo minha cadeira para o canto da sala. Desta sala, quero dizer. Assim não atrapalho a conversa dos dois. Fred já estava de pé atrás da escrivaninha. Deu alguns passos, abriu a porta que comunica com a saleta de espera, retornou e segurou no braço de Mãe, aplicando uma leve pressão em seu cotovelo para indicar-lhe com firmeza que ela de-

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via erguer-se e deixar-se levar para fora do recinto. Mãe começou a caminhar e parou de repente, olhando bem para os olhos do psicólogo: — O senhor acha mesmo que é preciso que eu saia, doutor? — mas então sua voz já havia perdido toda a arrogância e soava com a humildade daqueles que se reconhecem à frente de um poder superior, de uma autoridade decidida a fazer valer sua vontade. — Não só é preciso, Mãe, como também se torna imprescindível — e fechou a porta por trás da mulher. Fred percebeu muito bem que os olhos de Carlinha iluminaram-se por causa da atitude enérgica que ele acabara de tomar. A garota ficou esperando que o psicólogo fizesse algum comentário a respeito do comportamento de Mãe. Ao invés disso, porém, sentou-se novamente e, como se estivesse prosseguindo uma conversa casual que não fora interrompida, perguntou-lhe com toda a seriedade: — É claro que você gosta de rock, não é mesmo, Carlinha? Diga-me: quais são as bandas internacionais que você prefere? Lá fora Mãe impacientava-se. Olhava o relógio a todo instante. Já folheara toda a pilha de revistas sem enxergar nada: era apenas o gesto mecânico e automático de virar páginas e mais páginas repletas de fotos coloridas. A única coisa de que tinha plena consciência era do tempo decorrido: vinte minutos se passaram desde que sofrera a humilhação de ter sido expulsa do consultório; vinte minutos durante os quais curtiu a frustração de ter sido apartada da filha, dos segredos da filha. Trouxera Carlinha para que o especialista desse um jeito na filha e ela é que se via tratada como se tivesse cometido algum crime. Considerava insuportável tudo isso, inaceitável e humilhante. Então, sem qualquer aviso, sem a menor ameaça sequer, levantou-se da poltrona de couro marrom e caminhou resoluta em direção à porta do consultório. A secretária de Fred, porém, foi mais rápida que Mãe: levou a mão para debaixo do tampo da mesa e acionou um pequeno botão redondo. Uma luz vermelha piscou por três vezes à frente do psicólogo e ele pediu a Carlinha que se calasse por uns instantes. Logo em seguida a porta do consultório se abriu e Mãe enfiou a cabeça pelo vão: — Vamos embora, filhinha, chega de conversa fiada — Mãe esboçava um sorriso que mais parecia uma caricatura: falso e irreal como ele só. — O doutor precisa trabalhar, a sala de espera está cheia de gente impaciente com a demora de vocês. Carlinha conhecia Mãe muito bem para saber que a forma como ela pronunciou a palavra vocês, sublinhando-a com

os dentes praticamente cerrados, significava uma censura velada ao psicólogo. Ficou curiosa para ver qual seria a reação dele que, mesmo não conhecendo Mãe tão bem quanto ela, não poderia deixar de ter notado sua verdadeira intenção ao falar com aquela entonação. Apesar de todo o saco de paciência de que dispunha ao seu alcance, Fred ficou vermelho de indignação com o comentário maldoso de Mãe. Mas essa foi a única alteração que deixou transparecer e, mesmo assim, apenas Carlinha pôde testemunhá-la. Mãe estava longe demais para perceber qualquer coisa. — Diga-me uma coisa, Mãe — o psicólogo falava com a voz mais tranquila do universo: — preciso de uma informação, uma só, porém de grande importância. Quem foi que indicou os meus serviços para a senhora? — Foi a coordenadora de ensino do colégio dela. — Dela quem, Mãe? — Dessa... da minha filha aí. — Obrigado, Mãe, era só isso que eu queria saber. Agora feche a porta e aguarde lá fora mais dez minutos. Em seguida eu mando chamá-la novamente.

A única coisa de que tinha plena consciência era do tempo decorrido: vinte minutos se passaram desde que sofrera a humilhação de ter sido expulsa do consultório.

Mando chamá-la novamente, pensou Carlinha, ele fala isso como se tivesse chamado Mãe para perguntar quem me mandou vir aqui. A garota admirou a habilidade de Fred para lidar com situações imprevistas. Gostaria de ter a mesma presença de espírito que ele demonstrava, a mesma frieza para manter a linha e impor suas decisões. Carlinha continuava a remexer seus pensamentos: mas, pensando bem, com dez por cento dessa capacidade eu já me sentiria a pessoa mais feliz da vida. Do lado de fora Mãe parecia ter formigas no rabo. Remexia-se a todo instante e via aqueles dez minutos arrastarem-se feito lesma lerda. Acompanhou o deslocamento da lesma minuto a minuto, quase segundo a segundo, decidida a irromper de novo sala adentro assim que se esgotasse o prazo estipulado por Fred. E, desta vez, não cometeria o erro de apenas enfiar a cabeça pelo vão da porta: haveria de abri-la por completo e entrar resolu-

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tamente, caminhando a passos firmes até a mesa. Se preciso fosse arrancaria a filha pela mão, deixando aquele maluco falando para as paredes. Pelo bem de Carlinha faria qualquer escândalo que fosse preciso fazer. Sabia que Pai lhe daria toda a razão. Quando faltavam menos de cinco segundos para completarem-se os dez minutos do prazo, e preparando-se já para, de um salto só, pular da poltrona de couro sobre a maçaneta da porta, Mãe ouviu tocar o telefone. O ruído eletrônico do aparelho, estridente e inesperado, assustou-a devido à tensão em que se encontrava. Mas não era o telefone que tocava e, sim, o interfone. A moça da recepção atendeu ao chamado e, em seguida, virou-se para Mãe com um sorriso amplo e simpático como se ambas fossem conhecidas de longa data: — O doutor Frederico gostaria muito de conversar com a senhora. A senhora poderia fazer o favor de entrar? Mãe resmungou qualquer coisa totalmente ininteligível e passou pela moça com a cabeça erguida, o peito estofado e o olhar voltado para a frente como se ali ao lado, ao invés de uma pessoa, estivesse uma vassoura velha. — Carlinha é uma ótima garota — Fred foi logo falando assim que Mãe acomodou-se na cadeira ao lado da filha —, uma pessoa fascinante, um ser humano cheio de sonhos, pleno de possibilidades. Com o temperamento e, especialmente, com as ideias que ela tem, posso prever um futuro brilhante para sua filha. Fred fez uma pausa demorada e encarou Mãe bem de frente com um olhar firme, fixo, seguro. Parecia querer trespassá-la com uma espada bem fina, foi assim que Carlinha imaginou aquela maneira incisiva de uma pessoa olhar para outra. Mãe se agitou no assento, incomodada, as formigas ainda pregadas no seu traseiro. Então ele completou o pensamento que, via-se, permanecia suspenso no ar da sala refrigerada à espera da conclusão: — Desde que, naturalmente, ela receba o apoio de que necessita. — Não estou entendendo, doutor — Mãe falou. — O que o senhor está querendo dizer com isso? — Não estou querendo dizer nada, Mãe. O que tenho que dizer eu digo claramente, não preciso valer-me de hipérboles ou elipses. Disse que Carlinha necessita de apoio e compreensão. E digo agora que é fundamental que eu converse imediatamente com a senhora e com seu marido. Peço-lhe que, ao sair, marque com minha assistente um novo horário para que os dois venham juntos ao meu consultório. E, antes que a senhora se preocupe em vão, afirmo-lhe que nossa próxima entrevista será considerada um retorno desta de hoje, ou seja, e falando com toda a cla-

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reza: a visita não lhes custará uma nova consulta. — O senhor pode ofender-me, e ao meu marido, falando dessa forma. — A senhora, ou o seu marido, poderia sentir-se ofendida se eu não deixasse claras as condições do nosso próximo encontro ou, pior ainda, se lhes cobrasse uma nova visita. — Meu marido é um homem muito ocupado para ficar largando assim suas responsabilidades. — Não lhes peço que voltem aqui ainda hoje, Mãe (Carlinha divertia-se com a fina ironia contida nas frases ditas por Fred). Considero, porém, altamente recomendável que venham ver-me dentro dos próximos dez dias. — Não sei se meu marido não estará viajando nesse período. — É natural que não conheça a agenda profissional de seu esposo. Por isso, esteja à vontade para usar o telefone da recepção. Minha assistente irá prestarlhe a ajuda de que necessitar. Mãe então levantou-se e sorriu como se tivesse acabado de cumprir um compromisso social dos mais corriqueiros: — Agradeço-lhe a atenção, doutor Frederico. Vamos ver o que poderemos fazer. Fred segurou a mão de Mãe entre os dedos, impedindo-a de dar-lhe as costas, e foi categórico: — Lembre-se, Mãe, não estamos tratando de negócios, da compra de uma geladeira nova ou da aquisição de um carro do ano, coisas que sempre podem ser adiadas: estamos falando do futuro de Carlinha, da saúde emocional da filha de vocês dois. Volte aqui com Pai. — O psicólogo fez outra pausa, tornou a varar Mãe com a espada afiada e completou, patético: — Por favor. É de extrema importância. Ao passarem pela recepção, quando imaginava que parariam para marcar a próxima consulta, Carlinha viu-se puxada pela mão em direção à porta de saída para pegarem o elevador. Mãe passou reto pela secretária de Fred sem lhe dar um até-logo, um boa-tarde, nem mesmo um amarrotado sorriso amarelo. — Fred não falou para a gente marcar um novo horário? — Fred, é? Fred? Por acaso ele é teu coleguinha de escola, é? — Foi ele quem pediu para ser tratado dessa forma. — Só porque ele pediu a gente tem que obedecer? Se ele pedir que você se jogue do alto da ponte, você se joga? — Até que não seria má ideia... — Menina! Eu te arranco a cabeça com minhas próprias mãos se você voltar a falar essas coisas!

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O elevador chegou. Ambas desceram caladas. Na calçada, Carlinha voltou à carga: — Não tínhamos que marcar a nova consulta? — Não sei se tínhamos ou não. Tenho cá comigo minhas dúvidas. Antes disso precisamos falar com Pai. Nós duas. Carlinha baixou a cabeça e não disse mais palavra até chegarem em casa. Se alguém reparasse neles, veria que seus olhos estavam sombrios e eclipsados por uma densa nuvem que se aglomerava no interior da cabeça da garota. Centenas de pensamentos contraditórios turvavam seu raciocínio. Uma confusão medonha de sentimentos embotava-lhe o cérebro. Ela tinha a nítida sensação, a certeza de que dezenas de esperanças despencavam sem remédio em um despenhadeiro escuro e infindável. Uma agonia de pesadelos apertava seu jovem coração. Queria alguma coisa, queria, mas ainda se negava a tornar claro o nome que essa coisa tinha. Contentava-se por enquanto que fosse apenas uma coisa, mas talvez já fosse A Coisa. Sentia surgir aos poucos uma intimidade maior com a ideia dela, e esse pensamento, estranhamente, trazia-lhe conforto e força para enfrentar os comba-

Se alguém reparasse neles, veria que seus olhos estavam sombrios e eclipsados por uma densa nuvem que se aglomerava no interior da cabeça da garota.

tes que, com certeza, estavam por vir. À noite, mal Pai colocou os pés dentro de casa, Mãe foi ter com ele. A sala de entrada funciona como ambiente de estar e abriga a onipresença do aparelho de televisão, para o qual convergiam os olhares de todas as filhas do casal. Mãe ergueu-se do sofá, colocou-se de pé em frente à tela do aparelho e iniciou mais um de seus costumeiros comícios de início de noite: — Um absurdo, Pai, um verdadeiro absurdo! Paga-se o que eles resolvem por bem cobrar, e o que acontece? Recebo na cara um insulto, um verdadeiro e monstruoso insulto! Paguei para que dissessem bem no meu nariz que essa aí — e ela aponta dramaticamente para Carlinha —, que essa aí sofre de problemas mentais! Como?! Como ouvir tamanho disparate sem que minhas vísceras de mãe se revoltem?! — Ele falou que era preciso cuidar de minha saúde emocional, Mãe — Carlinha escolhia com o máximo cuidado cada

palavra que ia usar, tarefa árdua e penosa para qualquer pessoa e não menos leve para uma adolescente. — Não tem nada a ver com doença mental. — Ora, não me interrompa, pirralha. Só faltava agora você querer me dar lições de interpretação. Emocional ou mental é tudo a mesma coisa. Essa gente tem a irritante mania de falar por metáforas. Um abuso, Pai, você nem imagina. Dizem uma coisa querendo dizer outra totalmente diferente e oposta. E, pior de tudo: o tal de psicólogo ainda teve o desplante de exigir que fôssemos os dois conversar com ele nos próximos dias. — Ele acha, por acaso, que eu não tenho mais o que fazer do que ficar atendendo às convocações dele? — Pai finalmente se manifestava. — Foi o que eu lhe disse. Mas ele insiste, é de uma inconveniência cavalar. — Por que você foi até ele? — Por recomendação da coordenadora de ensino do colégio dela, dessa aí. Carlinha não estuda como deve, tira notas baixas e nós é que temos que passar a vergonha de ir ao consultório de um psicólogo, como se nossa filha fosse uma retardada mental. Tremi só de pensar que algum conhecido pudesse nos ver entrar ou sair daquele prédio. Maldita a hora em que fui atrás daquela mulher! Bem que você falou que o colégio andava excessivamente liberal de uns tempos para cá! — Não é caso para tanto desespero, Mãe. As notas da Carlinha até que são muito boas, ela tem tudo para passar direto, sem exames finais — ponderou a filha mais velha, saindo em defesa da irmã. — Cale-se, marmanja! Ninguém pediu a sua opinião! — Pai exaltou-se com a intervenção e foi de dedo em riste, aos berros, desvairado, no nariz da filha adulta, uma profissional de nível universitário formada aos 21 anos de idade e com emprego fixo em um escritório no centro da cidade. — Quando você tiver os seus filhos, se é que algum dia vai ter filhos, você use com eles os seus critérios de avaliação! Aqui nesta casa, os que valem são os meus critérios! E eu me recuso a aceitar sequer como razoáveis notas iguais ou inferiores a seis! — Se eu não tiver filhos a culpa será de vocês — desafiou a primogênita. — Nem namorado podemos ter. Só se a gente namorar escondido. — Vocês que se atrevam, qualquer uma de vocês! — Pai generalizava o conflito e envolvia em um único rolo todas as filhas, fustigando as frentes de batalha todas ao mesmo tempo. — Vocês estão aqui, em primeiro lugar, para estudarem e terem uma formação decente e, depois, para seguirem uma profissão honrada. Diversões, namoros e outras ociosidades, desde que honestas e dignas, podem muito bem esperar a hora em que vocês tiverem seu próprio emprego e sustento! É para isso

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que eu me sacrifico tanto, trabalhando feito um condenado: para o bem da minha família. — Você não sabe o que é o bem nem, provavelmente, o que é família — a filha mais velha levantou-se e abandonou a sala. — Volte aqui, menina! Mais um desacato desses e baixo a mão na tua cara outra vez! Você já esqueceu o que te aconteceu no mês passado, quando tentou me aprontar mais uma das suas? Lembre-se você, e lembrem-se vocês todas: o princípio da autoridade é sagrado — tanto no lar como na sociedade. Não há país que se desenvolva e progrida quando a autoridade dos chefes é contestada e enxovalhada. Da mesma forma, não há família que se mantenha unida e feliz sem o devido respeito ao pai, que é o chefe natural da casa. — Gente, que loucura! — Carlinha soluçava, mal podendo articular as palavras; lágrimas escorriam-lhe sobre a pele macia do rosto jovem já vincado, entretanto, por duas rugas de sofrimento e dor que desciam das extremidades das narinas em direção aos cantos da boca. — Tudo isso pra quê, a troco de quê, meu Deus? — Tudo isso por tua causa, ingrata — vociferou Mãe —, por causa do teu comportamento na escola! Ministrada mais uma edificante lição de moral e bons costumes às meninas,

possivelmente algo assim como a octogésima sétima lição do ano, Pai e Mãe deixaram a sala da televisão e foram trocar ideias na suíte do casal enquanto Pai preparava-se para o banho diário. — Não podemos afrouxar as rédeas — Pai falava —, senão, em pouco tempo, perdemos o controle da situação. Essa juventude de hoje anda rebelde demais, não respeita mais nada. — São as más companhias, Pai, a descrença geral que vai pelo mundo. — Foi a diretora quem disse para procurar esse tal de Fred? — A coordenadora de ensino, Pai. Disse que andava estranhando o comportamento de Carla. — Engraçada, essa coordenadora. Metida a moderninha, decerto. Educamos todas as outras meninas da mesma forma e nunca fomos chamados ao colégio nem ninguém nunca falou em psicólogos. Por que essa agora pensa que pode gozar privilégios especiais? A coordenadora e o psicólogo não serão sócios, por acaso? Ou, talvez, quem sabe esteja correndo propina por baixo do pano: para cada aluno que manda, ela recebe uma comissão. Não duvido de mais nada. — Penso às vezes que eles podem estar se associando é na cama. — Também é possível, Mãe. Também é possível, claro...

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N

a semana seguinte, saindo do colégio para pegar o ônibus de volta para casa, Carlinha encontra Edgard. Edgard é irmão de Mãe e padrinho de batismo de Carlinha, a qual, sempre que o vê, fica muito intrigada pelo fato de eles serem tão diferentes um do outro. Não conseguia entender como que dois irmãos podem ter personalidades e temperamentos de tal forma distintos. Uma ocasião, quando pequena, ela chegou a perguntar ao tio se os dois eram irmãos de verdade ou se ele tinha sido adotado. Edgard riu, ela lembra muito bem, e disse que talvez Mãe é que fosse filha adotiva. A menina ficou pensativa um instante e depois falou: “É, pode ser. Neste caso, eu sou uma neta adotiva de minha avó.” Edgard deu um toque rápido na buzina, colocou a cabeça para fora do carro e falou: — E então, essa gatona aí aceita a carona deste garotão aqui? Carlinha riu e, na mesma hora, já se empoleirava ao lado do tio. — Cuidado, gata, que vou te passar uma bela cantada. Você já deve ter ouvido falar que minhas cantadas são irresistíveis, não é? Apesar desse início de papo, a conversa logo tomou rumos bastante sérios. Mesmo não sendo sua intenção, Carlinha acabou desabafando com Edgard um dé-

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cimo, se tanto, das suas preocupações e angústias. Isso, no entanto, foi o suficiente para que ele tomasse uma decisão. À noite, como que por acaso, e dizendo que tinha ido ver um cliente que mora por perto, Edgard chegou-se em visita à irmã e ao cunhado. — Só entrei para tomar um cafezinho, nada mais. Ficou quase duas horas. As meninas da casa foram despachadas para a sala da televisão quando teve início, na cozinha, a reunião entre os três adultos. A certa altura da conversa percebia-se nitidamente que as vozes começavam a se encrespar. Carlinha não resistiu à curiosidade e, mesmo contrariando as irmãs e arriscando-se a sofrer severas represálias caso fosse descoberta pelos pais, deu a volta por fora da casa e plantou-se junto à janela. Edgard dirigia-se a Pai: — ... um filhote da ditadura militar, não mais que isso, e um neto do nazismo, o que me dá uma enorme pena de você... — Você é marxista! Comunista! Não crê em Deus! Só pensa em destruir as famílias! Mais adiante o tio falava para Mãe: — Não sei de onde você foi desenterrar essas absurdas ideias reacionárias, essa maldita mentalidade da Idade Média! Pois bem, vou contar a vocês: conheço há muito tempo a coordenadora do colégio e foi ela quem me falou. Disse que, duran-

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te uma palestra em sala de aula, fizeram uma pergunta a Carlinha e ela respondeu que não tinha família, pois não sabia o que significava conversar com um pai, confiar em uma mãe. O tom da discussão oscilava do sussurro à voz exaltada. Por isso Carlinha só apreendia fiapos do que era dito lá dentro. Mas conseguiu acompanhar o discurso de Edgard a respeito de família e repressão: — Vocês dois gostam muito de comparar família com governo e espelhamse, para isso, em um modelo autoritário, perverso e cruel. Não podem ignorar que a ditadura perseguiu, prendeu, bateu, torturou e matou aqueles que tiveram a coragem de se opor às arbitrariedades e foram às ruas denunciar as violações da ética e dos direitos humanos. — Mas o país cresceu e se desenvolveu, tivemos ordem, segurança e progresso. O povo viveu anos felizes e tinha emprego. — Mentira da propaganda oficial do regime! Ninguém pode ser feliz se o vizinho ao lado está sendo perseguido feito cão sarnento porque tem opinião própria. O emprego que nos deixaram está aí: com o fim do dinheiro fácil que vinha dos bancos internacionais, os jovens que hoje se formam não encontram trabalho e, pior ainda, quem tinha emprego está sendo posto no olho da rua. Para completar o quadro de penúria e indigência, agora

estamos tendo que pagar aquele dinheiro todo. Este foi o desenvolvimento que vocês nos deixaram: feito com sangue, tanto do ponto de vista político, então, como do econômico, hoje — feito com muito sangue de gente inocente. E, claro, alguém lucrou com isso. Num certo momento Mãe levantou a voz — devia estar exaltadíssima — e falou com todas as letras: — Não queremos nunca mais que você retorne a esta casa, Edgard. A barra tinha pesado demais. Carlinha esgueirou-se de volta e ficou esperando. Logo depois o tio passava pela sala. Beijou cada sobrinha, fez uma brincadeira qualquer com cada uma das garotas e saiu dizendo que se encontrariam por aí qualquer dia desses. Mãe lançou um olhar fulminante sobre Carlinha.

O

inverno chegara ao fim. O primeiro domingo da primavera despontou glorioso, com um sol deslumbrante e calor de verão. Isso, em cidades litorâneas, é sinônimo de praia. Programa, claro, das meninas da casa. A mais velha tem acesso invejável ao segundo carro da família. — Eu vou com vocês — anunciou Carlinha. Mãe pulou na hora: — Quem foi que disse?

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— Não estou entendendo — balbuciou Carlinha. — Sei que não está. Eu te conheço muito bem, pestinha. Durante toda a semana você não tirou a louça da mesa, não arrumou as camas, não dobrou a roupa, não passou, não fez faxina nos armários, não lavou os talheres, não varreu as calçadas, não ajudou no almoço. E por que você não fez nada durante uma semana inteira, já se esqueceu? Porque tinha prova na segunda-feira e precisava estudar. Pois bem: você tem prova na segunda-feira e precisa estudar. Portanto... — Mas eu já sei toda a matéria... — Outro dia também sabia e me apareceu aqui com um cinco e meio. Carlinha baixou a cabeça. Estava cansada de discutir, sabia que suas argumentações não seriam consideradas, não teriam o menor efeito sobre a decisão já tomada por Mãe. Não adiantava tornar a dizer que a prova havia sido uma armadilha preparada pelo professor, fato que ele próprio reconhecera depois dando peso um para aquela nota e peso três para todas as demais, não adiantava nem mesmo relembrar que aquele 5,5 havia sido a nota mais alta da sala. Nada disso adiantava coisa nenhuma. Neste momento apareceu Pai, materializando-se como que por encanto e surgindo do nada: — Parece-me que estou escutando algo de interessante por aqui, será verdade? — e Pai riu como se tivesse dito a coisa mais espirituosa do mundo. Pai tinha pretensões a intelectual com dotes humorísticos. Uma lástima, considerou Carlinha com raiva, porque simplesmente lhe faltava algo chamado bom-senso. Ou semancol, em termos mais populares. — Essa menina alega saber a matéria para a prova de amanhã — esclareceu Mãe. — Assim, julga-se no direito de ir à praia com as irmãs. — Prezada senhorita — Pai fez uma mesura em direção a Carlinha —, apenas saber a matéria pode ser uma ilusão terrível. Sabemos algo de alguma coisa, mas isso não nos habilita a prestar com eficácia exame sobre essa coisa. Para enfrentar uma prova com o mínimo de possibilidade de sucesso é necessário estudar com afinco a matéria correspondente. Quero admirar, portanto, o seu afinco neste domingo. — Mas, Pai, é nosso primeiro domingo de praia... — Exatamente. O primeiro domingo. O que implica concluir que muitos e muitos outros domingos surgirão pela frente. Temos tempo — e você, estatisticamente, terá muito mais tempo do que eu. Tão cedo o verão não fugirá daqui, tampouco o mar e a praia o farão. Assim acordados, concluímos que o mais produ-

tivo mesmo a fazer é concentrarmos nosso esforço e nosso talento naquilo que nos é mais importante para o futuro. A praia será nossa recompensa durante as férias de fim de ano. Na hipótese, naturalmente, de que todos os objetivos sejam alcançados. Uma prova final já pode ser considerada uma calamidade. Uma segunda época, uma catástrofe... Carlinha recolheu-se ao quarto para estudar. E decidiu que não leria uma única e miserável linha que fosse de todo o material que tinha à disposição. No dia seguinte ela inovou os métodos e resolveu que ia colar. Colou a prova do rapaz ao lado e foi apanhada no ato. — Não é permitido colar, Carla — falou o professor. — Sei disso, mestre. — Mas você estava colando. — Estava. — Estava? — Claro, professor. O senhor viu. — Você admite o erro. Com isso, não me deixa alternativas.

A mão empunhava com segurança e firmeza profissionais a pistola que Pai guardava descarregada na gaveta da cômoda.

— O senhor prefere que eu minta? — Lógico que não. — Então eu estava colando. Nada mais se pode fazer com relação a isso. É o que se chama de um fato consumado. — Você sabe que existe uma penalidade drástica aqui neste colégio para esse tipo de atitude? — Sei. Nota zero na prova. — E você não reage? — O senhor prefere que eu o ataque a unhas e dentes? — Não falo disso. — Então não tenho mais nada a fazer. — Preciso retirar sua prova e registrar o ocorrido. — A prova está aqui. Sirva-se, professor. — Vou ter que dar-lhe zero. — O senhor sugere que eu minta e faça um escândalo? — Não se trata disso, você sabe. — Muito bem. A prova fica sobre a carteira. O senhor sabe o que precisa fazer a respeito — dizendo isso bem alto, e na frente de toda a turma, Carlinha saiu da sala e foi para o pátio do colégio.

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Sua maior amiga na escola veio falar-lhe: — Carlinha, o professor deu zero na tua prova. — Sim, imagino que tenha feito isso. Ele não tinha outra saída. — Mas em casa, Carlinha, como é que vai ser, na tua casa? Teus pais vão virar bichos, vão ficar uma fera quando souberem do que houve. — Vão saber hoje mesmo, não se preocupe. — Vão saber? — Claro, eu mesma vou contar-lhes assim que chegar. — Vai ser o diabo, Carlinha, um verdadeiro inferno. — É, vai ser, sim. — E então, o que você pensa fazer? — Eu sei como resolver os meus problemas. Amanhã eles estarão todos liquidados. Não vai restar um só para semente. — Carlinha, você me assusta falando assim. — Imagino que sim. Amanhã vocês terão notícias minhas. A noite mal tinha começado quando uma das irmãs abriu a porta do quarto do casal que, estranhamente, encontrava-se encostada. Foi por isso mesmo, aliás, que ela resolveu experimentar o trinco. A porta cedeu com suavidade. Sentada sobre a colcha de cetim branco, com as costas apoiadas na cabeceira da cama conjugal de Pai e Mãe, Carlinha mantinha uma postura ereta e elegante. Acesas, todas as luzes do aposento inundavam suas feições sérias e determinadas. Um objeto escuro e refulgente cintilou em sua mão direita num brilho fugaz. A mão erguia-se junto à cabeça mas não parecia apoiar-se diretamente sobre a têmpora. A mão empunhava com segurança e firmeza profissionais a pistola que Pai guardava descarregada na gaveta da cômoda. Servia para atirar em ladrões e bandidos quando viessem arrombar a casa. E para defender, com a própria vida se necessário fosse, a honra e a integridade física de sua adorada família, sagrada além de qualquer consideração. — Carlinha, meu Deus! — a irmã gritou. Gritou e, sem saber de onde, encontrou forças e decisão para lançar-se num voo espetacular de goleiro da Seleção sobre a caçula delas todas, a mais rebelde e mais contestadora das filhas de Pai e Mãe, aquela que tinha talvez uma consciência mais aguda da realidade familiar. Então um estampido seco sacudiu a casa inteira. E uma escuridão absoluta tomou conta do mundo e de tudo. N.S.Desterro, setembro de 1994

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POESIA

UM GAUCHE NA ETERNIDADE José Endoença Martins E se houver sangue farei da palavra debochada hemoptise verbal.

I Diante da morte, não há recurso ou decurso de prazo. Diante dela, uns morrem, outros morrem, também, mas dela fazem caso. II Morreu Drummond, de complicações respiratórias. III Que estranho um poeta ser, assim, separado do seu rebanho. IV E para apaziguar mentes heréticas, como a minha, poetas devem morrer de complicações poéticas. V Ou, no mínimo, dietéticas. VI Porém, de complicações respiratórias? Que despropósito e desatino. Assim morre menino. Não velhos de vida sapiente. Assim não morre o ateu. Morre o crente. VII Quem faz da poesia alma do cotidiano merece outra. Morre de anos. VIII Ou de idade. Nunca em hospital. Morre nos braços da cidade. IX Que morte infeliz, esta do poeta. X Morte sufocada e banal. XI Poeta morre de hemoptise verbal.

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XII

XXII

Deus podia ter sido complacente. E dado a Drummond morte vária. Varíola, difteria, urticária. Nunca complicação respiratória.

Você não morre, Carlos. Vira José.

XIII

Neste mundo, para ser José Carlos precisa de fé.

Até Aids seria preferível. Era bem século vinte.

XXIII

XXIV

Porém, a maneira como Drummond nos deixou foi um acinte.

Fé em Arimatéia, fé no Egito, fé em Patrocínio, fé no madeiro de Jesus para ser filho qualquer da cruz.

XV

XXV

Já que a morte é inevitável, o leite derramado não pede choro.

Carlos foi para o mar. O mar secou.

XVI

XXVI

Vai, Drummond.

Foi para a eternidade. A eternidade acabou.

XIV

XVII Segue a tua estrada, calmamente. Sem alarde. XVIII Vai ser gauche na eternidade. XIX

XXVII Que divina temeridade um gauche, na eternidade. XXVIII Itabira. Eta, vida besta!

Eu sei que, aqui embaixo, no perigoso clima deste chão, a rima é sempre a solução. XX E, agora, Carlos? XXI Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse. Se você morresse. Mas você não morre. Você é duro, Carlos!

José Endoença Martins. Professor no Mestrado da UNIFACVEST e responsável pela linha de pesquisa Práticas Culturais e Sociais da Literatura.

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