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COLABORADORES
Evandro de Assis
Julia Schaefer
Maria José Ribeiro
Gabriel Quinelo
Cezar Zillig
Camila da Cunha Nunes. Profissional de Educação Física e professora do Centro Universitário de Brusque (UNIFEBE). Doutoranda em Desenvolvimento Regional na FURB.
Dimas da Cruz Oliveira, Pesquisador e professor, autor de Galilée, publicado por Le Nègre Éditeur, Aix en Provence, 2009.
Elcio Cecchetti. Mestre e doutorando em Educação pela UFSC. Graduado em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso pela FURB.
Júlia Schaefer. Acadêmica do Curso de Jornalismo da FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau).
Manoel José Fonseca Rocha. Historiador e Diretor da Escola Técnica do Vale do Itajaí – ETEVI/FURB. Coordenador da Academia Brasileira dos Autores Aldravianistas – Blumenau.
Cezar Zillig. Médico neurologista. Escreveu Dear Mr. Darwin: “A intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin”.
Everton Siemann. Jornalista, editor do Jornal de Santa Catarina. Integrou as equipes esportivas das rádios Nereu Ramos e Bandeirantes Blumenau.
Fabrício Bittencourt. Estudante de filosofia e assistente editorial na Edifurb. Autor de contos publicados nas antologias Conte uma Canção e Projeto Beta.
Juarês Aumond. Professor do Departamento de Ciências Naturais da FURB. Pesquisador nas áreas de Mineralogia, Geologia Ambiental, Paleontologia e Paleoclima.
Maria José Ribeiro. Editora da Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação. Professora do Departamento de Letras da FURB e Doutora em Literatura (UFSC).
Daniela Matthes. Jornalista, colunista do Jornal de Santa Catarina e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da FURB.
Evandro de Assis. Jornalista, pesquisador e professor universitário, é autor de O Jornalismo e a Mídia Social, publicado em 2009 pela Edifurb.
Gabriel Quinelo. Artista plástico curitibano. Estudou na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Há 10 anos reside em Blumenau.
Leo Laps. Jornalista, fotógrafo e blogueiro interessado em ecoturismo e aventuras, viagens, gastronomia e cultura.
Rafaela Martins. Jornalista, fotojornalista e cinegrafista. Formada em Jornalismo pela Univali, hoje mora em Florianópolis, onde é empreendedora em comunicação.
UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU REITOR João Natel Pollonio Machado VICE-REITOR Udo Schroeder
ISSN 0103-6033 LOGOMARCA A logomarca da nova RDC foi desenvolvida pelos estudantes do Curso de Publicidade e Propaganda da FURB, sob a orientação da Profa. Fabrícia Durieux Zucco. A eles os nossos agradecimentos. EDITORA DA FURB CONSELHO EDITORIAL Edson Luiz Borges Helena Maria Zanetti Orselli Moacir Marcolin Juliana de Mello Moraes Roberto Heinzle Márcia Oliveira Maria José Ribeiro EDITOR EXECUTIVO Maicon Tenfen
A RDC é uma publicação semestral da Editora da FURB. As opiniões expressas nas matérias e nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus respectivos autores. INTERESSADO EM SE TORNAR COLABORADOR? Rua Antônio da Veiga, 140 Bairro Victor Konder 89012-900 – Blumenau – SC E-mail: editora@furb.br Fone: (47) 3321-0329
ARTE Capa e ilustrações: Gabriel Quinelo Fotos das ilustrações: Ruy Pratini Arte final: Fabrício Bittencourt Diagramação: Fabrício Bittencourt e Vilmar Schuetze
PARA ASSINAR: E-mail: editora@furb.br Fone: (47) 3321-0329
DISTRIBUIÇÃO Edifurb
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SUMÁRIO Capa. Gabriel Quinelo Entrevista, 07
A literatura de Edney Silvestre
O jornalista que se revelou escritor e transformou o Brasil no maior dos seus personagens
Clima, 12
O efeito estufa e a nova era do gelo Uma viagem pela história do homem e o seu complexo relacionamento com a natureza
Opinião, 19
Escola não é igreja
O que significa pendurar um crucifixo na sala de aula?
Esporte, 23
Potência Olímpica
Temos tudo para brilhar no esporte, mas...
Ciência, 26
A Metafísica de Newton
Um passeio pela história de grandes cientistas que mantiveram um olho no racional e outro na transcendência
Fotografia, 28
Lituânia, Leste Europeu
Um ensaio fotográfico sobre o país báltico, a nova joia do turismo no continente
Resenha, 34
Perseguindo Zizek
Um olhar sobre a obra do filósofo que vem “causando” desde a virada do milênio
Sociedade, 36
A vida (e a morte) de um frango de granja A trajetória de 7897408100530 e a situação dos humanos que trabalham ao seu redor
História, 44
Na terra dos Faraós
Política, religião, arte e esporte no antigo Egito
Perfil, 48
Um soropositivo no século XXI
“Eu me olhava no espelho e perguntava: até quando vou sobreviver?” Flávio Fortunato Cardoso, 38 anos, há 11 vivendo com HIV
Atualidade, 52
Os donos da pós-verdade
Sem envolver o público na melhoria da informação que circula online, mentirosos como Donald Trump prevalecerão Memória, 54
Fritz Müller
Pequena descrição de um grande homem
Ficção, 62
Eles estão chegando
Conto inédito de Sérgio Abranches
Poesia, 66
Fragmentos de um cotidiano desconhecido Poemas de Alcides Buss
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Divulgação
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ENTREVISTA
A literatura de Edney Silvestre O jornalista que se revelou escritor e transformou o Brasil no maior dos seus personagens Edney Silvestre foi correspondente internacional da TV Globo em Nova York. Cobriu os ataques terroristas de 2001 e a invasão americana ao Iraque em 2003. Mais tarde, no canal por assinatura Globonews, criou o programa Milênio, com Paulo Francis, e tornouse âncora do Globonews Literatura, importante espaço de debate sobre o universo livresco. Seu trabalho jornalístico é amplo e pode ser encontrado em vários livros, como Outros tempos (crônicas e memórias), publicado pela Record em 2002. Em 2009, para espanto de um público que o conhecia apenas como um “entrevistador de escritores”, Edney Silvestre publicou o seu primeiro romance, Se eu fechar os olhos agora, que teve excelente acolhida entre o público
Maicon: É verdade que você começou traduzindo livrinhos de faroeste? Edney: Sim. Quando eu vim de Valença, minha cidade natal, para o Rio de Janeiro, tinha uma rotina bem pesada. Ia para o colégio de manhã, trabalhava à tarde como datilógrafo e tinha um tempo à noite para estudar, mas o dinheiro era curto e eu precisava me mexer. Fui a uma editora que existia na época, a EBAL, fiz um teste e me contrataram como tradutor. Também traduzi alguma coisa para a Civilização Brasileira. Maicon: Muitos escritores vieram da tradução. Dizem que é uma escola. Edney: Para mim, foi. A tradução ensina a concisão, e você é obrigado a recriar o texto. Está traduzindo, é claro, mas ao mesmo tempo está reescrevendo.
e granjeou alguns dos principais prêmios literários do país. Não se tratava de uma excentricidade bissexta, já que novos títulos rapidamente surgiram para reafirmar uma escrita profícua e eivada de temas nacionais: A Felicidade é Fácil (2011), Vidas Provisórias (2013), Boa noite a todos (2014) e Welcome to Copacabana (2016) — mais informações no quadro da página 11. A conversa a seguir foi gravada na Livraria da Travessa do Leblon, no Rio de Janeiro, e procura recompor uma trajetória que desde o princípio esteve ligada à literatura. Maicon Tenfen
Maicon: E o jornalismo, quando veio?
Maicon: E você propôs a matéria.
Edney: Logo depois, mas também tinha a ver com tradução. A revista Manchete precisava de alguém que traduzisse do inglês.
Edney: Com a maior cara de pau (risos). Eu era jovem e pretensioso. Tinha lido o livro e achava que entendia o que ele queria dizer sobre a cultura brasileira. Visitei as filmagens no dia em que o elenco estava ensaiando os diálogos e aprendendo o básico das coreografias que usariam no filme.
Maicon: A Manchete foi um marco da imprensa brasileira. Um belo veículo para começar. Edney: Eu traduzia textos curtinhos para as legendas, sumários de matérias, nada demais. Mas também foi uma baita escola de concisão. No jornalismo pré-internet era assim: tudo que você fazia precisava caber num espaço determinado. Eu ainda não estava trabalhando como jornalista pra valer. Um dia fiquei sabendo que o Joaquim Pedro Andrade estava filmando o Macunaíma, do Mário de Andrade, e pensei comigo que isso daria uma bela reportagem.
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Maicon: Quer dizer que você acompanhou um momento fundamental do cinema brasileiro? Edney: Tive essa sorte. O Joaquim Pedro amava a literatura. Havia adaptado um poema do Carlos Drummond de Andrade, O Padre e a Moça, que é uma produção linda, também com o Paulo José. Maicon: Em meados de 1970 você publicou um conto na revista Ficção, que
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Edney Silvestre
era referência na época, dirigida por Salim Miguel e Eglê Malheiros. O seu nome apareceu ao lado de Dalton Trevisan, Carlos Heitor Cony e Ignácio de Loyola Brandão. Edney: Quando eu era jovem, tinha muitas coisas sobre as quais era inseguro, mas uma que eu sabia fazer era escrever, pois escrevo desde muito cedo. Me expresso melhor quando escrevo do que quando falo. Maicon: Mas o que houve no meio do caminho? Apesar de você ter publicado outros livros antes, a sua carreira como romancista só começa pra valer em 2009 com Se eu fechar os olhos agora. Por que esse hiato? Edney: Entre o conto na revista Ficção e a publicação de Se eu fechar os olhos agora, escrevi um romance — na verdade eu achava que era um romance — chamado Oh, oh, oh Babilônia. Eu apresentei a alguns editores e fui bastante desencorajado. Essa é uma das razões pelas quais eu nunca opino sobre o texto de ninguém. Maicon: Chegou a pensar que escrever não era para você? Edney: Comecei a escrever Se eu fechar os olhos agora e não encontrava o narrador. Mas eu não sabia que não tinha encontrado o narrador, só sabia que faltava alguma coisa. Eu tinha a trama, ou pelo menos o básico da trama, mas faltava carne e sangue. Sim, pensei que iria desistir. Eu estava em férias, num quarto de hotel em Paris, esperando um amigo brasileiro que estava atrasado. De repente me ocorreu a seguinte frase: “se eu fechar os olhos agora ainda posso sentir o sangue dela grudado em meus dedos”. E era assim, grudava nos meus dedos. Aí voltei a trabalhar no livro. Maicon: Quando teve essa sacada, você já possuía muitas páginas escritas? Edney: Eu tinha várias versões e eram todas insatisfatórias. Talvez seja mais fácil para quem tenha estudado literatura saber o que falta num texto. Maicon: Você nunca foi atrás das teorias estruturalistas ou desses manuais norteamericanos do gênero “como escrever um romance”? Edney: Não, pois me entediam profundamente. Nunca entendi esse tipo de livro. Talvez tenha sido bom por um lado, mas por outro eu fico muito inseguro. Talvez haja caminhos e eu não sei quais são esses caminhos, por isso tenho que experimentar.
Escrita metódica: rascunhos para unir os destinos de Bárbara e Paulo em Vidas Provisórias.
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Maicon: Se eu fechar os olhos agora saiu pela Record e rendeu prêmios importantes como o Jabuti e o São Paulo. Você declarou numa entrevista que tinha um certo receio
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da crítica, já que é jornalista de TV e isso costuma causar preconceitos no meio literário. Como você se sente oito anos depois? Edney: Eu me sinto confortável comigo, mas a crítica brasileira, em geral, é inimiga do autor. Há críticos como o Manuel da Costa Pinto e o Luís Augusto Fischer que fazem apreciações extraordinárias, não apenas por elogiar, mas pela compreensão que têm do texto. Mas às vezes há muita má vontade, e isso não acontece apenas comigo. As críticas, por exemplo, que o livro recebeu na Alemanha, na França e na Grã-Bretanha são de uma profundidade sem par. Em Portugal alguém escreveu que o grande personagem dos meus livros é o Brasil. É um entendimento que parte da crítica brasileira não quer ou não consegue enxergar. Maicon: Hoje a crítica não está apenas nos jornalões. Temos a internet, as redes sociais, sites como o Skoob, os booktubers... É uma crítica espontânea, direta, sem muita especialização. Ela é válida na sua opinião? Como você vê essa crítica da internet? Edney: Eu, como leitor, sou crítico. Publicamente, muitas vezes, não comento livros que são ruins ou superestimados, prefiro falar mais dos livros que aprecio. Acho um barato que outros leiam, se interessem. Tenho experiências agradáveis e outras não tão agradáveis com os booktubers. Se a pessoa leu, então tem o direito de opinar.
Edney: Nas crianças de Se eu fechar os olhos agora tem muito da minha infância. Essa coisa de escrever vai trazendo à tona aquilo que aparentemente não tinha importância. Eu conheci áreas muito miseráveis no interior do estado do Rio, e depois, já adulto, em várias outras partes do Brasil. Os sentimentos dos personagens mais velhos também são meus porque, quando comecei a escrever, comecei a perceber o que significa ser velho. Não era eu ainda, mas era a clarividência das minhas limitações. A minha experiência em países estrangeiros também me ajudou muito com os personagens de Vidas Provisórias. Fui para a Suécia conhecer lugares que foram habitados por brasileiros. Maicon: Quando se faz pesquisa para um romance, sempre se descobrem coisas extraordinárias. Só que a narrativa muitas vezes não pede essas coisas extraordinárias. Você tem algum filtro para mediar essas informações e não deixar o jornalismo invadir o terreno próprio da literatura?
Maicon: Foi difícil começar o segundo romance?
Quando era jovem, escrevi um romance chamado Oh, Oh, Oh Babilônia. Apresentei a alguns editores e fui desencorajado. É por isso que nunca opino sobre o texto de ninguém.
Edney: Quando aconteceu tudo com Se eu fechar os olhos agora, eu já estava escrevendo A Felicidade é Fácil, já estava com o texto adiantado. Eu carregava um recorte da notícia do sequestro de uma criança em São Paulo nos anos 1990. Eu queria muito escrever sobre isso, pois sabia que era um re (%) trato da Era Collor, de como tudo aquilo nos afetou, como nos destruiu. Foi a época em que se iniciou a diáspora brasileira. Dessa vez foi mais fácil escrever. Não tive a mesma dificuldade do primeiro romance.
Edney: Em Se eu fechar os olhos agora eu tinha muita pesquisa, mas as informações ficaram resumidas nas ideias do Ubiratã e da freira. Acho que sou um bom editor dos meus textos. Já tive que fazer textos pequenos, então você aprende a enxugar. Quanto à diferença da linguagem do texto jornalístico para o texto literário, eu descubro enquanto escrevo.
Maicon: Você já mencionou algumas vezes que cria suas personagens a partir de pessoas que você conhece. Edney: Como repórter e observador, conheço muitas situações da vida. Muitas personagens, então, acabam surgindo da forma como o Cristóvão Tezza uma vez descreveu: são “frankensteins”, você usa uma parte de uma pessoa, uma parte de outra, e assim por diante. Maicon: E de você? Tem muito Edney Silvestre nas personagens dos seus romances?
Maicon: O texto de abertura de Se eu fechar os olhos agora não tem nada de jornalístico. Edney: Muito do que o escritor escreve, ele não sabe que vai escrever. O Fernando Sabino dizia uma frase mais ou menos assim: eu escrevo porque tenho a maior curiosidade em saber o que vai acontecer. É verdade. Maicon: Tenho uma pergunta sobre o ritmo de A Felicidade é Fácil. Há capítulos mais rápidos, outros mais lentos, outros com mais diálogos, tudo para proporcionar uma certa velocidade na leitura. Você
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pensou nisso, foi planejando, editando? Ou se trata de uma escrita mais intuitiva? Edney: Em geral, tenho um primeiro esboço e alguns trechos que eu sei que estão feitos por si. Depois de fazer a primeira composição da trama, fiz também a estruturação das horas, dos momentos da ação. O momento do sequestro, por exemplo. Fui àquela área de São Paulo várias vezes e fiz cronometragens. Eu não estava de carro, não estava sequestrando ninguém, mas se você fizer a reconstituição do crime verá que o tempo é aquele, entre você deixar a rua, atacar o automóvel, eliminar o motorista e retirar a criança. O livro tem um ritmo diferente de Se eu fechar os olhos agora porque era preciso que fosse assim. É um tempo que corre, os minutos contam e o destino dessa criança literalmente depende do relógio. Maicon: Você compôs uma espécie de trilogia, só que diferente do usual. Se eu fechar os olhos agora trata dos anos 1960, A Felicidade é Fácil pega o começo dos anos 1990, e Vidas Provisórias resgata um personagem de cada um dos livros anteriores. Isso foi premeditado? Edney: Não. Só fui descobrir que usaria personagens já existentes quando comecei a escrever o Vidas Provisórias. É que a Bárbara foi para os Estados Unidos e o Paulo está na Suécia. Fiz inúmeras anotações dos tempos e lugares da história para que eles fossem se unindo ao longo do livro. Essa composição foi complexa, bastante desafiadora. Maicon: Acho que a Bárbara cresce muito em Vidas Provisórias, e não apenas porque ocupa um lugar mais central na trama. Os conflitos que aparecem em A Felicidade é Fácil se agigantam no novo livro. Edney: Uma amiga me disse que eu precisava falar mais da Mara, talvez a personagem feminina mais importante de A Felicidade é Fácil. Respondi que não sou eu quem escolhe isso. A coisa tem que acontecer espontaneamente. Mas concordo que a Mara seja uma personagem forte. Maicon: Você a humanizou. Quando comecei a ler, pensei que seria uma figura vulgar, a mulher obstinada e inescrupulosa, mas ela é muito mais do que isso. Tem profundidade. Edney: Acho que isso se deve ao ponto de vista da personagem. Ela tem uma compreensão limitada das coisas, mas ao mesmo tempo é muito instintiva. Maicon: Mas por que tanta tristeza? Quero dizer, os seus livros sugerem muita tristeza. Isso é proposital? Tem a ver com uma determinada visão de mundo, uma inevitabilidade na hora de escrever?
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Momentos distintos na vida de Edney Silvestre. À esquerda, como repórter de TV. À direita autografando o seu primeiro romance. Edney: Talvez eu seja um sujeito melancólico. Viver é muito difícil. E a vida é muito injusta para algumas pessoas. Isso se reflete em algumas das minhas personagens, tanto nos romances como em Welcome to Copacabana, o meu livro de contos.
Edney: Dois ainda moram lá. Éramos seis no total, um morreu, a minha irmã mora em Brasília e um outro também mora aqui no Rio.
Maicon: Uma curiosidade: em 2010 foi publicado o Manifesto Silvestre. Alguns escritores se reuniram e, homenageando o seu nome, fizeram um manifesto que basicamente dizia que a literatura brasileira também tem direito de almejar o entretenimento.
Maicon: O Mario Vargas Llosa costuma dizer que cada escritor é prisioneiro de certos temas. Percebo que um dos temas mais presentes em sua obra é o exílio, o desterro. Foi uma experiência pessoal, é isso?
A vida é injusta para algumas pessoas. Isso se reflete em algumas das minhas personagens, tanto nos romances como em Welcome to Copacabana, o meu livro de contos.
Edney: Isso é verdade! Acho que todo tipo de literatura vale a pena. Eu adorava histórias em quadrinhos, adoro até hoje. Eu estava andando ontem perto da TV e vi umas jovens senhoras e um menininho, de uns seis anos talvez, com um livro na mão. Eu achei uma barato. Ele não estava lendo porque provavelmente não sabe ler, mas tinha o prazer de estar com um livro na mão. Ler é uma felicidade.
Edney: Foi e ainda é, porque eu não sou daqui, eu estou aqui. Em Nova York eu me senti à vontade porque lá é uma terra de desterrados. É uma cidade de chineses, italianos, americanos, guatemaltecos, mexicanos, brasileiros. Então você se encaixa. Aqui no Rio só me encaixo até certo ponto. No momento em que saí da minha cidade, deixei o que tinha construído até então, embora fosse muito jovem. Mas não importa. Aqueles eram os dezesseis anos que eu conhecia. Maicon: E anos importantes, porque são os iniciais. Edney: Eu tive muita sorte porque frequentei uma escola pública estupenda com uma biblioteca muito boa. Valença tinha dois cinemas, é uma cidade de imigrantes... Só mais tarde entendi o quanto isso foi importante para mim.
Maicon: Você está trabalhando em algo atualmente? Maicon: Seguiram carreiras similares? Edney: Não. Maicon: Você também teve uma passagem pelo cinema, fez documentários, um curtametragem premiado. Pensa em adaptar os seus livros para o audiovisual? Em algum momento você declarou que tinha recebido uma proposta interessante. Edney: Se eu fechar os olhos agora está com os direitos comprados pela Mixer. Existe uma possibilidade de o Ricardo Linhares, que já fez um primeiro roteiro, adaptar para minissérie.
Maicon: Você ainda mantém laços em Valença?
Maicon: E qual é a sua postura diante disso? Gostaria de participar?
Edney: Muito pouco. Enquanto minha mãe vivia eu ia com mais frequência. Depois da morte dela, fui em maio do ano passado. Eles fizeram uma gentil homenagem na Academia Valenciana de Letras. Mas aí eu já fui como escritor.
Edney: Muito. O Ricardo comentava comigo todas as transformações e ideias que ele teve. Ele me enviou esse primeiro tratamento e eu fiquei encantado, porque ele pegou os personagens e levou para direções que eu jamais imaginaria. Ele gostaria que eu participasse. E eu também.
Maicon: E seus irmãos?
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Edney: Estou escrevendo um romance que se passa nos tempos contemporâneos, mas também estou escrevendo uma peça sobre São Paulo no início do século XX. De repente a peça se transforma em outra coisa, não sei. Maicon: E o que você foi buscar lá? Edney: São Paulo era uma província, mas tinha todos os elementos para se transformar no que se transformou: na cidade que toca o Brasil, na cidade que manda. Pode ainda não mandar completamente na política, porque ainda há os grandes coronéis, os Sarneys, os Renans da vida, mas é São Paulo que domina o país. Até o sotaque do Brasil está se tornando o sotaque de São Paulo, o que é surpreendente. Não é um sotaque lindo, mas é o que predomina. E as raízes estão lá. Então estou estudando. Utilizando personagens históricos e evitando as estruturas de uma peça clássica. Não sei, ainda estou alinhavando.
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Biblioteca Silvestre Conheça os principais livros do autor OUTROS TEMPOS
VIDAS PROVISÓRIAS
Record, 176 páginas, R$ 44,90
Intrínseca, 240 páginas, R$ 34,90
Reunião de crônicas e ensaios memorialísticos que revelam as experiências do autor como correspondente internacional em missões no Oriente Médio e Cuba. A obra acompanha mais detidamente o cotidiano em Nova York, cidade onde morou por mais de uma década. Dos 28 textos reunidos no livro, 19 foram originalmente publicados no jornal O Globo.
Em enredos paralelos que intercalam a tensão e a reflexão, Vidas Provisórias segue por quatro décadas a trajetória de dois jovens expatriados brasileiros. Separados no tempo e na geografia, Paulo e Bárbara compartilham o estranhamento pela perda das identidades, o isolamento e a sensação de interrupção do curso normal de suas vidas.
SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA Record, 304 páginas, R$ 49,90 Em abril de 1961, numa pequena cidade da antiga zona do café fluminense, dois meninos encontram o corpo mutilado de uma mulher às margens do lago onde vão gazear aula. Eles não aceitam a explicação oficial do crime e resolvem iniciar uma investigação por conta própria. O que parece uma simples história policial vai se transformando num terrível caminho de amadurecimento para a vida adulta.
A FELICIDADE É FÁCIL Record, 220 páginas, R$ 39,90 Ambientado durante um dos momentos mais dramáticos das últimas décadas, quando, em 1990, o governo Collor confiscou toda a poupança de cada cidadão brasileiro, A Felicidade é Fácil narra um sequestro que ocorreu por engano. As vidas das personagens são diretamente impactadas pela história recente do Brasil.
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BOA NOITE A TODOS Record, 208 páginas, R$ 37,90 Maggie é uma brasileira que, como muitos latino-americanos, conheceu na Europa dos anos 1960 e 70 a liberdade que os anos de chumbo tolhiam em seu país natal. Essa liberdade, porém, resultou na ausência de um lar fixo, de amigos constantes e de casamentos duradouros. Os anos passam, e agora ela enfrenta a perda do pouco que resta da sua identidade, assumindo um discurso reflexivo e confessional.
WELCOME TO COPACABANA & OUTRAS HISTÓRIAS Record, 352 páginas, R$ 44,90 Estreia de Edney Silvestre no conto. O livro começa no mais turístico bairro do Rio de Janeiro, passando pelo subúrbio, por suas misérias, seus conflitos, depois vai para países como França e Itália, até chegar a outra galáxia e então retornar a Copacabana, onde tudo parece mesmo se misturar, do começo ao fim.
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OPINIÃO
Escola não é Igreja! Elcio Cecchetti
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O que significa pendurar um crucifixo na sala de aula?
Em prédios e repartições públicas, ainda é comum a presença de símbolos religiosos que denunciam a preferência do Estado pelo cristianismo.
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afirmação que intitula esta reflexão parece óbvia, mas não está suficientemente entendida. Nos últimos anos, diferentes iniciativas e proposições feitas por diferentes denominações e grupos religiosos parecem não levar em conta a distinção entre o espaço escolar e o espaço religioso. A Concordata firmada em 2008 entre o Estado brasileiro e a Santa Sé, estabelecendo a oferta de Ensino Religioso “católico e de outras confissões religiosas”; o Projeto de Lei (PL) nº 1.021/2011, que pretendia instituir o “Programa Nacional Papai do Céu na Escola”; o PL nº 8.099/2014 que intenta inserir o “Criacionismo” em todas as escolas; o PL nº 943/2015, que propõe a inclusão do ensino da Bíblia como componente curricular obrigatório na educação básica; o PL 5.336/2016, que pretende incluir a “Teoria da Criação” na base curricular do ensino fundamental e médio; são alguns exemplos que ilustram a falta de compreensão da natureza pública e laica da escola.
Em Santa Catarina, a Lei 9.734/2015, sancionada pela Câmara Municipal de Florianópolis, tornou obrigatória a disponibilização de Bíblias em lugar de destaque nas escolas. Na mesma direção, tramitava na Assembleia Legislativa o PL 83.9/2014, objetivando instituir o Programa de distribuição de um “Kit Bíblico Educativo” para toda a rede de ensino do Estado. O teor dessas proposições viola o princípio constitucional da laicidade, uma vez que a Constituição Federal de 1988 veda a União, os Estados e Municípios de estabelecerem, subvencionarem e interferirem no funcionamento de cultos religiosos ou de manterem relações de dependência/aliança com determinada confissão religiosa. A afronta à laicidade, nestes casos, reside na não observância do caráter de imparcialidade que deve reger a escola pública, que legalmente não pode emitir juízos de valor ou adotar crenças religiosas específicas, sob pena de instituir um tratamento diferenciado dos sujeitos
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da comunidade escolar ou de limitar direito à liberdade de expressão, pensamento e crença previstos no Art. 5º da Carta Magna brasileira. O princípio da laicidade, além de garantir o caráter público das instituições estatais, coloca em questão a identidade confessional da escola, que, por força de circunstâncias históricas, ainda mantém em muitos casos, através da inculcação deliberada de valores e elementos simbólicos judaico-cristãos, da comemoração de festividades religiosas no cotidiano escolar; da exposição de símbolos e mensagens confessionais nos prédios escolares; da realização de ritos e orações antes do início das atividades ou das refeições, ou na tentativa de submeter os conteúdos científicos às perspectivas dogmáticas de determinado credo, por exemplo no campo da sexualidade, e das relações familiares e sociais. Esses elementos colocam em “xeque” a isonomia da escola no tratamento e relacionamento com a diversidade de tradições/movimentos religio-
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Agência Brasil
Promulgada em 1988 pelo deputado federal Ulysses Guimarães, a “Constituição Cidadã” reafirma inteira liberdade de credo religioso. sos e entre pessoas sem religião, ateias ou agnósticas. Isso indica que a escola laica brasileira ainda não eliminou a sua face prosélita, assegurada por currículos e práticas pedagógicas colonialistas e monoculturais, assim como não se abriu para acolher as diversidades em sua plenitude, ao manter ritos e processos que privilegiam determinados sujeitos e grupos sociais.
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pesar da persistência dessas históricas problemáticas, as influências da esfera religiosa sobre o campo educacional nem sempre são problematizadas ou levadas em conta. Nos cursos de licenciatura, por exemplo, estudos e discussões sobre a laicidade ocorrem de maneira pontual, e a produção científica em torno do tema ocorre de modo ocasional na academia brasileira. Por isso, muitos aspectos e dimensões da laicidade raramente são abordados, o que contribui para a atribuição de sentidos ambíguos e contraditórios à própria função social do Estado ou da escola pública, assim como do próprio conceito de laicidade. A laicidade constitui-se em um princípio político-jurídico responsável por assegurar a SEPARAÇÃO entre o poder civil e o religioso; a IMPARCIALIDADE do Estado frente às ideologias religiosas e seculares, impedindo-o de privilegiar uma opção espiritual em detrimento das demais; a LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA e o TRATAMENTO IGUALITÁRIO dos cidadãos, para salvaguardar o direito à diferença e limitar as ingerências confessionais e ideológicas sobre a esfera estatal. Por seu aspecto relacional, a laicidade é uma noção dinâmica, demarcada por ambiguidades decorrentes das relações de poder travadas entre o Estado, as tra-
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dições religiosas, as organizações seculares e a sociedade civil. Vale lembrar que o ideal laico foi se configurando ao longo da história, em distintos tempos e territórios, principalmente em momentos marcados por opressões, dominações, intolerâncias, violências e cerceamento das liberdades, provocados tanto pela Religião, quanto pelo Estado, ou pela aliança entre eles. A ideia da laicidade emergiu como um princípio facilitador da convivência com a diversidade e libertador das consciências, reivindicada sobretudo por aqueles sujeitos e grupos que procuravam assegurar a dignidade humana, a liberdade de religiosa e o reconhecimento de suas identidades pessoais e coletivas.
A laicidade tem sido advogada como um princípio fundamental para todo regime político que pretenda ser democrático.
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mbora a defesa da separação entre os poderes políticos e religiosos ocorreu paulatinamente ao longo da Idade Média, inicialmente idealizado por clérigos que percebiam a Igreja por demais submissa e dependente da aliança com o poder estatal, foi após a decadência do regime feudal, com a assunção de novas formas de organização social — em um período marcado por guerras, imposições e perseguições religiosas praticadas tanto pelo absolutismo dos monarcas quanto
pela hierarquia da Igreja Católica — que o ideal laico foi se consolidando enquanto um dos princípios a sustentar os nascentes Estados modernos. Pensadores do Iluminismo europeu e líderes políticos da burguesia em ascensão propuseram e defenderam a constituição de um Estado que assegurasse as liberdades individuais dos cidadãos contra toda forma de opressão, por meio de um regime democrático, onde os poderes legislativo, judiciário e executivo estivessem separados e, principalmente, onde a religião não exercesse influência direta na governabilidade da esfera pública. Nestes termos, a defesa de um Estado laico pretendeu garantir constitucionalmente a liberdade de consciência, religião ou de qualquer convicção, para que todos fossem tratados indistintamente e considerados como iguais, aos menos em nível da normatização jurídica. Tal regulamentação estabeleceu a separação entre Estado e Religião, para garantir a neutralidade do primeiro em tratar a todos indistintamente, independentemente de serem crentes ou não crentes, zelando pelo interesse público e pela coesão social. Enquanto princípio protetor das liberdades e orientador das relações entre pessoas de diferentes crenças, opiniões e convicções, a laicidade tem como um dos seus principais fundamentos a liberdade de consciência, uma vez que a realidade social integra uma pluralidade de concepções de vida inevitavelmente heterogêneas. Isso significa que o seguimento de determinada crença por uma pretensa maioria não serve de pretexto para o Estado promovê-la, incentivá-la ou adotá-la, justamente porque o princípio da laicidade lhe impede de praticar proselitismo ou de afirmar que uma religião é melhor ou pior
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Fabio Pozzebom/Agência Brasil
Na sala do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, o crucifixo exposto num nicho especial possui mais destaque que o brasão da República.
do que outra. É papel do Estado reconhecer a diversidade de pensamento, crenças e convicções de seus cidadãos, tratando-os em igualdade de direitos. Com base nestas premissas, recentemente, o Ministério Público Federal encaminhou um pedido de inconstitucionalidade de decretos municipais publicados em janeiro de 2017 pelos municípios de Alto Paraíso (RO), Guanambi (BA), Sapezal (MT) e Santo Antônio de Pádua (RJ), que determinam a entrega a Deus das “chaves do município” e que estabelecem que todos os “setores da prefeitura estarão sujeitos ao Senhor Jesus Cristo de Nazaré”. Um Estado laico não tem competências para proibir, determinar ou interferir nas crenças, práticas e manifestações religiosas dos seus cidadãos, salvo quando atentarem contra os valores públicos comuns que, em última instância, correspondem aos direitos individuais e coletivos assegurados na normatização jurídica. Isso garante que crentes, ateus e agnósticos gozem da mesma liberdade e usufruam de iguais direitos, porque cabe à esfera estatal proteger os cidadãos de toda ameaça de imposição de um determinado credo ou ideologia particular. A laicidade busca instituir um Estado “imparcial” frente à diversidade religiosa e às distintas ideias filosóficas. Para isso, o Estado laico necessita assumir princípios públicos comuns, tais como o respeito aos direitos individuais e coletivos, o acolhimento da diversidade, a promoção da dignidade humana e da convivência social. Como afirma o filósofo canadense Charles Taylor, estes “valores” são legítimos ainda que não sejam neutros, porque possibilitam que pessoas diferentes vivam juntas de forma pacífica. Isso permite que os indivíduos construam, segundo sua
livre consciência, seus projetos de vida, desde que respeitem o direito dos demais fazerem o mesmo. A laicidade, portanto, se assenta no ideal de igualdade de tratamento e na liberdade de consciência das pessoas, o que necessariamente implica que o Estado esteja separado das tradições religiosas e aja com imparcialidade na gestão das políticas públicas. Sua função visa encontrar um equilíbrio entre o respeito à diversidade religiosa e o tratamento igualitário de todos os cidadãos.
Os princípios de convivialidade não são instituídos por decretos, mas fomentados por instituições, como as escolas e as universidades.
N
a atualidade, percebemos que, para certos grupos, a escola ainda é um território a ser permanentemente conquistado para exercer hegemonia na sociedade. O resultado dessa luta pela conquista das consciências tem sido altamente danoso à sociedade, pois a disseminação do preconceito, a prática da intolerância religiosa e a consequente difusão de imagens pejorativas sobre as crenças ou convicções do outro são as principais armas empregadas. Pesquisas recentes indicam o crescimento do bullying religioso nas escolas brasileiras, além da manutenção da discriminação e invisibilização das culturas indígenas e africanas nos currículos escolares. Some-se a isso uma moral religiosa
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conservadora sobre as temáticas da educação sexual e igualdade de gênero — vale lembrar os embates país afora sobre a questão da “ideologia de gênero” durante a votação dos planos estaduais e municipais de educação. Desse modo, o princípio da laicidade desafia as unidades escolares a não homogeneizarem ou privilegiarem determinada cosmovisão particular, a promoverem diálogos e interações entre diferentes identidades religiosas e não religiosas, e a subsidiarem outras práticas educativas que assegurem o direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou de qualquer convicção. A escola pública, instituição concebida como espaço privilegiado da educação formal, promovida e financiada pelo Estado, possui a responsabilidade de proporcionar aos futuros cidadãos que a frequentam, os meios pedagógicos para o exercício da cidadania e o desenvolvimento das habilidades necessárias à convivência coletiva em meio à diversidade de crenças, opiniões, convicções e concepções de vida..
E
m sociedades cada vez mais diversificadas, o respeito à diversidade religiosa e a proteção da liberdade de consciência dos cidadãos constituem grandes desafios à laicidade. Em razão da coexistência de diferentes crenças religiosas e filosofias de vida, e das consequentes tensões e conflitos decorrentes dessa realidade, a laicidade tem sido advogada como um princípio fundamental para todo regime político que pretenda ser democrático. Nesse sentido, cabe ao Estado laico favorecer e garantir o desenvolvimento autônomo dos indivíduos, livres de qualquer imposição, cerceamento, persegui-
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ção, intolerância e preconceito. Assim, o papel da escola pública consiste em fomentar o desenvolvimento da consciência crítica dos estudantes, apresentando distintas visões de mundo, mesmo que isso desaponte familiares ou determinados grupos que desejam transmitir crenças ou convicções particulares sobre os demais. Isso é comum nos dias atuais, pois determinadas famílias solicitam às instituições escolares que seus filhos não assistam a determinadas aulas ou que se abstenham de aprender determinados conteúdos, para que as crenças familiares não sejam expostas em contradição. Esses pedidos de isenções põem em perigo a realização de uma das finalidades mais importantes da escola pública: a aprendizagem da tolerância e da convivência entre os diferentes. Dada a necessidade de os estudantes interagirem e aprenderem a conviver com distintos perfis identitários, esta aprendizagem ficaria prejudicada se houvesse a liberação em função das crenças religiosas ou seculares de seus familiares. Diante da crescente onda de desconfiança que marca as relações entre pessoas com convicções ou credos distintos, assim como da persistência das práticas de intolerância e discriminação, as pessoas necessitam ser educadas a se relacionar com os
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diferentes, e a escola se constitui em um lugar privilegiado para isso. Em outras palavras, a escola laica assume uma importância capital na promoção de sociabilidades que aprendam, acolham, colaborem e respeitem as diferenças. Daí decorre sua função formativa de contribuir na construção de uma cidadania que habilite as pessoas a conviverem com convicções de mundo distintas e a adotarem como legítimos alguns princípios básicos para vida coletiva. Os princípios de convivialidade não são instituídos por decretos, mas fomentados por instituições, como as escolas e as universidades. Na medida em que os cidadãos passam a promovê-los em sua vida privada e pública, a sociedade ganha em estabilidade e coesão social, mediante a institucionalização de regras coletivas de tratamento empático e respeito às pessoas e grupos distintos. Não há dúvida que fomentar regimes de laicidade que assegurem a liberdade de consciência dos indivíduos constitui um dos caminhos seguros para estabelecer um equilíbrio satisfatório entre os direitos e liberdades individuais e os imperativos da vida em sociedade. Isso contribui para a formação de um espaço comum acima das diferenças para, justamente, tornar
possível a convivência social, onde o direito à diferença não se confunde com a diferença de direitos.
A
escola pública e as políticas do Estado não podem ficar à mercê das crenças e convicções exclusivistas, sejam religiosas, econômicas ou de outra natureza, porque se coloca em risco a efetividade dos direitos e liberdades historicamente conquistadas. Em sociedades de crescente diversificação e pluralidade, onde situações de violação e injustiça proliferam por conta de processos de exclusão e desigualdades, a laicidade do Estado e da escola pública adquire um valor ainda maior. Encontrar mecanismos políticos, jurídicos e sociais que permitam ao Estado zelar pelo interesse público, ampliando o alcance dos direitos a todos, constitui, sem dúvida, um grande desafio. A efetivação de um regime de laicidade depende, então, de um permanente investimento em processos educativos que capacitem os cidadãos a respeitarem os princípios de vida coletiva e a reconhecerem os direitos e liberdades inerentes não só a si mesmos, mas também ao outro, usufruindo suas liberdades no cotidiano da vida social com alteridade e responsabilidade.
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ESPORTE
Brasil + políticas públicas + educação + esporte =
Potência Olímpica
Everton Siemann
Pixabay.com
Temos tudo para brilhar no esporte, mas...
Apesar da vocação para o esporte, o Brasil está longe de ser uma potência olímpica. Falta dedicação — dos gestores e dirigentes, não dos atletas.
A
equação do título parece de simples resolução. Mas garanto, não é. Principalmente porque depende de vontade e coragem de nossas lideranças políticas. Algo improvável, de quem pensa primeiro em si mesmo. Quem sabe, agora, nossos representantes sejam embalados pelos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro. Afinal, vivemos anos de espera por eles. Pouco mais de sete, para ser preciso. E vimos os dias de disputas da Rio 2016, a Olimpíada do Brasil e a primeira da América do Sul, passar como um relâmpago (não consegui resistir ao trocadilho com Usain Bolt, confesso). Conquistas, derrotas, lágrimas de alegria e outras de decepção, belas histórias e outras nem tanto. Recordes quebrados e atletas se transformando em lendas
vivas do esporte — como o nadador norte-americano Michael Phelps (dono de 28 medalhas, 23 de ouro), o velocista jamaicano Usain Bolt (o primeiro a vencer os 100 metros, 200 metros e o revezamento 4x100 metros em três Jogos Olímpicos seguidos) e a ginasta norte-americana Simone Biles (dona de cinco medalhas, quatro delas de ouro) — ditaram o roteiro dessa grande história. A ojeriza daqueles que gostam de ver o copo sempre meio vazio (nunca meio cheio) e sustentam o complexo de vira-latas empírico do brasileiro parece ter perdido a queda de braço com o espírito olímpico. A maior festa do esporte mundial colocou a capital carioca em evidência e ajudou a levantar um pouco a nossa autoestima, chacoalhada nos últimos anos pela crise política e econômica.
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Vimos brasileiros entrar para o seleto grupo de campeões olímpicos. Todos com sua história marcada por dedicação e perseverança. Três deles em especial: a judoca Rafaela Silva (talento revelado em projeto social de uma ONG na favela Cidade de Deus, no Rio), o boxeador Anderson Conceição (que dividia a jornada de treinos e competições com o trabalho de feirante e auxiliar de cozinha para se manter) e o canoísta Isaquias Queiroz (que usava a canoa como meio de transporte e sustento da família na pequena cidade de Ubaitaba, na Bahia). Rafaela, Anderson e Isaquias são exemplos do poder transformador do esporte. E ao mesmo tempo nos mostram o quanto ainda temos que caminhar para o Brasil mudar de patamar nos Jogos. Os
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Ricardo Stuckert/Agência Brasil
Dias felizes antes da Lava Jato: entre políticos e celebridades do esporte, Lula e Sérgio Cabral fazem média com a bandeira do Brasil. três foram talentos forjados na sua própria vontade de vencer. Não são frutos de uma política pública voltada para a massificação esportiva, focada na revelação de futuros campeões olímpicos. Salvo iniciativas que focam no alto rendimento, como o programa Bolsa-Pódio e a parceria entre os ministérios da Defesa e do Esporte (que ligou 145 atletas de alto rendimento às Forças Armadas em troca do investimento de R$ 18 milhões por ano no último quadriênio entre eventos, equipamentos, cessão de locais para treinos e também salários), ainda engatinhamos neste quesito. E não se trata da falta de dinheiro. Segundo dados publicados pela revista Época, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) investiu quase R$ 1,4 bilhão (considerando repasses públicos através de leis de incentivo e patrocínios de estatais, além de recursos de patrocinadores privados) nos últimos quatro anos em equipamentos, treinos e incentivos aos atletas, na tentativa de melhorar o desempenho verde e amarelo nos Jogos Olímpicos do Rio. A meta era ousada: figurar no Top 10 do quadro de medalhas, com 25 a 27 lugares no pódio. Foram 19 no total, número capaz de garantir ao país o melhor desempenho olímpico da história. Ainda assim, pouco se compararmos com o ciclo olímpico anterior. Em Londres-2012, o Brasil havia conquistado duas medalhas a menos, com um investimento muito inferior: o orçamento do COB era metade do aplicado para os Jogos de 2016, segundo reportagem de O Estado de S. Paulo. Se temos infraestrutura, praticantes das mais diversas modalidades e investimento, o que nos falta então para virar-
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mos uma potência olímpica? Cultura esportiva. E isso exige tempo e dedicação. Muito mais dos nossos dirigentes e gestores esportivos e políticos do que dos atletas. Aliar educação e esporte é o primeiro passo. Do ensino básico ao universitário.
Se temos infraestrutura, praticantes das mais diversas modalidades e investimento, o que nos falta então para virarmos uma potência olímpica?
É
necessário um programa nacional que incentive as universidades (públicas e privadas) espalhadas pelo país — que cresceram vertiginosamente nos últimos anos — a “abraçar” equipes e atletas das mais diversificadas modalidades. Muitas instituições têm estruturas esportivas espetaculares, sem falar da qualidade do corpo docente. É chover no molhado, mas não custa lembrar que países do primeiro mundo e potências olímpicas fazem isso. Aliam os programas esportivos ao ensino superior. Fazem das competições universitárias uma espécie de peneira para buscar os talentos para as grandes ligas profissionais, que são autossustentáveis e transformam os atletas em estrelas e milionários. É o caso da NBA, a liga norte-americana de basquete e principal competição da modalidade no planeta. Jovens do mundo inteiro que praticam basquete
sonham em vestir a camisa de uma franquia da NBA. Há quem chegue à liga depois de rodar o mundo, como foi o caso do blumenauense Tiago Splitter, o primeiro brasileiro a conquistar o título do torneio na temporada 2013/2014. Revelado nas categorias de base da S.R.E. Ipiranga, do bairro Itoupava Seca, em Blumenau (SC), o pivô de 2,07m de altura foi descoberto por olheiros de um clube espanhol na década de 1990 e, aos 15 anos, transferiu-se para o Velho Mundo. Por lá, conquistou inúmeros títulos e chamou a atenção dos inventores do jogo. Em 2007 Splitter foi sondado por dirigentes do San Antonio Spurs, equipe do estado norte-americano do Texas. Naquele ano, o garoto crescido na Rua Poços de Caldas e ex-aluno da Escola Barão do Rio Branco foi chamado para participar do draft, o processo em que os times da NBA selecionam jovens talentos para integrar suas equipes na temporada seguinte. Splitter foi escolhido pelo Spurs, mas só assinou o contrato com o clube em 2010. O blumenauense era uma das exceções. A maioria dos seus concorrentes a um lugar na liga profissional vinha de equipes universitárias espalhadas pelos quatro cantos dos Estados Unidos. Elas são as principais minas onde as equipes da NBA vão buscar seus diamantes para lapidar. Assim como no basquete, outras modalidades usam o mesmo sistema na terra do Tio Sam. Além de formar grandes atletas, as ligas estudantis desenvolvem melhores cidadãos. Nem todo atleta universitário vira profissional. Faz parte do sistema. Aí, vem a importância da educação. Com o canudo universitário nas
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Mike/Wikimedia Commons
Depois de rodar o mundo, o blumenauense Tiago Splitter chegou à NBA e se tornou o primeiro brasileiro a conquistar um título da liga. mãos, o ex-atleta tem condições de buscar seu lugar no mercado de trabalho a partir daquilo que estudou. É um caminho com duas vias. O modelo está consolidado há décadas nos EUA, uma potência econômica e esportiva. Por que não adotá-lo por aqui, dentro da nossa realidade e peculiaridades? Com exceção do futebol, que já tem uma organização sedimentada há décadas (pois os atletas são produtos que podem render milhões de reais aos clubes vinculados em caso de transações, principalmente internacionais), as demais modalidades esportivas no Brasil se equilibram entre o profissionalismo e o amadorismo. Vôlei, basquete e futsal têm experiências em andamento que os qualificam como exceção pelas ligas criadas há alguns anos. Mas ainda são incipientes. Ligas e equipes não são autossuficientes e é muito comum ver projetos serem encerrados por falta de patrocinadores, sejam da iniciativa privada ou do poder público. Em outras modalidades, é comum as confederações — que geralmente são presididas pelas mesmas pessoas ou grupos há décadas — reterem o investimento e deixarem clubes e associados, sua razão de existir, à míngua. Por isso, é mais do que a hora de repensar essas estruturas, aproximando-as das universidades. Formar futuros atletas e cidadãos preparados para a vida e os desafios que o mundo e o mercado de trabalho nos impõem.
E
ntre tantos programas existentes viabilizados com incentivos públicos, defendo mais um. Através da remissão de impostos ou até mesmo a
criação de uma loteria, os governos federal e estadual poderiam estimular as entidades de ensino superior a se tornarem fomentadoras do esporte, com a infraestrutura, equipe técnica e corpo docente. Em troca do abono fiscal ou do dinheiro advindo de uma nova loteria, ofereceriam bolsas de estudos para os atletas. Assim formaremos cidadãos mais esclarecidos e com oportunidades para o futuro, além de desenvolvermos atletas. É a melhor forma de construirmos uma nova geração adepta dos valores que só o esporte pode ensinar, inserida no ambiente escolar e acadêmico. Um passo firme para abandonarmos o Terceiro Mundo socioeconômico e desportivo.
A maior festa do esporte mundial colocou a capital carioca em evidência e ajudou a levantar um pouco a nossa autoestima, chacoalhada nos últimos anos pela crise política e econômica. Para isso, é preciso clareza, coragem e vontade de mudar. O hino nacional escrito por Joaquim Osório Duque Estrada nos faz cantar que somos um “gigante pela própria natureza”, assim como “um filho teu não foge à luta”. O momento nos desafia a comprovar o sentido literal das sentenças. A Grã-Bretanha pode nos servir como outra referência. Os súditos da rai-
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nha Elizabeth II aproveitaram o intervalo entre as Olimpíadas de Atlanta-1996 e Londres-2012 para criar um plano de longo prazo para investir no esporte, financiado com parte da arrecadação da loteria federal. Resultado: mudaram de rumo e subiram de patamar. A Grã-Bretanha saiu da 36ª posição no quadro de medalhas — havia conquistado apenas um ouro nos Estados Unidos — para se tornar uma potência esportiva quatro edições seguintes dos Jogos. Em casa, os britânicos ocupavam o 3º lugar, com 29 medalhas douradas, dando mostras que se tornaram uma nova força olímpica. Passados quatro anos, subiram mais um degrau no pódio e deixaram a capital carioca com a segunda melhor campanha, atrás apenas dos Estados Unidos. Com 67 medalhas no total, 27 delas de ouro, ultrapassaram a China e deram um recado: é possível se reinventar. Basta querer e trabalhar para isso. Para finalizar, cito um trecho do texto de Rodrigo Turrer, Flavia Yuri e Samantha Lima, publicado na revista Época, de 22 de agosto: Depois que o fogo olímpico deixar o Rio, a cidade e o resto do país ficarão com um legado: o físico das instalações esportivas e o impalpável, e até mais importante, de uma geração de crianças e adolescentes que viu a Olimpíada aqui e vai sonhar com as suas glórias. Precisamos dar uma chance a elas. Eis a nossa missão. Que tal começarmos a trabalhar agora para cumpri-la com êxito? Em Tóquio, já poderemos colher novos e melhores frutos. Basta querer e trabalhar para isso.
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CIÊNCIA
A Metafísica de Newton Dimas da Cruz Oliveira
Um passeio pela história de grandes cientistas que mantiveram um olho no racional e outro na transcendência
À
primeira vista nosso título parece um tanto quanto paradoxal. Como poderia uma das glórias máximas da física, o gênio que verdadeiramente criou o conceito de “lei” científica, Isaac Newton, ser considerado também como metafísico? Quando esta pergunta aflora aos nossos lábios, então nos lembramos das clássicas investidas do século XVIII contra a metafísica. Dentre essas investidas, a de Voltaire, que foi instruído pela fina flor da escola empirista inglesa, merece destaque por ser ao mesmo tempo elegante e superficial, bem ao estilo daquele escritor, quando ele diz: “Trata-se, ao falarmos de metafísica, de um homem
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cego que, de olhos vendados, está trancado num quarto escuro, à procura de um gato preto que não está lá”! Mas, por outro lado, caberia também a um francês, Pierre Duhem, criar a expressão “física de crentes”; ele o faz ao demonstrar com grande rigor lógico que os fundamentos da física estão situados além dela mesma, isto é, na metafísica. Duhem nos indica passo a passo o longo caminho percorrido pelos construtores da física moderna desde os seus primeiros esboços até seus trabalhos mais acabados; caminho esse que começa com a crença nas possibilidades de uma simplificação matemática da natureza.
Aprendemos que os pioneiros da ciência moderna não fizeram uso, simplesmente, de um método indutivo “a posteriori”, como todo mundo pensa, mas também de um método dedutivo “a priori”. Toda observação feita na chamada “ciência experimental”, tão bem caracterizada por Galileu, deverá partir de algum pressuposto teórico, seja o mais simples possível. E qual é por sua vez a natureza desse pressuposto, senão metafísica? Se o ceticismo filosófico tivesse prevalecido nos alvores da Renascença, e a natureza fosse considerada inacessível ao conhecimento matemático, algo como a ciência
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moderna jamais existiria; nós nos esquecemos disso com demasiada facilidade. Obnubilada pelo esplendor racionalista do século XVIII, a metafísica passou a ser considerada como algo de morto, um caput mortuum, desprovido de quaisquer relações com a física. Em relação a isso, ainda mais que Voltaire, outro pensador gaulês, Descartes, foi erigido em ícone da racionalidade: “Todo pensamento científico é cartesiano”, diz o lugar comum, “e em consequência rejeita a metafísica”. Entretanto, percorrendo um caminho original, o que Duhem nos faz ver é justamente a riqueza metafísica inerente ao pensamento científico em seus momentos mais fecundos. Nem Copérnico, nem Galileu e Kepler, e muito menos o próprio Newton foram cartesianos no sentido que deseja o lugar comum. Lembremos Copérnico, em primeiro lugar: mesmo fazendo abstração da batina sacerdotal que aquele astrônomo envergava todos os dias, antes de subir ao seu observatório, sabemos que ele tinha em sua mente algo como um desenho metafísico, base do arcabouço conceitual que lhe permitia conduzir seu trabalho com segurança, sem perder-se entre os milhares de corpos celestes que contemplava. Certamente Copérnico se inspirou no conceito metafísico de Aristóteles, do “primeiro motor”, a fim de conceber a órbita própria de cada planeta em sua relação com o sol. E o que dizer de Kepler, com seu misticismo exaltado, com seu verdadeiro culto ao sol, e os hinos que compôs em homenagem ao astro rei, capazes de fazer inveja aos antigos egípcios? Num arroubo de poesia, e impregnado de espírito metafísico, Kepler chega a dizer que, se Deus escolhesse uma habitação visível para si mesmo, tal habitação seria o sol. Quanto à gravitação universal de Newton, Kepler a concebe antecipadamente, envolta num denso véu metafísico, já que, para ele, o sol preside a Trindade Santa como o Pai, os planetas são o Filho, e o elo entre eles, invisível porém real, representa o Espírito Santo. E pensar que o autor dessas imagens magníficas não era um beato qualquer, mas o mesmo homem que, com incrível labor, revelou os segredos matemáticos das órbitas dos planetas! Nesse contexto, é instrutivo lembrar não apenas o interesse de Newton pela cabala, por símbolos esotéricos, sociedades secretas e alquimia, mas também a sua concepção do espaço como o meio metafísico usado pela divindade a fim de enxergar todo o físico: spatium est sensorium Dei. Se hoje em dia esse elo entre física e metafísica na obra de Newton escapa à nossa compreensão, é porque a cultura filosófica parece cada vez mais diminuída em suas relações com a ciência. “Se as referências filosóficas são escassas nas obras de ciên-
Galileu mostra ao Doge de Veneza o uso do telescópio. Giuseppe Bertini, 1858.
cias puras é porque raramente o cientista remonta às fontes: ele utiliza em geral um conceito no momento em que este se banalizou no mundo culto”. Não podemos ficar indiferentes quando descobrimos que este é o pensamento de um crítico e historiador da ciência do porte de Abraham Moles. Um cientista como Newton, entretanto, nada tem de banal; ele mesmo, aliás, cria conceitos capazes de resultar num influxo poderoso sobre a ciência e a própria filosofia: haja vista a gravitação. Também é claro que Newton encontrou em Aristóteles, através dos estudos clássicos, senão a metodologia, pelo menos vários de seus temas; questões transcendentes, tais como a natureza da luz e o conceito de tempo e espaço, talvez jamais se apresentassem a Newton com tanta clareza e elevação sem o estudo prévio do filósofo grego. Aliás, mal podemos imaginar de outra forma o treinamento de espíritos metódicos e ávidos de conhecimento quais sejam Leibniz, Huygens e, é claro, o próprio Newton. É assim que falamos da mencionada obra de Duhem, a “física de crentes”, como um importante trabalho de recuperação histórica das relações entre física e metafísica; relações estas que assumem especial interesse quando se trata de Newton, visto que o gênio inglês já tinha verdadeiramente “tomado assento sobre o ombro de gigantes”, como ele mesmo diz fazendo referência a Copérnico, Kepler e Galileu. Graças à riqueza de seus conhecimentos matemáticos e filosóficos, que resumem e superam os de seus antecessores, Newton vem ocupar o primeiro lugar na augusta companhia e tornar-se o primeiro entre seus iguais, o primus inter pares. Se as pági-
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nas tão difíceis, aliás, e quase inacessíveis dos Princípios Matemáticos ressumbram um quê de filosófico, isso se deve à leitura de Aristóteles, assim como na obra de Einstein aflora de quando em quando o mais puro pensamento de Kant. Por outro lado, quando Leibniz nos diz que “ainda é possível encontrar algum ouro em meio ao esterco dos escolásticos”, aquele filósofo mal sabe para onde aponta sua ironia; porque somente os escolásticos permitiram a Galileu dizer, desta vez sem ironia, que “a natureza está escrita em linguagem matemática”. Por isso podemos dizer que outro mérito de Duhem consiste em reconhecer o importante papel desempenhado pela ciência escolástica tardia entre os precursores de Newton. Duhem nos mostra que a rejeição da antiga ciência aristotélica já tinha começado entre os estudiosos da Universidade de Paris, muito antes de Galileu; mas talvez ainda mais curioso seja o fato de que tal rejeição começa sempre a partir de leituras do próprio Aristóteles, traduzido para o árabe e depois para o latim. Tudo isso nos leva a concluir que a grandeza de Newton está relacionada não apenas à grandeza de seus antecessores, mas ainda à do seu adversário natural: Aristóteles. Estudar o que havia de mais sutil e mais profundo no pensamento filosófico grego e unir sabiamente física e metafísica foi o caminho percorrido por Newton a fim de fazer seu impressionante resumo do universo. Em meio à luta de titãs, o gênio de Newton prevaleceu, é verdade, mas isso não diminui nem um pouco nossa admiração pelo espírito cultíssimo de Aristóteles.
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FOTOGRAFIA
Lituânia, Leste Europeu
Leo Laps
Um ensaio fotográfico sobre o país báltico, a nova joia do turismo no continente
A Torre de Gediminas é um poderoso símbolo para o povo lituano. Em 1988, quando o movimento pela independência da União Soviética ganhava força, uma bandeira do país báltico foi hasteada no topo da construção em protesto à dominação russa.
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ona de um território menor que o de Santa Catarina, a Lituânia já foi um gigante medieval, um corredor estendido entre os mares Negro e Báltico separando a Rússia da Europa Ocidental. Posição tão estratégica reservou à história do país uma lista infindável de batalhas e invasões. A última delas se encerrou no dia 11 de março de 1990, quando os lituanos declararam sua independência da União Soviética — mais de um ano antes da dissolução oficial do estado socialista. O bronze histórico da seleção masculina de basquete (o grande esporte nacional) sobre a Rússia em 1992, durante as Olimpíadas de Barcelona, certamente elevou o moral da população. Mas os lituanos ainda teriam muito trabalho para reconquistar, de fato, sua autonomia como nação.
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Um passo importantíssimo seria a entrada na União Europeia, junto a outras ex-repúblicas soviéticas, em 2004. O resultado dessa abertura em direção ao ocidente começou a repercutir nos últimos anos, quando a Lituânia passou a ser apontada como uma das novas joias do turismo no continente europeu. Belas paisagens e castelos do século XIII se combinam a uma atmosfera placidamente cosmopolita de cafés, ateliês e joalherias, músicos de rua, livrarias, bares e boates. Se há um Museu do Holocausto em memória a um triste passado, há arte de rua e humor para homenagear, com uma estatueta, o genial guitarrista americano Frank Zappa. É muito fácil para um visitante se comunicar em inglês, e o país se orgulha da velocidade de sua
Internet — disponível gratuitamente em boa parte da capital, Vilnius, para onde viajei em setembro de 2016. Era o destino mais oriental de um mochilão de dois meses pela Europa, colocado no mapa pela soma da dica de um amigo, o histórico “russo/prussiano” da família Laps e o meu fascínio por destinos fora do comum. Hospedado na casa de jovens lituanos pelo Couchsurfing, passei quatro dias explorando a cidade de bicicleta e mais um em Trakai, retiro de verão que atrai muitos visitantes com seu castelo histórico cercado por três lagos. Este ensaio fotográfico montado especialmente para a Revista de Divulgação Cultural busca apresentar aos leitores um pouco deste interessante país, que permaneceu enclausurado por quase cinco décadas.
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Pequena e muito arborizada, com apenas meio milhão de habitantes, Vilnius é uma das capitais mais aconchegantes da Europa. Caminhar pelas ruas da cidade antiga é, por si só, um dos principais atrativos da cidade fundada no século XIII.
Durante o verão, o sempre gelado e límpido Rio Neris é aproveitado como nunca pelos moradores de Vilnius — e, claro, pelos turistas.
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A partir de 2009, as paredes da Literatu Gatve (Rua da Literatura, em lituano), em Vilnius, começaram a receber pequenas obras de arte homenageando os melhores escritores do país — como o poeta Benediktas Januševičius (detalhe).
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Construído estrategicamente no centro de três grandes lagos, o Castelo de Trakai (acima) é hoje uma das principais atrações turísticas da Lituânia. A pequena cidade, a uma hora de trem de Vilnius, já foi considerada uma capital não-oficial do país, e hoje é o destino de veraneio de muitos lituanos.
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No quintal e até dentro da água, o basquete é o esporte nacional dos lituanos. Atualmente, 12 atletas do país jogam na NBA, a poderosa liga norte-americana.
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“Todos têm o direito de viver ao lado do Rio Vilnia, e o Rio Vilnia tem o direito de fluir para todos”, diz o primeiro parágrafo da constituição da República de Uzupis, o bairro de artistas que celebra sua criativa independência desde 1997 – sempre no dia 1º de abril.
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RESENHA
Perseguindo Zizek Maria José Ribeiro
Um olhar sobre a obra do filósofo que vem “causando” desde a virada do milênio
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ma criança disse a Chesterton que o Monte das Oliveiras era o lugar onde Deus fez suas orações. O autor, citado por Slavoj Zizek, comenta que não poderia haver uma declaração mais sofisticada de tudo o que separa o cristão do muçulmano, ou do judeu. E Zizek: “Se em outras religiões rezamos para Deus, é somente no cristianismo que o próprio deus reza”. Esse trecho foi só para “dar água na boca” do futuro leitor de O sofrimento de Deus: Inversões do Apocalipse, do “filósofo mais perigoso da atualidade”, como dizem, psicanalista e crítico cultural Slavoj Zizek, e do filósofo e teólogo croata Boris Gunjevic. O livro é um debate entre esses vigorosos intelectuais. Na obra são analisados e reconstruídos o cristianismo, o islã e o judaísmo a partir de Hegel e Lacan. Mas como pode um leitor não filósofo chegar a esse sofisticado debate? Bem, ando perseguindo Zizek a passos lentos e num zigue-zague — pelo menos cronológico — que me trouxe até aqui. Publicada em português em 2016 pela Autêntica, a obra me faz assinalar, de saída, neste texto, que cheguei ao “sofrimento” sem ter lido “o amor” — O amor impiedoso (ou: Sobre a crença), de 2013, e não conhecendo o debate sobre “a monstruosidade de Cristo”, entre Zizek e John Milbank, origem deste “Bob na mukana” (Deus em sofrimento), publicado em croata em 2008, como consta na introdução de Gunjevic.
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udo começou em 2001, com a queda das torres gêmeas nos EUA. No número 75 da Revista de Divulgação Cultural, publicado no mesmo ano, escrevi um pequeno texto sob o impacto do ocorrido: Sobre um certo fio... Nele eu citava o ensaio de Antônio Tabucchi, professor de literatura portuguesa na Universidade de Siena, publicado na Folha de S. Paulo (09/09/2001). O autor analisava a ideia de inquietude que perpassou a Literatura de todo o século XX, assinalando autores e obras que apontam para o estranhamento entre homem e mundo. Tabucchi intitulou seu ensaio de “Fio do desassossego” — numa alusão ao Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa — e dois dias depois da publicação desse texto no Brasil, instaurouse o mais profundo desassossego na comunidade mundial, com o ato terrorista de 11 de setembro de 2001. Continuei seguindo esse fio em 2002, quando cheguei à UFSC para o doutorado. Lá ouvíamos falar sobre quem estava escrevendo algo em torno do 11 de setembro. Foi quando escutei pela primeira vez esse nome de difícil pronúncia em nosso idioma: Slavoj Zizek. Tempos depois tive acesso ao Bem-vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas (Boitempo, 2003) e publiquei uma pequena resenha no espaço “O que estou lendo” do Sarau Eletrônico da Biblioteca da FURB, site então editado por Viegas Fernandes da Costa. Muito depois, em 2010, no VII Congresso Internacional de Teoria Crítica, na Unicamp, o nome
de Zizek ecoava pelos corredores e em torno das mesas de debates como um zumbido inquietante. Vale ressaltar o intervalo de mais de uma década ocorrido nas traduções da obra do autor no Brasil, encerrado com a publicação do Bem-vindo. No posfácio de Bem-vindo ao deserto do Real!, Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP, nos instrui sobre as articulações que subjazem ao debate trazido por Zizek, destacando, em seus escritos, o resgate da tradição dialética de Hegel, mesclado a uma inédita “clínica da cultura” de orientação lacaniana. Para conhecer algo sobre essa clínica, cheguei a Como ler Lacan (Zahar editora, 2010) — que julguei imprescindível para ler Zizek. No prefácio, o autor observa que, no ano 2000, centenário da publicação de A interpretação dos sonhos, de Freud, houve uma retomada do já famoso anúncio da morte da Psicanálise. Mas Zizek adverte o leitor quanto à hipótese de que só hoje o tempo da Psicanálise esteja chegando. Para Zizek, não há defunto a ser velado. O psicanalista procura demonstrar que agora a Psicanálise está alcançando a vida em sua mais perfeita definição, com o resgate da investigação que Lacan promove a partir do centro da revolução freudiana. E propõe que o leitor o acompanhe nesse livro, retomando a abordagem de Lacan, para quem a Psicanálise é um método de leitura de textos. O convite é para que o leitor leia cada capítulo apresentado com Lacan. Conduzidos por Zizek, essa leitura é possível — e divertida.
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Amrei-Marie/Wikimediacommons
Slavoj Zizek, conhecido como o “Elvis Presley da filosofia”, usa o cinema e as piadas cotidianas para discutir política, comportamento e religião.
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iz o dito popular que não se compra um livro pela capa. Mas a capa da edição brasileira de O sofrimento de Deus traz pitadas do debate entre Zizek e Gunjevic. Assim: — “(1) O FILÓSOFO diz que Deus está sofrendo. (2) O TEÓLOGO diz que Santo Agostinho pode nos ajudar a sair do capitalismo. (3) O FILÓSOFO sugere que adotar uma posição apocalíptica é a única maneira de manter a cabeça fria. (4) O TEÓLOGO nos mostra como a Teologia é necessária para a revolução. “ Impossível não começar a ler imediatamente o volume que se tem em mãos!
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gora cheguei a O amor impiedoso (ou: Sobre a crença), publicado em 2001 na Alemanha — Die gnadenlose Liebe — e na Inglaterra — On Bilief. Mas estou só no primeiro capítulo intitulado maravilhosamente de “Hamlet antes de Édipo”. Mas houve o meu “antes”: a investigação cuidadosa da capa. Na contracapa, encontrei algo para encerrar por aqui este texto, com o estilo certeiro do autor: — “Ninguém realmente escapa à crença — traço que merece ser enfatizado especialmente nos dias de hoje, em nosso tempo supostamente sem Deus. Quer dizer, em nossa cultura secular, pós-tradicional, hedonista e oficialmente ateia, em que ninguém está pronto a confessar publicamente sua crença, a estrutura subjacente à crença é tanto mais disseminada — todos nós, secretamente cremos”. Creio que a perseguição a Zizek continuará.
Arsenal Esloveno Alguns livros de Zizek disponíveis no Brasil O SOFRIMENTO DE DEUS: INVERSÕES DO APOCALIPSE
O AMOR IMPIEDOSO (OU: SOBRE A CRENÇA)
Autêntica, 240 páginas, R$ 49,80
Autêntica, 210 páginas, R$ 44,90
Debate entre Zizek e o teólogo Boris Gunjevic. Em seis capítulos que descrevem o cristianismo, o islã e o judaísmo usando as ferramentas de análise hegeliana e lacaniana, o livro mostra como cada sistema religioso entende a humanidade e a divindade, como as diferenças entre eles podem ser muito mais estranhas do que aparentam à primeira vista.
Zizek mostra sua capacidade de partir de premissas simples para mostrar como a estrutura da crença é muito mais arraigada do que gostaríamos de imaginar. Dessa forma, essa ampliação da crença não funciona como um convite à simples defesa de sua racionalidade, mas à consciência clara dos desafios que um pensamento realmente crítico deve saber superar.
BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL!
COMO LER LACAN
Boitempo, 192 páginas, R$ 42,00
Zahar, 160 páginas, R$ 54,90
Coletânea de cinco ensaios nos quais o autor aborda os acontecimentos de 11 de setembro e suas consequências. Movendo-se no interior de um terreno para onde convergem a crítica da cultura, a psicanálise, a teoria social, a análise cinematográfica e a política, Zizek sabe diagnosticar os sintomas da sociabilidade contemporânea e desvendar articulações onde menos se espera.
O livro tenta ser uma prova de que as ideias de Jacques Lacan não são tão difíceis quanto se costuma imaginar. Zizek coloca o leitor face a face com a obra do psicanalista francês e procura esclarecer os principais conceitos lacanianos, fazendo associações com as mais diferentes áreas do conhecimento. Cinema, literatura, história e consumismo vêm à tona numa mescla de humor e filosofia.
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SOCIEDADE
A vida (e a morte) de um frango de granja Daniela Matthes e Rafaela Martins (fotos)
A trajetória de 7897408100530 e a situação dos humanos que trabalham ao seu redor
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úmero 7897408100530 jaz, congelado. Nu, tem cabeça, pés, pescoço, fígado e moela enfiados dentro do abdome. É provável que essas partes não tenham sido suas. Ele aguarda o fim ao qual sempre esteve predestinado: a panela. Forno, churrasqueira ou frigideira são variáveis possíveis. Galinha ou galo — não é possível saber — 7897408100530 nunca bateu as asas, pouco piou e dormiu, muito bebeu e comeu. Da casca à morte, foram 42 dias e cinco quilos de ração. Média de 120 gramas a cada 24 horas. O frango inerte no fundo do congelador do supermercado não conheceu o sol, a chuva ou o frio. Com nove centímetros quadrados para viver a curta vida, só conheceu lonas azuis e chão forrado com seus próprios dejetos. Segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), foram produzidos no mundo, em 2015, 88 milhões de toneladas de frangos como 7897408100530. Só no Brasil, em 2015, 5,8 bilhões foram degolados. O setor anda na contramão da crise. Entre 2014 e 2015, conforme dados mais recentes publicados pela ABPA, a indústria produtora de frango no país cresceu 3,06%. No mesmo período, o PIB nacional caiu 3,8%. As 13,14 milhões de toneladas de frango criadas e abatidas em 2015 no Brasil são resultado de política governamental com investimento aplicado desde a primeira metade da década de 2000. Impulsionado para ser líder mundial, o setor tem conquistado relevância econômica no mercado interno (hoje corresponde a 1,5% do PIB) e quadruplicou as exportações, fa-
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zendo peso na balança comercial do país. Na última década, a produção de frango no Brasil cresceu 40,6%. Apesar da projeção de PIB modesto para 2017, o setor prevê um incremento de 3,5%, conforme dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, em inglês), principal compilador de estatísticas agropecuárias do mundo. O frango corresponde a praticamente metade de todos os tipos de carne produzida e consumida no Brasil. A robustez do segmento conquistada especialmente à base de investimento de fundos de pensão de empresas estatais e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) rendeu ao Brasil pódio no ranking mundial. Em 2015, ultrapassou a China (13,25 milhões/ton.), ficando atrás apenas dos Estados Unidos na produção. Na terra de Trump brotaram 17,9 milhões de toneladas de frango. Com um terço da produção brasileira destinada ao mercado externo, a cada 11 quilos de frango exportados no mundo, quatro têm origem no Brasil. Ao todo, 150 países recebem carne de frango brasileira. Em 2015, o país exportou 4,3 milhões de toneladas de frango, gerando uma receita de US$ 7,1 bilhões. O setor também detém números volumosos no mercado de trabalho. Estão empregados nesse segmento, segundo dados da ABPA, 3,5 milhões de pessoas. Isso corresponde a cerca de 5% do total de trabalhadores empregados em todo o país. Cerca de 400 mil deles estão nas plantas frigoríficas.
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indústria bilionária da avicultura começa, em boa parte, em pequenas propriedades agrícolas. Hoje há cerca de 180 mil integrados, que fornecem em torno de 70% de toda a produção de frango. Esse sistema prevalece especialmente nos estados da região Sul. O sistema de integração ganhou força no Brasil a partir dos anos 1970, explica Luciano Félix Florit, sociólogo e professor da Furb que se dedica à temática da Ética Ambiental. Antes disso, o quadro geral nas áreas rurais em Santa Catarina era de famílias proprietárias de pequenos sítios criando animais e mantendo plantações para subsistência e venda local. A integração de diferentes atividades, como produções de frango, suíno e fumo, surge como oportunidade de trabalho com menor desgaste e mais seguro, já que as vendas são garantidas para a empresa contratante. Com o êxodo rural tornando-se realidade, o então novo sistema pareceu atrativo para a reprodução do modo de vida no campo num período em que a própria agricultura passava por mudanças bruscas. “A integração deu certa segurança aos produtores ao estabelecer uma relação de alguma garantia com o mercado. Assim eles não dependem tanto do clima, evitam perdas. São coisas muito difíceis para o homem do campo enfrentar sozinho”, conclui Florit. Ao mesmo tempo, esse sistema coloca o produtor com poder econômico reduzido em desvantagem em relação à empresa. Para que a integração se efetive, contratos são firmados entre as indústrias e produtores rurais com pequenas proprie-
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Autópsia de um cadáver comestível: o frango número 7897408100530 fora do pacote e do modo como se apresentaria a um cozinheiro.
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Um frango de granja é como um robô de penas brancas que vive em 9 centímetros quadrados e consome 120 gramas de ração a cada 24 horas.
dades. Porém, o negócio vai além de uma simples transação de compra e venda. Para começar o plantel, o produtor recebe os pintos direto da indústria. Eles passaram previamente por seleção — cerca de 90% são galos — e recebem doses controladas de remédios desde a casca do ovo. É a empresa que também fornece ração, medicamentos e controla, por meio de técnicos, a criação. O número de plantéis por ano fica a cargo da demanda da empresa e não há cláusula contratual para firmar uma quantidade mínima. Só no ano passado é que uma lei nacional, chamada Lei da Integração (13288/2016), criou parâmetros para os contratos. Hoje com sistemas de manejo quase totalmente automatizados, a criação de frango para corte foi a saída encontrada por agricultores cansados de pequenas produções familiares. Seduzidos pelas empresas, embarcaram na avicultura. A integração é responsável por quase toda a produção de frango em Santa Catarina que, conforme dados do IBGE, contabilizou, em 2015, 145,1 milhões de galináceos (inclui galinhas e galos [adultos], frangas e frangos [jovens] e pintos [até 21 dias de vida]). O Estado é acompanhado pelos vizinhos da região Sul no alto do ranking de produção e abate no país. Os três também têm os principais abatedouros. No Paraná, em 2014, foram abatidos 1,6 bilhões de frangos. Santa Catarina abateu 891,5 milhões e o Rio Grande do Sul, 783,1 milhões. Juntos, a produção e abate no Sul foi de 60,4% de todo o saldo nacional em 2015.
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sse sistema de trabalho é a realidade de boa parte das famílias agricultoras de Apiúna. O Secretário de Agricultura e Meio Ambiente Gilmar Formagi conta que a produção na cidade começou há cerca de 30 anos, quando surgiram os primeiros plantéis. Hoje a avicultura é responsável por cerca de 4% de toda a arrecadação do município. Há, ao todo, em Apiúna, 25 aviários e cerca de 20 produtores. Entre os mais antigos está João (os nomes foram trocados para preservar a
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identidade dos produtores). Há 30 anos construiu a primeira granja. Antes trabalhava com o fumo, também integrado, como boa parte dos produtores que migraram para a criação de frango. O cultivo de fumo exige atividades pesadas, contato com agrotóxicos e gases provenientes da folha. Procurado por uma indústria aviária catarinense, João trocou a roça pela granja. Ele conta que até metade dos anos 2000 o sistema era manual. Exigia cuidado redobrado, com trabalho mais pesado, sem folga. O investimento para construir o aviário saiu do próprio bolso. Aos poucos foi aumentando o espaço, mas quando a empresa integradora faliu e acabou fundida com uma concorrente, no final dos anos 2000, João e boa parte dos produtores de Apiúna amargaram prejuízo. O município foi considerado longe demais do abatedouro pela empresa que comprou a companhia falida, por isso os contratos não foram renovados. O mesmo aconteceu com todos os outros produtores do município.
Muita coisa mudou desde o tempo em que a técnica para matar uma galinha era atividade que fazia parte do dia a dia das cozinheiras. No início dos anos 2010, quando todos os produtores do município ficaram com os aviários vazios, Formagi conta que a prefeitura chegou a intervir, procurando alternativas para as propriedades paradas. Cogitou-se a criação de rãs, mas as dificuldades em adaptação fizeram a ideia minguar. Alguns começaram a produção de marrecos para uma empresa da região. Eles tiveram de fazer mudanças nos galpões, como construção de lagoas, mas não deu certo. Quem entrou no negócio teve prejuízo duplo: com o investimento, que
não chegou a dar retorno, e com o plantel, que não foi pago. Com o saldo vermelho ainda da primeira integradora, que teria mudado os contratos dos produtores a toque de caixa antes da falência para evitar multa contratual e outros custos — vários deles ainda esperam o resultado de processos na Justiça para reaver o dinheiro — em 2013 surgiram outras empresas da região interessadas nos galpões vazios. Boa parte dos produtores de Apiúna aceitaram assinar contrato e retomar a criação de frangos. Mas logo a empresa foi vendida para uma multinacional. Marcos conta que se recusou a assinar contrato com a atual empresa a que é integrado. Com medo da experiência anterior — ele também tinha contrato com a falida —, quis ler com calma antes de assinar, mas foi impedido pelo técnico. Marcos não pegou a caneta e agora trabalha apenas com um acordo verbal. Com o sistema de integração, os produtores ficam à mercê das empresas. Entre a primeira e a mais recente indústria integradora, outras estabeleceram acordos com os produtores locais. Quando fecharam ou mesmo foram vendidas — sempre para os grandes conglomerados que dominam o mercado —, os integrados amargaram saldo negativo. Eles são a ponta frágil da relação. “Eu tentei escapar da multinacional, mas a empresa com que tinha contrato foi vendida e acabei caindo com eles. A gente fica na mão deles”, conclui Marcos. Ele conta que nos contratos — ou acordo, no caso dele — o preço pago por unidade seria entre R$ 0,70 e R$ 0,80. Entretanto, a média paga tem sido de R$ 0,50 ou menos. As remessas de pintos para criação são enviadas pela empresa de acordo com a própria demanda. No ano passado, por exemplo, ficou abaixo do esperado. Cada lote rende, em média, R$ 10 mil. “Sobra muito pouco para pagar os custos da produção e sobreviver. Ainda tem o financiamento do galpão para quitar”. O aviário tem de atender as exigências da integradora, que faz a intermediação entre o banco e o produtor para viabilizar a
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Uma galinha caipira cisca milho quebrado, come folhas verdes e não tem nenhum controle de horário, seguindo um ciclo de vida mais natural.
O que diz a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA)
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s empresas brasileiras seguem referências específicas sobre bem-estar animal determinadas pelo Ministério da Agricultura e por organismos internacionais, a exemplo da Organização Mundial de Saúde Animal. Contamos ainda com protocolos específicos, elaborados pela própria ABPA e pelas empresas, em consonâncias com os padrões internacionais sobre o tema. São questões que envolvem a ambiência, taxa de ocupação, oferta de águas e insumos, entre outros pontos, dentro das diretrizes das Cinco Liberdades definidas pela FAWC (Farm Animal Welfare Council, 1992), livres de medo e angústia; livres de dor, sofrimento e doenças; livres de fome e sede; livres de desconforto; e livres para expressar seu comportamento normal.
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o que diz respeito ao abate, empresas do setor, em parceria com a World Animal Protection (antiga WSPA), promovem treinamentos específicos voltados para o abate humanitário, o Programa Nacional de Abate Humanitário (Steps, sigla em inglês). O Steps é fruto de um acordo firmado em janeiro de 2008 entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a WSPA, com o objetivo de capacitar e treinar pessoal envolvido com o manejo pré-abate e abate de animais de produção no Brasil. Com o objetivo de minimizar o estresse e evitar o sofrimento dos animais desde o transporte até o abate, o Steps foi elaborado respeitando e considerando as novas diretrizes comerciais e legislativas nacionais e internacionais relativas ao bem-estar dos animais de produção.
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oda a cadeia se desenvolveu unificada, graças ao modelo bem-sucedido de produção da avicultura brasileira, o Sistema Integrado. Com tecnologia, trabalho e dedicação, o produtor integrado contribuiu de forma importante para o incremento da produtividade do setor avícola, permitindo, ainda, a preservação do status sanitário como livre de Influenza Aviária — um de nossos grandes diferenciais. O sistema integrado é um grande diferencial brasileiro, com a padronização do processo produtivo, primordial para a obtenção de produtos de excelente qualidade e pela manutenção de nossos status sanitário. Neste sentido, nosso setor comemorou a publicação no Diário Oficial da União da Lei de Integração, que estabelece diretrizes nas relações entre agroindústrias e produtores integrados. Ela atende às demandas das cadeias produtivas e confere mais segurança jurídica nas relações entre produtores integrados e empresas. Foi construída com o envolvimento de representantes das indústrias, dos produtores e de lideranças políticas. É um marco legal, que torna mais claro o papel de cada elo da relação de integração (um sistema com mais de cinco décadas de existência), estabelecendo obrigações e responsabilidades entre as partes envolvidas. Dentre os avanços obtidos com a nova legislação está a constituição de fóruns e comissões paritários, criados com o objetivo de garantir equidade e transparência nas negociações entre empresas e produtores. Uma dessas estruturas é o Fórum Nacional de
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Integração (Foniagro), que define diretrizes para o acompanhamento das relações em âmbito nacional. Há também as Comissões para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração (Cadecs), constituídas para assegurar um espaço paritário, de âmbito regional, de discussão entre Integrado e Integradora. Sobre a “Operação Carne Fraca” a ABPA destaca que o Brasil é reconhecido internacionalmente pela qualidade e status sanitário de seus produtos, que são auditados não apenas pelos órgãos brasileiros como também por técnicos sanitários dos mais de 160 países para os quais exporta. Legislações internas e internacionais — estabelecidas por órgãos como o Codex Alimentarius — norteiam o trabalho de excelências desenvolvido pelas agroindústrias brasileiras. Neste sentido, falhas que eventualmente venham a ser comprovadas são exceções em um modelo produtivo que é referência para o mundo. São questões pontuais, que não refletem todo o trabalho desenvolvido pelas empresas brasileiras durante décadas de pesquisas e investimentos, para ofertar produtos de alta qualidade. A ABPA, desta forma, condena quaisquer práticas comprovadas — as quais, reafirmamos, são pontuais — que impactem negativamente o consumidor do Brasil e do exterior. A associação ressalta, ainda, que todos os problemas detectados serão rapidamente corrigidos pelo setor, intensificando ainda mais os cuidados que já são tomados em prol da qualidade dos produtos.
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Identidade fragmentada: é bem provável que os miúdos que estavam no pacote de 7897408100530 pertençam a outros frangos. construção. A estrutura custa, em média, R$ 400 mil e é financiada em 96 meses. aviário de Marcos tem 1,7 mil metros quadrados. Quem chega à pequena propriedade da família no interior de Apiúna não tem indícios de que ali vivem quase 19 mil frangos. A casa é pequena, com as janelas verdes da frente fechadas para a rua de terra que mantém poeira densa em dia de sol forte. Nos fundos, o carro antigo estacionado na garagem divide espaço com ferramentas e madeiras aproveitadas na lida do campo. Ali, o gato de pelo dourado mimetiza-se enquanto cochila. A meia dúzia de vacas e bois mugem, garantindo que estamos num pequeno sítio no Vale do Itajaí. A alguns metros da casa, numa área separada por cerca e portão, está o aviário. Fora, nenhuma pena, pio ou mato. Grama aparada, terreno organizado. Vê-se brita no chão e lonas azuis ao redor do comprido galpão. É exigência da integradora multinacional que a área seja completamente isolada de outros animais. No sítio é proibida a criação de qualquer outro bicho com penas. Se quiserem, os criadores podem pegar dois ou três frangos da criação, quando estiverem em idade de abate, para consumo próprio. Eles serão descontados na hora do envio ao frigorífico. Farão parte da média de 3,8% de mortandade que atinge a produção. Com controle rígido para evitar doenças, entre elas a salmonela e a gripe aviária, as “peças” podem morrer por motivos diversos. O bem-estar dos frangos é sinônimo de maior produção. Se os animais estiverem em temperatura adequada para o tamanho, dormindo o tempo cronometrado, comendo o que devem, estarão asseguradas as condições para estarem no peso ideal em pouco mais de um mês. Marcos conta que nos últimos anos as condições impostas pelas empresas vêm mudando. Antes, no mesmo aviário, era comum colocar até 25 mil aves. Hoje não passa de 20 mil. Com mais espaço e conforto, de-
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senvolvem-se melhor e mais rápido. É o bem-estar a serviço da indústria. O frango 7897408100530 provavelmente é um Cobb, mesma raça que está na granja de Marcos. Trata-se, na verdade, de uma marca. É propriedade de uma empresa multinacional com sede nos Estados Unidos, líder mundial em genética avícola. A conversão alimentar, ou seja, maior produção de carne com menor quantidade de ração, é o chamariz da Cobb e suas variações presentes nos aviários de Apiúna e em boa parte do mundo. Robusto, ele lembra mais pato do que frango ao andar. Com peito e asas grandes, caminha desajeitado. Um robô de penas brancas, crista vermelha e olhos mecânicos que parece pouco confortável ao usufruir dos seus nove centímetros quadrados para viver. Junto aos outros milhares, ficam resguardados de qualquer intempérie por grossas lonas. As proteções nas paredes laterais foram colocadas para isolar a área e impedir que a luz do dia passe para dentro do aviário. Assim, têm raiar e ocaso automáticos. Às 18h as luzes se apagam e às 2h reacendem. Os 120 gramas diários de ração devem ser ingeridos entre esses dois horários. As lonas também impedem que apareçam sombras. Os frangos do aviário nunca viram nada além de outro igual a ele ou do dono da granja que vez ou outra precisa circular entre os bichos. Caso algum pássaro pouse no lado de fora ou passe qualquer outra coisa que faça sombra, causará pânico entre os frangos. O instinto é de se amontoarem, fugindo do desconhecido. Juntos, podem se matar por pisoteio ou superaquecimento. Algo parecido pode acontecer quando falta luz, daí a exigência de que as granjas tenham geradores. A temperatura é controlada desde a chegada, quando são pintinhos recém-nascidos com 40 gramas. Nesta fase, a média dentro da granja tem de ser entre 30 e 32 ºC. Quando chegam à idade adulta, a temperatura é reduzida aos poucos, até chegar aos ideais 22 ºC. Em caso de falta de luz, o aquecimento causa
estresse aos animais, que podem morrer de superaquecimento dos órgãos internos, mantidos atrás de um enorme e carnudo peito que, encostado no chão por muito tempo num clima inadequado, pode ser fatal. Nas estradas do interior não é raro a energia sair e demorar a voltar, por isso a exigência que acaba onerando a produção. O envio para o frigorífico onde será feito o abate também exige cuidados para contornar a morte fácil. Em cada caixa são colocados no máximo oito frangos. Seguem empilhados ao frigorífico durante a noite ou madrugada, quando é mais fresco e há menor chance de trânsito parado nas rodovias. Em média, um caminhão leva quase 5 mil frangos. Números bem menores são contabilizados na produção de frango orgânico, que segue na contramão do método convencional em larga escala. Com a intenção de oferecer alternativa aos consumidores interessados em alimentos de melhor qualidade, a Chácara do Salto, em Blumenau
A cadeia de integrados 1. Produtores rurais mantêm contratos com empresas. 2. Elas fornecem às propriedades integradas os pintos, rações e remédios. 3. A assistência técnica é fornecida pela empresa, que faz o controle da produção durante todo o ciclo de vida do plantel. 4. A empresa é responsável por buscar os animais e levá-los para o abatedouro. É ela que define quanto pagará pelo quilo do frango vivo, descontando os insumos fornecidos. 5. Após abate e beneficiamento, os frangos são distribuídos aos pontos de venda, servem de insumo para outras produções ou seguem para a exportação.
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A bilionária rede de indústrias que produz a carne do frango começa em aviários rurais com o trabalho familiar dos pequenos produtores.
(SC), tem produção de galinhas. A qualidade da carne e dos ovos está ligada à vida do animal. Criadas num galinheiro coberto e com bebedouro e poleiros, as galinhas têm livre acesso ao quintal com uma amoreira fazendo sombra. Nos seus 90 dias de vida, ciscam milho quebrado, experimentam folhas direto da árvore, alguma amora da época, legumes e folhas verdes produzidas no próprio sítio, que se dedica ao cultivo de hortaliças, frutas e raízes sem aditivos químicos. São produzidas, simultaneamente, no máximo 100 galinhas da raça caipira comum. Não têm nenhum controle de luz ou horário, assim seguem o ciclo natural de vida até que ganhem o peso para o abate. A degola é feita no próprio sítio. A vida de uma galinha pesa no bolso do consumidor. Enquanto o frango produzido em escala industrial custa, em média, R$ 6 por quilo, o orgânico sai por, pelo menos, R$ 18,50 por quilo.
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ara matar uma galinha há dois processos: o primeiro, pelo destroncamento do pescoço; o segundo, pela degola. “Para destroncar o pescoço de um frango, amarram-se-lhe as pernas bem firmemente, o mesmo fazendo às asas. Segure-o, agora, pelas pernas, de cabeça para baixo, e coloque a mão direita bem na junta do pescoço com a cabeça. Force a cabeça, rapidamente, para o lado, destroncando-a. Então, deixe-o pendurado de cabeça para baixo, para o sangue escorrer todo para a cabeça. Se quiser usar o segundo processo, amarre-lhe da mesma forma, as asas e os pés, afie bem a faca e, de um só golpe, firme e rápido, corte-lhe de todo a cabeça, apoiando o frango contra uma superfície resistente. Pendure-o de cabeça para baixo”. As instruções para dar cabo da vida de um galináceo são de 1958, do livro Ana Maria – Receitas Culinárias. Um clássico da culinária brasileira, adequado à época em que era possível ter a própria criação do que vai à panela. Muita coisa mudou desde o tempo em que a técnica para matar
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uma galinha era atividade que fazia parte do dia a dia das cozinheiras domésticas. A mulher seguiu para o mercado de trabalho, dividindo-se entre vários expedientes dentro e fora de casa. Cozinhas ganharam auxiliares importantes: a geladeira e o congelador que prolongam o viço dos alimentos, o forno elétrico facilitou os preparos e o micro-ondas reduziu a cocção a poucos minutos ou segundos. As cidades, especialmente as médias e pequenas, viram a urbanização avançar. Com ela, a redução dos quintais ou a extinção deles, com a popularização dos apartamentos. Criar galinhas em casa no perímetro urbano deixou de ser algo habitual e virou apenas requinte de raros colecionadores de raças. Com 84,4% da população brasileira morando em área urbana, conforme o IBGE, a indústria assumiu a tarefa de criar, matar e vender, já inanimadas e assépticas, unidades iguais ao 7897408100530. Com menos tempo para cozinhar, a indústria alimentícia tratou de resolver os problemas das mulheres. Elas saíram para o mercado de trabalho, mas continuaram — e assim seguem — responsáveis pela alimentação da família, como explica Marilda Checcucci da Silva, antropóloga e professora da Furb dedicada à Antropologia da Alimentação. Comprar o frango congelado ou pré-preparado está no leque de soluções oferecidas pelo mercado para que cozinhar ocupe o menor tempo possível do dia. Poupa o consumidor de pensar, naturalizando a relação com o alimento industrializado. Em geral, a mecânica da alimentação contemporânea ignora o que antecedeu antes de a comida chegar à prateleira do supermercado, explica Checcucci. Ao abrir o pacote vindo da indústria, não sabemos exatamente o que vamos comer. A carne não está fora desse contexto, como mostrou em março a Operação Carne Fraca. Após uma investigação que durou dois anos, a Polícia Federal deflagrou um esquema em alguns frigoríficos que alteravam carne (incluindo frango) e outros itens derivados que chegam ao consumi-
dor. As manipulações eram feitas com químicos considerados nocivos à saúde, segundo a PF, para esconder as más condições da carne, barateando o custo das empresas. As irregularidades incluíam o pagamento de propinas a fiscais do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), que liberavam licenças e afrouxavam a fiscalização. Alguns dos maiores frigoríficos do país, detentores das principais marcas em circulação no mercado, também estavam envolvidos. A alienação em relação à comida industrializada trata de mudar nossas noções. Se antes a galinha que gerava os ovos para alimentar a família vivia solta no quintal e sua morte envolvia algum rito doméstico — como, por exemplo, evitar que as crianças presenciassem a cena — hoje trata-se o frango congelado como algo nascido no pacote com código de barras. “Nós não estamos mais nos dando conta que há um ser ali, que houve uma vida. É uma questão complexa que está envolvida em como estamos tratando a alimentação hoje”. Tanto que, lembra Checcucci, é fácil encontrar crianças e adultos que nunca viram uma galinha viva, apenas inerte no pacote plástico. Florit conclui que, “se o consumidor decide enfrentar os dilemas morais de se alimentar, ele tem que dizer assim: ‘quando se justifica matar um bicho para eu me alimentar?’ Bom, para atender a uma necessidade vital. E se não é uma necessidade vital e se há outras formas de atender a essa necessidade, qual é a justificativa? Então, se esse cidadão realmente decide se confrontar com esse tipo de coisa, ele teria muitas outras alternativas”. Depois de viver confinado e ter uma morte vulgar, 7897408100530 contrariou o destino que lhe foi traçado. Se esperava panela, grelha ou frigideira como sepulcro antes de entrar em alguma boca gulosa e restarem apenas os ossos, decepcionou-se. Pois 7897408100530 tratou de ser, antes de partir numa lixeira qualquer, um modelo fotográfico às avessas ilustrando esta reportagem.
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HISTÓRIA
Na Terra dos Faraós Manoel José Fonseca Rocha Camila da Cunha Nunes
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uando nos propomos a pensar a civilização egípcia, nos deleitamos num universo de imaginações que aguça os nossos sentidos. Afinal, como uma civilização de aproximadamente 7000 anos manifestou, no seu tempo, tanta grandiosidade na religião, na arte, no esporte e na ciência? Muito provavelmente a resposta a essa pergunta encontra origem na própria geografia do Egito Antigo. De acordo com a maioria dos historiadores, o deserto e a grande extensão do Rio Nilo formaram fronteiras naturais que promoveram, juntos, uma proteção que impediu a invasão de outras civilizações, favorecendo a formação de uma sociedade que relegou ao segundo plano a necessidade de atacar e, consequentemente, se proteger. Dito de outra forma, a militarização não fez parte da rotina desse povo, pelo menos durante todo o Antigo Império. Essa realidade contribuiu para a formação de uma sociedade mais preocupada em desvelar os segredos e os desafios do pósmorte, relegando a vida terrena ao segundo plano. O professor T. Rundle Clark, catedrático de História Antiga na Universidade de Birmingham, em seu livro Mith and Symbol in Ancient Egypt (Símbolos e Mitos do Antigo Egito), descreve que o grau de isolamento dos egípcios era tão expressivo que, ao contrário dos babilônios, assírios e judeus, grande parte da cultura, como a escrita hieroglífica, por exemplo, nunca se tornou popularizada além de suas fronteiras. Embora a escrita egípcia não tenha se popularizado para além das suas fronteiras, outros traços culturais tornaram-se comuns a outras civilizações, sobretudo nos aspectos políticos e sociais, e não muito comuns, no aspecto religioso, como iremos discorrer mais adiante.
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Política, arte, esporte e religião no antigo Egito
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o aspecto político, não muito distinto de outras civilizações do seu tempo, o Egito Antigo, durante grande parte da Antiguidade, organizouse politicamente na forma de império, com o poder político fortemente centralizado nas mãos de um soberano, denominado faraó, que significa Casa Grande. Genericamente, esse período é dividido em três grandes momentos, cada um com características próprias. O primeiro período, o Antigo Império, foi talvez o mais expressivo, não o mais importante. Foi nessa época que o povo egípcio lançou os alicerces culturais que norteariam, entre outras coisas, a sua política, a sua arte, e a sua religião. Para o historiador Edward McNall Burns, foi no Antigo Império que os egípcios desenvolveram a concepção de que o faraó, filho do deus-sol, deveria casar-se com uma de suas próprias irmãs para assegurar-se no poder, realidade que explicava não só a consanguinidade no casamento, mas toda uma preocupação em manter o poder político nas mãos da família, assegurando o poder dinástico.
Esse período foi marcado pela ausência de invasões de povos vizinhos, permitindo aos egípcios buscarem, no sobrenatural, uma explicação para a vida terrena, culminando na religião politeísta (crença em vários deuses). A crença no além-túmulo, bem como a ideia da necessidade da mumificação, consolidou-se no Antigo Império, realidade que refletiu diretamente na necessidade da construção de grandes túmulos, comumente representados pelas pirâmides de Gizé. Com o tempo, a fragilidade militar permitiu que, gradativamente, o Egito fosse invadido por povos nômades, contribuindo para o fim deste período. O segundo período, o Médio Império, foi marcado pela fragilidade política e pelas invasões estrangeiras, sobretudo a dos hicsos, povo nômade que vivia no deserto e que subjugou os faraós ao seu domínio. Você deve estar se perguntando: como um povo nômade poderia subjugar uma civilização com uma organização tão complexa?
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Mstyslav Chernov/Wikimedia Commons
Todos os anos o Egito recebe milhares de turistas que visitam, entre outros monumentos da Antiguidade, a icônica Esfinge de Gizé. Dois motivos explicam o sucesso dessa invasão: o primeiro, como já foi mencionado, reside no fato de os egípcios não possuírem exércitos; o segundo, na competência militar dos hicsos, possuidores de cavalos e carros de guerra. A dominação dos hicsos promoveu um período de tirania estrangeira, fato que envergonhou a nobreza egípcia, levando-a a esquecer as rivalidades e a unir-se a uma causa comum — a expulsão dos estrangeiros e o restabelecimento do poder dos faraós, fato que se concretizou. Com a expulsão dos hicsos e a retomada do poder dos faraós, o Egito passou a viver um novo momento de sua história política, denominado pelos historiadores de Novo Império. Cabe registrar ainda que foi no Médio Império que os hebreus chegaram ao Egito e acabaram escravizados por 400 anos. O Novo Império pode ser compreendido como um período em que os egípcios passaram a se preocupar com a defesa e as invasões de outras civilizações, mudando a concepção de povo pacífico e essencialmente religioso que parece ter vigorado
durante todo o Antigo Império e parte do Médio. O fato é que a invasão dos hicsos incentivou os egípcios a desenvolverem exércitos que pudessem proteger o território. Grande parte dos historiadores argumenta que os exércitos também incentivaram os egípcios a dominarem civilizações próximas, tornando-os, por sua vez, uma nação imperialista. Dominaram territórios que se estendiam desde as águas do Eufrates, na Mesopotâmia, às águas do rio Nilo. O espírito imperialista é apontado como uma das principais causas da decadência do império, pois os egípcios foram progressivamente dominados por diversas civilizações de seu tempo, sobretudo pelos assírios, persas, gregos e romanos.
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urante o reinado dos faraós, sobretudo no Antigo Império, os egípcios desenvolveram uma arte e um simbolismo religioso capaz de seduzir multidões até os dias de hoje. Quando nos propomos a compreender a arte egípcia, é imprescindível não dissociá-la das concepções religiosas, bem como do poder político exercido pelos faraós. Os grandes
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templos, túmulos e esculturas estão diretamente relacionados com esses fatores. Um aspecto que merece ser considerado é o fato de não se tratar de uma arte pela arte, uma vez que não possuía caráter econômico, tal como concebemos hoje. A arte egípcia manifestou-se de forma majestosa na Arquitetura, na Escultura e na Pintura, cada qual com seus significados muito próprios. A Arquitetura, por exemplo, é considerada a mais significativa das três manifestações artísticas, pois estava diretamente associada à crença no além-túmulo e ao poder centralizado dos faraós. Um exemplo são as pirâmides de Gizé: Quéops, Quéfren e Miquerinos, construídas ainda no Antigo Império. A primeira é considerada a Grande Pirâmide, medindo aproximadamente 160m de altura. De acordo com alguns historiadores, levou mais de três décadas para ser construída. Sua suntuosidade esteve associada aos desejos do faraó, que mandou construí-la para ser sua morada final. Estudiosos e curiosos comumente se perguntam: as pirâmides serviam somente como túmulos? Existem várias explica-
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Ricardo Liberato/Wikimedia Commons
A Arquitetura é uma das grandes manifestações artísticas do Egito, como exemplificam as Pirâmides de Gizé (Quéops, Quéfren e Miquerinos).
ções para justificar a construção das pirâmides, como as de ordem política e social, mas os historiadores são unânimes em afirmar que o fim último era para servir de morada final ao faraó. Outro aspecto é que o seu tamanho e suntuosidade variavam de acordo com o poder do faraó que a mandava construir. Igualmente à arquitetura, a escultura possuía um caráter religioso. Os escultores, em geral, se ocupavam de esculpir os deuses e os faraós. Merece destacar que os corpos esculpidos eram representados de frente e não passavam emoção alguma, fato que caracterizava, de certa forma, uma preocupação em idealizar, e não em representar a verdadeira forma física e facial da pessoa esculpida. O objetivo era demonstrar um corpo forte e uma face serena. Se você conseguir lembrar os livros de História dos tempos da escola, possivelmente virá à sua cabeça algumas imagens representando pessoas com cabeça de animal. Essas imagens, inclusive, não se preocupavam em definir ou diferenciar um corpo feminino de um masculino. A pintura tinha um caráter complementar à arquitetura e à escultura. Com técnicas em baixo-relevo, geralmente serviam para ornamentar templos, capelas funerárias, sempre com sentido mágico e associado à imortalidade. A “lei da frontalidade” era muito presente, onde o rosto era representado de frente e o restante do corpo de perfil. Vale destacar que se caracterizava pela ausência da tridimensionalidade. Diferentemente dos gregos, não buscavam representar o corpo humano tal como ele é. É possível perceber que a arte era carregada de sentimento religioso, e o sen-
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timento religioso, por sua vez, intimamente ligado à imortalidade da alma. Alguns historiadores argumentam que a crença no além-túmulo era tão presente que os egípcios antigos passavam a maior parte da vida pensando na morte.
A militarização não fez parte da rotina desse povo, pelo menos durante todo o Antigo Império.
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atividade física, pouco comentada nos livros didáticos, também fazia parte da cultura dessa civilização. De acordo com os vestígios dos hieróglifos e das pinturas expressas em tumbas e hipogeus, esteve associada à força e ao poder político dos faraós. Há evidências arqueológicas da prática de alguns exercícios ginásticos, arco e flecha, corrida, salto, arremessos, corrida de cavalos, esgrima, luta, boxe, natação, remo, corridas de cavalos, bem como das danças e jogos com bola. A prática da corrida, por exemplo, esteve associada a um meio de proteção, vida militar, ritual religioso ou político. Isso porque os mensageiros eram corredores da infantaria que acompanhavam pessoas poderosas que se locomoviam em carruagens puxadas por cavalos onde estava o faraó. A corrida também era utilizada como parte de um ritual no festival de ação de graças de Heb Sed. O Hed Sed, no início, era um festival militar onde
prisioneiros, antes de serem executados, corriam ao redor das fronteiras do estado. Posteriormente, com o intuito de demonstrar sua vitalidade e capacidade de governar, antes mesmo da sua coroação e, em alguns momentos, durante o seu governo, somente o rei corria. A corrida também estava associada a um ritual religioso, sugerindo ser uma atividade que servia para se comunicar com os deuses. A luta também parecia ser uma prática constante em meio aos egípcios. Ao lado da corrida, é provavelmente o esporte de competição mais antigo do mundo. Encontram-se hieróglifos exibindo cenas de combate corporal, lutadores e diferentes tipos de lutas que datam de 2250 a.C. No templo e túmulo Beni Hasan, foram encontradas pinturas com mais de 200 lutadores que demonstram fases de jogos e lutas corporais. As figuras estão pintadas em vermelho e preto, o que possibilita a distinção dos lutadores, suas posições e seus golpes. A esgrima é outro esporte que parece ter sua origem junto à civilização egípcia. No túmulo de Sargão foi encontrada uma das primeiras lâminas de espada. No templo de Medinet Mabu, datado de 1190 a.C., construído pelo faraó Ramsés III, há uma pintura em relevo que retrata uma competição de esgrima para celebrar uma vitória militar. No caso da prática do remo, os “barqueiros” competiam no rio Nilo com seus barcos para conquistar a honra de participar dos rituais funerários do faraó. Não obstante as demais características culturais dos egípcios, os resquícios demonstram que há uma estreita relação entre a prática de atividades físicas, religião e arte.
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Przemyslaw “Blueshade” Idzkiewicz/Wikimedia Commons
A maioria dos estudiosos reconhece que poucas das civilizações antigas sobrepujaram a egípcia em termos de política, arte e cultura religiosa.
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o aspecto religioso, os egípcios ficaram conhecidos por possuírem uma profunda crença na vida além-túmulo, porém acreditavam que para atingi-la, os corpos deveriam permanecer conservados juntamente com a alma. Para eles, corpo e alma eram uma coisa só. Em outras palavras, acreditavam que o processo de decomposição do corpo era acompanhado pela decomposição da alma. Essa crença gerou um longo e complexo ritual de preparação do corpo com o intuito de mantê-lo intacto — o processo de mumificação. Mas numa sociedade onde existiam camadas sociais privilegiadas e outras nem tanto, a quem era reservado o direito de mumificação? Ao que se sabe, todas as camadas sociais possuíam o direito à mumificação, porém o processo era bem distinto entre as classes sociais. Os “ricos” desfrutavam de um processo mais completo e demorado, diferente dos “pobres”. A historiografia indica que o embalsamento dos ricos era mais complexo e minucioso. Com a ajuda de um ferro curvo, extraíam o cérebro pelas narinas, e com uma pedra cortante realizavam uma incisão no flanco e retiravam os intestinos, que eram purificados com vinho de palmeira. Depois enchiam o ventre de mirra pura triturada, de canela e de todos os outros arômatas. Depois salgavam o corpo, cobrindo-o de natrão durante 70 dias, quando então lavavamno e enrolavam-no em faixas de linho fino, com uma camada de borracha com cola. Realizado esse processo, o morto era colocado num estojo de madeira em forma de figura humana — o conhecido sarcófago.
Após todo esse processo, o corpo era guardado no interior de uma câmara funerária, localizada no interior de uma pirâmide. O embalsamento do pobre era mais simples, pois o processo consistia basicamente em abrir os corpos para desinfetar os intestinos e mergulhá-los no natrão, uma substância química muito semelhante ao sal. Após ficar mergulhado durante 70 dias, entregavam o corpo aos familiares.
O fato é que até hoje homenageamos uma força superior, e buscamos nessa força uma forma de justificar as ações humanas.
A crença na imortalidade encontra explicações no “Mito de Osíris”. Segundo a lenda, era uma pessoa respeitada e ouvida pelo seu povo, porém invejada pelo seu irmão Set, que, desejando seu lugar como líder, matou e esquartejou o corpo de Osíris. Ísis, mulher e também irmã de Osíris, juntou os pedaços do corpo e milagrosamente restituiu-lhe a vida. Mais tarde Hórus, filho de Osíris, num ato de vingança, matou seu tio Set. Esse mito, durante algum tempo, esteve associado às cheias e às vazões do Rio Nilo, e consequentemente às atividades agrícolas. As vazões representavam a morte de Osíris, momento do plantio e da colheita; e as cheias, a ressurreição, pois as águas inundavam as terras que
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margeavam o rio, fertilizando-as para a prática da agricultura. Mais tarde o mito foi assumindo um caráter religioso mais complexo, sendo utilizado como explicação para a ressurreição. Cabe ressaltar que, nesse mito, encontramos explicações não só para a crença no além-túmulo, mas também na consanguinidade do casamento entre a nobreza. Consideramos que poucas civilizações sobrepujaram, em realizações, a civilização egípcia. Preservar a alma, como forma de preservar o corpo para atingir o pós-morte, assim como o Mito de Osíris, podem nos parecer absurdo, mas ao bem da verdade, serviram para construir toda uma grandiosidade arquitetônica e artística que desperta curiosidade e serve como fonte de estudos, não só para os religiosos do ocidente e oriente, como para as pessoas mais céticas do mundo religioso. Frutos do seu próprio tempo, todas as religiões, até nossos dias, são formadas por práticas e rituais que lembram muito as civilizações passadas. Até hoje buscamos, por intermédio da religião, uma forma de comunicação com Deus. Acender velas, subir escadas de joelhos, praticar a comunhão e a confissão, bem como assumir posturas de interlocutores entre Deus e os fiéis, são comportamentos que possivelmente pareceriam estranhos aos olhos dos egípcios antigos. O fato é que até hoje homenageamos, de alguma forma, uma força superior, e buscamos nessa força uma forma de justificar as ações humanas. Indo mais além: assim como no Antigo Egito, as próprias características ligadas ao ritual da morte estão associadas às condições sociais e econômicas do seu próprio tempo.
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PERFIL
Um Soropositivo no Século XXI Júlia Schaefer
“Eu me olhava no espelho e perguntava: até quando vou sobreviver?” Flávio Fortunato Cardoso, 38 anos, há 11 vivendo com HIV
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le criou coragem e falou: — Existe uma situação, Caio. Sou soropositivo. A partir de agora, você tem todo o direito de dizer que a gente continua como amigos, que não se sente bem. Esperando receber gratidão pelo aviso, ou ao menos compreensão, Flávio foi surpreendido. E da forma mais ríspida possível. — Quando me encontrar na rua — respondeu Caio —, atravessa e não olha na minha cara. Se você passar por mim, eu te quebro de pau. E foi embora. A resposta de Caio atingiu Flávio com tanta brutalidade que ele passou a se questionar. Com quantas pessoas Caio já se relacionou que poderiam ter HIV, mas nunca falariam? Flávio presumiu que o rapaz teria uma atitude diferente, já que estudava e parecia ser alguém esclarecido. Foi o oposto que aconteceu. “Então é melhor ficar quieto?”, desabafa Flávio. “É melhor colocar a vida do outro em risco? Infelizmente, ainda tem gente que prefere não saber de nada”.
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barulho da máquina de costura ditava o início de um novo dia de trabalho, quando o rapaz se sentava e começava a organizar as intermináveis pilhas de tecido em cima da mesa. Logo depois, unia dois pedaços de pano, puxava a alavanca da máquina e os posicionava abaixo da agulha. Em pouco tempo uma camiseta estava pronta. Neste ritmo a manhã passava, até que o ruído das agulhas foi interrompido por uma ligação. Cardoso doava sangue regularmente. Para a sua surpresa, o telefonema dava a notícia de que deveria comparecer ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), pois alguma inconformidade havia sido encontrada em seu sangue. Na época, ele estava com 27 anos. Desligou o telefone. A partir de então, nem o barulho ensurdecedor das máquinas conseguia ser mais alto que os seus próprios pensamentos. Não conseguiu mais trabalhar. Pediu licença à supervisora e foi rapidamente ao Hemosc. Assim que chegou, os profissionais informaram que a suspeita era de uma doença infectocontagiosa, que são doenças de fácil transmissão causadas por um agente pa-
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Nathan Neumann
Com o diagnóstico em mãos, Flávio Fortunato Cardoso recebeu um conselho da sua psicóloga: não revelar a soropositividade a ninguém.
togênico, normalmente um vírus ou bactéria. Foi encaminhado ao Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), onde, de acordo com Flávio, uma psicóloga do Serviço de Saúde lhe recebeu com a seguinte pergunta: “você não sabe que exame de HIV não previne o HIV?” Ele respondeu que sim, e explicou que havia doado sangue e recebido a notificação. “Com um tratamento assim”, diz Flávio, “a gente vê por que tanta gente acaba desistindo de fazer o teste de Aids”. No meio do dia que transformou completamente a sua vida, realizou o primeiro exame para diagnóstico de HIV, chamado Elisa (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay), e passou por um desgastante
tempo de espera. “Hoje em dia ninguém passa por tortura. Mas eu passei”, diz, referindo-se aos três meses percorridos entre os testes e o resultado. Atualmente, no Centro Especializado em Diagnóstico, Assistência e Prevenção da cidade, é possível obter a resposta em aproximadamente meia hora. “Qual foi a minha primeira reação?”, recorda Flávio. “Não, eu não quis me jogar da ponte, não caí em choro e desespero. É como se o chão tivesse aberto, o Flávio entrado e sumido por algum tempo, em estado de choque, eu acho”. Com o diagnóstico comprovado, ele se lembra do último conselho que recebeu da psicóloga. A terapeuta sugeriu que não
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revelasse a sua soropositividade a ninguém. Argumentou que o rapaz não sabia como os amigos e a família iriam receber a notícia, e que o vírus, naquele momento, não faria mal algum, ao contrário de uma depressão. Ele seguiu a recomendação. Mas hoje, no seu caso, tem certeza de que essa não foi a melhor decisão. “Em vez de as pessoas se afastarem do meu convívio, eu me afastei do delas. E acabei entrando numa depressão do mesmo jeito”. Algum tempo antes da descoberta do vírus, ele apresentou um sintoma. Teve Mononucleose, mais conhecida como a “doença do beijo”. As amídalas incharam, sentiu febre e fadiga. Entretanto, assim como grande parte das pessoas que
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conta. “Saía, fazia minhas coisas, voltava pra casa, me trancava no quarto e chorava de novo. Porque, para mim, eu ia morrer. Ia emagrecer, definhar e morrer”. Ele não sentia mais fome, e realmente começou a perder peso. Sempre que passava em frente ao espelho, via no lugar de seu rosto uma caveira. “Eu levava em consideração aquilo que a psicóloga disse e me imaginava contando para a minha mãe e ela me mandando sair de casa. Aí eu não sabia o que fazer”. Nessa época, ele estava na universidade, fazia o curso de Administração com ênfase em Recursos Humanos, mas trancou a matrícula porque acreditava que a doença não o deixaria completar a faculdade.
Lembrava e relembrava todos os acontecimentos passados à procura de uma pessoa. O culpado.
contraem Aids, tratou da inflamação e ela passou sem grande demora. Este período é chamado por especialistas de “fase aguda” da infecção, e ocorre entre duas e quatro semanas depois do contágio. Mesmo sem poder falar sobre a doença para as pessoas de sua convivência, Cardoso entrou em contato com todos com quem se relacionara nos 12 meses anteriores. “Ainda que eu não soubesse de quem contraí o vírus, procurei avisar que o exame deu positivo e aconselhei que eles também fizessem o teste”, afirma. Segundo ele, todas as pessoas que foram alertadas entraram em contato para dizer que haviam feito o teste e estava tudo bem. A solidão e o medo de morrer fizeram com que Flávio passasse os dias como um zumbi. “Eu chegava do trabalho, me trancava no quarto e chorava, chorava”,
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Entre todo esse misto de sensações assustadoras, ele ocupava a cabeça em tentar descobrir quem foi que lhe transmitiu o vírus. Lembrava e relembrava todos os acontecimentos passados à procura de uma pessoa. O culpado. Essa angústia permaneceu em seus pensamentos por cerca de dois anos, até que a maturidade fez com que chegasse à conclusão de que ele, acima de tudo, é o maior responsável pelos incidentes em sua vida, e que não adiantaria culpar uma pessoa, ou mesmo Deus, por ter deixado acontecer. “Eu fui por livre e espontânea vontade”, reconhece. “Sabia me proteger, mas não me protegi”.
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ntão as coisas se tornaram ainda mais complexas. Não bastasse o abalo emocional de Flávio, os efeitos colaterais começaram a se manifestar. A herpes-zóster, uma erupção cutânea com bolhas causadas pelo vírus varicela-zóster, causou feridas com até 40 centímetros de comprimento que envolveram o corpo de Flávio e chegaram a atingi-lo no rosto. “Eu me olhava no espelho e perguntava: até quando posso sobreviver? Até quando eu vou aguentar?” Em janeiro de 2008, Flávio começou a tomar o coquetel antirretroviral. E foram nesses primeiros momentos, sem poder contar nada a ninguém, que ele perdeu oito quilos. “O médico ficou preocupado”, diz. “Se eu perdesse mais dois quilos, teria
que ser internado”. Neste período, o rapaz não conseguia mais trancar o seu sofrimento dentro do quarto porque a mãe estava percebendo. Até que um dia ela perguntou: — Flávio, por que ficas no quarto chorando o dia inteiro? — Nada. — O que está acontecendo? Fala que a mãe te ajuda. — Não, a mãe não vai conseguir me ajudar. Ninguém pode me ajudar. — Filho, você está doente? — Estou. — É a Aids? — É sim, mãe. Eu tô com HIV. E de uma forma surpreendente, ela abraçou o filho para prometer: — Se tu pensas que eu vou te mandar sair de casa, que eu vou te abandonar, estás muito enganado. Vou cuidar de ti até o dia da tua morte.
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ão foi fácil para Rosa Maria Fortunato Cardoso aceitar a homossexualidade do filho. Passaram-se anos desde a descoberta do fato até aquilo que se pode chamar de convivência normal. Quando tudo estava bem, surge a notícia do HIV. “Mas fui aceito com o amor que eu queria que ela tivesse manifestado quando disse: ‘sai de casa porque eu não quero filho veado’”, diz Flávio. Agora, na luta contra o vírus, a mãe se mantém como o seu principal alicerce. Aceitou ficar ao seu lado a qualquer custo, passando por todas as intempéries. Hoje os dois moram na mesma casa, em andares diferentes. “Ela gosta da independência dela ali em cima e eu fico aqui embaixo”, explica Flávio. “Assim a gente cuida um do outro e ninguém se mete na vida de ninguém”. Um dos principais obstáculos a superar foram os dois primeiros meses de medicação antirretroviral. Na visão de Flávio, eles foram, sem dúvida, os piores meses da sua vida. Como a sua imunidade estava muito baixa, começou com um coquetel de resgate. Este coquetel era composto por Kaletra, AZT e 3TC. O principal efeito colateral do Kaletra é a diarreia. “Daí a gente descobre que é real aquela piada sobre a diarreia ser a coisa mais rápida do mundo” brinca Flávio. “Não é a luz, não é o som, não é o pensamento. Porque quando você toma Kaletra, você não tem tempo de pensar, de acender a luz, nem mesmo de sair correndo”. No início, Flávio tomava seis comprimidos por dia. Hoje ingere apenas um, e os efeitos colaterais são menores. No entanto, Flávio acrescenta que de vez em quando é necessário trocar de medicação por ocorrer alguma reação ou pelo simples fato de o corpo ter se acostumado com o remédio. Este período de troca é sempre difícil.
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Boletim Epidemiológico de 2016, produzido pelo Ministério da Saúde, alerta para dados preocupantes. O número de pessoas convivendo com HIV entre 15 e 19 anos, de 2007 a 2016, passou de 4,3% para 5,5%. Já no caso de pessoas que possuem o vírus entre 20 e 24, o índice aumentou de 13,5% para 18,8%. Na cidade de Blumenau, onde Flávio reside, em 2016, 372 pessoas descobriram ser HIV positivo. Este número resulta numa média de 31 casos por mês, ou seja, uma descoberta por dia. “Eu poderia me esconder”, explica, “ser mais uma pessoa com medo, sem dizer para ninguém que tenho o vírus, ou tentar, de alguma forma, prevenir as pessoas”. Por esse motivo, Flávio não quer se calar. A sua coragem de auxiliar os jovens a pensar um pouco mais a respeito da doença faz com que ele seja chamado para dar palestras e contar a sua história. Para ele, ouvir um soropositivo explicar sobre como é difícil ter que passar um mês com dor de cabeça por causa do remédio é mais eficiente do que apenas aprender como a doença reage no corpo em uma aula comum. E, sobretudo, a atitude de
falar sobre a doença grita contra o preconceito. Quer que as pessoas o conheçam, e não se sintam inseguras, pois o vírus não pode ser transmitido pelo beijo, pelo abraço. “Eu sou uma pessoa de uma cidade normal”, diz, “que ninguém conhece, mas eu vou dar a minha cara a tapa e falar: ei, eu sou uma pessoa normal. Você não precisa correr de mim”. Porque o preconceito dói. Torna-se um fardo a carregar. Por diversas vezes, de tanto sofrer, Flávio já se perguntou se esse esforço todo valia a pena. No entanto, toda essa questão se rompe quando, ao sair de uma palestra, algum jovem pede para lhe dar um abraço. “Isso é válido por todo o preconceito que eu já sofri durante esses 11 anos”. O ano de 2016 foi de perdas. Vários amigos soropositivos que conheceu através das redes sociais se foram. Isso mexe com as suas emoções mais profundas, principalmente quando reflete e chega à conclusão de que o próximo pode ser ele. Diz que “é inevitável que nesses momentos a gente fique mais abalado, mas eu acho que aprendemos a viver mais de perto com a morte, a transformá-la em companheira”.
Nathan Neumann
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esde criança, Cardoso tinha uma afinidade muito grande com a religião. Todos os domingos, a igreja era passagem obrigatória. Quando o menino chegava em casa depois da celebração, rezava toda a missa novamente. Por isso, assim que fez 13 anos, passou sete meses no Seminário Sagrado Coração de Jesus, em Corupá (SC). Só voltou para casa porque a família não conseguiu bancar o custo dos estudos. Entre as memórias do tempo em que foi seminarista, tem vivo em sua mente o fato de que desde o primeiro dia os fráteres diziam que ele tinha um jeito afeminado. “Eu não fazia ideia do que era afeminado”, afirma entre risos. “Fui descobrir depois que virei uma ‘bicha velha’”. Ter passado meses em um seminário pode fazer você imaginar que ele continue sendo católico. Mas, na verdade, a sua afinidade com a religião não se afunilou no catolicismo, fazendo com que, há cerca de três anos, Cardoso iniciasse o curso de Ciências da Religião na Universidade Regional de Blumenau (FURB). “Eu pensei: bem, já se passaram nove anos e ainda não morri”. Então decidiu tornar a sua convivência com o HIV algo que possibilitasse o aprendizado. Seu desejo é dar aulas de Ensino Religioso, mas de um jeito diferente. Não explorando apenas as religiões cristãs, mas também as africanas, afro-brasileiras, indígenas, orientais e semitas. Também quer buscar esclarecimento sobre como as religiões veem o vírus da Aids. E assim, como um trabalho de formiguinha, tentar plantar uma semente de conscientização nos jovens.
O ano de 2016 foi de perdas. Vários amigos soropositivos que conheceu através das redes sociais se foram.
Flávio parece ser uma tradução da sensível e melancólica canção de Bruce Springsteen, Streets of Philadelphia. A melodia serviu de trilha sonora para o filme Philadelphia, onde o ator Tom Hanks encena a vida de um soropositivo que perdeu o emprego e luta por justiça. Depois de tanto conhecer as mais diversas expressões religiosas e estudá-las na universidade, Cardoso escolheu tomar como sua o Candomblé. Dentro da Casa de Santo que frequenta, em Rio do Sul (SC), se sente bem recebido. Renova suas energias. Vive cada dia no interior de sua fé. “E de repente estou dentro do barracão (local religioso) e vejo uma folha de iroko (folha sagrada do candomblé) cair. Comecei a pensar em por que as árvores caem, e na utilidade de saber esquecer certas coisas. Na necessidade de você deixar certas escamas caírem, porque não têm mais feitio. Por que vou continuar a carregar rancor, mágoa, raiva, qualquer ligação
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negativa por alguém que um dia eu tive um envolvimento e contraí o HIV? Esse é um sentimento que não faz mais parte da minha vida. É uma folha caída”. No início de 2017, Flávio recebeu a notícia de que foi aprovado em um processo seletivo para professores admitidos em caráter temporário, também em Rio do Sul. Não descarta de seus planos abrir uma ONG de auxílio a pessoas que vivem com Aids. Ele ainda pode conquistar o mundo.
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ATUALIDADE
Os donos da pós-verdade Evandro de Assis
Sem envolver o público na melhoria da informação que circula online, mentirosos como Donald Trump prevalecerão
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s quase dois anos de bravatas eleitorais que culminaram na escolha de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos chamaram à responsabilidade empresas de mídia, da nova e da velha. Boatos, mentiras deslavadas travestidas de jornalismo e teorias da conspiração envenenaram o ambiente democrático, beneficiaram quem enxergou oportunidade na confusão e expuseram as fraquezas dos filtros de informação hoje disponíveis. Nunca se falou tanto em pós-verdade, conceito que exprime um ecossistema informativo em que tudo e nada pode ser entendido como real. A sensação de segurança proporcionada por instituições críveis se esvai e descobrimos que, na verdade, a verdade não passa de uma ideia filosófica inalcançável para os limitados sentidos humanos. Para jornalistas como este autor, admitir a pós-verdade significa abrir mão de grande parte do discurso pró-objetividade que fundamenta a profissão. Não existe o “espelho da realidade” ou coisa que o valha, mas apenas tentativas de mediação da realidade experimentada por terceiros. Reconhecer que ninguém é dono da verdade, porém, não é o mesmo que aceitar toda e qualquer sentença como válida. Como o próprio Barack Obama observou ainda antes da tragédia eleitoral para seu partido, um físico ganhador do Nobel e uma página de Facebook mantida por lobistas do petróleo não podem ter pesos equivalentes na discussão sobre o aquecimento global. Não podem, mas agora têm. Facebook e Google ditam os fluxos de informação, e embora tenham anunciado medidas (tímidas) para aprimorar algorítmos contra a disseminação de boatos e notícias falsas, continuam território fértil
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para a desinformação. Na confusão informativa em torno das eleições americanas sobrou também para a imprensa. Observadores da mídia criticaram jornalistas e veículos por não fazerem o suficiente para denunciar as contradições de Trump e entender os seus eleitores. Uma parte importante da sociedade americana estava à margem da mídia. Seria preciso ouvi-la.
Quatro em cada dez classificaram como verdadeiro um texto falso que trazia informações sem citar a fonte. Foi o que fez a âncora da CNN Alisyn Camerota. Ela reuniu um grupo de trumpistas após a eleição e os provocou a provar a acusação de que milhões de pessoas votaram ilegalmente (em Hillary Clinton) — invenção do próprio Trump para justificar a derrota no voto popular. O diálogo, que viralizou no YouTube, beira à surrealidade: — Votar é um privilégio neste país, e você precisa estar legal para votar — acusa uma eleitora. — Não como na Califórnia, em que três milhões de ilegais votaram. — Onde você conseguiu sua informação? — Na mídia! — Qual mídia? — CNN, acredito. — A CNN disse que 3 milhões de pessoas votaram ilegalmente na Califórnia? — questiona Camerota, incrédula. — Por toda a mídia! — [...]
— Você ouviu o presidente Obama dizer que pessoais ilegais poderiam votar? — Sim! — respondem os cinco convidados. — Onde? — Dê um Google! — diz outra eleitora. — Você pode encontrar isto no Facebook. A apresentadora consulta o celular e após alguns minutos ataca: — Obama não disse nada disso, basta ver a transcrição do discurso. — Eu acredito que houve fraude de votação em alguns estados — insiste a eleitora. — Três milhões de pessoas? — A Califórnia autorizou. — Você acredita que a Califórnia autorizou uma fraude? — Acredito que houve fraude neste país.
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comportamento dos eleitores de Trump não é novidade para a ciência. Há décadas pesquisadores de áreas como neurologia, psicologia e sociologia procuram entender por que as pessoas tendem a ignorar informações que ponham em dúvida convicções arraigadas. Diversos estudos convergem para a ideia de que o nosso cérebro prefere trilhar caminhos já pavimentados a fazer esforços cognitivos contra o que já conhecemos. Uma pesquisa da consultoria YouGov sugere que quando uma reportagem jornalística contradiz um líder político, os seguidores dele tendem a descartar a notícia. Eis a polarização em seu estado mais cru. “Como não temos como saber o que é a verdade objetiva, então vamos nos agarrar às armas e evidências que temos. Vamos ignorar os fatos porque, afinal, ninguém sabe o que é a verdade”, explicou ao New York Times o professor de Filosofia
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Gage Skidmore/Wikimediacommons
Boatos e teorias da conspiração envenenaram o ambiente democrático americano, levando uma personalidade controversa como Donald Trump ao poder.
da Universidade de Connecticut, Michael Lynch. Então a pergunta: como e para que fazer jornalismo se os espectadores não estão interessados em informações que ponham em dúvida o pré-concebido? Procurar saídas nessa encruzilhada é essencial para as democracias do século XXI, porque a combinação de fatores que vêm gerando desinformação e incerteza em diferentes países tende a se agravar. Em primeiro lugar, os cidadãos cada vez mais apoiam suas opiniões em informações que coletam online e não há nada que leve a crer numa reversão dessa tendência. Conforme o Reuters Institute Digital Report 2016, uma parcela crescente das populações de 26 países pesquisados tem com a timeline do Facebook a mesma relação que mantinha com uma capa de jornal. Ou seja, o Vale do Silício terá ainda maior responsabilidade sobre a qualidade do ambiente democrático. Segundo: a crise no modelo de negócios da imprensa tem deixado comunidades inteiras sem jornalismo independente, com veículos fechando as portas ou reduzindo drasticamente a cobertura. Garantir meios de se produzir informação confiável não é um problema restrito às empresas de mídia, como se pode perceber, e os avanços têm sido pouco animadores. Terceiro: governos, empresas e organizações com os mais diversos interesses se adaptam rapidamente aos fluxos de informações online e criam mecanismos cada vez mais eficazes de propaganda. O britânico The Guardian listou casos em que notícias falsas geraram impactos em diversos países. Há indícios, por exemplo, de que o governo russo ajudou a difundir na Alemanha a informação de que uma adolescente fora estuprada por refugia-
dos em Berlim. O assunto ajudou a inflar argumentos xenófobos da extrema direita alemã e atingiu Angela Merkel, que busca a reeleição. No Brasil, o clima em que se efetivou o impeachment da presidente Dilma Rousseff estava contaminado por mentiras disparadas e compartilhadas por interessados na queda da petista. Quando o procedimento no Congresso avançava, em abril, eram falsas três das cinco notícias mais compartilhadas no Facebook brasileiro.
Como e para que fazer jornalismo se os espectadores não estão interessados em informações que ponham em dúvida o pré-concebido?
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inda que Facebook e Google consigam tornar irrelevantes publicações maliciosas, e que se encontre um meio de sustentar economicamente projetos jornalísticos online, reduzindo os danos de ações deliberadas de desinformação, cabe aos jornalistas enfrentar talvez a tarefa mais difícil: convencer as pessoas de que nenhuma crença ou convicção as isenta de pensar, duvidar e questionar a realidade mediada. Antes encastelados pela escassez de informações, jornalistas e veículos mantiveram seus procedimentos ocultos do público, postura corporativista que fazia parte do esforço de legitimar a profissão. O problema é que com a queda dos portões guardados pelos jornalistas, os usuá-
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rios da mídia tiveram acesso ao poder de informar sem refletir sobre a responsabilidade inerente. Só 39% de 1.111 brasileiros ouvidos pela empresa de pesquisas Bonus Quest afirma checar as fontes das informações que consomem, um hábito básico para melhorar a qualidade das notícias em circulação. Outra pesquisa, esta nos Estados Unidos, com mais de 7 mil alunos do ensino fundamental à faculdade, demonstrou que 80% dos jovens não conseguem diferenciar reportagens jornalísticas de matérias pagas por patrocinadores. Quatro em cada dez classificaram como verdadeiro um texto falso que trazia informações sem citar a fonte e juntava pouquíssimas evidências sobre o que sustentava. É necessário compartilhar com o público práticas, normas e dilemas da atividade de separar o joio do trigo. Um processo educativo em que jornalistas estejam dispostos a ensinar e aprender, com transparência e disposição para ouvir e adaptar-se. Mais do que expor (e até ridicularizar) o discurso contraditório de cidadãos desinformados, é preciso transformá-los em aliados do jornalismo, e não adversários. Como diz o professor Rogério Christofoletti, do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, “organizações e profissionais precisam estar dispostos a abrir um arcabouço ético antes confinado; aos usuários cabe aceitar participar desse jogo, inclusive aumentando sua participação na discussão e tomadas de decisão sobre os valores mais relevantes e as práticas mais recomendadas e aceitáveis”. Sem o envolvimento dos verdadeiros interessados na melhoria da esfera pública, não há Mark Zuckerberg que dê jeito na confusão em que estamos metidos.
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MEMÓRIA
FRITZ MÜLLER Cezar Zillig
Pequena descrição de
um grande homem
Palavras de Alfred Möller, fiel e incansável biógrafo de Fritz Müller: “Diante de nós está o perfil de um cidadão alemão que por toda sua vida propugnou pela liberdade e pela verdade. Em nome destes ideais ele sacrificou tudo o que é desejável e costuma ditar as ações do homem comum. Nem bens e conforto, nem fama e notoriedade faziam-no desviar de seus propósitos; não se intimidava diante dos poderosos ou temia o julgamento popular. Se relacionava com seus semelhantes com bondade e cordialidade.”
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Collection of Museu Ecologia FM
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Acervo AHJFS
Entrada da farmácia onde Fritz Müller trabalhou em seus anos de juventude: uma excelente atividade de introdução à ciência.
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ritz Müller-Desterro é a maneira como ficou conhecido no meio acadêmico do século XIX o Dr. Johann Friedrich Theodor Müller. Ele nasceu em 31 de março de 1822 numa aldeia da Turíngia chamada Windischholzhausen (Windischholz-hausen!), próximo à cidade de Erfurt, Alemanha central. Desde sua infância demonstrou grande atração pela natureza, no que era estimulado pelo pai, um pastor protestante. Doutorou-se em filosofia e fez o curso de medicina completo, sem, no entanto, ter colado grau. Fritz Müller era uma dessas raras pessoas que conduzem suas vidas em total conformidade com suas convicções: se por um lado esta franqueza absoluta lhe causou grandes transtornos na vida, por outro foi justamente isto que fez dele um cientista de uma grandeza incomum. Ao jovem pesquisador da natureza, os ensinamentos religiosos com os quais ele cresceu foram gradativamente se tornando confusos. Os ensinamentos da casa paterna tidos como a verdade eterna, o que ele sinceramente reconheceu por ocasião da confirmação, principiaram a cambalear. A Bíblia se tornou para ele apenas uma compilação de escritos, obra de mãos humanas; era-lhe impossível crer em milagres e Cristo, para ele, não passava de um homem. A ideia de parecer externamente o que não era intimamente lhe era intolerável. Um incidente que ilustra bem este seu
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traço de caráter é o ocorrido por ocasião da conclusão do curso de medicina: era exigido a profissão de um juramento com conotação religiosa, que a maioria de seus colegas certamente proferiu sem maiores reflexões. Fritz Müller, porém, era incapaz de pronunciar qualquer coisa, mesmo em se tratando de mera formalidade, que não estivesse em consonância com suas convicções. Sincero, como poderia dizer perante as autoridades acadêmicas a frase “sicut Deus me adjuvet et sacrosanctum ejus evangelium” (assim me ajudem Deus e Seu sacrossanto Evangelho), se tinha deixado de comungar com a fé cristã? Por negarse a fazer um falso juramento, deixou de receber seu — merecido — diploma de médico!
Ao jovem pesquisador da natureza, os ensinamentos religiosos com os quais ele cresceu foram gradativamente se tornando confusos. “Por certo que intimamente eu poderia sempre ser um pagão, como o são milhares dos que se dizem cristãos. Mas não gosto de parecer o que não sou.” Apesar da mágoa causada à família, não vacilou em abjurar a fé cristã, uma vez que a mesma não mais condizia com suas
convicções. Não suportaria viver com uma verdade nos lábios e outra no coração, segundo suas próprias palavras. Num país em que Estado e Igreja se confundiam, tal postura lhe trouxe dificuldades de toda ordem. Percebendo que portas lhe eram sucessivamente fechadas, que dificilmente teria espaço para exercer o magistério ou a medicina, a perspectiva de deixar a Europa foi se tornando cada vez mais atraente. “O que me compele a emigrar é até certo ponto um ato de desespero... sei que me sentiria sempre um infeliz caso alterasse um “J” sequer em minhas convicções apenas para obter algum tipo de vantagem”. Muitos não se conformam com o ateísmo de Fritz Müller e supõem ser desnecessário, desconfortável até, dar destaque a estes detalhes relativos à fé e à religião, devendo-se ignorá-los, omiti-los. Infelizmente, isto é impossível. Quem se ocupar com o estudo da vida e da obra de Fritz Müller logo perceberá que justamente este viés lhe era altamente caro e inegociável. Para não lhe ser desleal e reverenciar devidamente sua memória, é imprescindível tocar nesta questão. Sem perspectivas animadoras na Europa e com uma permanente curiosidade em relação à exuberante natureza das latitudes tropicais, veio para as selvas do sul do Brasil.
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Acervo Família Odebrecht
A caminho do oeste: Fritz Müller acompanhou o engenheiro Emil Odebrecht em uma viagem de pesquisa ao planalto catarinense. Selva na mais perfeita acepção da palavra: intocada, inacessível com todos os seus constituintes, inclusive serpentes peçonhentas, onças e nativos selvagens. No entanto, nessas matas a vida pululava através de uma infinidade de espécies de plantas e de animais, totalmente desconhecida da ciência. Da perspectiva científica poder-se-ia dizer que havia um verdadeiro tesouro esperando por um extraordinário pesquisador da natureza, exatamente o caso de Fritz Müller.
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m 1852, com trinta anos de idade, casado e com uma filhinha, emigrou para o Sul do Brasil. Acompanhou-o um irmão mais novo, August, e sua esposa. Fixou-se como um simples colono às margens do rio Itajaí-Açu, onde Hermann Otto Bruno Blumenau, um farmacêutico originário de Brunsvique, iniciara um pólo de colonização alemã. Uma vez no Brasil, Fritz Müller iniciou sua vida como qualquer colono: primeiro havia que derrubar o mato a machado e fazer sua própria casa, ou melhor, sua choupana de chão batido e coberta com folhas de palmiteiro. Sobrecarregado, pouco ou nada sobrava de tempo para dedicar à sua paixão: a pesquisa da natureza. Importante considerar que àquela época o estudo da história natural era uma atividade mais ou menos insossa que consistia apenas em descrever e classificar os espécimes. Não havia, porém, como saber
que justamente esta ciência se aproximava dos umbrais de uma revolução sem precedentes.
Apesar da mágoa causada à família, não vacilou em abjurar a fé cristã, uma vez que a mesma não mais condizia com suas convicções.
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ranscorridos quatro anos, Fritz Müller aceitou um convite mediado pelo Dr. Blumenau, para lecionar matemática no Liceu de Desterro, sede da província de Santa Catarina. Saber que este cargo lhe propiciaria a oportunidade de empregar seu tempo livre para se dedicar à história natural, aliado ao fato de residir junto ao oceano, um inexplorado campo de pesquisas, foi determinante para sua decisão. Morou em Desterro por onze anos, de 1856 a 1867. Em 30 de outubro de 1861, Fritz Müller escrevia entusiasmado aos pais: “Um livro que muito me deu o que pensar é o Origem das Espécies nos Reinos Animal e Vegetal, de Charles Robert Darwin”. Esta obra monumental teve grande influência não apenas sobre a obra de Fritz Müller, mas revolucionou toda a
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ciência natural, transformando-se nos fundamentos da moderna biologia. Com as noções introduzidas pela teoria elaborada por Darwin, Fritz Müller reconheceu que as mais variadas formas de vida e seu inter-relacionamento adquiriam um sentido lógico quando analisados da perspectiva evolucionista. Fritz Müller decidiu elaborar uma pesquisa com o fito de testar as propostas de Darwin. Por serem abundantes nas imediações onde morava, elegeu os crustáceos como tema de estudos. Baseando-se principalmente na observação de seu desenvolvimento embrionário, apurou fatos que corroboravam integralmente os conceitos introduzidos por Darwin. Os resultados deste trabalho foram publicados na Alemanha, em 1864, no único livro que escreveu, ao qual deu o oportuno nome de Für Darwin, ou seja, Pró-Darwin. O livro apareceu na Europa em muito boa hora, uma vez que Charles Darwin vinha encontrando ferrenha oposição por ousar contradizer graves dogmas religiosos. O apoio representado pelo trabalho independente de Fritz Müller foi de grande ajuda num momento em que os defensores de Darwin argumentavam apenas com retórica e fatos extraídos d’A Origem das Espécies. Darwin ficou encantado com a monografia de Fritz Müller e incontinente buscou contatá-lo nos confins do Brasil Imperial. Assim iniciou-se uma profunda amizade, nutrida por assídua troca de correspondência entre os dois cientistas, só
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interrompida com a morte de Darwin em 1882. Em uma carta que Fritz Müller enviou ao Prof. Max Schultze em 12 de dezembro de 1865, ele escreveu: “Desde que te escrevi a última vez, me encontro em aplicada troca de cartas com Darwin e já recebi três cartas dele (de agosto, setembro e outubro) bem como seu livro sobre orquídeas e dissertações sobre plantas dimorfas. Meu livrinho encontrou a mais bela recompensa que eu poderia desejar: ele proporcionou a Darwin algumas horas de prazer durante uma longa enfermidade. A opinião de Darwin sobre o livro é muito favorável; ele também acha que o núcleo do mesmo, a discussão sobre a história do desenvolvimento e sua aplicação nos crustáceos é ‘very good and original’”. Darwin obteve de Fritz Müller a autorização para traduzir o Für Darwin para o inglês sob o título Facts and Arguments for Darwin, publicado em 1869. Darwin adquiriu grande confiança na acurácia com que Fritz Müller realizava suas investigações científicas, chegando a chamá-lo de “Príncipe dos Observadores”. Nas re-edições revisadas de Origem das Espécies, Fritz Müller é citado mais de uma dezena de vezes.
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abe comentar aqui que o Professor Ernst Haeckel, de Jena, interessouse sobremaneira pela linha de estudo proposta no Für Darwin, ponto de partida para que chegasse à formulação da sua famosa “Lei da Biogenética Fundamental”. A tal lei foi introduzida por Haeckel em 1866. Apesar de se basear nos argumentos contidos em Für Darwin, Haeckel, a princípio, não fez referência alguma ao trabalho de Fritz Müller, vindo a fazê-lo somente em 1872. A assim chamada lei postulava que o desenvolvimento do indivíduo, desde a fase embrionária até a senescência, faria uma “recapitulação” das fases evolutivas pelas quais sua própria espécie teria percorrido: “A ontogenia recapitula a filogenia”, é seu o pomposo e sucinto postulado. Ontogenia significa o desenvolvimento do indivíduo e filogenia o desenvolvimento evolutivo de toda a sua espécie. Neste episódio, Fritz Müller exerceu um papel totalmente passivo e nunca levou a sério semelhante “lei da biogenética”, tendo ficado por conta de Haeckel o alarde da mesma. No entanto, até hoje, em muitas enciclopédias seu nome figura ao lado de Haeckel como sendo um dos criadores da mesma. Posteriormente ficou demonstrado que tal postulação era inconsistente.
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lém das pesquisas com crustáceos, motivadas pelo trabalho de Darwin, em seus primeiros tempos
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Fritz Müller, este desconhecido Ana Maria Moraes
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ritz Müller, o alemão que se tornou brasileiro, ainda é um ilustre desconhecido para os brasileiros. Embora o valor de sua obra seja inquestionável e reconhecido internacionalmente, ainda não lhe foi dado o devido destaque. Um paradoxo já aí visível. Sua obra requintada e irretocável, seu modo de vida frugal e quase espartano. Ao observá-lo atentamente na emblemática foto em que posa de pés descalços e fita a lente do fotógrafo com um olhar matreiro, nota-se a sua verve desafiadora. Desde sempre um revolucionário, também fora da ciência. Ele nasceu e se criou em ambiente familiar culto, porém religioso. Viveu intensamente os acalorados meios intelectuais alemães da primeira metade do século XIX. Teve acesso a livros e periódicos que publicavam pensadores, críticos e filósofos de vanguarda como Strauss, Feuerbach, Bauer e Karl Marx. E não ficou somente nas discussões de Kant e Hegel, nas questões religiosas, nas políticas e nos conceitos filosóficos em elaboração. Ao contrário, foi um personagem ativo nas questões sociais da época, escrevendo artigos e se juntando à militância estudantil. Segundo Werneck de Castro, Fritz Müller fez parte de uma associação de inspiração socialista que buscava reduzir as diferenças de nível social. Este grupo possuía um círculo mais fechado de intelectuais do qual foi seu presidente, tal o prestígio que possuía. Tinham-se como “racionalistas radicais”. A questão religiosa sempre foi, para Fritz Müller, algo que ao longo da vida lhe trouxe inúmeros dissabores: no seio da família, no convívio em Blumenau e na ultraconservadora Desterro (Arcipreste Paiva, em Desterro, foi um inimigo e perseguidor tenaz). Porém, o propalado ateísmo de Fritz Müller nos dias de hoje
seria, no mínimo, algo discutível ou irrelevante, mas naquela época declarar-se ateu era algo que soava verdadeiramente revolucionário. Suas ácidas críticas eram dirigidas à religião e não à existência de Deus, o que nos leva a considerar que podemos fazer uma diferenciação entre estas duas posições. O que teria realizado este revolucionário por estas bandas, além de examinar espécies exóticas sob a lente do microscópio? Teria se limitado a isto? Despontam alguns indícios de que não. É quase inimaginável que um espírito vanguardista tenha sido repentinamente paralisado por ventos tropicais. Possivelmente bem mais do que a conhecida produção científica. Pesquisas recentes e ainda não divulgadas mostram que Fritz Müller e seu irmão August, que o acompanhou na emigração, davam aulas de campo aos agricultores da recém-organizada “Kulturverein” na colônia Blumenau. Seriam os resquícios da associação de inspiração socialista dos tempos de estudante? E qual teria sido a influência de Fritz Müller no “Grupo das Ideias Novas”, movimento cultural surgido nos anos 1880, em Desterro, do qual faziam parte Cruz e Sousa, Virgílio Várzea, Santos Lostada e Gama Rosa, que foi Presidente da Província de Santa Catarina entre 1883 e 1884? Fritz não foi professor de Cruz e Sousa por uma questão cronológica, mas foi, com certeza, mestre de seus mestres. É bastante provável que aquela foto seja o que tenhamos de mais palpável para desvendar quem foi Fritz Müller, pois de si, fora do âmbito científico, ele pouco ou nada falou. Deixou-nos aquele olhar desafiador do Homem além da Obra, já que foi tão fascinante quanto o seu legado científico.
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de Desterro Fritz Müller se dedicou a outros temas da fauna marinha. Estudou a anatomia dos anelídeos, dos cnidários e ctenóforos (águas-vivas, medusas) e dos braquiópodes (conchas bivalves). Estes trabalhos foram publicados principalmente no periódico alemão, Archiv für Naturgeschichte (Arquivos de História Natural). Quando iniciou sua correspondência com Fritz Müller, Darwin, que então se ocupava com o estudo das trepadeiras, induziu Fritz Müller a observar este tipo de planta. De volta ao Vale do Itajaí em 1867, o interesse de Fritz Müller esteve voltado para a botânica, mais especificamente a biologia das flores, experimentos com fertilização e características hereditárias. Posteriormente destinou muitos anos à observação dos insetos; primeiro das térmitas e depois das abelhas sem ferrão. O médico e entomólogo Luiz Roberto Fontes destaca que Fritz Müller foi o primeiro termitólogo a fazer uma séria sindicância dos cupins existentes no Brasil. O resultado destas pesquisas foi publicado em quatro alentados artigos pioneiros na Jenaische Zeitschrift für Medizin und Naturwissenschaft (Revista de Medicina e História Natural de Jena) entre 1873 e 1875. Nestas publicações, Fritz Müller revelou muitos segredos sobre os cupins, correntemente citados com a maior naturalidade por especialistas do ramo, sem sequer conhecerem ou mencionarem a sua autoria. Tal reparo certamente pode ser estendido a muitas outras situações relacionadas ao profícuo trabalho de Fritz Müller, registrado preponderantemente em publicações em língua alemã, pouco compulsada atualmente pela comunidade acadêmica internacional.
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ritz Müller investigou os friganidos, ou tricópteros, muito comuns entre os seixos nos ribeiros de águas puras. Por longos anos, notadamente entre 1880 e 1887, Fritz Müller se ocupou com o estudo da caprificação que consiste na fecundação dos figos por vespas. Em seus últimos anos de vida voltou a estudar a “ciência amabilis”, a botânica, desta vez focando na investigação das bromélias. Consta que morreu delirando com os gravatás. De outubro de 1876 até junho de 1891, Fritz Müller desempenhou a função de “Naturalista Viajante” do Museu Nacional. De início, este posto animou-o sobremaneira conforme pode-se perceber do que escreveu ao mano Hermann — residente em Lippstadt, Alemanha — em 21 de junho de 1877: “É um cargo muito agradável, uma vez que posso dimensionar o tempo dedicado às excursões científicas em nossa província, inteiramente de acordo com minhas possibilidades, ou posso utilizar o tempo em casa com trabalhos científicos.” Foi-lhe facultado residir no
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Fritz Muller Werke Brief Und Leben - Atlas1915
Desenhos de punho próprio que Fritz Müller usava para ilustrar as anotações de suas pesquisas nos campos da fauna e da flora. vale do Itajaí, planejar suas excursões pela região e, a cada período, enviar um relatório contendo suas observações e estudos para serem publicados nos Arquivos do Museu Nacional. Tais colaborações deveriam ser redigidas em português, um desafio que Fritz Müller encarou com a disposição e a competência de sempre. Tinha facilidade e gosto em aprender línguas estrangeiras. Certa feita disse que, quando jovem estudante em Erfurt, se tivesse tido apoio em suas tentativas de aprender italiano, russo, sírio e árabe, talvez tivesse se tornado um linguista em vez de pesquisador da natureza. Infelizmente, de tudo o que Fritz Müller encaminhou ao Museu Nacional, pouco se encontra preservado. Além dos relatórios, que eram enviados com regularidade, a maioria deles acompanhados de caprichosos e detalhados desenhos, Fritz Müller enviava sementes, plantas, espécimes, ninhos, etc.
não-palatáveis apresentavam também padrões de desenhos e cores de asas semelhantes entre si. Que vantagem poderia trazer este mimetismo, já que todas eram não-palatáveis e, portanto, não apreciadas por predadores? Fritz Müller acabou por desvendar este segredo da natureza e se utiliza da matemática para melhor explicar o que sucede: há uma grande vantagem neste tipo de mimetismo que é inversamente proporcional ao quadrado do número de seus indivíduos. Suponha-se o seguinte cenário: a cada ano um determinado predador necessite devorar 1.200 borboletas não-palatáveis até aprender a
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evitar este tipo de presa. No caso de duas espécies miméticas de borboletas não-palatáveis convivendo no mesmo ambiente onde uma espécie é numerosa, composta por exemplo de 10.000 indivíduos, e outra espécie composta apenas de 2.000, expostos em conjunto à sanha dos pássaros predadores, eles sacrificarão conjuntamente um contingente de 1.200 indivíduos, sendo que provavelmente o grupo maior contribuirá aproximadamente com 1.000 indivíduos, “ganhando” 200 indivíduos da espécie de população menor, tendo portanto um “lucro” de 2%. Em
o próprio ano de sua morte, 1897, a revista Kosmos publicou um artigo onde Fritz Müller expõe interessante forma de mimetismo. Então já era bem conhecido o mimetismo Batesiano, segundo o qual borboletas monarcas — palatáveis — assumem padrões de desenhos e cores de asas muito similares às borboletas não-palatáveis, o que faz o predador supor que todas as borboletas sejam não-palatáveis. No entanto, Fritz Müller descobriu perplexo que várias espécies de borboletas
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Talvez tivesse se tornado um linguista em vez de pesquisador da natureza.
contrapartida a espécie mais rara se beneficiará dos 1000 indivíduos sacrificados pela espécie mais numerosa, o que representa nada mais nada menos que 50% de sua modesta população de 2000 indivíduos. Esse engenhoso tipo de mimetismo recebeu o merecido nome de Mimetismo Mülleriano. Só alguém com uma perspicácia e um tirocínio incomum se aperceberia de algo tão caprichoso.
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ritz Müller viveu na dupla condição de colono e cientista; só excepcionalmente atuou como médico. Jamais retornou à Europa; permaneceu isolado e distante dos grandes centros científicos de então. O contato que manteve com seus pares foi todo epistolar. Além de Darwin, correspondeu-se com dezenas de cientistas dos mais variados países: Alemanha, Áustria, Brasil, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália e Suíça. Raras vezes teve a oportunidade de se encontrar pessoalmente com outros cientistas que por acaso estivessem em viagem pelo sul do Brasil. Esse ostracismo em que viveu demonstra a excelente formação que recebeu em seus dias de juventude, permitindo que se desenvolvesse de maneira autodidática, ao ponto de ombrear com os maiores vultos de sua área. Na obra de Alfred Möller, que deve abranger quase a totalidade de tudo o que Fritz Müller publicou, constam 248 publicações científicas. Fritz Müller morreu em Blumenau, aos 75 anos, em 21 de maio de 1897.
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Imagem do microscópio original no qual Fritz Müller realizou grande parte das suas pesquisas. Acervo Museu Ecologia Fritz Müller.
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FICÇÃO Sérgio Abranches
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estão
chegando
Sérgio Abranches é cientista político com PhD pela Universidade de Cornell (EUA). Comentarista diário da rede de rádio CBN sobre Ecopolítica, é cofundador de O Eco, uma agência de notícias ambientais dedicada a treinar jovens jornalistas. Acaba de lançar A Era do Imprevisto, pela Companhia das Letras. No conto inédito “Eles estão chegando”, Abranches exercita a sua veia de ficcionista numa história em que a paranoia, o medo e o absurdo andam de mãos dadas.
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les estão chegando… O barulho da máquina de escrever mantém meu foco. Ele me embala, me leva para o mundo das palavras. Dos sonhos. Como a Smith Corona de meu pai me embalava e fazia sonhar. Não, não escrevo numa máquina de escrever. O barulho que ouço é digital. Um aplicativo reproduz o som das teclas da Smith Corona. O som me ajuda na concentração. Ele também espanta meu medo. Não escutarei quando chegarem. A primeira notícia que tive de um sequestro, escutava a Smith Corona de meu pai, enquanto rabiscava uns desenhos, distraído. Minha mãe entrou chorando, desesperada. — Eles levaram meu irmão. Você tem que achá-lo. A Smith Corona silenciou abruptamente, provavelmente com a tecla suspensa sobre a palavra inacabada. — Como foi isso? Quando? — Invadiram a casa dele hoje pela manhã e o levaram. Reviraram tudo. — Bem, vou tentar uns contatos... Mas não devemos ter muita esperança. Sabe como eles são... Sequestram, levam para outro estado, tudo sem registro... Dizem que têm até locais clandestinos, onde torturam e matam. — Ai, Francisco, não fala assim... agora… você sabe... (soluços, muitos soluços), encontra meu irmão e traz ele de volta para mim... (mais soluços, muitos). Meu pai saiu. Minha mãe foi para o quarto chorar. Era uma tarde de primavera do ano de 1972, na qual nada de mau deveria acontecer. Mas aconteceu. Foi ano de muitas ocorrências. Nixon visitou Pequim, encontrando-se com Mao, enquanto em Washington começava o caso Watergate. A Apolo XVII, último voo tripulado à lua, voltou para a Terra. Michel Micombe-
ro comandou o genocídio dos Hutu pelos Tutsi no Burundi. Brejnev e Nixon assinaram o SALT, tratado para limitar as armas nucleares. Onze atletas israelenses foram mortos nas Olimpíadas de Munique. Na Argentina, o general Lanusse convidou Perón a voltar do exílio. Jorge Luis Borges publicou El oro de los tigres. Caiu um avião nos Andes e os sobreviventes comeram os corpos dos mortos para evitar a morte por inanição. Leila Diniz morreu em acidente de avião. O edifício Andraus ardeu em chamas fatais em São Paulo. Inventaram o Prozac. Começou a guerrilha no Araguaia.
Somos de uma geração que se afogou na bebida, nas drogas, ou no Prozac. A geração divã. Nunca encontraram meu tio. Mas não haviam sido eles. Eles não deixam rastros. São como fantasmas, sombras noturnas que se movem quase invisíveis e rápidas entre uma fresta e outra de luz. Ele foi sequestrado, torturado e morto pelos militares, no auge da repressão. Eram anos de chumbo e dor. Eles já estavam aqui, mas não haviam levado meu tio. Os primeiros cadáveres que vi em minha vida estavam estirados na Avenida Rio Branco. Foi num dia de calor, alguns anos depois dos militares, quando trabalhava no setor administrativo de um escritório de advocacia. Era jovem. Nem sabia o que queria da vida. Chegava ao trabalho, por volta das oito da manhã, e vi um casal morto no asfalto. “Eles chegaram, mataram os dois e se foram”, ouvi alguém
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dizer. Os jornais mal registraram o duplo homicídio e nunca se soube quem eram eles. Mas não eram eles. Eles não matam. Pelo menos não deixam cadáveres para serem encontrados. Nem pistas. Eles nunca são vistos. Ninguém, jamais, foi capaz de descrever suas feições. Eles são culpados pelos desaparecimentos sem causa e sem solução. Esses sumiços ocorriam todo dia, em toda parte, mundo afora. E não só no Brasil não. Basta pesquisar desaparecidos no Google em qualquer língua. Em todas elas aparecerão listas numerosas, geralmente com fotos. Pessoas de todos os gêneros, idades, nacionalidades e etnias. Mas nunca se sabe como sumiram. Quem os levou. Eles sequestram sem nunca deixar rastros. Eu preferia que me matassem. Mas não há registros de que matem as pessoas. Todas as mortes atribuídas a eles tiveram a autoria comprovada, nunca deles. Sabese lá por que torturas e horrores passam os que eles levam. Não estou negando o medo de que me matem. Morro de medo. Expressão besta essa. Quem morre de medo tem medo da morte? Tenho mais medo de ser sequestrado por eles do que de morrer. Nem sei se matam as pessoas… Sem falar no que nem se pode imaginar. Já verei se me matam. Eles estão chegando. Como sei que eles estão chegando? Então, essa é a história que estou tentando contar. Conto e escrevo, para registro. Primeiro foram as notícias dos desaparecidos. Depois, eles começaram a me seguir. Sentia a respiração deles na minha nuca. Por mais rápido que me virasse, não os via. Enxergava suas sombras se moverem nas noites escuras, entre um raio e outro de lua minguada. Ouvia o ruído dos seus passos. Na minha casa? Claro, em casa também. Mas em toda parte que ia. Nos
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hotéis, nas aleias, nos becos. Ouvia-os respirarem no escuro da noite, onde estivesse. As notícias… O primeiro anúncio veio quando meu vizinho desapareceu. A mulher dele chegou em casa e ele não estava. Quando ela saiu, ele estava acamado, com uma enxaqueca muito forte. Telefonou para o escritório, mas ele não fora trabalhar. Procurou por ele no hospital próximo e não havia registro dele. Perguntou aos parentes e amigos, sem sucesso. Esperou até a meianoite e nada. Foi quando bateu em minha porta. No susto, achei que eram eles. Mas, raciocinei antes de reagir. Eles jamais bateriam à porta. Abri e ela se desculpou, perguntou se sabia do marido. Se ele havia me procurado, se eu havia visto ou ouvido algo estranho na casa deles. Nada, disse-lhe. Contou-me que ele havia desaparecido. Não me espantei. “Eles nunca fazem barulho ou deixam pegadas”, pensei. No dia seguinte, ela foi à polícia fazer o registro. A busca policial padrão na rede hospitalar e no IML foi infrutífera. A polícia abriu inquérito. Com o BO, ela bloqueou sua conta bancária. Tudo em vão. Ele jamais apareceu. Claro, muita gente teve essa desconfiança, de que ele fugira com outra pessoa. O fato é que ninguém nunca mais o viu. Eu nunca tive dúvida. Foram eles. Alguns dias depois, foi a Marlene. Boa amiga. Professora de filosofia no Pedro II. Sumiu a caminho do colégio. A investigação policial deu em nada. Mesma história. Claro, acharam que foi sequestro seguido de estupro e morte. Procuraram o corpo, testemunhas, nada. Ela simplesmente sumiu no ar. Sabe-se que tomou o ônibus para o trabalho, mas nunca chegou. Uma amiga comum ligou-me para perguntar por ela e assim fiquei sabendo
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que sumira. Foram eles, sem dúvida. São capazes de levar as pessoas à luz do dia, de locais públicos, sem que ninguém perceba. Depois que Marlene sumiu, tive certeza de que seria o próximo. Mas não fui. Foi o Márcio. Mente brilhante. Cara bem complicado. Sexualidade mal resolvida. Ficou muito esquisito, depressivo e arredio depois que foi preso e brutalizado, porque levava um baseado de maconha no bolso. Temíamos que um dia se suicidasse. Ele falava em morte o tempo todo. Mas tinha o Prozac. Somos de uma geração que se afogou na bebida, nas drogas, ou no Prozac. A geração divã. A certa altura da vida, todos tínhamos psicanalista, como as pessoas hoje têm gatos. Um dia, sumiu. Nunca mais se soube dele. Não há evidência de que tenha se matado. Como todas as buscas, a dele também não teve resultado. Ficou em suspenso, no ponto do esquecimento.
Primeiro foram as notícias dos desaparecidos. Depois, eles começaram a me seguir. Sentia a respiração deles na minha nuca.
Aí, o Paulo sumiu. O Paulo era o tipo do cara que não se podia imaginar que sumiria. Único da nossa turma que se destacava nos exercícios físicos. Lutava quase todas as lutas marciais. Manejava armas brancas e de fogo com maestria. Era um cara alto astral. Contador de casos. Sério, não se metia em confusões. Homem
de uma mulher só. Não era rico. Ganhava o suficiente para viver em modesto conforto. Amigo fiel e solidário. Sumiu. Esfumou-se, do dia para a noite. Foram eles. Agora chegou a minha vez. Comecei a ouvi-los sussurrar às minhas costas. Passaram a me seguir mais ostensivamente. Bom, ostensivamente não é bem o termo, porque, claro, ninguém os vê. Continuadamente, melhor dizendo. Estão sempre me seguindo onde quer que esteja, com quem quer que esteja. Nunca pergunto. Não quero que pensem que enlouqueci. Se pergunto se alguém está vendo quem me segue, já era. Perco toda a credibilidade. Fica decretado que pirei. Evidente que sou completamente lúcido. São, de corpo e mente. Corro todo dia. Sim, eles correm atrás de mim. E daí? Mas eu corro, e não deles. Corro atrás do meu bem-estar. Não tenho mais analista ou terapeuta, nem mesmo confidentes. Estou tranquilo. Não tenho TOC, transtorno obsessivo compulsivo. Faço meu trabalho com esmero. Pago minhas contas em dia. Me alimento bem, dieta balanceada. Tudo em cima. Não tenho depressão, nem tomo remédio para dormir. Ansiolítico? Para quê? Não tenho crises de ansiedade. Apenas sei que eles estão chegando. E vão chegar. Não são como os bárbaros de Kafávis, que nunca chegaram. Nunca leu o poema? Foi mal, estraguei o final. Esclareço. Ele começa assim: “O que esperamos na ágora reunidos? É que os bárbaros chegam hoje”. E termina com esse verso magistral: “Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que tão rápido as ruas se esvaziam e todos voltam para casa preocupados? Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros. Sem
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bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução.” Não, absolutamente. Só lembrei do poema por falar da inquietude porque os bárbaros, esperados, não chegam. Não penso que eles não existem mais. Mas, claro, desejo que não cheguem. Tô calmo. Tranquilo. Como disse, dispenso o Rivotril. Não tenho ansiedades. Mas eu sei que eles estão chegando. Não estou sendo contraditório, se digo que prefiro que me matem. Digo porque não quero passar pelas torturas. Imagino que eles submetam suas vítimas a muitos maus-tratos. Torturas impensáveis. São elas que me atemorizam. Mas isso não é ansiedade. Medo é muito mais que ansiedade. A neurobiologia do medo é diferente da neurobiologia da ansiedade. E o que o cérebro mostra não dá para discutir. Ansiedade é uma tensão crônica. Como pode ver, estou relaxado. Sou relax. Medo é um sentimento de desastre diante de um perigo iminente. Ansiedade não tem base concreta, é uma inquietude de causas difusas. Medo diante de uma presença ameaçadora é concreto. Não os temo. Não. Tenho medo é das torturas. Medo do que não conheço. Não deles. Deles, não. A questão chave é que eles são concretos. Não são imaginários. Nem extintos. Não nos abandonaram. Por que nos deixariam, assim, de repente? As estatísticas de desaparecidos sem explicação e sem solução são a prova da existência deles. Porque existem desaparecidos, há o perigo iminente de que eles levem outras pessoas. Os desaparecimentos se aproximam de mim. Logo, eu sou o próximo alvo. Isso não é vago, nem difuso. É lógico. Mais do que lógico, é real. Ouço as vozes
deles. Eles já estão aqui. E para me pegar. Certeza. Quando digo que estão chegando é porque ainda não me levaram, mas já estão me cercando. Já estão aqui. Esperam o momento certo para o bote definitivo. Mas não fico pensando em quando será. Não estou paralisado em espera ansiosa. Sigo vivendo minha vida. Vivo cada momento.
Eles não deixam rastros. São como fantasmas, sombras noturnas que se movem quase invisíveis e rápidas entre uma fresta e outra de luz.
Como no dia do desaparecimento do meu vizinho. Logo que minha vizinha saiu, inconsolável, retornei ao computador e ao som da Smith Corona. Talvez, a partir de então, tenha aumentado o som. O barulho das teclas digitais, imaginárias, se preferir, ficou bem mais alto do que o das teclas da máquina de meu pai. As teclas não me deixam ouvi-los. Assim, não saberei quando chegarem, quando derem o bote e me levarem. Elas espantam meu medo, me confortam e me levam para o mundo.
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uando Malu, finalmente, se cansou de ligar, bater à porta e perguntar por ele, resolveu ir à polícia. Mas não quiseram registrar seu desaparecimento. Ela era apenas a namorada. Ele podia simplesmente não querer vê-la,
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argumentaram. Mas Malu não desistiu. Voltou à delegacia com o porteiro do prédio. O porteiro disse aos policiais que ele havia entrado em casa há quatro dias e não havia saído mais. Bateu em sua porta para entregar o jornal e a correspondência, como fazia todos os dias, mas ele não respondeu. Ele não tinha como sair sem que o visse. O delegado continuou reticente, até que Malu e o porteiro levaram um pendrive com o vídeo das câmeras de vigilância, desde que ele havia entrado no prédio e em seu apartamento. Havia câmeras em todas as entradas, na garagem e nos andares. Era possível vê-lo chegar, no elevador, no hall do andar de seu apartamento. Não havia cena dele saindo. — Ele sai para correr diariamente, às seis da manhã, e retorna duas horas depois. Tenho registros de suas saídas e entradas nessa hora todos os dias deste mês, menos nos últimos quatro — o porteiro informou ao delegado. O delegado Latorraca, era o nome dele, finalmente decidiu investigar. Requereu um mandado de busca e apreensão. Quando chegou, enviou dois policiais acompanhando Malu e o porteiro até a casa dele, com um chaveiro. Deviam abrir a porta e ver se o encontravam passando mal ou pior. Eles foram até o apartamento, o chaveiro abriu a porta com facilidade, não havia tranca de segurança. Malu e os policiais entraram. Tudo estava no lugar, não havia sinais de luta ou qualquer pista do que lhe pudesse ter acontecido. Procuraram no quarto, no banheiro, na cozinha. Ele não estava no apartamento. O computador estava ligado. Malu leu: Elas espantam meu medo, me confortam e me levam para o mundo.
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POESIA
Fragmentos de um cotidiano desconhecido Alcides Buss
NA QUITANDA As alfaces verdes, as bananas amarelas, as cebolas de cabeça soltando a casca, o cheiro do tomilho, o amendoim na balança, a laranja-do-céu, a cenoura, o brócolis ramoso, a batata inglesa, o tomate, o chuchu, a alcachofra – a moça da quitanda tem os dentes mais brancos que açúcar.
DE BOA VONTADE Pudesse arrumar o mundo, começaria por mim.
É ELA Viver é tão óbvio àqueles que vivem. A vida, porém, é mistério sem fim.
Mal consigo, porém, arrumar a cama.
Por mais que a tenhamos nas mãos, escapa-nos das palavras que urde a razão.
Ah, esse alguém talvez fizesse o que não posso!
Julgamo-nos seu dono aqui e agora.
UM RUMO Não falte nunca um rumo pro mundo e, dentro dele, o rumor de pessoas. Uma ideia clareie um começo; melhor, uma ideia que dentro contenha o depois. Não falte um rumo com água, com árvores e as asas do sol; e dentro delas um pouco de nós!
Sem dizer, aos poucos faz-nos saber que a dona é ela.
Pudesse, faria nascer o sol nos olhos de quem passa.
Pudesse, acordaria com o mundo nos braços.
PRAZER DE DIZER BOM DIA Direi a você bom dia, todos os dias, querendo dizer te amo, embora já saibas disso e, até mais do que eu, que o amor é o sol que faz o corpo chegar à alma. Direi a você por puro prazer de dizer, que as palavras são como deuses que nos fazem chegar aos outros e, às vezes, nos unem ao Todo.
Alcides Buss reside em Florianópolis, SC, onde atua como escritor, professor e editor. Seu primeiro livro surgiu em 1970 com o título de Círculo quadrado. Publicou mais de vinte outros títulos. Na Editora da UFSC, da qual foi diretor por dezessete anos, manteve a coleção Ipsis Litteris. Recebeu inúmeros prêmios literários. Seu livro mais recente é Viver (não) é tudo, publicado pela Caminho de Dentro Edições, de Florianópolis.
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