Digesto Econômico - Nº 471 - Jan/Fev 2013

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DIGESTO ECONÔMICO - JANEIRO/FEVEREIRO 2013 - ANO LXVIII - Nº 471

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Ano já começa com aumento na carga tributária

Masao Goto Filho/e-SIM

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o dia 14 de fevereiro, quinta-feira após o carnaval, o Impostômetro da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) ultrapassou a cifra de R$ 200 bilhões em impostos arrecadados nas esferas federal, estadual e municipal. A marca foi alcançada com seis dias de antecedência em relação ao ano passado. Impressiona a velocidade com que a arrecadação vem aumentando, mesmo com o baixo crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), que em 2012 ficou em torno de 1%. Mas, como é possível a carga tributária continuar aumentando se a economia está quase estagnada? A resposta é que no Brasil se pratica o sistema mais perverso de tributação: a maior parte dos tributos está concentrada no consumo. São as vendas para o mercado interno, juntamente com o nosso agronegócio, que estão mantendo o crescimento da economia, mesmo em patamares modestos. Nesta primeira edição da revista Digesto Econômico de 2013, o economista José Roberto Afonso, especializado em finanças públicas, explica em detalhes todos os artifícios utilizados pelo governo federal para atingir a meta do superávit primário. Foi uma operação complexa de engenharia fiscal realizada nos últimos dias do ano, que envolveu as edições de uma Medida Provisória, três Decretos Presidenciais e uma resolução do Conselho Monetário Nacional. O uso de artifícios fiscais em si não é novidade, o que surpreendeu foi a intensidade, a dimensão e o número de atos e de entes estatais envolvidos nesta operação. Não houve aviso do governo sobre o uso desses artifícios, que foram sendo descobertos aos poucos pela mídia especializada e analistas financeiros, o que forçou o ministro Guido Mantega a dar explicações. O cientista político Augusto Cattoni, pesquisador sênior do Instituto Atlântico, traça em seu artigo um panorama completo da situação econômica do País, analisando diversos segmentos e apontando as principais razões para o baixo crescimento do PIB brasileiro em 2012. Para ele, o Brasil arrecada demais, gasta muito e mal, e está sempre sem recursos. Portanto, é primordial fazer uma reforma tributária ampla e profunda, e não apenas desonerações temporárias e mudanças pontuais. Como tema de capa, esta edição traz algumas matérias sobre o varejo do futuro. Em janeiro, nos Estados Unidos, ocorreu o Congresso da NRF (National Retail Federation), maior evento do varejo mundial. Há cinco anos, a ACSP e a Facesp organizam comitivas de profissionais brasileiros para o evento. A coordenação é do nosso vice-presidente e coordenador do Conselho de Varejo, Nelson Felipe Kheirallah, que conta quais as últimas tendências e novidades do setor de varejo. Boa leitura!

Rogério Amato Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo.

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ÍNDICE

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3180-3737 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Rogério Amato Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici

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Um ponto de luz no mercado brasileiro de artes Carlos Ossamu

O despertar do dragão Carlos Ossamu

Brasil derruba crescimento da AL Carlos Ossamu

O Chile, na visão do Banco Mundial

Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Artes Max e Zilberman Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3180-3029

Engenharia Fiscal e (também) Financeira José Roberto Afonso

Laços da China com o Brasil e Austrália no século 21 Tim Harcourt

Gerente de Operações Valter Pereira de Souza Impressão Log & Print Gráfica e Logística S.A. REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3180-3737 REDAÇÃO (011) 3180-3055 FAX (011) 3180-3046 www.dcomercio.com.br

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CAPA Paulo Zilberman


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O império continental de Havana Olavo de Carvalho

Poderia Estar Melhor Augusto Cattoni

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Pouco investimento, baixo crescimento Carlos Ossamu

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O maior show do varejo mundial Carlos Ossamu, Domingos Zamagna e José Maria dos Santos

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Que Ano Novo queremos para o nosso Brasil? Alencar Burti

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Ética e instituições Denis Rosenfield

Como será a loja do futuro? Carlos Ossamu

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A loja mais tecnológica do mundo está no Brasil Carlos Ossamu

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Memórias do Barão do Rio Branco Paulo Roberto de Almeida

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ZILBERMAN

UM PONTO DE LUZ NO MER

Carlos Ossamu

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m relatório da The European Fine Art Fair (TEFAF), uma das mais importantes feiras de artes do mundo, estima que o mercado mundial de artes e antiguidades movimente cifras da ordem de 46 bilhões de euros por ano. A China é atualmente o maior mercado, com 30% de participação, ultrapassando os Estados Unidos, que agora têm 29%, e a Grã Bretanha, com 22%. Apesar da crise econômica mundial, este mercado continua movimentando valores astronômicos. Em maio do ano passado, por exemplo, a obra "O Grito", de Edvard Munch (1863-1944), tornou-se a pintura mais cara da história a ser vendida em um leilão: US$ 119,9 milhões. Em terras brasileiras, o mercado de artes, por enquanto, é uma completa incógnita, não há muitos dados confiáveis e vários negócios são fechados informalmente. Para jogar um pouco de luz neste setor, a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (Abact) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) estão realizando um le-

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vantamento junto às galerias de artes. O estudo faz parte do Projeto de Promoção Internacional da Arte Contemporânea Brasileira, que foi criado em 2007 pela Apex-Brasil em parceria com a Fundação Bienal de São Paulo e o segmento de galerias nacionais do mercado primário, com o objetivo de promover internacionalmente a arte contemporânea brasileira. Em 2011, a Bienal passou a gerência do projeto para Abact. Hoje, o projeto representa 54 galerias de arte contemporânea em sete estados, promovendo o trabalho de mais de mil artistas. Segundo explica a advogada e pesquisadora Ana Letícia Fialho, coordenadora do estudo, de outubro de 2011 a março de 2012, foi efetuada a primeira fase do estudo com 32 galerias de arte contemporânea filiadas à Abact. De lá para cá, mais 13 galerias estão sendo ouvidas, totalizando uma amostra de 45 galerias. "Nos últimos dois anos, o volume de negócios das galerias cresceu, em média, 43,5%, bem acima de muitos setores da economia. Uma estimativa conservadora é de que as galerias ma-


CADO BRASILEIRO DE ARTES

peadas movimentem anualmente cerca de US$ 100 milhões", revela a pesquisadora. Ela observa que um levantamento da ApexBrasil apontou que em 2011 as exportações de artes como um todo somaram US$ 60,1 milhões. Desse montante, US$ 18,6 milhões foram de obras de arte contemporânea (US$ 16,4 milhões de galerias de São Paulo). "O nosso objetivo é conhecer o perfil, o tamanho, o grau de profissionalização e de internacionalização das galerias do mercado primário", diz a pesquisadora. Ana Letícia explica que o mercado primário possui basicamente três agentes: o artista, que produz a obra; a galeria, que representa o artista e vende a obra pela primeira vez; e o colecionador, que pode ser uma pessoa física, uma instituição ou empresa – existem coleções corporativas de empresas, de museus públicos e privados, como o Itaú Cultural, por exemplo. Já o mercado secundário é o da revenda. "A obra já está em circulação, alguém a comprou e coloca à venda novamente. Essa pessoa faz essa operação através de um escritório de arte

(marchand) ou galeria que trabalhe com revenda. A cadeia aqui é diferente: não tem mais o artista dialogando diretamente, tem o proprietário atual da obra, que coloca à venda, em geral em consignação, em uma galeria, que é remunerada com uma comissão. Neste mercado secundário também estão os leilões de arte", comenta Ana Letícia. Apesar do baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2012, em torno de 1%, o Brasil vem se mantendo à margem da crise econômica mundial, graças ao mercado interno aquecido. Na opinião da pesquisadora, esses fatores têm contribuído para a expansão do mercado de artes no Brasil. "A média de crescimento entre 2010 e 2012 é de 43,5%, sendo que 70% das galerias registraram aumento no volume de vendas. Um dos objetivos da nossa pesquisa é justamente monitorar o mercado e pensar em estratégias para um desenvolvimento sustentável. O País passa por um momento econômico favo-

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AFP

rável, o que repercute no crescimento do mercado, mas é preciso pensar em estratégias para o setor", observa. A pesquisa Abact/Apex-Brasil levantou o perfil dos colecionadores no Brasil: 70% são colecionadores privados, 12% são colecionadores do exterior, 5% são instituições brasileiras (museus públicos e privados), 5% são companhias brasileiras, 5% são companhias internacionais e 3% são instituições internacionais. Cerca de 80% do que o mercado movimenta é gerado internamente. "A falta de políticas públicas adequadas para o setor mantém relativamente afastados agentes do mercado internacional. Por outro lado, tal isolamento permitiu que o setor se organizasse melhor sem muita pressão de uma concorrência internacional – apesar de que em dezembro a White Cube, maior galeria britânica de artes, abriu as portas em São Paulo, no bairro da Vila Mariana", comenta Ana Letícia. Segundo o IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, uma obra de arte de artista estrangeiro, trazida do exterior para o Brasil para o consumidor final, tem uma carga tributária de 45,26%. Isso vale, por exemplo, para quem arremate uma obra de arte em um leilão no exterior. Arte e investimento Na opinião da pesquisadora da Abact, hoje, o colecionador privado está indo muito além de ter uma peça para decorar a casa. "Em geral, ele é bem informado, se interessa pela produção contemporânea, tem algum tema de preferência, um conceito artístico e compra de forma sistemática, diferentemente daquela pessoa que compra para resolver a decoração de uma parede da casa. As galerias contam que tem crescido o número de colecionadores jovens, profissionais de sucesso que começaram a

"O Grito", de Edvard Munch, leiloado por US$ 119,9 milhões

Divulgação

ganhar dinheiro cedo, que estão comprando arte de forma sistemática e contribuindo para essa dinâmica do mercado", diz. "Neste grupo talvez haja aquele que está comprando não apenas pelo interesse na arte, mas vendo a possibilidade de uma valorização, já que a arte brasileira está sendo cada vez mais reconhecida lá fora. Em minha opinião, acredito que não seja um percentual significativo", comenta Ana Letícia. Ela conta que, assim como outros países, o Brasil já tem um fundo de investimento especializado em arte. Trata-se do Brazil Golden Art.

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Divulgação

tradição neste diálogo internacional permitiu que os vínculos se tornassem mais sólidos. Instituições como MoMA (Museum of Modern Art, de Nova York) começam a colecionar de forma sistemática a produção brasileira e a mostrá-la junto com sua coleção internacional". Falta incentivo Do ponto de vista do governo federal, Ana Letícia afirma que não houve iniciativas organizadas até agora, com uma estratégia a longo prazo. "Houve iniciativas pontuais, como eventos internacionais para comemorar os 500 anos do Brasil, entre outros. Em minha opinião, essa é uma estratégia equivocada. É necessário um programa de incentivo, de apoio, com estratégias a longo prazo", diz. "O que tem dado mais resultados são as ações da Apex-Brasil, uma agência ligada ao MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior), que começou em 2007. O número de galerias exportadoras cresceu e se observa um impacto claro neste esforço de internacionalização da arte brasileira". Em sua opinião, é importante que o governo federal olhe o setor como um segmento relevante da economia criativa, de forma que isso permita o seu desenvolvimento, aproveitando o momento de visibilidade do País lá fora. Para que isso aconteça, é necessário pesquisas com dados objetivos, com indicadores que sirvam de base para essa reflexão. "A Abact está fazendo isDivulgação

Perfil dos colecionadores: 70% são privados, 12% são estrangeiros, 5% são instituições brasileiras, 5% são companhias brasileiras, 5% companhias internacionais e 3% são instituições internacionais.

"Este grupo capta investimentos, adquire obras com o objetivo de, no futuro, redistribuir os lucros", explica. "Este fundo surgiu devido ao bom momento que passa o mercado brasileiro e a produção brasileira, que ganhou visibilidade fora do País. Não é só o momento econômico que tem favorecido, mas a produção brasileira também vem ganhando mais espaço". A pesquisadora da Abact comenta que essa maior visibilidade da arte brasileira começou nos anos 90 e está ligada ao fenômeno da globalização. Os colecionadores dos mercados tradicionais passaram a olhar para outros mercados, principalmente os emergentes. Assim, a América Latina e o Brasil começam a aparecer mais. "O Brasil já tinha uma tradição de diálogo internacional, com artistas brasileiros que moraram no exterior nos anos 60. Até hoje, artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica são muito valorizados entre os colecionadores internacionais", observa. "Mas nos anos 90 esse processo de internacionalização se acelerou, assim como em outros países, como China e Índia. Essa

so em um segmento específico, o de arte contemporânea, mas isso deveria ser complementado com dados de outros setores, para que as políticas públicas possam ser desenvolvidas embasadas em dados objetivos. Esses estudos devem ser feitos de forma sistemática, criando-se uma série histórica para se monitorar o setor. Países como a Inglaterra, que criou o conceito de economia criativa, possuem este tipo de estudo", finaliza.

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André Borges/Folhapress

O despertar do dragão

Carlos Ossamu*

O *Colaboraram Domingos Zamagna e José Maria dos Santos

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trabalho com pólvora é a marca registrada do artista plástico chinês Cai Guo-Qiang, que desde 1995 vive e trabalha em Nova York (EUA). Vencedor do Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 1999 e do Praemium Imperiale em 2012, ele foi o responsável pelos shows pirotécnicos de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008. Cai (se pronuncia Tsai, em mandarim) está expondo no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília até o dia 31 de março. O seu trabalho mostra muito das características e contradições da atual arte chinesa, que convive com um mercado em ebulição e a forte censura estatal. Para a exposição em Brasília, Cai criou, ao vivo, na presença da imprensa, imensos painéis desenhados com a queima de pólvora, retratando o

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carnaval brasileiro (foto acima). Moldes em papel serviram de máscaras e o artista preencheu os espaços vazios com pólvora de diversos tipos, alguns mais potentes, outros menos. Dessa forma, Cai escolhia espaços onde queria queimar para formar as imagens. O artista calcula a quantidade de pólvora, tenta controlar o processo e obter o efeito desejado, mas após acender o estopim, o resultado final é uma surpresa, fruto de alguns acasos, mas é sempre magnífico e exuberante. Em outra instalação, em uma sala escura, pipas amarradas por linhas flutuam no ar. Nelas, são projetadas imagens coloridas de pessoas com engenhocas desenvolvidas em colaboração com inventores chineses amadores, construídas a partir de materiais de uso diário. As linhas lembram que não é possível voar livremente.


Sam Yeh/AFP

Cai Guo-Qiang é um dos principais artistas contemporâneos da atualidade. O seu trabalho mostra muito das características e contradições da atual arte chinesa, que convive com um mercado em ebulição e a forte censura estatal.

Paulo Pampolin/Hype

Traçando um paralelo entre as obras de Cai e o segmento de artes na China, vemos o governo muito interessado em expandir a cultura chinesa internacionalmente e incentivando a economia criativa. Mas assim como a pólvora, nem tudo pode ser controlado e alguns artistas passaram a questionar a censura e o governo. Exemplo disso é o artista Ai Weiwei, que foi assessor artístico na construção do Estádio Nacional de Pequim, mais conhecido como Ninho dos Pássaros. Weiwei chegou a ser preso por críticas ao governo chinês. A China é hoje o grande destaque do mercado mundial de artes. Segundo o relatório de 2012 da Artprice, em 2011 o mercado de arte contemporânea movimentou mais de US$ 1,3 bilhão, dos quais mais de 41% na China. O estudo tem como base mais de 6,3 milhões de leilões, promovidos por 4.500 casas de leilão de todo o mundo. Estão fora desse número vendas realizadas particularmente e em exposições, por não serem públicas.

Pequim é hoje o segundo maior mercado de artes do mundo, ficando atrás de Nova York e logo à frente de Hong Kong. Pequim e Hong Kong movimentaram, em 2011, cerca de US$ 540 milhões em leilões de arte. De acordo com Julio Lucchesi Moraes, o mercado chinês de artes vem ganhando destaque desde 2005, mas ficou em evidência em 2011, quando obras de dois artistas chineses, Zhang Daqian (1899-1983) e Qi Baishi (18641957), suplantaram Pablo Picasso e Andy Warhol, tradicionais protagonistas de leilões. "A despeito dos grandes valores alcançados por obras de artistas da geração de Baishi e Daiqian, há também espaço para artistas ainda vivos. Em 2012, a renomada casa de leilões Sotheby's foi responsável pela venda da escultura "Self and Self Shadow", do artista contemporâneo Wang Huaiqing. O leilão foi o primeiro de uma casa internacional na China Continental desde 1949. Bastante contemporânea foi

Moraes: na China tem ocorrido a entrada de grandes grupos internacionais de leilões.

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Frederic J. Brown/AFP

Ai Weiwei: assessor artístico na construção do Estádio Nacional de Pequim, mais conhecido como Ninho dos Pássaros, chegou a ser preso por críticas ao governo chinês.

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também a negociação do grupo para adentrar no mercado chinês: a transação só foi possível após a constituição de uma joint venture entre a Sotheby's com a estatal Beijing Gehua Art Company", observa. Moraes é graduado em Ciências Econômicas pela FEA-USP, doutorando em História Econômica pela FFLCHUSP e no ano passado esteve em Pequim na Conferência Global da Regional Studies Association Sustaining Regional Futures com auxílio da FAPESP. Alguns artigos seus sobre o crescimento do mercado chinês de arte estão sendo publicados atualmente no Boletim da Fipe (www.fipe.org.br) Para Moraes, tem havido uma grande transformação na sociedade chinesa, assim como no Brasil, com a ascensão da classe média. É sabi-

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do que ainda há uma população rural imensa, mas falar do mercado chinês hoje é se referir a essa classe média urbana, que é a que consome. "Especificamente no mercado de artes plásticas, eles têm uma vantagem que é a diáspora chinesa: são chineses de classe média e alta, residentes em outros países (EUA, Europa, Sudeste Asiático), que são grandes compradores de obras de arte, seja para demonstrar status social ou mesmo para investimento. Neste caso específico das artes plásticas, o público acaba sendo de elite", diz. Mas como se consegue uma produção artística interna forte com uma censura onipresente? "Essa é a questão central que se deve colocar no desenvolvimento do setor criativo e cultural na China hoje. É uma contradição, pois as artes, principalmente as plásticas, pressupõem a liberdade de expressão. Porém, se pegarmos a produção brasileira dos anos 60 e 70, época da ditadura militar e da falta de liberdade, ela é riquíssima. A sensação que eu tenho é que esses controles de censura na China tendem a diminuir, inclusive à medida que o país se abre internacionalmente, há maior fluxo de informações, a influência das redes sociais etc." , comenta Moraes. "Resta saber se a atual estrutura política do PC chinês tem condições de realmente abrigar o setor com tantas contradições, com todas as suas demandas particulares. Em princípio, acho que o setor seguirá muito forte nos próximos anos". Segundo ele, tem ocorrido na China a entrada de grandes grupos internacionais de leilões, sempre em joint venture com representantes locais. Antes havia restrições legais, com exceção de Hong Kong, que é uma praça comercial privilegiada. "O que tem gerado polêmica é uma grande presença oficial neste mercado. Existem casas de leilão com ligações com grupos políticos muito centrais. Neste ponto entra toda a questão do patrimônio chinês, são 5 mil anos de história, mas o que tem sido aproveitado são conteúdos muito seletivos. A história e a tradição estão lá, mas como são avaliados, estes são critérios absolutamente contemporâneos ocidentais, inclusive inflando os preços. Este é um setor em que é comum surgirem muitas bolhas, picos de investimentos, de repente se descobre um novo filão de investimentos, tanto de artistas contemporâneos como clássicos, e subitamente ocorre um apetite internacional em constituir coleções desses artistas. Ao mesmo tempo, tem esses colecionadores chineses de classe alta espalhados pelo mundo que, até por uma questão de identidade cultural, acabam comprando obras desses autores".


Reuters

Em sua opinião, o governo tem forte interesse em expandir internacionalmente a cultura chinesa, assim como sua economia. Para tanto, tem estimulado muito a economia criativa. "A maneira mais direta, e também polêmica, é o Instituto Confúcio. Em princípio, é algo como o Instituto Goethe alemão, o Cervantes espanhol, com característica de disseminação cultural – este é o discurso oficial chinês", diz Moraes. Segundo ele, há críticas de que esse instituto sirva a interesses do governo, está presente em várias partes do mundo e dentro de universidades – aqui no Brasil está em várias unidades da Unesp – locais com grande produção acadêmica e de conteúdo. "Em relação às casas de leilão, a Poly Auction, a maior atualmente na China, é um braço de um conglomerado empresarial que atua basicamente no setor de tecnologia bélica a serviço do governo. Há naturalmente o interesse institucional, de promoção ideológica da cultura chinesa, disso não há dúvidas. Nos últimos encontros do Partido Comunista foi colocado claramente de que existe uma ambição chinesa de expandir sua participação cultural internacionalmente, o chamado soft power", afirma Moraes. Para ele, houve uma situação muito semelhante com os EUA após a Primeira Guerra Mundial. O país já era uma grande potência, não a hegemônica ainda, mas já estava dialogando em pé de igualdade com outras potências da época, e começou também a entrar muito forte no mercado cultural, por exemplo, com o desenvolvimento de Hollywood. "Estúdios como Paramount, Fox, Universal se internacionalizaram com apoio diplomático do governo. Da mesma forma, a China, neste século 21, deve entrar forte no cenário cultural internacional. Ainda há certo estranhamento, um distanciamento cultural, que para mim tende a diminuir". Para Moraes, se 2011 foi um ano de excelentes resultados para o mercado de artes plásticas em Pequim, 2012 figurou como um marco para a indústria cinematográfica chinesa. Foram lançados 303 filmes e, desses, 227 foram produzidos localmente. Lideradas por filmes de ação e de artes marciais, as produções chinesas obtiveram quase a metade das receitas de bilheteria. Os números referentes aos demais elos da cadeia cinematográfica também são surpreen-

dentes: nos primeiros dez meses de 2012, cerca de 450 novos complexos – responsáveis por cerca de 2.500 salas – foram abertos pelo país, segundo informações da Screen Digest. "Novamente, percebe-se que a expansão do setor advém da interação entre grandes grupos internacionais e agentes locais. A chinesa DMG, por exemplo, firmou contrato de coprodução do longa 'Homem de Ferro 3' com a Disney. No ano passado, o braço oriental da DreamWork assinou contrato de parceria com o Ministério da Cultura e com a Tencent Holding Ltd., maior grupo de internet do país. Por fim, o produtor e diretor James Cameron planeja adentrar no mercado oriental produzindo equipamentos 3D para uma possível sequência de Avatar", comenta Moraes. Segundo ele, analistas já preveem que, até 2020, o mercado cinematográfico chinês será maior que o norte-americano. "De fato, Pequim tem estimulado a vinda de capitais estrangeiros nos setores audiovisuais, permitindo um fluxo constante de recursos país adentro, por meio de parcerias com grupos públicos ou semipúblicos locais. Se a entrada do capital externo encontra forte apoio oficial, a situação é distinta no que se refere ao fluxo de conteúdos: tanto no mercado cinematográfico quanto nos demais segmentos artísticos e culturais, produtores ainda se deparam com um ambiente de grande controle e censura", observa.

Obra do artista contemporâneo chinês Zhang Xiaogang, leiloada na Sotherby's de Hong Kong por mais de US$ 6 milhões.

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Engenharia Fiscal e (também) Financeira

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O truque do governo para cumprir a meta de superávit primário em 2012

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Patricia Cruz/Luz

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cumprimento da meta de superávit primário do governo central e também do setor público em 2012 só foi possível graças a uma complexa, criativa e heterodoxa engenharia fiscal. Para tanto, nos últimos dias do ano, foram editados uma Medida Provisória (nº 600)(2), três Decretos Presidenciais (nº 7.880, 7.881 e um sem número)(3), e uma resolução do Conselho Monetário Nacional (nº 4.175)(4). Em resumo, foram realizadas as seguintes transações. Ações de uma empresa estatal de petróleo e detidas por um fundo de poupança pública foram vendidas para um banco público. Este, por sua vez, cedeu ações de empresas privadas como meio de pagamento pela compra de direitos a receber de uma estatal elétrica. No último ano, e a exemplo dos anteriores, o mesmo banco estatal também recebeu empréstimos com rendimentos extraordinários do Tesouro, mas não se sabe se os subsídios correspondentes foram devidamente calculados e pagos. Em parte pela venda das ações antes citadas, o mesmo banco estatal gerou lucro tão somente graças a medidas excepcionais aplicadas apenas a ele e assim pode recolher dividendos ao Tesouro. Este, por sua vez, usou as ações de empresas privadas para capitalizar outro banco estatal, ao qual também concedeu empréstimos extraordinários, não pagou subsídios e nem repassou contribuições paraestatais, em troca dele também gerar lucros e recolher dividendos ao mesmo Tesouro. Medidas à parte, ainda foi levantada a hipótese que o governo federal reclassificou projetos para se tornarem investimentos passíveis de abatimento da meta, além de tratar subsídios habitacionais como se fossem investimentos, postergou empenhos e pagamentos para o exercício seguinte, deixou de pagar subsídios e repassar recursos vinculados e aumentou os restos a pagar ao final do exercício em ritmo superior ao do incremento do gasto.

Esse emaranhado de operações heterodoxas foram descobertos aos poucos pela imprensa especializada (5). Não foi emitida sequer uma nota à imprensa, quanto mais apresentado algum documento formal e oficial pelo governo federal explicando o conjunto de operações. Quando muito, depois de duras críticas pela mídia, o Ministro da Fazenda e o Secretário do Tesouro deram entrevistas justificando e defendendo a legalidade e regularidade das medidas (6). É forçoso reconhecer que não houve maior novidade em se lançar mão dessa engenharia fiscal, porque ela já tinha sido adotada nos últimos anos. O que desta vez chamou a atenção foi a intensidade, a dimensão e o número de atos e de entes estatais envolvidos. Se muito foi criticada a falta de transparência, por outro lado, foi possível identificar e mensurar as operações ditas heterodoxas, ao ponto de que analistas (7) passaram a apurar e a divulgar indicadores fiscais alternativos, isto é, sobre qual seria o verdadeiro resultado fiscal depois de expurgadas as medidas ditas heterodoxas, inclusive com alguma convergência sobre volume e evolução. O que chamamos a atenção neste artigo é que a análise crítica não deveria se limitar apenas aos aspectos fiscais dessas operações. A engenharia fiscal só é possível graças a uma prévia e importante engenharia financeira, que compreende crescente endividamento público, volumoso crédito governamental para instituições financeiras e cada vez mais estreitas relações intra-setor público, fora a maior dependência de financiamento do setor privado em relação a fontes públicas, inclusive no mercado de capitais (8). Trata-se de uma complexa mescla de causas e consequências, que tem sido pouco observada, quanto menos estudada e avaliada. As medidas ou as excepcionalidades de natureza financeira e bancária antecederam e viabilizaram a engenharia fiscal. Por sua vez, esta resul-

José Roberto Afonso

Economista, especialista em finanças públicas, mestre pela UFRJ e doutor pela UNICAMP

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ta em uma conformação institucional em que bancos e empresas estatais dependem cada vez mais uns dos outros e o setor privado também depende cada vez mais do financiamento público. Isto não significa por si só uma distorção ou um defeito da economia brasileira ou de sua política econômica. Mas cabe ao menos criticar que esse arranjo não tenha sido anunciado e assumido de forma clara e objetiva pelo governo, quanto menos que haja uma avaliação adequada sobre seus objetivos e resultados. Excepcionalidades Monetárias e Orçamentárias A engenharia financeira que sustenta a fiscal começou no ápice da crise global de 2008, quando o Conselho Monetário Nacional (CMN) dispensou o limite de exposição do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à Petrobras, tendo sido depois estendida para a Eletrobrás e a Vale. Especificamente, as exceções foram ditadas pelas Resoluções do Banco Central do Brasil (BCB) números 3.615, de 2008, 3.963, de 2011, e 4.089, de 2012 (9). A mais recente permitiu ao BNDES conceder emprésti-

mos à Vale acima do limite de 25% do patrimônio de referência. Adicionalmente, foi estendido o prazo até 31/6/ 2015 para dispensar o BNDES de respeitar o limite máximo de exposição a um cliente nos casos da Petrobras e da Eletrobrás. Se nestes dois casos as exceções foram justificadas inicialmente por compreender relações entre entes controlados pela União, o mesmo já não pôde ser dito no caso da Vale, que posteriormente recebeu o mesmo tratamento. Recorda-se que o CMN decidiu liberalizar a exposição daquele banco estatal em relação à Petrobras desde 2008, quando da publicação da Resolução do BCB nº 3.615/08, que previa que o controle de crédito passaria a ser feito por empresa (CNPJ) e não por grupo empresarial, como aplicado normalmente no setor bancário. Já no caso da Eletrobrás, a flexibilização foi disparada através da Resolução BCB nº 3.963 de 2011. Em ambas oportunidades, as medidas excepcionais para a supervisão bancárias foram acompanhadas de excepcionalização também no âmbito fiscal, com a exclusão da Petrobras e da Eletrobrás do setor público submetido às metas para o superávit primário e para a dívida líquida.

Evolução de agregados fiscais e creditícios no Brasil pós-crise global Variáveis PIB (12 meses) AGREGADOS FISCAIS DÍVIDAS Dívida Líquida DLSP Dívida Bruta DBGG Método Brasil Método Internacional Poder Público Dívida Pública DPMFi Dívida Mobiliária Mercado Banco Central Carteira Títulos BC Op. Compromissadas BC

Em R$ bilhões correntes

Em % do PIB

Ago/2008 Dez/2012 Variação 2.910 4.412 1.502

Ago/2008 Dez/2012 Variação 100,0% 100,0% 0,00%

DEDUÇÕES Total Créditos Gov. Créditos Resto Economia Créditos Inst. Financ. Oficiais Disponibilidade Financ. AGREGADOS CRÉDITO Crédito Sist. Financeiro Crédito Tec. Discricionários BNDES Desembolsos

1.236

1.550

314

42,47

35,13

-7,34

1.635 1.735

2.584 2.967

949 1.231

56,17 59,63

58,56 67,23

2,40 7,61

1.502 1.202

2.414 1.899

912 697

51,60 41,30

54,71 43,05

3,11 1,75

402 302 186

907 524 272

504 222 86

13,83 1-,37 6,40

20,55 11,88 6,16

6,72 1,51 -0,24

(522) (248) (27) (275) (335)

(1.395) (711) (407) (683) (753)

(873) (463) (380) (409) (418)

-17,95 -8,51 -0,94 -9,44 -11,51

-31,62 -16,11 -9,22 -15,49 -17,07

-13,67 -7,60 -8,29 -6,05 -5,56

1.117 314 78

2.360 874 156

1.243 560 78

38,37 10,78 2,68

53,48 19,80 3,54

15,10 9,02 0,86

Fontes primárias: Banco Central; BNDES (projeção até ago/2008)

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DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2013


Não custa recordar porque tal excepcionalidade bancária foi crucial para a engenharia fiscal. Por exemplo, se o BNDES não pudesse adquirir ainda mais ações da Petrobras e elevando esse seu maior cliente a um percentual ainda mais elevado em relação ao seu patrimônio, não poderia esse banco ter participado das operações com o fundo soberano. Na obra mais recente de engenharia fiscal, a operação mais relevante envolveu a compra pelo BNDES de ações da Petrobras que estavam na carteira do Fundo Soberano, através de títulos públicos e não de cash propriamente dito. Em seguida, tais títulos que passariam a fazer parte da carteira de investimentos do fundo citado foram comprados pelo Tesouro Nacional, numa operação já conhecida de recompra ou compra antecipada de títulos públicos. Não por acaso, o mesmo BNDES recebeu nos últimos meses e anos, sucessivas transferências de títulos, diretamente do Tesouro Nacional, por conta dos financiamentos especiais que este lhe concedia – excepcionalmente foram liberados em papéis públicos, e não na forma tradicional de dinheiro (mesmo que sob a forma de transferência bancária). Neste ponto, é bom recuperar brevemente a história. A resposta da política econômica brasileira à crise global de 2008 passou por uma peculiaridade, sem paralelo nas demais economias emergentes e avançadas: a intensa concessão de crédito diretamente pelo Tesouro Nacional e toda custeada pela emissão de títulos. A justificativa seria promover uma pretensa capitalização de bancos públicos, mas de forma disfarçada e nada convencional (não passava por aumento de capital), a pretexto de injetar liquidez na economia. Tal sistemática, mantida mesmo após retomado o crescimento na economia, produziu um crescimento vertiginoso no volume de concessões de crédito às instituições financeiras oficiais: segundo o BCB, da ordem de 8,7 pontos percentuais do PIB, se comparado o saldo de 0,5% do PIB ao final de 2006 e o de 9,2% ao final de 2012. O crescimento (nominal) de R$ 406,9 bilhões em créditos concedidos pelo Tesouro aos bancos públicos foi basicamente direcionado para a recomposição de funding do BNDES, que recebeu 91,3% (R$ 371,7 bilhões) do volume de recursos. A outra parcela do estoque atual, equivalente a R$ 35,3 bilhões, foi destinada às demais instituições financeiras, com destaque para a Caixa Econômica Federal. Enquanto isso, desde a quebra do banco Lehman Brothers em setembro de 2008, a dívida bruta do governo geral (também medida pelo BCB) cresceu em 7,7 pontos de percentagem do PIB,

O governo se endividou cada vez mais para emprestar cada vez mais – e não necessariamente foi para investir, como na receita clássica keynesiana. Esse processo de crédito governamental ainda pecou por passar à revelia do orçamento público, contrariando a nossa experiência histórica de revalorizar esse instrumento.

saltando de 59,6% para 67,2% ao final de 2012. Nesse mesmo período, foi constatada a elevação em 6,8 pontos do produto da dívida mobiliária em carteira do banco central, enquanto a tradicional dívida em mercado aumentou em apenas 1,8 pontos percentuais. Portanto, o componente da dívida bruta apurada pelo BCB que mais cresceu recentemente foi o constituído pelas operações compromissadas, roladas em grande medida no curtíssimo prazo. O governo se endividou cada vez mais para emprestar cada vez mais – e não necessariamente foi para investir, como na receita clássica keynesiana. Esse processo de crédito governamental ainda pecou por passar à revelia do orçamento público, contrariando a nossa experiência histórica de revalorizar esse instrumento. Desde que foi extinto o orçamento monetária e foi criada a Secretaria do Tesouro em meados dos anos 80, o Brasil passou a incluir no orçamento as despesas que realiza com a concessão de créditos, independentemente do órgão de governo que os empresta, de quem são os tomadores, e por mais nobres que sejam os objetivos. Um bom exemplo é a vinculação obrigatória de 40% da arrecadação do PIS/PASEP para o BNDES, ou de 3% do IR/IPI para os fundos de desenvolvimento regional, pois mesmo sendo tais repasses determinados pela Constituição, eles não deixam de ser incluídos no orçamento e no respectivo balanço da União. Outros financiamentos, do crédito rural aos exportadores, também passam pelo orçamento público, inclusive seu refinanciamento – aliás, o mesmo foi aplicado à rolagem da dívida dos governos estaduais e municipais, que constou nos orçamentos das duas partes. O tratamento extra-orçamentário dos volumosos créditos especiais concedidos pelo Tesouro aos bancos federais tem como argumento central o fato de que não envolvem dinheiro, uma emissão de cheque ou uma transferência bancária, mas sim, foram entregues meros títulos do Tesouro (para tanto, é preciso esquecer que tais títulos seriam parte dos meios de pagamentos, mesmo no conceito não tão amplo). É preciso forçar muito a interpretação de que é uma mera aplicação financeira, inclusive porque o banco a devolverá e com rendimentos. O perigo é: nada impede que a mesma lógica contábil seja aplicada a outros créditos que eventualmente fossem concedidos diretamente a empresas e mesmo a famílias, ainda mais que as taxas cobradas pelo Tesouro por vezes mal chegam a um quinto das aplicadas no mercado, e assim uma parcela importante do gasto viraria empréstimo especial e poderia ficar fora do orçamento e dos limites.

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Valter Campanato/ABr

Uma complexa e criativa engenharia fiscal sem precedente na história brasileira, permitiu ao governo cumprir a meta de superávit em 2012. Na foto, Arno Augustin, secretário do Tesouro Nacional.

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Portanto, o pecado original que levou à tramitação extra-orçamentária de transações envolvendo centenas de bilhões de reais é que os "pagamentos" seriam feitos com títulos, e não com dinheiro – ou seja, seria mera troca de ativos. Se for esse o caso, por princípio, também não deveriam constar no orçamento e nem gerar receitas primárias aquelas transações em que dividendos ou recebíveis foram "pagos" ao Tesouro em participações acionárias, bem assim o mesmo Tesouro as utiliza para "pagar" o aumento de capital de outro banco. Estas dúvidas de natureza conceitual se tornam até menores diante das jurídicas ou institucionais, que podem ir desde um pretenso pedido de isonomia de outros credores do Tesouro, para que também pudessem entregar ações de sua carteira como "moeda de pagamento", até o fato de se tornar sócio, ainda que minoritário, de uma empresa privada, sem prévia e específica autorização legislativa e sem se saber como foram precificados tais ativos. Não muito diferente é a situação da própria venda das ações da Petrobras, ainda que para um banco controlado, quando o valor de mercado estava

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muito aquém do valor de aquisição quando da última capitalização daquela estatal. Do outro lado do balanço, é necessário comentar a capacidade ilimitada do Tesouro em emitir títulos, ao contrário do que se passa no resto do mundo e a despeito do País se orgulhar de adotar uma Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) rigorosa. Ora, a falta de restrição orçamentária na União resulta na menor restrição ao seu financiamento. A Constituição exige, e a LRF regulamentou, limites e demais restrições para a emissão de títulos pelo Tesouro e para o montante da dívida consolidada da União. Porém, os projetos que os fixariam tramitam no Congresso desde 2000 e nunca chegaram perto de ser aprovados – apesar dos limites propostos (6,5 e 3,5 vezes a receita corrente líquida para a dívida mobiliária e para a consolidada líquida, respectivamente) serem muito superiores aos saldos efetivamente verificados (4,5 e 1,7 vezes a receita em outubro de 2012) (10), de modo que, mesmo aprovados os tetos, ainda restaria enorme espaço para endividamento. Neste ponto, importa comentar os dividendos. As receitas dessa categoria no Tesouro saltaram de irrisórios 0,09% do PIB em 1997


Marcelo Camargo/ABr

Depois de descoberta a operação pela mídia especializada, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, teve de vir a público explicar o conjunto de medidas que foram utilizados e a falta de transparência no processo. Segundo o ministro, não houve irregularidades na engenharia fiscal do governo.

para 0,64% em 2012, um crescimento de 0,55 pontos do produto, tendo o recorde sido quebrado justamente no auge da crise, em 2009, quando chegou a 0,82% do PIB – tomando como fonte primária os dados mensalmente divulgados pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Curiosamente, os dividendos pagos a título de antecipação, que eram nulos em 2000, passaram a responde por 81,2% da receita atual. Essa evolução também levou o BN-

DES a passar a responder por mais da metade do total de dividendos recebidos pelo Tesouro; se computados todos os bancos federais, por vezes se passou de 80% do total. Não há nada de errado em um governo receber receitas de um banco e de uma empresa que controle, oriundos de dividendos, ou mesmo venda de bens e ativos. Mas há muito que explicar quando o banco ou a estatal que gerou a receita recebeu um financiamento extraordinário

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do Tesouro Nacional, com taxas, prazos e condições muito melhores que os praticados normalmente no mercado. Essa operação casada foi explícita em algumas vezes (como na operação de capitalização da Petrobras em barris do futuro pré-sal), quando não até realizada na mesma data. Portanto, o questionamento é inevitável quando o dividendo decorre de lucros gerados por um ente estatal: que recebeu financiamentos em condições especiais do controlador; que vendeu ao mesmo controlador suas participações em empresas privadas, que deve ter permitido realizar um grande ganho e assim levar ao seu balanço, e produzir mais lucro e dividendo por distribuir; e que também foi dispensado (11) de levar as perdas com ações de empresas estatais para o balanço porque uma regra de mercado foi mudada e uma excepcionalidade foi concedida apenas a um ente estatal. Não é diferente também o caso em que a receita decorre da venda de ativos em que é algo nebuloso o seu valor, a sua rentabilidade ou o seu prazo de realização (como no caso dos direitos de elétricas comprados pelo banco que recebeu um financiamento estatal). Alegar que emprestar ao setor privado através de um banco de desenvolvimento estatal seria supostamente mais sadio do que através do banco central não resiste ao fato de que, na prática, é a mesma situação que impera nos dois casos – o poder público é que financia o privado. Em si, isso não constitui nenhum pecado, mas, para se saber se haverá o retorno adequado aos cofres públicos, tanto do principal, quanto da remuneração, certamente é muito melhor que a transação seja explicitada nos orçamentos e nas prestações contas públicas. Não parece que o Brasil leve vantagem nessa matéria, inclusive porque o Tribunal de Contas da União (TCU) já deliberou, mais de uma vez, cobrando do Tesouro mais transparência nessas operações e, especificamente, determinou que o mesmo mensure e publique o tamanho do subsídio creditício. (12) Algumas Questões Conceituais É importante uma observação específica sobre o superávit primário. Não foi o Brasil que inventou a metodologia de apuração do resultado fiscal primário. Este é um conceito econômico (para medir a capacidade do governo em honrar com os compromissos de sua dívida) e não contábil. A metodologia aqui aplicada é, na essência, a mesma do resto do mundo. Ela foi importada na esteira da crise do início dos anos 80 e uma meta fiscal específica desde então passou

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Uma despesa pode ser classificada por diferentes tipologias, a começar pela contábil, como correntes ou de capital, e não se resume a ser identificada como primária ou não. O fato de um gasto não ser tido como primário não o dispensa de ser incluído no orçamento ou mesmo de ser chamado de despesa – nessa leitura equivocada, todo o serviço da dívida pública poderia ser excluído do orçamento.

a ser acordada com o FMI. Era apropriada para o contexto econômico e institucional da época, com superinflação e sem uma contabilidade moderna. As instituições brasileiras mudaram, inclusive com a edição de uma Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), tida como das mais completas e austeras, e o resto do mundo também mudou, passando a dar cada vez mais atenção ao resultado estrutural. É até possível dizer que o Brasil ficou para trás no mundo, ao manter as atenções, tanto as governamentais quanto as do mercado, monopolizadas pelo resultado primário e a dívida líquida. Embora, a LRF exija metas fiscais não apenas de primário, como também de resultado nominal, e não apenas de dívida líquida, como também de dívida bruta e estas sejam formuladas e perseguidas, ano a ano, por todos os governos estaduais e, se espera que por todos os municipais, as mesmas regras não se aplicam ao governo federal, que se restringe àqueles conceitos. Aliás, pode ser considerado estranho (ou até contraditório) alegar que o resultado fiscal que realmente importa é o nominal, quando não se inclui no projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da União uma meta específica para tal resultado. Embora a LRF exija metas para as duas medidas, primária e nominal, apenas a segunda tem sido objeto de fixação na LDO da União. Ao contrário, os governos estaduais e municipais seguem a LRF e fixam as duas metas de resultado em suas respectivas LDOs, inclusive porque assim orienta o manual editado pela STN. De qualquer forma, despesa é um compromisso honrado pelo governo e, como talvez, toda despesa de um governo deve constar do orçamento, segundo preceito constitucional e da democracia moderna. Uma despesa pode ser classificada por diferentes tipologias, a começar pela contábil, como correntes ou de capital, e não se resume a ser identificada como primária ou não. O fato de um gasto não ser tido como primário não o dispensa de ser incluído no orçamento ou mesmo de ser chamado de despesa – nessa leitura equivocada, todo o serviço da dívida pública poderia ser excluído do orçamento. Outra questão particular respeita as relações cruzadas entre os maiores bancos e empresas estatais federais, que também estão entre os maiores bancos e empresas do País. Da concessão de crédito até participações acionárias, as operações heterodoxas realizadas ao final de 2012 vieram a aprofundar ainda mais as intensas e mútuas exposições dos bancos federais (BNDES e Caixa) às maiores estatais (Petrobras e Eletrobrás). Segundo o balanço da Petrobras ao final de


Na obra mais recente de engenharia fiscal, a operação mais relevante envolveu a compra pelo BNDES de ações da Petrobras que estavam na carteira do Fundo Soberano, através de títulos públicos e não de cash propriamente dito.

percussão de seus resultados para a política monetária. É simplista considerar que basta o atendimento de uma meta cheia de superávit primário, sem importar a sua qualidade. A formação desse resultado precisa também ser ponderada pelos formuladores e executores da política monetária. Não se deveria acreditar que, embora possam ser iguais matematicamente, que para o resto da economia tanto faz um corte de gasto quanto um aumento de receita, ambos no mesmo valor. Mais que isso, seria muita ingenuidade supor que, para a política monetária, tanto faz uma receita oriunda de impostos recolhidos por toda a sociedade, quanto outra receita decorrente de dividendos ou da alienação de haveres financeiros, ambos para entes estatais,

Arestides Baptista/Ag. A Tarde/AE

setembro de 2012, a estatal devia R$ 44,6 bilhões ao BNDES, que, por sua vez, registrava em seu balanço deter uma participação acionária de R$ 44,4 bilhões naquela empresa (13). Isto é, somados os dois montantes, a exposição monta a R$ 89 bilhões contra a seguinte posição patrimonial do BNDES – capital (nível 1) de R$ 47,4 bilhões e um patrimônio de referência (nível 2) de R$ 92,2 bilhões (ou seja, os ativos contra um único e maior cliente equivalem a 96,7% do patrimônio do banco). Essa posição era anterior a nova aquisição pelo BNDES de ações da Petrobras junto ao Tesouro, para fechar as contas de 2012, o que provavelmente elevará a citada exposição a superar o capital também no nível 2, o mais amplo. A Petrobras ainda informava dever R$ 8,2 bilhões para a Caixa Econômica, provavelmente mantendo a posição de ser o maior cliente isolado a também tomar crédito nesse banco, que, em outubro, detinha R$ 25,1 bilhões de patrimônio de referência - nível 1 (14). Não se trata apenas de serem os maiores clientes na captação de empréstimos e nem de responderem pela maior parcela da carteira de ações, mas que a proporção das transações assume proporções expressivas em relação ao patrimônio. Basta citar que, antes da recente venda de ações da Petrobras do fundo soberano para o BNDES, este dispunha de créditos e ações contra aquela estatal que já equivalia a 96% de seu capital de referência (e deve ter superado depois da última transição). Essas exposições evidentemente estão bem acima das previsões regulares de supervisão e prudência, tanto no sistema bancária, quanto no mercado acionário. Não por outro motivo foi preciso que o CMN, como já comentado, mantivesse e concedesse novas flexibilizações. A tese de que não há maior risco porque se tratam de relações cruzadas e internas ao setor público deve ser tomada com alguma ressalva. Sem dúvida que, numa situação extrema, créditos poderiam ser convertidos em ações. Porém, é preciso atentar que alguns dos entes estatais envolvidos possuem acionistas privados, são companhias abertas, sujeitos a governança corporativa e estão entre as maiores empresas do País. Não por outro motivo que as próprias "estatais alertam acionistas para prejuízos que podem ser causados pela intervenção do Executivo nas empresas", segundo recente levantamento dos avisos registrados em documentos oficiais da Petrobras, Eletrobrás e do Banco do Brasil (15). A polêmica fiscal fez com que se perdesse uma ótima oportunidade para aproveitar os questionamentos em torno da política fiscal e provocar um debate sobre qual a verdadeira re-

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que, coincidentemente, são cada vez mais financiados pelo mesmo Tesouro. Nem é preciso uma maior reflexão teórica ou algum modelo econométrico para verificar que transações fiscais podem impactar a economia de forma muito diferenciada, desde a geração da demanda, até a própria expansão monetária. Na mesma linha, não é possível ignorar que, há alguns anos, a evolução da dívida líquida do setor público brasileiro se explica menos pelo superávit primário, e muito mais pelas enormes variações patrimoniais, antes muito mais pelo tamanho das reservas internacionais, agora também pelos créditos governamentais, ambas tendo como contrapartida a expansão das operações compromissadas, uma forma especial, mais curta e às vezes até mais cara, de endividamento público mobiliário. Além de refletir mais e melhor sobre repercussões para a política monetária da forma como os resultados fiscais são gerados, é preciso também se introduzir nos debates mais atenção às relações entre Tesouro Nacional e os bancos por ele controlados, que passou a aproximar os vínculos entre política fiscal e creditícia. Professor Delfim Netto chamou de "incestuosas" tais relações, porém, mais atenção foi dada a qualificação das medidas fiscais como "alquimia" (16). Aparentemente, as novas medidas financeiras podem não ter se limitado a buscar efeitos nos indicadores fiscais e podem ter promovido ainda mudanças na estruturação e forma de atuação dos bancos públicos federais. As instituições antes especializadas em atuarem como bancos comerciais ou agentes financeiros do governo passaram a deter cada vez mais participações acionárias e outras funções que eram exclusivas ou preferenciais apenas do antes único banco de desenvolvimento. A reorientação de participações acionárias não se limita apenas a relações intra-setor público, pois há efeito colateral importante para as poucas grandes empresas privadas que possuem o governo como acionista, direto ou indiretamente via seus bancos, empresas e até fundos de pensão dos respectivos funcionários. A redistribuição das ações entre diferentes bancos estatais, depois de uma escala ou conexão no Tesouro, permitirá uma maior presença estatal direta nas empresas, diluindo o grau de exposição de cada banco, abrindo espaço para ofertar mais crédito as citadas empresas, e tudo isso com menor risco de que uma instituição se torne a controladora - embora, somadas as participações dos diferentes entes estatais, direta ou indiretamente, a empresa privada até pode se tornar uma espécie de "para-estatal".

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Observações Finais Por trás das operações heterodoxas nas contas públicas se constata como a engenharia fiscal foi mesclada com a financeira no Brasil. Na prática, a formação de uma espécie de Banco do Tesouro Nacional, custeado por aumento do seu endividamento bruto e resultando na concessão de créditos especiais a bancos federais, inclusive quitados pela entrega de papéis e não em dinheiro. Os bancos federais parecem que acabam se reduzindo a uma espécie de agentes financeiros informais do Tesouro, inclusive porque os recursos que captam por tais créditos extraordinários, e que acabam sendo emprestados, o foram de forma vinculada a programas e setores selecionados pelo governo federal, inclusive para fins de eleger os beneficiários desses créditos. De fato, como já destacado por autoridades federais em outros países, tal processo passou pelo banco central, o que exigiu um novo contexto de relações com o respectivo Tesouro Nacional. O fato de o Brasil não ter percorrido esse caminho de muitas economias avançadas – que possivelmente até seja mais transparente e passível de melhor controle, fiscal e social –, não significa que deixou de adotar a mesma política de suportes e aportes estatais ao sistema financeiro e mesmo ao produtivo. Na prática, a função que lá fora foi exercida pelos bancos centrais, aqui passou pelos bancos estatais federais. Eles tanto financiaram o próprio Tesouro que os alimentou, através das operações heterodoxas aqui comentadas, quanto o resto da economia, em projetos e áreas selecionadas pelas autoridades federais, com subsídios implícitos e explícitos, e por vezes só o fazendo contra garantias da mesma União. Em conclusão, na essência, por trás de tantas e complexas transações, está uma forma disfarçada de financiamento das contas públicas à custa de seu endividamento. Os bancos públicos exerceram ao pé da letra a sua função de intermediários, mas, no caso de parcela dos financiamentos especiais que tomam junto ao Tesouro, atuam menos como instituições financeiras e mais como agentes do Tesouro, para fins de operações fiscais de caráter extraordinário. Nesse papel, servem para transformar recursos que seriam cap-


Agliberto Lima/DC

tados à custa da emissão de títulos em receitas primárias. A função excepcional de intermediário das operações heterodoxas se assemelha a popularmente conhecida como laranja, uma vez que não estão captando e aplicando recursos, mas simplesmente servindo de meio de passagem para que recursos oriundos do Tesouro Nacional a ele voltem, ainda que com outra classificação contábil. Não custa reproduzir as palavras do professor Delfim Netto em artigo já citado: "A repetição desses "truques contábeis" está construindo uma relação incestuosa entre o Tesouro Nacional, a Petrobras, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal." Em termos institucionais e cronológicos, é possível acusar que o pecado original não teria sido cometido na órbita fiscal, mas sim na financeira. Sem as exceções concedidas pelas autoridades monetárias não teria sido possível a um banco de controle estatal puro gerar lucro, ou tanto lucro, isto depois do tanto que perdeu no mercado acionário em ações das maiores estatais do País, e sem contar que também precisou de alguma forma vender as participações em empresas privadas para o Tesouro (que depois repassou a Caixa) de modo a levar os ganhos nessas ações para o seu resultado e assim poder gerar mais lucros e mais dividendos a distribuir. Por outro lado, se o mesmo banco de desenvolvimento logrou diminuir sua exposição a tais empresas privadas em que participava no capital, como precisou comprar do Tesouro mais ações de sua empresa de petróleo, teve que aumentar mais uma vez a sua exposição a esse cliente, o que só foi possível porque as autoridades monetárias criaram uma regra única, aplicada apenas a esse banco e apenas em relação a essa empresa, de modo a computar a exposição por estabelecimento e não para o conjunto das empresas.

Notas (1) Este artigo reproduz argumentos e parte de trechos do ensaio técnico, "Sobre Fazer o Cumprimento da Meta de Superávit Primário", escrito em parceria com Gabriel Leal de Barros, para o IBRE/FGV, em fevereiro de 2013. Como de praxe, as opiniões são próprias e não das instituições citadas. Felipe de Azevedo deu apoio à pesquisa. (2) O texto da Medida Provisória consta de: http://bit.ly/SLK6cf (3) A página do Diário Oficial com a íntegra dos três decretos é: http://bit.ly/SLJEea (4) A resolução publicada pelo Banco Central consta em: http://bit.ly/SLLpId (5) Para uma coletânea de notícias e artigos publicados pela mídia, ver: http://bit.ly/SLGuXR (6) Ver entrevistas em: http://bit.ly/SLFNO9 e http://migre.me/cYEz2 (7) É o caso de Felipe Salto, "PET: um termômetro para a contabilidade criativa", Tendências, Fevereiro 2013 ( http://bit.ly/XuVHrH ), e de Mauricio Oreng, "Contas públicas: dimensionando o impacto das operações "não recorrentes", Macro Visão Itaú, Janeiro, 2013 ( http://bit.ly/Zx7Ded) (8) Para detalhar a análise sobre as vinculações entre políticas fiscal e creditícia, ver artigo do autor "As Intricadas Relações entre Política Fiscal e Creditícia no Brasil Pós-2008", na Revista Econômica, UFF, Niterói, vol.13, pp.125-154, dezembro 2011; disponível em: http://bit.ly/SU52rO (9) As resoluções mencionadas, por ordem de cronologia decrescente, estão disponíveis no portal do BCB em: http://www.bcb.gov.br/normativo_4.089/12, 3.963/11 e 3.615/08. (10) Ver relatório de gestão da LRF do 2º quadrimestre em: http://bit.ly/XOXSa9 (11) Serviços "on line" até noticiaram em 27/12/2012 mas poucos notaram ou repercutiram. O Globo On Line comentou: "...De acordo com a Resolução nº 4.175 do Banco Central, 25% das ações que o BNDES possui e que são classificadas como "disponíveis" (papéis de longo prazo que não são negociados no dia a dia do banco, mas que formam sua reserva e servem de esteio para o patrimônio líquido do banco e seus empréstimos) não precisarão mais ser reclassificadas toda vez que houver uma variação muito grande na cotação destas ações. Assim, o lucro do banco não será afetado com a recente queda nas cotações das ações que predominam na carteira do BNDES: Petrobras e Eletrobrás. Indiretamente, dizem fontes, essas medidas podem até ajudar o resultado fiscal do governo, uma vez que o BNDES tem sido nos últimos anos um dos maiores pagadores de dividendos ao governo, que entra em seu caixa, melhorando suas contas.... Mas fontes do mercado confirmam que o impacto poderá ser significativo no resultado do banco. No terceiro trimestre de 2012, o lucro do BNDES foi de R$ 2,043 bilhões, valor 21% inferior ao registrado no mesmo período do ano passado (R$ 2,587 bilhões). No acumulado do ano, a queda no lucro é ainda maior: nos nove primeiros meses o resultado foi de R$ 4,785 bilhões, 39,2% a menos que no acumulado em 2011 até setembro (R$ 7,866 bilhões)." Ver em: http://bit.ly/WzdU7S. (12) Ver Acordão TCU nº 3071/2012. Disponível em: http://bit.ly/UhjC0i (13) Ver balanços da Petrobras e do BNDES, respectivamente, ao final de setembro de 2012, em: http://bit.ly/WM3piA e http://bit.ly/Vl2K6z (14) Segundo o BCB (http://bit.ly/mPJVtx), em outubro de 2012, a Caixa tinha R$ 25,1 bilhões de patrimônio de referência - nível 1. (15) Vide matéria "O Risco de ter como sócio o governo", do Correio Braziliense, de 6/1/2013: ver http://bit.ly/UAjc3Z (16) Ver artigo publicado no jornal Valor, edição de 15/01/2013: http://bit.ly/Yesxje

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Brasil derruba crescimento da AL Carlos Ossamu Roberto Fendt: ao contrário do Brasil, o mundo está se abrindo.

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Marcelo Correa/1000 Palavras

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Banco Mundial divulgou recentemente o relatório Global Economic Prospects: Assuring Growth Over the Medium Term (Perspectivas Econômicas Globais: Garantir o Crescimento a Médio Prazo - Janeiro 2013). De acordo com o documento, quatro anos após o início da crise financeira global, a economia mundial continua lutando para se reerguer. As economias de países em desenvolvimento ainda são o principal motor do crescimento global, mas a sua produção diminuiu em comparação com o período pré-crise. Um bom exemplo disso é a região da América Latina e Caribe, que cresceu apenas 3% em 2012. Para o economista Roberto Fendt, este fraco desempenho se deveu principalmente pelo baixo crescimento brasileiro, que foi pífio e frustrou todas as expectativas. Na entrevista a seguir, Fendt critica duramente o Mercosul, elogia a formação da Aliança do Pacífico e afirma que os países que estão buscando a liberalização econômica estão se dando melhor do que aqueles que estão se fechando, como é o caso do Brasil.


Wilson Dias/Agência Brasil

Digesto Econômico - Segundo dados divulgados pelo Banco Mundial, a região da América Latina e Caribe teve um crescimento médio de 3% em 2012. O mesmo documento afirma que o Brasil, que é a maior economia da região, cresceu apenas 0,9%. Como o senhor analisa esses dados? Roberto Fendt - Pelos padrões latinoamericanos, o crescimento de 3% na região é considerado modesto e foi fortemente influenciado pelo fraco desempenho do Brasil. O IBGE ainda não divulgou o número oficial, mas especula-se no mercado que dificilmente passará de 1%. Foi um crescimento muito baixo, considerando o crescimento da população – a renda per capita do Brasil com o crescimento de 1% resulta, na verdade, em um crescimento negativo. Se há uma grande preocupação no governo em relação à melhoria das condições sociais da população, este dado é desastroso. A população como um todo teve uma perda de renda em seu poder aquisitivo. O Brasil equivale à metade da América Latina em termos econômicos e esse fraco desempenho puxou o crescimento da região para baixo. Em 2010 e 2011, a América Latina cresceu,

respectivamente, 6% e 4,3%. O normal da América Latina é crescer acima do crescimento da população. Este crescimento de 3% em 2012 provavelmente ainda permite algum crescimento da renda per capita, porém muito pequeno.

Protecionismo e questões jurídicas contrariam o espírito original da formação do Mercosul.

O responsável então foi o Brasil. Se olharmos a América Latina, o crescimento do Brasil foi um dos piores. Países com maior abertura de suas economias para o exterior, como o Chile (5,8%), o Peru (6,3%) e Colômbia (3,5%), tiveram crescimentos muito mais expressivos do que o brasileiro. Só foi possível a América Latina crescer 3%, com o Brasil crescendo 1%, com os outros crescendo muito mais. Foi isso que puxou a média para cima. Como a região vem se comportando economicamente? Há um fator importante acontecendo na América Latina, que é a criação de um novo bloco de comércio. O Chile, o Peru, a Colômbia e o México formaram a Aliança do Pacífico. Eles são os países que mais crescem

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na América Latina e que liberalizaram os seus comércios. O espírito desses países é engajarse ao maior polo econômico hoje no mundo, que é a área do Pacífico. Os Estados Unidos e outros países estão formando a própria zona de livre comércio no Pacífico, a TPP - TransPacific Partnership (Parceria Trans-Pacífico). Fazem parte países como Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Nova Zelândia, Peru, Cingapura, Vietnã e Estados Unidos. Mais para frente devem entrar Japão e Coreia. O mundo todo está hoje se voltando para uma País maior abertura Argentina econômica e enfatizando Bolívia muito a zona do Pacífico. Brasil Chile E o Brasil e demais países Colômbia do Mercosul? Equador Em contraste aos México países banhados pelo Peru Pacífico, o Brasil está progressivamente se Paraguai fechando. A nossa Uruguai parceria com a Venezuela Argentina está tomando *Estimativa caminhos que contrariam todo o espírito original da formação do Mercosul – um protecionismo muito acirrado por parte da Argentina e dificuldades de toda ordem para a expansão do comércio entre os países. Essa suspensão temporária do Paraguai no bloco é um assunto bastante controverso – o Paraguai deveria ter votado contra ou a favor ao ingresso da Venezuela no Mercosul, sendo que esse ingresso, no final, foi promovido. Temos uma série de questões jurídicas que estão se sobrepondo às dificuldades econômicas que o bloco do Mercosul já vinha enfrentando. Tudo isso vem acontecendo em um momento em que o mundo está tomando atitudes proativas de expansão do comércio e é isso que está fazendo os países crescerem. A liberdade do comércio é o grande motor do crescimento. É a liberdade do comércio que permite uma melhor especialização dos países, a busca pela eficiência – não é preciso o presidente chamar os empresários e dizer que eles precisam ganhar dinheiro, eles fazem isso naturalmente, este é o objetivo das empresas. O que força a eficiência, promove o emprego, o lucro e os investimentos é justamente a abertura das economias. É isso que eu acho que está faltando entre nós.

Crescimento do PIB (%)

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2011 8,9 5,2 2,7 6,0 5,9 8,0 3,9 6,9 4,0 5,7 4,2

2012 2,0 4,7 0,9 5,8 3,5 4,5 4,0 6,3 -1,0 4,0 5,2

2013* 3,4 4,4 3,4 5,1 3,8 3,9 3,3 5,8 8,5 4,0 1,8

Fonte: Banco Mundial

Qual a sua avaliação em relação ao Mercosul? Eu era diretor da Cacex e participei do primeiro acordo de complementação econômica com a Argentina em 1985/86. De início, a nossa parceria produziu resultados extraordinários em matéria de expansão do comércio, de liberalização. Posteriormente, quando Uruguai e Paraguai aderiram, o Mercosul teve os seus anos de glória e nos tornamos um bloco comercial muito mais consistente. O que está acontecendo é que, de alguns anos para cá, as dificuldades vêm sendo maiores do que as facilidades. Se nós olharmos o resto do mundo, estamos ficando para trás. Acho que falta um pouco mais de atenção por parte dos governos, já que é um acordo entre Estados soberanos, no sentido de corrigir o que está mal e relançar o Mercosul no caminho que tinha anteriormente. Claro que isso é muito fácil de falar e muito difícil de executar. Principalmente em relação a Argentina e Brasil, temos visto um intervencionismo muito forte e autoritário do Estado na economia. O senhor concorda? Sim, e isso tem atrapalhado muito. A política econômica argentina tem levado o país a buscar alternativas que não são de mercado, alternativas de intervenção no sentido de tentar corrigir o que está errado, só que isso leva a um erro ainda maior. A Argentina vem persistentemente caminhando nessa direção. O que acaba acontecendo é que os seus parceiros acabam retaliando. Não é possível um dos países ter total acesso aos demais sem a contrapartida de acesso ao seu mercado. Esse é o espírito da formação de um bloco comercial. Acaba ocorrendo que, tanto Uruguai, Paraguai e Brasil, acabam retaliando algumas dessas medidas protecionistas da Argentina, o que acaba aumentando o espaço para intervenções do Estado. Isso torna cada vez mais difícil o retorno ao caminho de liberalização. É uma fase muito ruim que o Mercosul está atravessando, nos últimos anos tem sido um grande desapontamento. Qual a sua avaliação em relação à entrada da Venezuela no bloco? Em princípio, o Mercosul é aberto à adesão de outros Estados, desde que eles atendam o espírito do acordo do Mercosul. O acordo prevê a harmonização de uma série de instrumentos – nós devemos ter barreiras contra outros países harmonizadas, não é possível que um país tenha um imposto de


Roberto Stucker Filho/Reuters

Enrique Castro-Mendivil/Reuters

Acima, as presidentes Cristina Kirchner (Argentina) e Dilma Rousseff (Brasil); ao lado, Ollanta Humala, presidente do Peru.

importação menor que outros. Devemos eliminar barreiras não tarifárias ao comércio entre os diversos parceiros, assim como eliminar os impostos de importação progressivamente entre os parceiros. Os países também devem obedecer às cláusulas democráticas do Mercosul, todos os países signatários devem fazê-lo. E há uma grande controvérsia se de fato, no caso da Venezuela, o regime segue os ditames de uma verdadeira democracia. Isso tudo coloca uma série de questões, que ficaram ainda mais complicadas com o fato de que o presidente venezuelano não tomou posse como manda a constituição daquele país – ele estava em tratamento de saúde em Cuba e já retornou, mas não se sabe o seu estado, e assumiu o vice-presidente. Mas como, se o presidente não assumiu? É toda uma situação de instabilidade democrática complexa, além do que, até onde se sabe, a Venezuela até agora não entregou os documentos constitutivos essenciais para poder participar do Mercosul – não foram removidas as barreiras não tarifárias, as tarifas aduaneiras não estão

hamonizadas etc. Há todo um conjunto de questões que precisam ser resolvidas. Por outro lado, a Venezuela nos propiciou um dos maiores saldos comerciais no ano passado e o Brasil tem interesses econômicos importantes na Venezuela. A Venezuela sempre existirá e será nossa vizinha. Não é porque A, B ou C estão governando agora na Venezuela que isso vá determinar a presença ou não do país neste acordo. O mesmo se aplica ao Paraguai. O fato de o Paraguai ter passado por problemas políticos internos não é motivo para que não participe do Mercosul. Todas essas situações não aparecem em outras áreas de livre comércio, como a Apec (Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico) ou nesse novo bloco de países latino-americanos do lado do Pacífico. Há, como uma pré-condição, a solução desses problemas, como foi na criação do Mercosul. Na época não tínhamos esse tipo de disparidade política e agora estamos convivendo com ele, complicando a atuação do bloco econômico. Entre os países da América Latina, em sua opinião, quem é o grande destaque? O Chile é a grande estrela da América Latina hoje. O Chile fez grandes reformas, que levaram a uma ampliação da liberalização da economia ainda no período militar. Posteriormente, com o retorno da democracia, nenhum dos governos democraticamente eleitos mudou a política econômica herdada do regime militar. Isso fez com que o Chile seja hoje o país com maior índice de desenvolvimento da América Latina, apesar de ser um país pequeno, sem o potencial econômico que tem o Brasil ou a Argentina. É um país cuja economia tem um peso equivalente ao Estado do Rio de Janeiro. A população chilena é pequena e a sua geografia é péssima – a parte norte é um deserto, a parte sul está coberta de gelo o ano inteiro. É um país com pouca capacidade de atividades agrícolas, mas a despeito disso, é um grande exportador de vinho de qualidade. Ao mesmo tempo, continuou fomentando suas atividades em mineração. O Chile procurou se especializar naquilo que eles são capazes de fazer bem e comprar do mundo o que fazem mal, ao contrário de nós, que queremos fazer tudo e muitas vezes a um custo alto e com um nível de qualidade inferior. Por outro lado, o Brasil tem algo que é padrão de primeiro mundo: o seu agronegócio, que produz hoje em condições competitivas para todo o mundo. Se não fosse

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Edgar Lopes/Folhapress

o agronegócio, no ano passado não cresceríamos nem esses 1%. O que está puxando o crescimento, mesmo baixo, é o agronegócio. Nesta área, o Brasil está fazendo um dos melhores trabalhos do mundo. Como a América Latina deve se comportar este ano? O Banco Mundial estima um crescimento de 3,5%. O crescimento da América Latina depende muito do crescimento brasileiro, pois o Brasil é metade da economia da região. Quando o Brasil cresce 1%, é uma coisa, quando cresce 3,5%, é outra. As projeções do Banco Mundial não mostram melhorias tão fantásticas de 2012 para 2013. Em minha opinião, essas projeções são pessimistas demais, talvez a região cresça um pouco mais. A economia mundial ainda está em uma fase de grande incerteza: a Europa continua patinando, embora o risco do abandono da Zona do Euro e da quebra de países tenha se reduzido, mas o crescimento na região tem sido muito pequeno. Embora haja uma retomada americana – os americanos estão crescendo mais do que nós, por exemplo –, eles ainda estão crescendo bem aquém do que podem. A China desacelerou a sua taxa de crescimento. Isso tudo afeta muito os países latinoamericanos, principalmente os exportadores de commodities, que é o nosso caso e o da Argentina. Os grandes exportadores para a

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Acima, vista geral do porto de Valparaíso, no Chile. Abaixo, colheira de soja em Goiás: o agronegócio brasileiro é um dos mais avançados do mundo.

Marcelo Justo/Folhapress

China são: Brasil, Peru, Chile e Argentina. Os demais países da América Latina são exportadores para os Estados Unidos, principalmente o México, onde as exportações para os EUA representam 80% do comércio. Quem achar que o China irá crescer mais, dará mais pontuação ao Brasil, Peru, Chile e Argentina. Quem achar que a economia americana se recupera mais rápido, dará melhor nota para o México, por exemplo. Mas tudo isso são conjecturas. O futuro não existe, ele vai se fazendo.


Guilherme Werneck/Folha Imagem

O Chile, na visão do Banco Mundial

La Moneda, sede da Presidência da República

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uas décadas atrás, o Chile assumiu o compromisso de avançar em sua reforma econômica, realizar ações proativas em investimentos sociais e na transparência da gestão do setor público. Em 2011, o governo propôs reformas estruturais nas áreas da Saúde, Educação, redução da pobreza e nos índices de criminalidade, além da reforma do Estado, dos sistemas políticos e ambientais. O Chile é um dos países da América Latina com crescimento econômico mais rápido. Durante os últimos 20 anos, o país registrou um crescimento anual médio per capita de 3,8%, o que fez com que a renda per capita quase que dobrasse em termos reais. O Chile consolidou a estabilidade macroeconômica por adotar uma taxa de câmbio flutuante, o estabelecimento de metas de inflação e disciplina fiscal. O sistema financeiro é grande e bem diversificado em comparação com outros países da região. O país tem uma sólida estrutura de regulação e supervisão, bem como a capacidade de recuperação em caso de crises. Durante o segundo semestre de 2008, o crescimento desacelerou por conta da fraca demanda global por exportações chilenas. O crescimento real do PIB foi de -1% em 2009. O governo então lançou um forte pacote de estímulo fiscal, financiado com as economias acumuladas durante anos de altos preços do cobre, combinado com uma política monetária flexível, com o apoio de um início de recuperação econômica no início do último trimestre de 2009. Em janeiro de 2010, o Chile foi o primeiro país sul-americano a aderir à OCDE. No entanto, o devastador terremoto de fevereiro de 2010

levou a uma contração de -3,1% no primeiro trimestre desse ano. Mesmo assim, a economia recuperou-se vigorosamente, registrando um crescimento de 6,1% no acumulado de 2010, impulsionado pela reconstrução do país e pelos investimentos realizados. O Chile enfrenta dois desafios: aumentar a produtividade e alcançar a igualdade de oportunidades. O crescimento do país diminuiu de uma média de 7,6% entre 1986 e 1997 para 4,3% em 2000/09. Além disso, o crescimento da produtividade e os níveis de investimento registraram uma tendência descendente ao longo da última década. O segundo desafio é a necessidade de combater a desigualdade. Enquanto o Chile tem feito progressos substanciais na redução da pobreza (15% em 2009), a renda média dos 20% mais ricos era 13 vezes maior do que os 20% em 2009. Embora o Chile tenha investido ativamente em programas de proteção social, as famílias de média e baixa renda continuam vulneráveis às crises. O governo chileno lançou uma ambiciosa agenda de desenvolvimento para apoiar a meta do país de alcançar o status de alta renda em 2018. O governo pretende enfatizar três áreas estratégicas até 2014: - alcançar uma maior competitividade, incluindo a modernização do Estado; - aumentar a criação de emprego e melhorar a qualidade do trabalho; e - promover o investimento. Além disso, o governo também se comprometeu a reforçar as políticas sociais e de proteger o meio ambiente.

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Tim Harcourt

Riotur/Divulgação

O autor foi o Mestre de Cerimônias da Universidade de Melbourne no recente evento Diálogo com a América Latina. Ele é JW Fellow Nevile e Professor Adjunto em Estratégia de Negócios Internacionais da Escola de Negócios da Austrália (UNSW), Sydney, e autor de The Airport Economist and The Airport Economist Goes to Rio. www.timharcourt.com

Laços da China com o Brasil

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urante a recente crise financeira global, que causou turbulência no hemisfério norte, dois países evitaram o pior da crise global, em parte graças aos seus respectivos laços fortes com a China. Essas nações, que se beneficiaram, também terão um papel importante no desenvolvimento econômico do gigante asiático no século 21. São elas Brasil e Austrália, duas grandes terras do sul, que têm como características a vastidão, diversificação e foram considerados por seus descobridores como muito, muito distantes. Em agosto, eu ajudei a liderar o evento Melbourne Latin America Dialogue, promovido pela Universidade de Melbourne, para ampliar as relações entre Austrália e a América Latina em diversos setores. Muitos dos participantes, representando governos e empresas, falaram como, apesar das diferenças específicas que existem entre Brasil e Austrália, os dois países têm muito a compartilhar quando se trata da experiência no relacionamento com a China. A Austrália foi colonizada como uma prisão em uma grande parceria do setor público privado (PPP), mas se transformou em três sociedades, os detidos, seus carcereiros e as populações indígenas locais destituídas de suas terras. De alguma forma, apesar deste começo humilde e das tensões geradas, a sociedade se

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deu bem graças a grande quantidade de recursos naturais, como trigo, lã e ouro. Outro ponto importante foi que os colonos livres do velho mundo se juntaram aos presos e carcereiros, e, ao longo do tempo, esses últimos ficaram em minoria. A China desempenhou um papel importante nesse desenvolvimento. Bob Hawke desenvolveu laços estreitos com a China e ainda é bem conhecido na República Popular até hoje. O outro país, o Brasil, não foi colonizado como uma prisão, mas sim sob o peso da escravidão. O país também é vasto, mas geograficamente muito diferente. O Brasil também teve que enfrentar problemas econômicos e os seus impactos ainda eram sentidos até uma década atrás. Na maior parte de sua história econômica recente, ele não teve inflação de dois dígitos e não precisou enfrentar o desemprego, mas que teve problemas muito piores, como, deslocação do mercado de mão de obra e pobreza em massa. Seu sistema financeiro não era antiquado, mas sim disfuncional, houve problemas com as taxas de câmbio, taxas de juros e encargos da dívida, além de greves, mas agitação social generalizada que impactaram sua própria estabilidade democrática. No entanto, este país também tinha um líder sindical, Lula. Ele não estudara em Oxford, era nascido no nordeste do país, fora preso por sua atividade sindical e concorrera para presiden-


Wilfried Kecichwost/Image Souce

Brasil e Austrália: os laços fortes com a China evitou que estes dois gigantes do hemisfério sul sofressem o pior da crise financeira global.

e Austrália no século 21 te três vezes antes de ser eleito. Ele também reformou a economia do país, mantendo fortes programas de justiça social (muitos dos quais foram iniciados pelo seu antecessor, que era um conhecido professor de sociologia, antes de se tornar presidente). Como resultado, este país agora também está economicamente bem posicionado para oferecer recursos para o resto do mundo, para gerar prosperidade e elevar os padrões de vida de seus cidadãos. Parece um longo período desde seus tempos de dificuldades, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Como resultado, a percepção das pessoas sobre o Brasil tem mudado. E não é nenhuma surpresa, dada a sólida taxa de crescimento econômico do Brasil (7,5% em 2010, após a crise financeira mundial, e 2,7% em 2011), política fiscal e monetária complacente, crescimento impressionante das exportações (novamente graças à China) e, o mais importante, redução da evasão escolar e da pobreza absoluta. Economistas brasileiros me disseram que mais de 33 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza. Na verdade, um dos meus anfitriões no Rio de Janeiro me disse que a taxa de câmbio brasileira é tão forte "que até mesmo a minha empregada doméstica está indo de férias para Buenos Aires, para fazer algumas compras". Esta visão foi sustentada pelos participantes do Diálogo entre Melbourne e América La-

tina. Os países, assim como as pessoas, mudam, e a dinâmica do Brasil passou por muitas transformações ao longo dos últimos dez anos, atraindo uma atenção inédita para o País. O Brasil e a Austrália são rivais em relação à Pequim? Na verdade não. Há muito espaço para ambos os países prosperarem com o desenvolvimento econômico da China e ao longo do tempo as empresas brasileiras e australianas colaborarão para maximizar as suas esferas de influência. Ambos serão grandes fornecedores das necessidades energéticas da China e vão trabalhar com as necessidades agrícolas e industriais de energia limpa. O Brasil, como um grande fabricante, trabalhará mais com a China em cadeias de suprimentos industriais e a Austrália focará mais em serviços de construção, infraestrutura, arquitetura e profissionais para ajudar a desenvolver as cidades em estágio menos avançado. Os fortes laços da Austrália com a China na Educação vão atrair mais colaboração do Brasil. É claro que o Brasil estará em destaque com a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 no Rio e isto ajudará a atrair a ainda mais atenção e investimento global. Em resumo, as duas nações são grandes terras do sul com muito surf, areia, sol e bronzeado, mas economicamente ambas desempenharão um papel importante no futuro da China.

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O império

Fotos de Desmond Boylan/Reuters montadas por Zilberman

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continental de Havana Divulgação

Olavo de Carvalho

Jornalista, escritor e professor de Filosofia

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uba imperando sobre toda a América Latina? Eis um cenário que, no começo dos anos 60, era um perigo real e iminente. Trinta anos depois, era a sombra de um pesadelo (para alguns, de um sonho dourado) extinto para sempre. Hoje não é nem uma coisa, nem a outra: é uma realidade, um fato consumado. Muitos, é claro, ainda não a enxergam, porque não entendem a política internacional em termos da distribuição real do poder, mas tão somente de tratados entre governos, de exploração econômica ostensiva ou de ocupação militar. É o bom e velho “formalismo burguês” que os marxistas achincalham com justa razão e do qual já tiraram gostoso proveito milhares de vezes. Que pode haver de mais confortável do que lutar contra um inimigo que não entende o perigo e não quer enxergar de onde ele vem? Ao lidar com a sutileza e a inesgotável maleabilidade do movimento comunista, a mente educada nos cânones da modernidade ocidental – ciência, positivismo, racionalidade econômica etc. – age no mais das vezes como quem tentasse agarrar com as mãos um fio de água corrente. A um exame superficial, o regime de Havana parece fraco, politicamente isolado e em vias de extinção. Quem procura marcas visíveis de uma intervenção cubana na política das nações vizinhas encontra alguns vagos sinais na Venezuela e nada mais. No entanto, a tolice das tolices seria medir o vigor do movimento comunista pelo poder nacional ostensivo dos países que o representam ou hospedam. O movimento comunista é transnacional na origem, nos objetivos,

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José Cruz/ABr

Fábio Motta/AE

na estratégia e nos meios de ação. Nações e Estados são apenas instrumentos de que se serve ou camuflagens de que se reveste, frequentemente usando-as no preciso sentido da máxima de Sun Tzu: “Quando está fraco, finja que está forte; quando está forte, finja que está fraco.” Mais enganador ainda é avaliar a periculosidade do comunismo pela prosperidade ou declínio econômico das nações que ele governa. Pobreza, miséria, desemprego, carestia podem derrubar um governo democrático, que vive da aprovação popular. Podem arranhar a casca de regimes meramente autoritários, que sonham com essa aprovação futura. Mas ditaduras totalitárias sobrevivem majestosamente a todas as crises, a todas as penúrias, a todas as bancarrotas. Precisam até delas, para manter o povo naquele estado de fraqueza sub-humana no qual ele não tenha energias para organizar-se e reagir. Outro dia, quando eu falava da ameaça atômica norte-coreana, alguém me respondeu que a Coreia do Norte está nas últimas, numa pindaíba deplorável, que até casos de canibalismo têm aparecido entre sua população miserável. Pois bem: o canibalismo entre os famintos era endêmico na URSS precisamente nos anos em que Stálin construía ali a potência industrial-militar destinada a esmagar seu concorrente alemão incomparavelmente mais próspero. Muito menos pode a debacle econômica de qualquer nação comunista em particular – ou mesmo de todas elas – afetar no que quer que seja a desenvoltura e a pujança do movimento comunista mundial como um todo, cuja flexibilidade depende justamente da sua destreza em tirar proveito da variedade das situações econômicas nas diversas nações onde opera, sugando os recursos das mais prósperas e ao mesmo tempo denunciando-os como produtos da exploração das outras, tanto quanto enaltecendo a miséria destas últimas, seja como sofrimento imposto de fora, seja mesmo – vejam só! – como prova de uma forma de vida superior, menos apegada aos bens materiais. O rosto ameaçador das guerrilhas dos anos 60, que tanto assombrou os governos do continente, ocultava uma fragilidade militar patética. As guerrilhas nunca tiveram efetivamente objetivo militar nenhum: foram apenas o boi-de-piranha de que os comunistas se serviram para desviar as atenções enquanto promoviam discretamente a vasta operação de “ocupação de espaços” na mídia, nas universidades e no movimento editorial, do qual resultou em menos de uma geração a mudança radical da opinião pública, hoje pronta a aceitar passivamente, ou alegremente, toda proposta esquerdista que teria lhe parecido obscena trinta anos atrás. Mutatis mutandis, a aparente debilidade do regime cubano hoje em dia encobre o poder avassalador do Foro de São Paulo, que não é nada mais que uma versão melhorada da antiga OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, um órgão e extensão do governo de Havana. Órgão e extensão extra-oficiais e por isso mesmo dotados de uma liberdade de ação incomum. Do mesmo modo que, naquela época, os governos militares concentraram suas baterias no combate à esquerda armada, fazendo vista grossa à “revolução cultural” gramsciana ou até celebrando-a como conversão da esquerda às vias democráticas e pacíficas de combate politico, agora a expectativa otimista de uma mudança no regime de Havana torna a plateia cega para a realidade do poder crescente do Foro de São Paulo.

Os srs. José Dirceu (acima), Marco Aurélio Garcia (esq.) e Luís Inácio Lula da Silva (dir.), têm para com a nação do Caribe compromissos de fidelidade e solidariedade patriótica que jamais tiveram para com o Brasil. Eles mesmos já expressaram esses sentimentos muitas vezes, em público.

Contribui ainda mais para confundir os observadores o fato de que o Foro, além de não ter vínculo oficial com o governo de Havana, foi fundado e é dirigido eminentemente por brasileiros. Mas não é preciso ser muito esperto para notar que indivíduos como os srs. Luís Inácio Lula da Silva, José Dirceu e Marco Aurélio Garcia têm para com a nação do Caribe compromissos de fidelidade e solidariedade patriótica que jamais tiveram para com Brasil. Eles mesmos já expressaram esses sentimentos muitas vezes, em público, e num tom emocionado que jamais se viu nos seus rostos quando falam da nossa terra. Os três – e muitos outros na esquerda brasileira – são acima de tudo patriotas cubanos, e patriotas daquele patriotismo especificamente comunista, que se apega a uma nação não por amar suas tradições nacionais, sua língua ou sua cultura, mas porque vê nela a encarnação histórica, o centro irradiante da expansão revolucionária. A própria Dilma Rousseff, convém não esquecer, foi enaltecida por Hugo Chávez como uma grande “patriota... da Pátria Grande” (sic), isto é, da América Latina unificada sob o comunismo.


E Hugo Chávez sabia do que estava falando. Se, por outro lado, essas pessoas se empenham na implementação de uma estratégia que ainda é em substância a mesma que foi concebida em Cuba nos anos 60, e se ao aplicá-la convergem sempre com a orientação do governo cubano, que é que falta para um observador desperto entender que são agentes de uma revolução que jamais cessou de ser exportada de Havana para o resto do continente? A diferença entre as visões públicas do fenômeno nas duas épocas é ditada pelos cacoetes retóricos predominantes na mídia e entre políticos “de direita” em geral, então e agora: nos anos 60, o apelo conservador ao sentimento de honra nacionalista impelia-os a buscar o dedo cubano por trás de toda iniciativa comunista, para poder denunciá-la como “alienígena”. Hoje, o triunfalismo liberal inaugurado pela queda da URSS proíbe até mesmo reconhecer a persistência do movimento comunista, quanto mais admitir que o “moribundo” regime cubano ainda dá as cartas. Como sempre, as análises da mídia popular não são análises: são jogos de cena. Leandro Martins/Futura Press/AE

Já nem digo nada daqueles amadores que, sem qualquer exame do problema, negam como “exagerado” e “fantasioso” tudo o que saia do seu círculo de experiência corriqueira. A esses não se deve prestar atenção um só minuto. Non raggionam di lor, ma guarda e passa. Mas uma pergunta – ou objeção – bastante cabível é a seguinte: se os comunistas dominam tão confortavelmente a situação na América Latina, se por quase toda parte conseguiram mesmo neutralizar, castrar as forças de oposição, que é que lhes falta para implantar no continente um regime comunista franco e indisfarçado? Por que, na mesma medida em que fomentam desbragadamente a ingerência do Estado na vida particular dos cidadãos, conservam a economia funcionando em direções que, deformadas o quanto sejam, ainda denotam de algum modo um “capitalismo”? Isso seria assunto para mais um artigo. Tudo o que posso fazer aqui é enunciar três linhas de investigação que me parecem frutíferas. Essas linhas são baseadas em dados históricos patentes, cuja substância estratégica elas buscam trazer à luz.

A primeira linha de respostas possíveis deve ser buscada no simples fato de que, na própria concepção originária de Karl Marx, a estatização total da economia não deve ser uma transição abrupta, mas um processo lento e gradual. A experiência da URSS e da China levou as melhores inteligências do movimento comunista a repensar – e rejeitar – o “comunismo por decreto” ali implantado por Stálin e Mao. A segunda linha ecoa o fato de que, no presente estágio do movimento comunista internacional, a prioridade não é implantar regimes comunistas aqui ou ali, e sim juntar forças, quanto mais heterogêneas melhor, na grande operação de desmantelamento do Império americano. O projeto “eurasiano” do prof. Alexandre Duguin arregimenta nesse empreendimento todas as correntes ideológicas as mais disparatadas, unidas tão somente pelo ódio comum ao “Grande Satã”. Até a elite globalista que ele finge combater é sua aliada nessa guerra, como se vê pelo apoio que dá ao presidente Barack Hussein Obama, provavelmente o mais eficiente e bem sucedido inimigo interno que os EUA já tiveram. A terceira reflete as dificuldades internas da própria noção de economia comunista, das quais hoje os teóricos do movimento finalmente tomaram consciência. Não há – e, no presente momento, não pode haver – nenhum projeto claro de economia comunista capaz de ser implantado em parte alguma. A teoria vem passando por exames críticos e revisões que estão longe de chegar a uma conclusão aplicável. Por enquanto, as iniciativas econômicas dos comunistas no mundo todo têm-se limitado a expansões modestas do intervencionismo estatal no plano interno e a tentativas de articular o velho discurso nacionalista (arma ideológica tradicional do “anti-imperialismo”) com uma política de integrações regionais que, na prática, vai contra todo nacionalismo possível. Essa complexidade de fatores faz com que, hoje, a política econômica dos comunistas no poder se pareça muito mais com o fascismo do que com o comunismo propriamente dito: não procura dominar a economia diretamente, mas apenas, como dizia Hitler, “colocar o empresariado de joelhos”. Voltarei ao exame dessas questões na primeira oportunidade.

Imagem de Hugo Chávez: presidente da Venezuela trata da saúde em Cuba.

Miguel Gutiérrez/EFE

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Nikolai Punin/Corbis

O maior show do o j e r a v l a i d mun Carlos Ossamu, Domingos Zamagna e José Maria dos Santos

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odos os anos em Nova York (EUA), no mês de janeiro, ocorre o congresso da National Retail Federation (NRF), também chamado de Retail's Big Show. Trata-se do mais importante evento do varejo mundial. Em sua 102ª edição, o Retail's Big Show deste ano recebeu mais de 27 mil profissionais do varejo, de mais de 80 países. É lá que são mostradas e discutidas as grandes tendências que estarão norteando o setor. A Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e a Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Facesp) levaram 120 profissionais ao evento. Nelson Felipe Kheirallah, vice-presidente e coordenador do Conselho de Varejo da ACSP, comenta nesta entrevista os temas que foram destaques no evento da NRF e a situação do varejo no Brasil. Segundo o executivo, a grande tendência hoje é a integração de canais, o chamado omnichannel – além da loja física, o varejista precisa ocupar seu espaço no mundo virtual, incluindo e-commerce, mobile commerce e redes sociais. Veja a seguir: Digesto Econômico - O senhor coordenou a delegação da Facesp e da ACSP na 102ª edição do NRF - Retail's Big Show. Como foi o evento deste ano? Nelson Kheirallah - Este foi o quinto ano seguido que a Facesp e a ACSP enviam uma comitiva. Cada vez que a gente participa de um congresso como este, vemos algumas tendências se consolidando. A participação do varejo dentro da rede virtual vem crescendo cada vez mais. A tecnologia evolui e a compra virtual se acentua rapidamente. Quando a gente fala do varejo do futuro, e isso foi muito claramente exposto no Congresso da NRF, a grande tendência é a venda multicanal, chamado hoje de omnichannel. Isso é uma coisa que está se consolidando. Foi muito discutida a necessidade de integrar a venda virtual, o mobile commerce e a venda física. Tem aquele consumidor chamado de showroomer, que entra na loja, olha o produto, faz a pesquisa de preços no smartphone e depois decide se vai comprar fisicamente ou de sua casa pela internet. O consumidor norte-americano não é diferente do brasileiro? É claro que tem uma diferença. O consumidor brasileiro ainda está muito arraigado na compra de lojas de rua – o varejo de rua ainda á muito forte, principalmente no Nordeste. Mesmo em São Paulo, o varejo de rua ainda é muito forte, basta ver o Brás, a Rua 25 de Março. Aqui no Brasil, o varejo nos shopping centers representa 18% do total, enquanto nos EUA este número é de 70%. O importante é que, se o consumidor for bem atendido na loja física, ele acaba fechando o negócio na hora. Mas se não tiver um bom atendimento fisicamente, ele prefere voltar para casa e depois decidir virtualmente se deve adquirir o produto. O senhor comentou sobre a importância do bom atendimento. Mas o setor sofre com mão de obra despreparada e alta rotatividade. Como o senhor vê essa questão? Isso também tem ocorrido nos EUA e foi abordado em algumas palestras. É um problema que eles têm, em outra escala, e que nós também temos. Hoje, o profissional que atua no varejo, ou ele não tem outra ocupação disponível, então fica alguns meses na loja até arrumar outra coisa, ou ele já está com

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mais idade e não consegue outra ocupação e vai para o varejo. Isso faz com que o profissional do varejo não tenha um plano de carreira como comerciário. Ele encara o emprego como um bico. Nos EUA, eles também estão com esse problema. Eles citaram isso, que estão com muitos problemas com o atendimento e a falta de mão de obra qualificada. Essa discussão aponta para a questão de como preparar os profissionais para o atendimento, tanto na loja convencional, com esse atendimento mais direto com o consumidor, e também na loja virtual, por meio dos SACs. Hoje, o que acontece é um círculo vicioso: não vão bons profissionais para trabalhar no varejo porque ganham mal, e ganham mal porque não são bons profissionais. Por outro lado, se tem um vendedor que ganha R$ 1.200 por mês, ele custa R$ 2.400 para a loja, por conta dos custos trabalhistas. Ele ganha mal, mas custa muito para a empresa, este é o grande problema. Dos R$ 2.400, a empresa até preferiria pagar R$ 2 mil para o empregado e recolher os R$ 400 de contribuição social. Tem ocorrido algumas mudanças. A partir de 1º de abril, o empresário vai passar a recolher a parcela de INSS sobre o faturamento da loja. Com isso, o custo do empregado deve diminuir. Já há uma abertura para que se pense em investir um pouco mais no profissional. Também há muita rotatividade neste setor, não é mesmo? Esse é outro grande problema. Você treina o profissional e quando ele está treinado, vai para outro emprego. No Sindicato dos Comerciários me falaram isso: vocês precisam treinar os funcionários para terem mão de obra qualificada. Mas quem paga? Você investe em uma escola, treina, acabou de treinar e ele vai para outro emprego. Não é possível ter um contrato vinculante? Ele é treinado e precisa ficar na empresa por alguns anos? Parece que há essa possibilidade. Este é um tema que já discuti e quero retomar com o sindicato. Eu questionei isso com um advogado sindical. Por exemplo, é comum um escritório de advocacia bancar uma pós-graduação ou MBA no exterior de um funcionário. Quando ele volta, tem um contrato que o obriga a trabalhar por um tempo, pois ele precisa amortizar aquele investimento. Por que isso não é possível com o comerciário? É uma questão que precisa ser analisada e discutida. Isso poderia incentivar a criação de escolas com investimento dos varejistas. Por outro lado, há outro problema, que hoje seria até insolúvel: os 40% que se recolhe de multa na dispensa do trabalhador. O vendedor trabalhar na empresa e depois de alguns anos começa a fazer corpo mole para ser mandado embora e ganhar os 40% sobre o FGTS. E ele rapidamente encontra outro emprego, mas antes sacou o FGTS e os 40%. O FGTS não foi feito para isso. Eu comecei a trabalhar justamente no ano da criação do FGTS, em 1966, quando meu pai e eu montamos uma indústria. Por que veio o FGTS? Para substituir a estabilidade para quem tivesse mais dez anos de casa. O FGTS veio com esse objetivo, de garantir o futuro do trabalhador. Eu sempre entendi que o FGTS tem que garantir o futuro do trabalhador. Os anos passaram e foram criadas várias regras, entre elas a multa de 40% e agora o governo toma mais 10% e fica 50%. Eu acredito que a principal razão desse grande turnover no


Bruno Poletti/Luz

varejo são os 40% que precisam ser depositados e ele pode sacar. Se esse dinheiro fosse preservado para o futuro do trabalhador, podendo ser sacado somente na aposentadoria, tenho certeza que o turnover diminuiria. O senhor esteve em um evento do varejo tão avançado, mas aqui ainda conviemos com problemas medievais. Qual a sua opinião sobre isso? O Brasil tem que mudar muito. Em uma palestra para mais de 3 mil pessoas no Congresso da NRF, o presidente de uma grande rede de varejo da Espanha, que já esteve com duas ou três lojas aqui, hoje está com apenas uma, foi questionado sobre onde ele investiria hoje. Ele citou alguns países e frisou que no Brasil ele não investiria mais, por causa da burocracia e alta carga tributária. Há três anos, no mesmo evento, se falava muito no Brasil, que era a bola da vez. Hoje, pouco se fala, e quando se fala, o tom é negativo. Voltando à NRF, o que mais foi discutido no evento e que os varejista brasileiros devem ficar atentos? Hoje, quando a gente fala do que foi discutido na NRF e o que poderá acontecer no varejo, acho que é a integração de todos os canais de venda. Há dois anos, se discutia se as lojas deveriam disponibilizar acesso Wi-Fi para os clientes. Tinha quem era contra e quem era a favor. Os que eram contra diziam que o cliente iria comparar os preços dentro da loja com os dos concorrentes. Hoje, há consenso de que é preciso ter. Se não tiver, o consumidor irá a outra loja que tenha. E se a loja tiver um bom atendimento, ele pode fechar negócio já dentro da loja. Se não tiver acesso, ele acaba perdendo cliente. Claro que estamos falando de produtos que chamamos de commodities: a geladeira marca tal, modelo tal, é igual em todas as lojas. O consumidor compara e encontra o melhor preço. Na loja, ele pode até tentar negociar. Mas se não tiver bom atendimento, ele vai embora. Ele pode até ir a outra loja física ou ir para casa e comprar pela internet. O omnichannel significa que os varejistas precisam estar presentes em todos os canais? Sim, a maioria das redes de lojas físicas já estão na internet e da mesma forma, muitas lojas apenas virtuais, talvez no futuro, devam também abrir lojas físicas. O consumidor, principalmente o brasileiro, gosta de tocar no produto. Muitas vezes, quando eu comprava algo pela internet, antes eu passava na loja para ver a mercadoria. Posso comprar direto na loja ou comprar de casa. Estamos falando de produto que são iguais, que são commodities. Não dá para comparar um produto de vestuário de marcas diferentes, não dá para comparar uma camiseta que vende no supermercado com outra de uma marca de grife. O que está se dando muito bem na loja virtual é a venda de calçados, principalmente tênis de marcas mais conhecidas. O consumidor sabe qual o tamanho ideal, não precisa experimentar. Então, por comodidade, acaba fazendo a pesquisa de preços e comprando pela internet. Vestuário é um item em ascensão nas lojas virtuais, inclusive no Brasil. Mas aqui há problemas de padronização na numeração. Nos EUA existe um padrão de numeração dos vestuários, di-

Nelson Kheirallah: há três anos, no mesmo evento da NRF, se falava muito no Brasil, era a bola da vez. Hoje, pouco se fala, e quando se fala, o tom é negativo.

ficilmente o consumidor erra – ele pede uma calça tamanho 32, que é o nosso 42, e em todos os lugares o tamanho é o mesmo. Aqui no Brasil não se tem um padrão definido. Esse é um trabalho que vem sendo feito pela ABNT e é muito importante para o varejo virtual. Quando se compra virtualmente, para fazer a devolução dá um certo trabalho. Outro dia comprei um presente de casamento pela internet, era uma máquina de lavar louças. Não sei a razão, mas a minha compra duplicou. A pessoa me ligou agradecendo, mas me alertou que recebeu dois comunicados. Verifiquei e realmente havia dois pedidos. Eu não preenchi os dados e cliquei duas vezes na mesma compra. Tentei entrar em contato pelo e-mail de confirmação da compra por vários dias seguidos, informando inclusive que iria cancelar as duas compras – na loja virtual, pelo Código de Defesa do Consumidor, a compra pode ser cancelada em sete dias. Como não tinha resposta, acabei ligando para o SAC e todos sabem como é esse atendimento: fiquei pendurado 40 minutos. É nessas horas que a gente pensa que era mais fácil ir passear em um shopping no fim de semana e fazer a compra na loja mesmo, sem dor de cabeça. Outra questão tem ameaçado a credibilidade do e-commerce no Brasil, que é em relação às promoções. Pesquisas da Provar/FIA mostraram que nas promoções de janeiro, os varejistas virtuais aumentaram os preços e depois anunciaram descontos. Fatos assim ferem a credibilidade do varejo. É preciso ter uma conscientização de que, se o cliente descobrir que foi enganado, ele não volta mais. A credibilidade é muito importante. Não tente enganar o consumidor, pois ele vai descobrir. Será que nós não estamos partindo para o comércio virtual sem resolver as mazelas que temos no mundo físico? Hoje, o grande problema do comércio virtual são os call centers. Se pegarmos a lista de reclamações, as operadoras de telefonia estão em primeiro lugar, pois tudo tem de ser resolvido via telefone. O atendimento nos call centers, em geral, está muito ruim e isso tende a prejudicar muito o comércio eletrônico. Melhorar esse atendimento é um ponto importante para o crescimento do comércio virtual. Ou se melhora esse atendimento, ou eles vão ter uma série de dificuldades. O cliente acaba comprando em uma loja física por comodidade, para não se chatear depois. Em termos tecnológicos, quais foram as novidades da NRF? Na questão integração, acho que isso vai avançar cada vez

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mais. O varejista precisa ocupar o seu espaço em todos os canais, tanto no mundo físico quanto no virtual. Vamos ter de trabalhar cada vez mais com o smartphone, que além de permitir falar, vai comprar, pagar e até medir pressão e o nível de glicose do sangue. Claro que alguns avanços tecnológicos demoram a chegar ao Brasil por razões de custos. Durante o evento da NRF, fizemos uma visita à Intel e lá tinha uma máquina de bebidas quentes. O funcionário digitou na tela e em seguida saiu um café e a máquina exalava um cheiro de café. Fui na máquina e digitei a opção de chocolate quente e antes de sair a bebida, a máquina já exalava cheiro de chocolate. O varejo no futuro estará integrando cada vez mais tecnologias, mas não deixando de lado o fato de que o consumidor gosta de ter as suas percepções sensoriais, ele gosta de ver uma vitrine, entrar na loja e perguntar sobre o produto, interagir com o vendedor, tocar no produto, e se for um vestuário, ele quer provar para ver se cai bem. Isso são coisas que continuarão existindo. Existe a questão da ansiedade do consumidor, ele quer sair da loja com o produto, o que não ocorre virtualmente. Muitas vezes a compra é emotiva: o sujeito não precisa da camisa, mas compra por impulso. Depois chega em casa, abre o armário e se pergunta onde vai pendurar mais uma camisa. A compra emotiva ocorre em qualquer lugar – a disposição das gôndolas no supermercado, a colocação de determinados produtos é feita propositalmente, a carne está sempre lá no fundo, pois o consumidor acaba passando por outros produtos e acaba comprando. Existem outros aspectos importantes, como criar uma marca forte. É muito importante fidelizar o cliente na sua marca. É muito importante falar diretamente com o cliente, quer seja pessoal ou virtualmente, do que tentar falar com a massa. O senhor está falando de marketing personalizado. Mas nesse ponto entra uma questão que deve ter sido discutido na NRF, que é a invasão de privacidade. Com o Big Data, a consulta em diversos bancos de dados, em redes sociais, se consegue saber a vida do consumidor em detalhes, se é casado, se tem filhos... Cada vez mais os varejistas vão precisar saber quem é o seu consumidor, quais são os seus hábitos e costumes, do que ele gosta de consumir. A invasão de privacidade só se dá se a pessoa permite, pois é ela quem alimenta esses bancos de dados. Se a pessoa não quer que invadam a privacidade, não tenha cartão de crédito, pague tudo em dinheiro, não abra uma página no Facebook e não se cadastre no programa de fidelidade do supermercado. Dessa forma, você impede que invadam a sua privacidade. Com o Big Data, é possível ter acesso a todo o seu histórico. Eu entro no supermercado com o meu smartphone e eles sabem que estou na loja e o que eu costumo comprar. Posso receber uma mensagem informando que há uma nova linha de cereais, pois eles sabem que costumo comer esse produto. No fundo, eu permiti e até deixei o Bluetooth ativado para receber a mensagem. Invasão de privacidade é inevitável. Tem uma empresa norte-americana que faz uma condensação das informações do Big Data com uso e costumes dos consumidores, para oferecer produtos que eles estão acostumados a comprar. A mesma coisa acontece no mundo virtual. Durante a navegação, alguns sites instalam cookies de navegação e sa-

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bem o que você andou pesquisando e comprando. Ainda há pessoas que não gostam de tecnologias, mas as novas gerações estarão mais abertas às novidades. O que o senhor acha disso? As novas gerações já nascem com o computador na mão. A minha neta de um ano e meio já brinca com o iPad, sabe onde tocar para ver os desenhos. As pessoas já nascem com essa cultura tecnológica. Por isso, a tendência é tudo ir para o virtual. Essa nova geração também tem mais respeito pela sustentabilidade, dão importância às questões ecológicas e éticas. Existe também uma preocupação dessa nova geração de estar inserida na comunidade. Fomos visitar uma loja em Nova York em que 1% de todas as compras feitas pelo cartão de crédito da loja é destinado a alguma obra social da comunidade, e o portador do cartão escolhe em qual obra o valor será aplicado. Isso tem uma capilaridade grande, já que na comunidade vão dizer que receberam uma contribuição da rede de varejo. A inserção na comunidade é um fator importante, pois fortalece a marca. Isso foi muito falado na NRF, da importância de estar preocupado com o seu entorno. Você não está isolado em uma ilha, você está conectado fisicamente e virtualmente. A JHSF anunciou recentemente que vai lançar um outlet de produtos de luxo na rodovia Castelo Branco, em São Roque. Este é um produto que vem crescendo no comércio virtual? A compra de produtos de luxo é muito mais emocional. O varejo de luxo será muito mais físico do que virtual. A mulher não vai comprar uma bolsa de R$ 10 mil sem ir à loja, provar a bolsa, se olhar no espelho para ver como ficou. Acho o produto de luxo muito difícil de ser comercializado virtualmente. Cada vez mais a experiência de compra está valorizada. O cliente precisa encontrar uma loja atraente, ser bem atendido, se sentir bem na loja. O varejista usa os sentidos para promover a venda, são aromas, a música, o cliente poder tocar na mercadoria. Nas lojas de grife, quem atende geralmente tem um padrão mais elevado, estão bem vestidas, são agradáveis, oferecem champanhe, falam outras línguas para atender melhor os consumidores mais exigentes. O que mais o senhor destacaria da NRF deste ano? Não houve um grande anúncio, uma grande novidade. O que vimos foram tecnologias que eram faladas nas edições passadas e que agora estão se consolidando. Antes, se falava na chegada do mobile payment, hoje os smartphones já trazem os chips embutidos. Antes, se falava aqui no Brasil de aumentar as vendas de celulares, hoje o esforço é para que o consumidor troque o celular por um smartphones. Essa é uma tecnologia que vai avançar em progressão geométrica. Os softwares também estão avançando, esta história de ter um Big Data são softwares. Sem dúvida, já deve ter varejistas aqui contratando esses serviços. Se o varejista não se preocupar com o seu banco de dados e trabalhar com todos os canais, ele vai morrer. Este é o futuro. Se o varejista não se preparar tecnologicamente, o concorrente vai se preparar. Claro que o Brasil é muito grande, ainda tem a padaria que trabalha com caderneta, mas este é o futuro.


Paulo Pampolin/Hype

Como será a loja do futuro? Carlos Ossamu

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om o avanço da tecnologia, o varejo vai ter de se reinventar. Hoje, com a popularização dos smartphones, dos tablets e do comércio eletrônico, de casa ou de qualquer outro lugar é possível comprar quase tudo, sem se preocupar com congestionamentos, achar uma vaga no estacionamento do shopping, entre outras chateações. Com essas facilidades, no futuro, o que vai justificar a abertura de uma loja física? Para Regiane Relva Romano, CIO da empresa Vip-System e professora de Tecnologias Emergentes para o Varejo da FGV, FIA e Unifieo, a loja física vai passar a ser um ponto de encontro, uma rede social off line. "Ela terá de se transformar em um lugar interativo, informativo e que agregue valor para a compra", comenta. Segundo a professora, um conceito que foi amplamente discutido no evento da NRF deste ano foi o "showrooming" – o consumidor entra na loja, olha o produto, seja uma roupa ou um equipamento, acessa Regiane Relva Romano: as lojas físicas terão de se reinventar. o celular dentro da loja, faz a pesquisa de preço e se o varejista não tiver as mesmas condições do site, o consumidor acaba comprando no site e usando a loja apenas como um showroom. sencial terá de fazer? "Ele deverá ter meios de identificar o conEm sua opinião, existe uma tendência de integração do sumidor de forma inequívoca. Já há experimentos em andamundo real com o virtual. "Este é o conceito da loja do futuro, mento. Por meio de uma câmera, a imagem do consumidor é ela não vai ter um canal único de comunicação. É o conceito de capturada, a face é detectada, se faz uma busca em bancos de omnichannel – será possível pesquisar e comprar em vários cadados, pega-se o perfil de compra, o tamanho, número da rounais", diz. "A loja deverá ser um lugar que desperte a emoção, pa e calçado, o que ele já comprou e se personaliza uma sugesque faça com que o cliente se sinta bem, que ele possa provar, tão de compra", comenta Regiane. Tudo isso traz uma série de possa ter outros valores, despertar outros sentidos, além de conceitos que fazem parte do novo varejo, que é a personalisimplesmente ir lá e comprar um produto. O consumidor não zação online e real time, tanto na loja física quanto na virtual, vai comprar um produto, vai comprar uma experiência nas loter ofertas para este consumidor de tal forma que ele se sinta jas. Por isso, elas vão ter de se reinventar". identificado e exclusivo. Essa experiência de compra passa por uma personalização Nos bastidores dessa personalização está a tecnologia Big em tempo real, como já acontece hoje nos sites de compras. A Data, que também foi amplamente debatido na NRF. "É buscar Amazon, por exemplo, grava cookies no computador e dessa dados em outras fontes, além do banco de dados da loja. Você forma eles têm o perfil de compra do cliente. O que o varejo preirá buscar o comportamento do consumidor nos vídeos que ele

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coloca no Youtube, nas fotos e informações das redes sociais. Será possível identificá-lo em várias áreas de sua vida particular, não apenas as informações que se tem na base de dados da loja", explica a professora. É a integração de canais servindo na loja física para dar informações do jeito que se quer, mas sem invadir a privacidade. "A grande discussão é até que ponto a loja pode ficar oferecendo coisas que o cliente não pediu. É uma discussão sobre privacidade", observa. Um caso recente gerou muita discussão nos Estados Unidos. A loja de departamentos Target – que vende tudo o que se possa imaginar, de ração para animais, produtos de limpeza e de beleza, roupas e até móveis para jardim – desenvolveu um programa que identifica se a mulher está grávida apenas analisando o seu hábito de consumo. A polêmica ocorreu quando o pai de uma jovem reclamou com o gerente que a filha adolescente estava recebendo cupons de descontos e propaganda de berços e roupas de bebês. Dias depois, o pai ligou para o gerente se desculpando, pois a filha contou que estava grávida. A loja sabia disso antes do futuro avô. Para Regiane Relva, é importante saber até que ponto o consumidor quer que o lojista saiba tanto da sua vida, a ponto dele nem ter entrado na loja e o lojista saber que ele está no shopping, os produtos que comprou nos últimos tempos, a sua posição geográfica – pelo celular hoje, é possível saber onde a pessoa está e enviar mensagens com base na geolocalização –, enviar cupons eletrônicos para ir até a loja e receber descontos. "Quem falou que o consumidor quer tudo isso? Por isso é preciso saber que tipo de consumidor é o seu e deixar que ele mesmo peça esse tipo de serviço. Não pode ser massivo para todos os clientes, caso contrário o varejista vai ter outro problema, que é o consumidor não querer nunca mais passar em frente da porta da loja". A professora concorda que são os próprios consumidores que alimentam as grandes bases de dados. "Ninguém lê a política de privacidade – quando se abre uma conta no Gmail e clica em I Agree, a pessoa está dando autorização para que o Google leia todos os seus e-mails, incluindo os documentos que foram anexados. As pessoas ignoram isso. Quando digo isso aos meus alunos, eles ficam indignados. O mundo inteiro deles está sendo invadido", afirma. "Acho que é uma questão que precisa ser levantada, as redes sociais são sensacionais, são um canal de vendas maravilhoso, mas por outro lado, o consumidor não se deu conta da invasão que ele está se auto-oferecendo– é ele quem põe a foto na página, é ele que compartilha onde está. Muitos são inocentes, não sabem o que está acontecendo por trás de tudo aquilo, acha que é apenas uma grande brincadeira, mas tem muita gente ganhando dinheiro com aquele comportamento online". Mais do mesmo De acordo com a professora Regiane, no evento da NRF deste ano não houve nenhuma grande novidade. "Até fiquei feliz por que o livro que eu lancei no ano passado está 100% atualizado (Varejo & Tecnologia - O Futuro do seu negócio passa por aqui) . O que aconteceu foi a consolidação de tecnologias já mostradas, mas com uso mais bem definido", diz. Como exem-

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plo, o NFC (Near Field Communication), que é o pagamento eletrônico via telefone celular. "Isso é irreversível, mas até o ano passado, se falava ainda em pagamento com SMS, com QR Code, mas agora está definido, o padrão será o NFC, que já começa a vir encapsulado na maioria dos smartphones". Outras tendências irreversíveis são a mobilidade e o uso de mais de uma tela. O consumidor hoje é bombardeado por telas – do celular, tablet, notebook, desktop, TV etc. "Daqui para frente, vamos ter uma série de outras telas invadindo as nossas vidas. Por exemplo, fui à CES (Consumer Electronics Show), em Las Vegas, uma semana antes da NRF, e deu para ver o que vai chegar no varejo em equipamentos eletrônicos. Está se consolidando algo que eu já falava há cinco anos, que é a internet das coisas. Pelo que foi mostrado na CES, vai começar a chegar uma série de equipamentos residenciais com telas, como na máquina de lavar louça, lavar roupa, geladeira com tela touchscreen para consultar informações via internet, mandar a lista de compras pela internet. Isso não é amanhã, isso é já", afirma Regiane. Essas telas estarão integradas, pois a integração desse volume de dados se transforma em informação, a informação em conhecimento e o conhecimento em tomada de decisão. "Só que todo esse conhecimento começa a ficar centralizado nas mãos de poucos e isso é um problema. A internet das coisas está cada vez mais factível. É um mundo onde as coisas físicas vão falar com as coisas virtuais, e as coisas virtuais vão falar com as pessoas – é coisa falando com coisa e gente falando com coisa", explica Regiane. "Exemplo disso: você vai pegar o celular, encostar na geladeira, ler a lista de compras, chega no supermercado, o celular se comunica com as gôndolas, que mostram a localização dos produtos que você deseja comprar. Além de tudo, quando você passar pelo corredor, o sistema vai começar a oferecer produtos que combinam com aquele vinho que você colocou no carrinho". Esta é uma tendência bastante futurista. Mas atualmente já é comum o sistema do carro conversar com o celular via Bluetooth, a agenda do telefone já sincroniza com o painel touch do carro e o usuário fala ao telefone por viva voz. É coisa falando com coisa. Por tudo isso, na opinião da professora Regiane, o varejo terá de se reinventar. "Os lojistas ainda pensam que estão vendendo produto, mas não é produto, é experiência. Produto eu compro a qualquer momento pelo menor preço. Hoje, estou com o poder nas mãos – dentro da loja, tiro uma foto do produto com o celular e ele vai mostrar onde eu compro aquilo mais barato, mostra onde eu estou e onde está a outra loja". O varejista terá de tornar a loja interativa, divertida, com muita gestão, com muita informação, vai ter de ter entretenimento, vai ter de ser uma rede social off line. "Por que as redes sociais fazem tanto sucesso? Elas conseguem chamar um monte de gente para conversar sobre um monte de coisas, que na maioria das vezes não servem para nada. E qual é o conceito do varejo? No final de tudo, a pessoa vai até a loja para se relacionar, ela quer fazer parte, quer conversar. É só olhar os idosos, a maioria vai ao supermercado todos os dias para comprar um negocinho. Na verdade, ele vai lá para conversar, ver alguém, bater um papo, sair de casa, se relacionar. O varejo vai ter de ser um ponto de relacionamento inteligente", conclui.


Tem lugar para todos no mercado Carlos Ossamu

Angelo: a loja física está cada vez mais assumindo o papel de showroom, criando um ambiente ideal para a compra.

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ara o professor Claudio Felisoni de Angelo, presidente do conselho do Provar - Programa de Administração de Varejo da Fundação Instituto de Administração (FIA), essas discussões associadas à mudanças de tecnologias ocorrem com frequência. "Quando surgiu a televisão, imaginou-se que o rádio estava morto. O que seria do rádio, uma vez que a TV tinha imagem e som? Na verdade, não foi isso que aconteceu. O rádio encontrou o seu espaço, continua forte", diz. "O mesmo raciocínio podemos encontrar, e até com mais propriedade, nesta comparação entre lojas físicas e virtuais". Segundo ele, as lojas virtuais ainda têm uma participação muito pequena no comércio, cerca de 5% no total das vendas. Já nos EUA, essa participação é maior, em torno de 10%. Mas a velocidade de crescimento nas vendas pela internet é quatro vezes maior do que a velocidade de crescimento das lojas físicas. Então, o que serão das lojas físicas e o que poderá acontecer? "Hoje, o consumidor é impactado, ele é acessado, por diversos canais de comunicação TV, rádio, jornais, revistas, a loja física e a internet. Dificilmente podemos afirmar que uma venda que aconteceu na loja física tenha s i d o e s t r i t amente resultado da relação do consumidor com aquela loDivulgação

ja. Pode ser que aquela venda tenha sido iniciada na internet e concluída na loja física. A loja física favorece aquilo que hoje é muito valorizado, que é a experiência do consumidor com o ambiente da própria loja", explica Angelo. Na opinião do professor, assim como o rádio encontrou o seu espaço, as lojas físicas vão gradativamente caminhando no sentido de assumir essa posição de showroom, de criar um ambiente mais favorável para a compra e se tornar a dimensão concreta, palpável, da operação comercial. "Há espaço para a loja física e a loja virtual. Alguns negócios vão sofrer bastante por terem suas operações fortemente voltadas para as lojas físicas. Um exemplo disso é o que está acontecendo com a Best Buy nos EUA, a famosa rede que vende bens de consumo duráveis. Muitas pessoas vão à Best Buy para olhar e experimentar os equipamentos, mas acabam comprando pela internet", comenta. "Eu diria que vamos ter um reposicionamento das lojas e que tanto as lojas físicas, como as virtuais, terão a sua participação, sendo que as lojas físicas deverão evocar muito mais essa experiência de compra". De acordo com o professor Angelo, essa é uma discussão que remete à própria sobrevivência do varejo. Algumas empresas discutem como se pode gerenciar mais de um canal de distribuição ao mesmo tempo. É o que está sendo chamado de omnichannel. Hoje isso é um desafio. "Tem algumas redes que estão repensando o seu posicionamento. O Carrefour, há alguns meses atrás, decidiu, pelo menos temporariamente, abandonar o canal virtual e se concentrar nas lojas físicas", observa Angelo. Segundo ele, não existe uma resposta única para essa questão. O que é certo é que o mundo está mudando, a tecnologia acelera as comunicações, faz com que os elos se aproximem, os mercados se tornem mais transparentes e portanto, as condições de competição são mais claras, deixando o mercado mais acirrado.

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A loja mais tecnológica do

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cliente entra no provador com as roupas escolhidas nas araras da loja. Imediatamente, o sistema identifica quais são essas peças, incluindo o tamanho e a cor, e as exibe em um monitor touchscreen (sensível ao toque). O sistema sugere produtos que combinam com as peças escolhidas, permite a consulta de tamanhos e cores disponíveis no estoque, traz detalhes do produto, como a composição do tecido, e consulta de preços. Se o cliente quiser a presença do vendedor, as fotos deles aparecem na tela, basta tocar e um SMS será disparado, avisando que o cliente deseja a sua presença no provador indicado. Também dentro do provador está o Espelho Interativo, que permite ao cliente tirar uma foto e arrastar virtualmente a roupa ou acessório para o seu corpo, ajustando o tamanho. A imagem final ainda pode ser enviada para o Facebook. O que parece um filme de ficção já está disponível da loja da Billabong do Shopping Iguatemi de Alphaville, reconhecida como uma das lojas mais inteligentes do mundo. O sistema foi implantado pela empresa Vip-Systems e por conta deste case, a sua CIO (Chief Information Officer), Regiane Relva Romano, foi premiada no ano passado, na Itália, no

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Billabong do Shopping Iguatemi de Alphaville: as tecnologias mais avançados para o varejo estão em operação na loja.

evento ID World Internacional Congress. O objetivo desse evento é demonstrar tecnologias inovadoras de identificação, segurança, biometria e mobilidade. O evento reuniu pesquisadores e desenvolvedores dessas áreas para compartilhamento de experiências, conhecimentos, ideias e inovações nos mais variados setores da sociedade. "A gente costuma dizer que esta é a loja mais inteligente da América Latina, mas na realidade, no mundo inteiro não existe uma loja que utilize os conceitos que nós empregamos. Em outras lojas há apenas uma ou outra tecnologia empregada, uma usa RFID, outra o provador inteligente, mas nenhuma integrou todas essas tecnologias em um mesmo local", afirma Regiane.


mundo está no Brasil

Fotos: Paulo Pampolin/Hype

Carlos Ossamu

Catálogo eletrônico: o sistema reconhece o movimento da mão das pessoas por meio de uma webcam, de forma que o cliente possa folhear virtualmente o catálogo. Abaixo, tela permite a consulta dos produtos na loja.

A inteligência da loja da Billabong tem como base o uso de etiquetas RFID (identificação por radiofrequência) em todas as peças. Dessa forma, foi desenvolvida a Arara Inteligente, que possibilita a consulta a qualquer momento do inventário – quantas e quais peças estão expostas, se estão no lugar correto e se a arara precisa ser reabastecida. Outra aplicação é o Inventário Inteligente/Gestão de Ativos Inteligente, que permite, por meio de software e coletores de

dados RFID, fazer todo o inventário da loja, um trabalho que manualmente levaria dias, mas que lá se faz em poucos minutos. O sistema gera relatórios comparativos, que podem identificar divergências entre o estoque do sistema e o estoque físico inventariado. O sistema antifurto implantado na loja também tem como base as etiquetas RFID. Quando o cliente passa no caixa e faz o pagamento, essa informação é gravada na própria etiqueta por meio de um desativador e por isso não precisará ser removida. Ao sair da loja, o sistema identifica que foi feito o pagamento e não emitirá nenhum sinal, caso contrário ele dará o alerta, identificando qual mercadoria está saindo da loja de forma irregular. Este sistema é integrado às câmeras de vigilância da loja. Para que o cliente conheça o mix de produtos da loja, foi desenvolvido um catálogo eletrônico, que incorpora a tecnologia NUI (Natural User Interface). O sistema reconhece o movimento da mão das pessoas por meio de uma webcam, de forma que o cliente possa folhear virtualmente o catálogo. Já o PDV da Vip-Systems é um aplicativo que faz o registro das operações. Integrado com os principais ECFs (Emissor de Cupom Fiscal) do mercado e em acordo com a legislação fiscal vigente, ele é integrado com a tecnologia RFID. Permite uma maior agilidade no caixa, diminuindo as filas.

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Reprodução

No metrô de Seul, compras em paínéis com o QR Code

Como começou A história da implementação deste sistema na Billabong, especializada em moda sportswear, é curiosa, pois partiu de uma necessidade acadêmica e não se esperava a repercussão que teve. "Eu precisava fazer a implementação de diversas tecnologias para a tese do meu doutorado. Procurei uma loja que aceitasse ser o estudo de caso", conta Regiane. A Vip-Systems doou todo o sistema para a loja, incluindo hardwares, softwares, serviços e equipes de profissionais. "Fizemos a implementação em 15 dias, mas a solução vem sendo desenvolvida há 12 anos. Após a implantação, de agosto a dezembro de 2011, fiz as medições e comprovei a minha tese do impacto positivo que a tecnologia traz para o varejo. Com ela, é possível otimizar toda a parte de inventário e recebimento das mercadorias, diminuir filas, aumenta a segurança, pois o sistema antifurto é integrado a um sistema de monitoramento por câmeras - no futuro, podemos implementar um sistema de biometria facial e identificar o autor do furto", diz Regiane. Regiane é autora do livro "Varejo & Tecnologia - o Futuro do Seu Negócio Passa Por Aqui" (Posigraf/Vip-Systems). O livro traz uma coletânea de edições passadas da feira da NRF, as novidades da Cebit, Euroshop e RFID Journal, mostrando quais são as últimas tendências mundiais em tecnologia para o varejo. Compre pelo código Uma tecnologia que vem revolucionando o jeito de com-

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prar, mesclando o presencial e o virtual, é o QR Code. Trata-se de um código de barras bidimensional (2D), na forma de um gráfico, que contém informações digitais sobre o objeto ao qual é anexado, sendo capaz de armazenar milhares de caracteres alfanuméricos. Para ler o código é necessário ter instalado no celular uma aplicação para leitura do QR. O aparelho também deve ter uma câmera. Ao ler um código 2D é possível se conectar a um site na internet, ou então ativar um dos recursos do celular, como o envio de e-mail ou reprodução de um vídeo. Um grande case nesta área é o da Home Plus, uma subsidiária da rede britânica de supermercados Tesco. A Home Plus tinha o objetivo de ampliar suas vendas, mas sem investir na abertura de lojas físicas. Ela observou os coreanos, que trabalham muito e não têm tempo de ir às lojas. A empresa instalou uma loja virtual nas plataformas do metrô de Seul, com painéis iluminados que exibem os produtos em tamanho real, para facilitar a visualização e atrair o olhar dos consumidores. Para comprar os produtos, basta fotografar os códigos QR, que são reconhecidos e as mercadorias são relacionadas num carrinho virtual, como no ecommerce. Em 24 horas as mercadorias são entregues, como se o consumidor tivesse feito a compra em uma loja virtual. No Brasil, o Pão de Açúcar está adotando essa tecnologia, que ela chama de Vitrine Virtual, utilizando painéis que simulam uma gôndola de supermercado, contendo imagens e códigos de mais de 300 produtos. O cliente escolhe a sua compra usando um smartphone ou tablet e a recebe pelo Pão de Açúcar Delivery no endereço escolhido. A novidade está disponível inicialmente no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo.


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O Pão de Açúcar tem investido em novas tecnologias. Acima, a Vitrine Virtual, com painéis que simulam gôndolas e o consumidor deve capturar os códigos com o celular. Ao lado, o Personal Shop, que permite compras por meio de um scanner de mão.

A compra é realizada pelo próprio consumidor por meio do aplicativo do Pão de Açúcar baixado no smartphone (iPhone ou aparelho com sistema Android) ou tablet (iPad). O consumidor deve escanear os códigos de barra bidimensionais (QR Code) presentes abaixo de cada produto exposto na gôndola virtual e finalizar a compra. Os produtos são entregues pelo Pão de Açúcar Delivery no endereço de entrega escolhido. O primeiro frete custa R$ 13,90 e, a partir do segundo, o valor é regressivo.

Outro sistema de compra do Pão de Açúcar, disponível em quatro unidades de São Paulo, nas lojas do Shopping Iguatemi, Panamby, Tamboré e na Granja Viana-São Camilo, é o terminal Personal Shop. O cliente passa o scanner nos códigos de barras dos produtos que deseja. No final, entrega o aparelho no caixa, faz o pagamento e recebe as mercadorias em casa. Para tanto, deve estar cadastrada no programa de fidelidade do supermercado.

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Poderia Estar Melhor

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recente texto (1) do Professor Emérito Albert Fishlow da Universidade Columbia e da Universidade da Califórnia, Berkeley, "It's Better than It Seems: Brazil in the Coming Decades", preparado para o Centro de Política Hemisférica da Universidade de Miami, reflete não só a latitude intelectual do autor na análise de desafios ao desenvolvimento das nações, como também retrata o longo caso de amor desse grande brasilianista pelo país que de alguma forma o adotou e foi por ele adotado, tamanho é o seu conhecimento específico da economia e da sociedade brasileiras. A análise do professor Fishlow é sempre interessante, porém nos pareceu incompleta. Segundo Fishlow, o governo Dilma lançou mão de três tipos de incentivo à economia, que fizeram com que o Brasil avançasse de forma significativa. Primeiro, foi a defesa do setor industrial, com a desvalorização da moeda, que desencorajou as importações e beneficiou as exportações. A desvalorização do real se deu pela compra vultosa de dólares por parte do Banco Central do Brasil e adoção de barreiras à entrada do capital especulativo, essencialmente o aumento de IOF nas operações cambiais. Segundo, pela adoção de medidas tributárias, para reduzir o fardo do setor manufatureiro. Isso foi feito com a ampliação e aceleração das medidas do Programa Brasil Maior, especialmente quando a estagnação da economia produtiva local voltou a ameaçar em 2012. Fishlow viu na desoneração da folha de pagamento outro claro benefício às empresas. Terceiro, o governo promoveu a expansão da ciência e tecnologia e maior acesso a créditos de longo prazo para projetos de investimento através da expansão da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior - PITCE, lançada em 31 de março de 2004, com o objetivo de fortalecer e expandir a base industrial brasileira por meio da melhoria da capacidade inovadora das empresas e da Política de Desenvolvimento Produtivo de 2008 (2). Nenhum desses avanços

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No início de 2012, o governo brasileiro trabalhava com um crescimento de 4,5%, com a inflação dentro da meta de 4,5% e com um superávit primário de 3,1%. Agora, espera-se avanço do PIB de 1,0%, se tanto, a inflação é de 5,84% (número fechado do IPCA 2012) e superávit primário obtido artificialmente.

pode ser contestado. A questão é avaliar a essencialidade de seus impactos no curto e longo prazos sobre a taxa de investimento do País, que se encontra travada por cerca de trinta anos. Fishlow afirma que as coisas serão melhores para o Brasil nas próximas décadas. Isso também parece inegável no médio prazo, até porque o País tem conjugado, nos últimos anos, três sortes grandes, que nada dependeram da eficiência do desenho da política oficial: o bônus demográfico, pela entrada de cerca 80 milhões de jovens adultos ao mercado de trabalho, que começou em 2005 e se estenderá até 2025; a explosão de preços de commodities, iniciada em 2003, coincidindo com os dois mandatos de Lula e que se estende ao seu décimo ano em 2012, algo inteiramente inédito, e que afastou por completo o constrangimento estrutural externo da economia brasileira; e, em terceiro plano, a pletora de óleo descoberto na camada pré-sal, que promete abastecer o País com mais dólares na década de 2020. Não obstante tantas "MegaSenas" seguidas, Fishlow admite que muitos obstáculos têm de ser superados até a consolidação final de um estágio de desenvolvimento avançado. O brasilianista cita em seu trabalho a Ruchir Sharma, diretor e presidente da equipe de equity de Mercados Emergentes do banco Morgan Stanley, que

Augusto Cattoni

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Graduado em Ciência Política pela Universidade de São Francisco, Califórnia, e Mestrado em Relações Internacionais pela mesma universidade. Senior Research Fellow do Instituto Atlântico (www.institutoatlantico.org.br/)

credita o desenvolvimento brasileiro à exportação de commodities. Sharma duvida dos futuros ganhos do pré-sal e dos recursos provenientes do comércio com outros países latino-americanos. Na realidade, parafraseando o professor Fishlow, mas invertendo sua frase-título, antes de estar tudo melhor do que parece, de fato, parece que tudo poderia estar melhor, aliás, bem melhor! A perspectiva no início de 2012 era substancialmente diferente da atual. O governo brasileiro trabalhava com um crescimento de 4,5%, com a inflação dentro da meta de 4,5% e com um superávit primário de 3,1%. Agora, espera-se avanço do PIB de 1,0%, se tanto, a inflação é de 5,84% (número fechado do IPCA 2012) e superávit primário obtido artificialmente. Este último dado é reflexo de certo grau de perda de controle da política fiscal por parte do governo, não só pelo recuo da arrecadação federal, contrariamente a 2011, quando seu crescimento real foi de mais de 10%, mas, sobretudo pela explosão das despesas primárias do governo, que aumentaram (nos 12 meses terminados em setembro) quatro vezes mais que o crescimento do PIB. Também pesaram as desonerações pontuais de impostos, realizadas para ressuscitar uma produção interna meio moribunda. Resultado: o crescimento da arrecadação caiu para pouco mais de 1%. Consequentemente, o governo não teve alternativas senão excluir do seu balanço fiscal o valor dos investimentos do PAC, numa manobra contábil de última hora, além de outras que não importa citar no momento. O governador de Pernambuco e potencial candidato a presidente em 2014, Eduardo Campos, queixou-se publicamente das desonerações de IPI e de IR para setores privilegiados,

O autor agradece o convite do Instituto Atlântico para realizar a presente pesquisa e, em especial, a Paulo Rabello de Castro, presidente do IA, pela revisão, críticas e vários comentários introduzidos no texto. JANEIRO/FEVEREIRO 2013 DIGESTO ECONÔMICO

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como o automobilístico e os da linha branca. O governador do PSB afirma que tais desonerações têm impacto na "formação dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, os quais perdem capacidade de investimento com recursos reduzidos pelos frequentes 'pacotes de bondades' do governo". O governador em pauta, diga-se de passagem, não é contra a redução da carga tributária, havendo inclusive, aderido a um movimento da sociedade civil – Movimento Brasil Eficiente – que defende a simplificação fiscal e a gestão controlada do gasto público. (3) O governador se insurge contra bondades pontuais, desfalcadas de sentido permanente e sem articulação de um plano maior de racionalização da atual balbúrdia tributária nacional. A política fiscal deveria pautar seu impacto, no curto prazo, pela contenção da demanda agregada, especialmente no setor público federal. Nunca os índices de desemprego estiveram tão baixos, o que facilitaria a tarefa de conter a demanda de consumo corrente do governo. Mas não há garantia de que o governo consiga cumprir a meta ajustada. Assim, a política fiscal trará um impulso adicional à demanda agregada como atestam as vultosas transferências do Tesouro para o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, sem que com isso se propulsione, equivalentemente a oferta interna, via produção nacional. Logo, permanece o desequilíbrio crônico entre menor oferta e maior demanda agregada. Leia-se: pressão inflacionária, só mitigada pela forte evolução das importações. Tal política já gerou alertas do Tribunal de Contas da União por abrir brechas na Lei de Responsabilidade Fiscal. São práticas de um velho Brasil, que não condizem com tanto otimismo na mirada à frente. Em recente artigo (4), o professor Paulo Rabello de Castro aponta o que chama de "grande falha" do modelo brasileiro de crescimento: a sucção vampiresca (sic) de recursos das famílias e empresas, pela escalada tributária mais agressiva do mundo, mediante um desvio crescente de recursos fiscais dos setores produtivos e investidores em potencial, para os cofres do setor público cuja propensão a poupar é inferior a 5% de tudo que arrecada. Esta "falha" estrutural desastrosa, usando a expressão do economista indiano Raghuram Rajan que a cunhou ("fault lines"), e põe completamente em xeque a noção de que "o Brasil está preparado para um novo salto de crescimento", como enseja o argumento do professor Fishlow. Não se pode confundir sorte ou abundância de recursos naturais, ou ainda até, de medidas corretas, mas pontuais, como sinal de que tudo vai bem e de que "o País está finalmente à frente de um novo boom". Investimentos Públicos - PAC A produtividade total da economia brasileira vem caindo ao longo de 2012, já pelo segundo ano consecutivo, após ter alcançado no governo Lula o seu melhor desempenho desde o milagre econômico da década de 1970. Isso pode ter reduzido em quase dois terços o crescimento dos investimentos no Brasil em 2011, que ficou em 4,7%, depois de uma expansão média anual de 10% no segundo mandato de Lula. É projetado, como visto acima, crescimento zero dos investimentos em 2012.

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Muitos analistas acreditam que a economia poderia expandir-se a um ritmo mais acelerado em 2013, sem descontrole da inflação. O chamado "crescimento potencial" chegou a ser estimado pelos mais otimistas, incluindo o Ministério da Fazenda, na faixa de 4,5% a 5%. Agora, porém, o pessimismo parece estar voltando sobre a capacidade estrutural de expansão da economia brasileira. Em 2011, o PIB cresceu apenas 2,7%, com a inflação batendo no teto do intervalo da meta, de 6,45%. O cenário para este ano é consideravelmente mais negativo. O PIB per capita não teve qualquer avanço, enquanto a inflação prosseguiu elevada (5). Na realidade, o grande otimismo que tomou conta da mídia externa sobre o potencial brasileiro, apenas comemorava o poderoso efeito conjugado dos três fatores eventuais – demografia, commodities e pré-sal –, que passou a influir no imaginário dos investidores, além de empurrar, momentaneamente, a PTF - Produtividade Total dos Fatores. Após ter crescido numa média anual de 1,2% no governo Lula, e de avançar até 1,9% anualmente no segundo mandato do ex-presidente, a produtividade total recuou 0,03% em 2011 e deve ter nova retração, desta vez alarmante, de 1% em 2012. Com isso, a taxa de investimento, que foi de 19,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2011, cairá para apenas 18% em 2012 (segundo as principais consultorias), ficando muito distante dos 20% pretendidos pelo governo para 2012. Em comparação, a maioria dos países latino-americanos investe 25% em média (enquanto a China, 45%). Os analistas concordam que os investimentos e o PIB dependem, em grande parte, da produtividade, como ficou evidente em vários países, inclusive o Brasil, entre 2007 e 2010. Para mexer com a produtividade e fazer avançar a combalida produção nacional, seria essencial ganhar pontos na evolução do investimento público, até porque estamos aqui falando de infraestrutura, da qual também depende o investimento privado. Mas o valor dos investimentos públicos no Brasil está muito aquém do desejado. Esta é a chave do desafio do crescimento acelerado, que não chega nunca. Dados do Tesouro mostram que entre janeiro e setembro de 2012, o governo gastou em investimentos apenas 44% do que fora autorizado pelo Congresso, ou seja, R$ 45,2 bilhões. O valor pago foi proporcionalmente menor do que o despendido no mesmo período em 2011: R$ 36,6 bilhões, ou 46,7% de um total autorizado de R$ 78,5 bilhões. Pior, do total efetivamente pago nesse ano, R$ 36,3 bilhões referem-se a restos a pagar de 2011. Em outras palavras, do orçamento de 2012, foram gastos apenas R$ 14,8 bilhões, ou seja, só 14,5% do que fora aprovado pelo Congresso. O Ministério das Cidades informou que dos R$ 17,9 bilhões aprovados, empenhou R$ 12 bilhões (60,19%). O Ministério da Fazenda gastou 90,93% do total aprovado, ou seja, R$ 962,19 milhões. Estranhamente, o próprio Ministério do Planejamento teve o pior desempenho, com 4,56% das despesas pagas. Depois vem o das Comunicações (14,64%) e o da Cultura (12,82%). O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mencionado pelo professor Fishlow, sofre atrasos crônicos na liberação de verbas, algo por ele mesmo admitido no seu texto. Cinco anos após a criação do PAC, as maiores obras de infraestrutura do País têm atraso de até 54 meses em relação ao cro-


Elza Fiuza/ABr

nograma original. Uma dessas, simbólica por sua importância regional, a Transposição das águas do Rio São Francisco, demorará mais que o dobro do tempo previsto de conclusão e já custará o dobro do que se planejara, senão mais do que isso. Entre as obras com orçamento acima de R$ 5 bilhões, os atrasos são de, pelo menos, um ano. Levantamento feito pelo jornal O Globo, nos balanços do PAC, mostrou que em dez megaobras, que somam R$ 171 bilhões, os prazos de conclusão, previstos no cronograma inicial, foram revistos. Atraso é comum também em grandes obras de saneamento, que beneficiariam cidades com mais de 500 mil habitantes. Apenas 7% de 114 obras estavam concluídas, e 60% apareciam como atrasadas, paralisadas ou sequer iniciadas. Embora a maioria dos atrasos no PAC seja motivada por problemas ambientais, de fiscalização ou gerenciais – ou seja, a princípio, não faltam recursos para as obras –, os entraves acabam atrasando os investimentos financeiros no âmbito do programa, acumulando um elevado volume de recursos já reservados, mas sem aplicação efetiva. Entre 2007 e 2011, segundo dados da Secretaria de Orçamento Federal (SOF), do valor total empenhado para o PAC, R$ 125 bilhões, apenas R$ 86,7 bilhões foram gastos no período. Tratase de um claro impasse gerencial sofrido pelo governo federal, que tem servidores, mas não executa serviços, que contrata novos colaboradores, mas não obtém colaboração, senão da iniciativa privada, quando a esta recorre, sempre em última instância, como nas novas velhas concessões.

Cinco anos após a criação do PAC, as maiores obras de infraestrutura do país têm atraso de até 54 meses

Petróleo, Gás e Etanol No setor de gás, petróleo e etanol, é necessário examinar, em particular, a Petrobras, empresa que, além de ser responsável pela produção e comercialização de gasolina, óleo diesel, etanol e gás, é utilizada como instrumento das políticas econômica e socioambiental do governo. A estatal que, há alguns anos, parecia ter um céu de brigadeiro pela frente, hoje perdeu o brilho porque não está capitalizada para explorar as enormes jazidas do pré-sal descobertas em 2008. Por decisões estratégicas equivocadas, o governo afastou investidores e, na tentativa de conter a inflação crescente com expedientes fáceis, decidiu manter o preço da gasolina abaixo do preço pago para importála, o que se tornou cada vez mais necessário recentemente. A Petrobras ficou com ônus de financiar a diferença – R$ 3,9 bilhões, segundo estimativas do Centro Brasileiro de Infraestrutura – o que repercute de forma negativa sobre sua capacidade de investir. Os subsídios à gasolina atrapalham a Petrobras, mas, sobretudo, estrangulam a indústria do etanol, que perdeu a competitividade devido ao preço defasado deste produto. Essa política atingiu também os acionistas, que esperavam manter o rendimento de alguns anos atrás, mas viram o preço da ação não parar de cair na Bolsa, fazendo que eles não

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tenham vontade de manter esses papéis e muito menos de subscrever um eventual aumento de capital. A Petrobras, que também tem que cuidar da promoção de vários programas culturais do governo, enfrenta problemas na exploração de petróleo e na construção de dutos, que caíram de forma significativa. A produção de petróleo recuou 8,4% em setembro em relação ao mesmo mês de 2011. Em termos absolutos, foram produzidos 1,924 milhão de barris diários, contra 2,099 milhões no ano anterior. Em relação a agosto, a queda foi de 4%, com 2,004 milhões de barris. Consequentemente, o lucro da empresa retrocedeu. Outro problema foi a mudança das regras do marco para a exploração de petróleo no pré-sal, uma verdadeira quebra da ordem jurídica para, segundo o governo, garantir que a atividade esteja realmente em mãos estatais. Por razões ideológicas, o sistema evoluiu de concessão para partilha. As regras de concessão de exploração e produção de petróleo no país foram definidas pela Lei 9.478, de 1997, que quebrou o monopólio da Petrobras, permitindo a entrada de competidores estrangeiros no mercado brasileiro. Essa lei era "bem respeitada" internacionalmente por sua transparência e reconhecida como incentivo à competição e ajudou o País a se modernizar. A participação da indústria do petróleo no PIB, que era de 3% na década de 90, hoje é de 12%. O modelo de concessão é comum entre os países mais desenvolvidos, como Estados Unidos, Noruega, Canadá, Grã-Bretanha e Austrália. Desde 2010, o regime de exploração de petróleo adotado no País passou a ser o da "partilha": ou seja, o setor privado adquire o direito de explorar determinada área, mediante uma série de pagamentos ao poder público, como bônus, royalties e participações especiais. O Palácio do Planalto escolheu durante a campanha presidencial o modelo da partilha, no qual o Estado se torna sócio das empresas no empreendimento. Ou seja, uma parte ou, até mesmo, a totalidade do petróleo fica nas mãos do governo, enquanto as empresas, agora meras prestadoras de serviço, são remuneradas pela exploração, além de receberem parte do lucro. Com o pré-sal, a Petrobras ficou obrigada por lei a participar de 30% de todos os novos campos. Faltam, porém, fornecedores internos de equipamento e mão de obra qualificada, essenciais para atender a produção, criando assim um grande gargalo na produção

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de petróleo. Este fato foi exacerbado pelo aumento de conteúdo nacional na fabricação de plataformas. Ou seja, tentaram prestigiar os produtores brasileiros, mas nem isso conseguem, pois ditos fornecedores não conseguem montar uma planilha de custos competitiva com as do exterior, tamanhas são as armadilhas tributárias e de crédito doméstico. Além de ampliar os ganhos do governo no processo, o regime da partilha em teoria traria ainda solução para outro problema: existe a possibilidade de que os poços estejam interligados de alguma forma – e no regime de concessão, uma empresa poderia acabar "invadindo" o espaço vizinho de outra. Para administrar suas reservas, o governo patrocinou em 2010 a criação de uma nova estatal do petróleo, a Pré-Sal Petróleo S/A ou PPSA, que diferentemente da Petrobras, terá apenas o Estado como sócio. A criação de outra estatal pressionou a política fiscal do governo. No modelo de partilha, ganha a licitação a empresa que oferecer a maior parcela de petróleo ao Estado. O sistema de partilha é adotado principalmente na África (Líbia, Egito, Nigéria, por exemplo) e na Ásia (China e Índia). Está p re v i s t o t a m b é m que a Petrobras tenha participação mínima garantida em cada consórcio vencedor. Essa mudança jurídica da exploração de petróleo ocorreu durante a campanha presidencial de 2010, o que sempre gera desconfianças. Agora, a previsão é que o pré-sal esteja em plena produção, não mais em 2020, mas em 2025 ou 2030, um atraso nada surpreendente. O Brasil lutou muito para consolidar no exterior sua imagem de país que honra contratos. Mas agora, não há mais segurança jurídica de que o que foi acordado continuará prevalecendo, inclusive em outros setores, como transportes e energia elétrica, cujas regras foram mudadas de repente de uma hora para outra. Com essas mudanças, os empresários foram transformados em prestadores de serviços mal remunerados. Não é à toa que os investimentos privados também capengam, na esteira das incongruências do modelo de investimentos públicos. Outro problema é o destino de royalties. O Congresso está mudando essa fórmula, possivelmente para as áreas já licitadas, o que, evidentemente, representaria uma quebra de contratos. Depois de dois anos de discussões no Congresso, a única preocupação dos parlamentares foi definir qual o destino do dinheiro. O Congresso votou uma lei. O Execu-


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tivo a vetou e é bem provável que a questão seja decidida pelo Judiciário. Enquanto isso, os leilões de novas licitações de poços ficaram paralisados. A produção do pré-sal deve ocorrer apenas no futuro – como também os recursos –, mas a polêmica já está em vigor com as mudanças nas regras de exploração e com o aumento do conteúdo local das plataformas, o que proporciona grande desafio para as empresas. Este último ponto está ligado a outro que veremos a seguir, que é o crescente protecionismo. O fato é que o Brasil, após haver atingido a autossuficiência em petróleo, não o é mais, devido à queda na produção e ao aumento da importação para atender o consumo interno. Como as ações da Petrobras têm peso significativo no IBOVESPA, o índice da bolsa de valores brasileira permanece muito aquém do que os investidores esperavam. Esse problema é exacerbado pelo fato de o preço dos combustíveis permanecerem congelados como parte da luta do governo contra a inflação. A equação torna-se mais complicada pelo fato que a importação de gasolina e de óleo diesel nunca foi tão alta e há grande defasagem entre o preço cobrado no mercado internacional e o preço do mercado brasileiro. A imprensa noticiou que pode faltar gasolina no final do ano. Há risco de desabastecimento de combustíveis por conta da incapacidade da Petrobras e das distribuidoras de trabalhar com uma carga importada superior a 100 mil barris diários. A logística de recebimento das cargas cada vez maiores de gasolina importada pela Petrobras tem limite. A

Agora, a previsão é que o pré-sal esteja em plena produção, não mais em 2020, mas em 2025 ou 2030

recente decisão da companhia de reduzir estoques de combustíveis acrescenta mais pressão sobre a logística, já que será necessária uma maior agilidade na reposição dos produtos. Energia Elétrica Outro setor muito afetado pelos baixos investimentos é o setor elétrico. O governo anunciou uma redução compulsória de 20% do custo para a indústria baseada num cálculo duvidoso sobre a rentabilidade do capital aplicado. Ao invés de cortar impostos federais (PIS e Cofins, entre outros) e estaduais (ICMS), decidiu-se impor um preço menor às geradoras. Isso pode se tornar fator de fuga de capitais no investimento em ações das empresas elétricas que necessitam de grandes investimentos. O governo vangloria-se de que não tenha havido apagão no Brasil desde o governo Fernando Henrique Cardoso, no início dos anos 2000. É verdade. Ocorreu, no entanto, uma série de "apaguinhos" no Norte, Nordeste, Distrito Federal e recentemente no Sudeste, justamente por falta de investimentos. É comum, ademais, a falta de energia para as unidades produtivas de empresas, como, em particular, fábricas e montadoras instaladas na região sul-fluminense, que têm que interromper suas linhas de produção por conta da falta de eletricidade.

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O sistema tributário, com sua complexidade, tem um custo elevadíssimo para as empresas e deveria ser revisto.

Na virada do ano de 2013, ficou claro outro risco grave, que o governo descartava peremptoriamente: o racionamento direto de energia elétrica. De fato, o nível dos reservatórios que abastecem o sistema hidrelétrico já vinha caindo mês a mês, especialmente na região sudeste, cuja rede tem papel crítico no suprimento industrial. Agora ficou clara a carência hídrica camuflada nas vãs declarações oficiais. Ao cair o véu, se desnudou a total antipatia, ou seja, a oposição de sentimentos, entre reguladores e regulados, entre governantes desatentos e governados perplexos e desencorajados. As empresas de que precisa o governo para recuperar o terreno perdido nos próximos anos consideram o governo, neste momento, um mau parceiro, um ente insensível ao cálculo mais rudimentar de rentabilidade de um negócio. Esta antipatia mútua é péssima para o País e para os consumidores. Se sobrevier o racionamento, o desastre será completo para a avaliação do desempenho do governo Dilma. Estimase, preliminarmente, uma perda de 1 a 2 pontos percentuais de PIB no caso de racionamento, o que traria a produção projetada de cerca de 3% este ano para algo entre 1 e 2%, tudo projetado com base na terrível experiência de 2001. Mesmo que o racionamento seja evitado, outra hipótese menos grave, ainda assim os consumidores (ou enquanto contribuin-

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tes) e o meio ambiente já estarão prejudicados, os primeiros por arcar com uma conta de luz mais cara, pela entrada em funcionamento das térmicas e, os últimos, pelo impacto da queima de combustível no ambiente. Na tentativa honrosa de baixar o custo da energia elétrica – um dos mais altos no mundo – as empresas geradoras, transmissoras e distribuidoras viram seu valor de mercado diminuir drasticamente, a exemplo do caso da Petrobras. Isso por que o governo insistiu que os custos cobrados pelas empresas fossem reduzidos, embora um fator importante do alto custo sejam os impostos e encargos cobrados pelos governos estaduais e federal. A Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) entraram com recurso administrativo no Ministério de Minas e Energia questionando as regras da Medida Provisória 579 sobre a renovação das concessões que as obrigou a baixar o preço. Na opinião de especialistas, esse pode ser o primeiro passo para uma judicialização no setor elétrico, caso o governo não aceite negociar ajustes na nova regra. Pelos valores estabelecidos pelo governo federal, a Cesp tem direito a uma indenização de R$ 1 bilhão, mas a previsão do governo paulista esse valor seria de R$ 2,89 bilhões. O que causa maior discussão, porém, é o valor das tarifas – bem abaixo do calculado pelas empresas. Na Cesp, seria de R$ 7,42, que não remunera nem a operação, nem a manutenção da rede, como reclamou o Secretário de Energia do Estado de São Paulo. A redução do custo de energia permanece para o Ministério da Fazenda uma medida "urgente e necessária". Agora, precisa convencer as empresas a abrir mão de sua receita sem contrapartida. Grandes empresas do setor, como a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e a Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), decidiram não pedir a renovação de suas usinas hidrelétricas. O governo federal politizou a questão dizendo que governos estaduais governados pela oposição (Minas Gerais e São Paulo) são "insensíveis" aos anseios da população. A Eletrobras é "líder em geração e transmissão de energia elétrica no Brasil e leva energia elétrica, bem-estar e desenvolvimento para os brasileiros através de suas 168 usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas e termonucleares, mais de 61 mil quilômetros de linhas de transmissão e seis empresas distribuidoras", segundo seu portal. A empresa é responsável por quase 40% da geração e 56% das linhas de transmissão de eletricidade. A empresa já não vinha tendo bons resultados operacionais, mas o que realmente azedou a relação com os investidores foi a MP 579 que, para reduzir o valor da conta de luz de consumidores e empresas, mexe com a rentabilidade das com-


panhias do setor elétrico. A Eletrobras é controlada pela União, por isso, teve de aceitar as novas regras, apesar das perdas de receita e do prejuízo para os minoritários. A importância da empresa para o setor é enorme: controla 12 subsidiárias e detém 50% de Itaipu. São dois fatores que geram perdas: indenizações e receitas. A Eletrobras contabilizava em seu balanço R$ 31 bilhões em indenizações a receber por investimentos já feitos e ainda não amortizados. Com a MP 579, a União disse que pagará R$ 14 bilhões, contra uma previsão da companhia de R$ 30 bilhões. A empresa, então, terá de dar baixa nessa diferença. A Eletrobras é estatal, mas o mercado é implacável e a queda do valor de suas ações tornou-se preocupante: no mês de novembro, a queda é de 40% e no ano chega a 60%. Em pouco mais de dois meses o valor de mercado da estatal recuou quase R$ 6 bilhões – de R$ 19,079 bilhões para R$ 13,135 bilhões. Para analistas, trata-se de destruição do valor da empresa. Com a fuga de investidores privados – as ações não param de cair desde que as medidas do governo foram tomadas – cresce a chance de o governo ter de fazer aportes ao grupo. Assim, é possível que consumidor pague menos pela luz, porém mais em impostos para financiar o governo. Investimentos públicos e privados devem continuar aquém do desejado, entre outras razões, pelo aumento do protecionismo comercial. Quer seja no setor energético – com o pré-sal – ou no setor produtivo com a política de desoneração de IPI, o Brasil tornou-se mais protecionista. O governo utiliza, principalmente, dois instrumentos: conteúdo nacional para privilegiar a indústria nacional e aumento de impostos, o IPI, em particular. O aumento do IPI adotado em setembro 2010 foi visto por vários países como medida protecionista contra a importação de veículos importados. Aliás, por esse motivo, ações na Organização Mundial de Comercio foram iniciadas contra o Brasil. Aumento de conteúdo nacional ficou evidente nas indústrias petrolífera e automotiva, em particular na de autopeças. Lógico que a defesa da indústria nacional é louvável, mas pode também ser ineficiente devido aos custos e à falta de tecnologia, como atestam os casos da fabricação de plataformas e de veículos, notoriamente defasados.

mentos, o segundo resultado negativo consecutivo, acumulando no período uma perda de 8,5%. O emprego na indústria recuou de 1,9% em relação a setembro do ano passado – o que explicita que o nível de pleno emprego no Brasil deve-se ao setor de serviços. O principal problema é que a perspectiva não é das melhores apesar de o governo ter feito corte pontual da taxa de juros e de impostos, como ilustram os casos no setor automotivo e no da linha branca. Ficou evidente que promover uma ampla reforma tributária seria mais eficiente apesar da alegada maior dificuldade política. Essas desonerações fiscais, que devem somar R$ 45 bilhões até o final do ano, contribuíram para o governo ser incapaz de manter seu superávit primário como visto acima. Outro ponto que deveria ajudar a indústria é um câmbio mais competitivo. Desvalorização por um lado ajuda, mas é também prejudicial porque dificulta a modernização da indústria, necessária para o aumento da produtividade. Desde agosto de 2011, o real desvalorizou-se praticamente em 30%, equivalente à maxidesvalorização de 1983. Desvalorização cambial pode ajudar certos setores industriais, porém deve-se ressaltar que muitas indústrias hoje são importadoras de peças e insumos, portanto, desvalorizar é um instrumento que deve ser utilizado com muita cautela. O câmbio flutuante, até então mais respeitado, passou a quase não existir na prática, visto que o governo não está disposto a permitir que o dólar recue abaixo de dois reais. Jaime Ardila, presidente da General Motors para a América Latina, declarou: "O câmbio é a menor das nossas preocupações; o problema são os custos de infraestrutura, logística e mão de obra"(6). Ardila cita especialmente as dificuldades nos portos, estradas e o monopólio mantido pelos transportadores, os chamados cegonheiros. Agora, as vendas perdem espaço também na América do Sul. A General Motors perdeu contratos para Chile, Colômbia, Equador e Venezuela, que passaram a ser abastecidos por China, Coreia do Sul e Tailândia. Um exemplo citado pelo presidente da GM América do Sul, é o da picape S10, que é

Indústria Apesar dos incentivos, a indústria deve continuar anêmica em 2013. No ano passado, amargou uma queda de 3,1% em relação a 2011 e de 1% em setembro em relação a agosto. A queda verificada na produção da indústria nacional em setembro teve perfil generalizado. Na maioria dos setores pesquisados, 16 entre 27, houve registro de taxas negativas. A produção de bens de capital registrou queda de 0,6% em setembro perante agosto. Na comparação com setembro de 2011, houve queda de 14,1%. No acumulado do ano, a produção de bens de capital teve queda de 12,4%. Nos últimos 12 meses, a variação foi de -9,6%. O destaque foi o recuo de 4,8% no setor de máquinas e equipa-

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exportada da Tailândia para esses mercados a preços entre 20% e 30% mais baixos que os do Brasil. "A ironia é que o modelo S10 foi desenvolvido aqui no Brasil", diz o executivo. A Renault deixou de vender para o México sete mil unidades ao ano do compacto Sandero produzido no Paraná. "A Colômbia passou a ser a fornecedora do modelo, pois tivemos uma evolução desfavorável de custos e nossa competitividade se degradou muito", diz o vice-presidente para as Américas da Renault, Denis Barbier, a jornalisO problema com a tas. A fábrica da inflação atual brasileira, Renault em Meainda bem mais alta que nos dellín recebe as países avançados e peças do Sandero d e d i v e r s a s em desenvolvimento, partes do munse deve ao fato do, entre as quais de a economia Brasil, França permanecer e Romênia, e indexada. apenas monta o carro(7). Aliás, a indúst r i a v e m d i m inuindo sua participação no PIB e hoje representa menos de 14%. O PIB brasileiro parece cada vez mais depender da exportação de matérias primas - petróleo bruto, aço e soja, em particular – e do setor de serviços, como a maioria dos países adiantados. Aliás, foi veiculado que uma grande indústria do setor de alumínio, a Alcoa, parou sua produção numa de suas fábricas porque, como é autossuficiente em energia, per-

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cebeu que seus lucros seriam maiores negociando eletricidade do que vendendo alumínio. As empresas brasileiras, ademais, gastam 20% de sua receita com a logística. O que se constata é que, nem desoneração tributária, nem desvalorização cambial e nem os dois instrumentos juntos, garantem por si só um bom desempenho da indústria. Há um consenso que a falta de competitividade de produtos brasileiros se deve a impostos altos, preço de matérias primas, burocracia, infraestrutura precária, logística precária e mão de obra cada vez mais cara. Autoridades governamentais concordam com essa análise, mas não adotam qualquer medida para enfrentá-las(8). As empresas nacionais conseguiram obter uma taxa cambial desvalorizada em relação ao dólar, a redução da taxa Selic, com todas as consequências sobre as taxas de juros praticadas pelas instituições financeiras, além de isenção e redução do Imposto de Renda, desde que se aumente o volume exportado. Tudo isso, porém, não deu resultados esperados até agora e a exportação de produtos manufaturados continua em ritmo fraco. Seria necessário fazer concomitantemente uma melhoria das instalações portuárias e um aumento dos investimentos em transportes. O sistema tributário, com sua complexidade,


tem um custo elevadíssimo para as empresas e deveria ser revisto. E dever-se-ia simplificá-lo com a fusão de alguns impostos e uma legislação mais clara sobre formas e modos de pagamento de impostos. É a reforma tributária ampla, geral e irrestrita, sobre a qual já aludimos. Despesa Pública e Superávit Primário O Ministério da Fazenda admitiu em 6 de outubro que não será atingida a meta "cheia" de superávit primário de R$ 139,8 bilhões para este ano, que é a economia feita para pagar juros da dívida pública e tentar manter sua trajetória de queda. O governo federal confirmou que pretende abater da meta R$ 25,6 bilhões de investimentos do PAC. Com esta dedução, a meta cai para R$ 114,2 bi, ou seja, 2,5% do PIB. Isso ocorreu por conta das desonerações feitas para reaquecer o consumo, somadas à estagnação da coleta de impostos e à desaceleração da economia. O governo não cumpriu as metas de equilíbrio das contas públicas, o que, evidentemente, é bastante perigoso num cenário de inflação crescente. A verdade, no entanto, é que nunca se economizou no ciclo de crescimento dos governos recentes. Sempre houve um esforço para se deduzir, no cálculo do superávit, investimentos em infraestrutura e se promover maquiagens contábeis, como, entre outras, o Tesouro injetar dinheiro do BNDES para permitir a recapitalizarão da Petrobras sem sobrecarregar as contas públicas. Sempre se gastou para turbinar a economia e garantir retornos políticos. O problema é exacerbado porque estados e municípios não devem tampouco cumprir sua parte na meta de superávit primário neste ano. Quando isso ocorre, teoricamente, o governo federal deveria compensar a diferença com cortes de despesas, mas raramente isso é o caso. O superávit primário chegou ao fim, mas, deve-se reconhecer que a redução dos juros ajudou muito o governo a segurar o déficit fiscal. Inflação A inflação é um dos males perenes do Brasil, que deveria ter aprendido com a Alemanha da República de Weimar como esse "dragão" é perigoso. Segundo um estudo da jorna-

lista Miriam Leitão, "de julho 1964 a julho de 1994, a inflação acumulada medida pelo IGP-DI, foi de 1.302.442.989.947.180%. Ou para simplificar, um quatrilhão trezentos e dois trilhões"(9). O índice obviamente caiu significativamente desde o fim dos anos 1980 (governo Sarney) e o início dos anos 1990 (governo Collor), quando beirava os 100% ao mês. Naquela época, o Brasil foi campeão do mundo em planos econômicos e em experiências monetárias heterodoxas, com cortes de zero e criação de moedas - cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, cruzado novo, URV e, finalmente, real. A desindexação da economia é outra reforma necessária que o governo ainda não fez. O problema com a inflação atual brasileira, ainda bem mais alta que nos países avançados e mesmo nos p a í s e s e m d e s e nvolvimento, se deve, em grande parte, ao fato de a economia permanecer indexada. Por exemplo, muito contratos de contas d e l u z , p re ç o s d e transporte e valores de aluguel permanecem indexados. Assim a inflação nunca pode cair a taxas mais "civilizadas". São tantos os índices que medem a inflação que verdadeiramente o cidadão perde a conta: IPC, IGP-M, IPCA etc. O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) é o que o governo escolheu como índice oficial da inflação. O IPCA subiu 0,59% em outubro, segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em setembro, a taxa havia subido 0,57%, 0,16 pontos percentuais acima da taxa de inflação de 0,41% de agosto. De janeiro a outubro, a inflação acumula alta de 4,38%. A meta inatingível do governo para este ano é de 4,5%, com banda de dois pontos percentuais para mais ou para menos. O economista Alexandre Schwartsman e colunista da Folha de São Paulo, constatou que a taxa de difusão, que considera apenas os elementos do IPCA que tiveram alta, foi a mais alta desde 2005, de 68,8%. A inflação e os preços devem continuar pressionando. Há risco de recrudescimento da inflação em 2013 com a queda de juros e a desvalorização cambial. Para entender por que a inflação tem preocupado os economistas, basta olhar para o gráfico acima. Ela caiu bastante, mas não chegou ao centro da meta de 4,5%. Nos últimos meses, voltou a subir, apesar do baixo crescimento do PIB. A inflação final de 2012 foi de 5,84%.

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Crédito Com falta de investimento e de poupança interna, o modelo de crescimento permanece centrado (quase que) unicamente no consumo, que levou à alta da inadimplência da população. Esse modelo esgotou-se porque as famílias já estão muito endividadas. Todos os bancos brasileiros, públicos ou privados, já aumentaram as provisões para pagamentos em atraso. O aumento em setembro foi de 26,4% em relação ao mesmo mês de 2011. Provisões não são perdas, mas estimativa de não recebimento e têm impacto nos resultados e no valor das ações de bancos negociadas na bolsa. O risco de bolha de crédito é real, e suas consequências bastante negativas como evidente nos casos dos Estados Unidos, da Irlanda e da Espanha em 2007 e 2008. O Brasil padece da mesma vulnerabilidade que afetou esses países: incentivo exagerado ao consumo de famílias endividadas, que estão com 25% a 30% de sua renda comprometida com empréstimos. E o governo continua criando mais formas de incentivar o consumo, com desonerações da compra de veículos ou de aparelhos da linha branca. Essa bolha pode estourar no futuro, mas não ainda se sabe quando. Aliás, segundo o Banco Central, o estoque das operações de crédito do sistema financeiro subiu 1,4% em outubro ante setembro, para R$ 2,269 trilhões. No trimestre, a car-

Com falta de investimento e de poupança interna, o modelo de crescimento permanece centrado (quase que) unicamente no consumo, que levou à alta da inadimplência da população.

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teira cresceu 3,9% e, no ano, até outubro a alta é de 11,8%. Em 12 meses, até o mês de novembro, o total de operações de crédito registrou expansão de 16,6%. Em janeiro de 2005, 4,6% da renda mensal dos brasileiros era gasta com pagamento de juros aos bancos. Em setembro de 2012, o percentual foi de 7,6%. Cresceu, de lá para cá, mes-


mo com a enorme redução da Selic, que caiu de 18,25% para 7,25%. Um pedaço maior dos rendimentos está comprometido com juros. Isso acontece porque os brasileiros estão muito mais endividados agora. Política Comercial Externa

melhores se fossem mais influenciados pela China ou pela Rússia? Alguém escutou alguém no governo reclamar da política cambial chinesa, como o faz com frequência em relação à americana? Parece uma atitude preconceituosa contra os louros de olhos azuis, e é. Mas tudo indica que a política externa do Brasil é determinada mais pela ideologia do que pela defesa dos interesses nacionais, o que leva à perda de competitividade e aumento de custos e ineficiência. O Brasil parece ter escolhido cuidadosamente os piores países para deles se tornar parceiro.

Desde 2003, a política externa do Brasil não é sem custos políticos e econômicos. Países dissidentes foram privilegiados e países tradicionalmente importantes para o Brasil, hostilizados. O ministro Fernando Pimentel do Desenvolvimento, InConclusão: entre falhas e falácias dústria e Comércio Exterior chegou a defender a ideia que Brasil e Argentina poderiam Não há dúvida de que o Brasil, como o profomentar a criação do terceiro maior mercado fessor Fishlow ressaltou, está numa posição Tudo indica que do mundo, depois do chinês e do americano. privilegiada com seus recursos naturais abuna política externa do De fato, segundo o editorial do Estado de São dantes, quer sejam riquezas minerais, de agroPaulo, "... os dois países talvez pudessem pronegócio e energéticas (óleo e gás, etanol, hidreBrasil é determinada vocar esse efeito a partir do Mercosul, se foslétrica, eólica, solar etc.). Uma dessas riquezas, mais pela ideologia sem administrados com mais seriedade e alnão mencionada por Fishlow, mas vital para o do que pela defesa guma competência... Sem estratégias sérias e agronegócio, é a abundância de água. dos interesses políticas de longo prazo, o isolamento atrás Falou-se de sérios desafios que se cristalinacionais, o que de barreiras protecionistas será a tentação zaram ao longo de 2012. Quando se analisam constante dos governos (dos dois países) que investimentos, indústria, produção de enerleva à perda de poderiam até formar um grande mercado, gia, inflação, superávit primário, crédito e competitividade e mas para produtos de uma economia de terpolítica comercial externa, não há motivo de aumento de custos e ceira classe. A de segunda classe é a dos paígrande otimismo. Além desses males, não foineficiência. O ses empenhados em alcançar os melhores param mencionados outros mais antigos, que Brasil parece ter drões internacionais"(10). são conhecidos de forma genérica como "cusSeguindo outro caminho de que aquele to Brasil", que tornam o País pouco competiescolhido adotado pelo Brasil e pela Argentina, Chile, tivo(11). Vivemos, por algum tempo, a falácia cuidadosamente os do namoro dos investidores por nosso imenPeru, Colômbia criaram a Aliança do Pacífipiores países para so potencial. Ninguém deles duvida. Só que co, que chamou a atenção de investidores indeles se tornar tais potenciais serão relativamente inopeternacionais. Em termos comerciais, desde parceiro. rantes, enquanto não houver compromisso que o PT chegou ao poder o Brasil fechou político sério com a superação da falha funacordos de livre comercio inócuos com a Padamental, que é a extração brutal de rendas lestina e com o Egito. Não se entende bem por do setor produtivo para financiar o setor inativo. Nesse ponquê, visto que esses dois países que não são grandes parceito-chave nossa avaliação do Brasil se distancia e se opõe à do ros comerciais do Brasil. professor Fishlow, quando este insiste que ao Estado brasiÉ significativo que o Brasil tenha perdido para o México a leiro cabe o papel central de gerar poupanças controlando atração de capitais estrangeiros e de investidores que tivera mais o consumo privado e, sobretudo, "tentando convenaté pouco tempo. Se o atual crescimento de ambos os países cer" (?) a nova classe média baixa a moderar seu apetite pelos permanecerem no nível atual, o PIB do México ultrapassará bens que quer comprar.(12) Ora, não é a classe média consuo do Brasil na próxima década. O crescimento dos PIB bramidora que atrapalha o crescimento do País. Esta nova classileiro e mexicano são, respectivamente, de 1,% e de 3, 75% se média é a cura, não a doença. Nem muito menos é o Estado em 2012. No quesito da inflação e desemprego, o Brasil tambrasileiro o elemento central de nada, senão o fator principal bém perde para o México. Enquanto o México é membro pledo estancamento. Logo, o Estado é a doença, que Fishlow arno do NAFTA, o Brasil recusou-se a assinar um acordo de dentemente se recusa a admitir ou, pelo menos, a verbalizar, livre comércio com Washington. já que, no âmago, ele deve saber do que estamos falando. Esse alinhamento contra-comercial parece dever-se, soJustamente esses problemas de ordem macroeconômica bretudo, ao fato de que todos os países privilegiados pela dinão têm sido enfrentados de forma coerente pelo Estado plomacia brasileira têm em comum um antagonismo quase brasileiro, nem corretamente mapeados por seus principais pueril aos Estados Unidos. Aliás, a própria ênfase na imporconselheiros, fora do governo. A crítica a este erro palmar de tância do processo de Doha ou nos BRICS é outra manifesdiagnóstico não atinge apenas o governo Dilma; vem de antação do mencionado antiamericanismo infantil. Os BRIC tes do plano Real e não deixa escapar nenhuma das admiparecem ter perdido seu esplendor de alguns anos atrás e o nistrações anteriores. Dilma tem até se comportado como alprocesso de Doha deu em nada. Seriam o mundo, e o Brasil,

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guém que busca um novo diagnóstico. Só que não chegou lá, ainda. Com exceção dos tradicionais juros estratosféricos, que foram baixados com coragem, e da promessa de redução do preço da energia elétrica, a autocrítica do Estado pelo próprio Estado brasileiro jamais foi feita. O erro apontado está sempre no cidadão, que não teria feito sua parte. Podem ser mencionados os impostos, que o próprio governo reconhece serem altos demais, mas que, ao invés de neles promover uma ampla reforma tributária, que a sociedade demanda, o Estado prefere fazer ajustes pontuais de desoneração para alguns setores privilegiados, como o automotivo e o da linha branca. Já foram feitos inúmeros estudos que apontam que pagar mais de 30% do PIB em impostos é contraproducente e gera ineficiência. No Brasil, paga-se quase 40% do PIB; assim, empresas e pessoas ficam sufocadas.(13) Realmente, a carga tributária é um fardo, particularmente porque não há retorno percebido. Os brasileiros desconhecem todos os impostos indiretos que pagam e para acertar suas contas com o fisco, a cada ano, as empresas são obrigadas a recorrer a um batalhão de contadores. Espera-se que isso possa evoluir com a discriminação de impostos a ser feita a partir de 2013 na nota fiscal de compra de produtos e serviços. Isso é o caso também para se abrir uma empresa e depois, se for o caso, para se fechá-la. Há, inclusive, um paradoxo no Brasil: a carga tributária não para de crescer – em 2011 chegou a 35,11% do PIB – mas a falta de recursos é constante, o que leva à conclusão que o dinheiro é sempre mal gasto. Não

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está claro para onde vai todo o dinheiro arrecadado. Nenhum brasileiro sabe direito em que se gastam mais de R$ 1,5 trilhão de tributos, anualmente. "Tivemos uma alta muito grande da carga tributária em 2011 e, agora, uma pequena queda. Quando há recuo na arrecadação, é pequeno, quando há alta, é significativa" - Presidente do Conselho Superior do Instituto Brasileiro do Planejamento Tributário (IBPT). Todos esses itens fazem com que o ambiente de negócios no Brasil seja sofrível. Ninguém pretende comparar o Brasil a Cingapura, mas seria legítimo compará-lo ao México ou ao Chile. Tal comparação não seria favorável ao Brasil. O ambiente de negócios no Brasil numa escala de 0 a 100 chegou a 41,5 neste ano segundo um estudo do Economist Intelligence Unit feito a pedido do Centro de Liderança Pública (CLP). Burocracia, alta carga tributária e infraestrutura deficiente foram apontadas como gargalos para o desenvolvimento do País(14). O professor Albert Fishlow, com seu conhecimento profundo e perspicaz, não deixou de fazer um apanhado simpático sobre o Brasil. Com certeza, demonstra otimismo. Que brasileiro, com seu tradicional complexo de vira-lata, não gostaria de escutar previsões favoráveis de um professor americano das universidades de Columbia, de Nova York, e de Berkeley? Corre-se o risco de ficar entusiasmado e pensar "Oba! O Brasil não é mais o país do futuro, mas do presente". Será? Há controvérsias como uma visão sóbria da realidade brasileira revela. Apesar de ter se esquecido das reservas brasileiras de água, o professor Fishlow estava certo quando aludiu ao fato de o Brasil ser um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Mas, em compensação esqueceu-se que em fevereiro tem carnaval, momento de alegria, mas também de complicações inerentes, dois passos para lá, dois para cá, e muitos exageros(15). É também um momento de chuvas e trovoadas para as quais, apesar das previsões, pouco se faz. O atual governo indica ter um nobre objetivo - baixar juros, desonerar produtos e serviços, reduzir o preço da eletricidade etc. – mas demonstra-se incapaz de definir o melhor rumo para atingi-lo. É preciso encontrar objetivos articulados, bem definidos em projeto com metas e meios, e compromisso sério de prosseguir, sem esmorecimento ou esquecimento, pelo abandono do prometido no meio do caminho. O Brasil, sem dúvida, melhorou muito desde que estabilizou sua moeda há quase vinte anos. Neste momento, um novo Plano Real Tributário se impõe e o governo tem pouco mais de ano para anunciar e implantar esse grande plano. FHC levará para a história o Plano Real da moeda (1º de julho de 1994), que o PT inicialmente enjeitou. Mas agora é o PT que tem a chance de repetir FHC e de o superar (1º de julho de 2014), coroando os primeiros vinte anos de estabilidade monetária com a abolição


É possível resumir o principal problema pelo maior paradoxo de todos: o Brasil arrecada demais, gasta muito e mal, mas está sempre sem recursos. Portanto, é primordial fazer uma reforma tributária - a mãe de todas as reformas.

da escravatura tributária dos brasileiros. O tributo injusto é o grande fator de manutenção do estado de subcidadania em que vivem os cidadãos brasileiros. Cheques de Bolsa-Família nada podem fazer contra o déficit de cidadania política causado pelo atual manicômio tributário. O PT pode agora alforriar o povo, libertando-o para uma vida em liberdade econômica verdadeira. O primeiro passo foi dado pelo Congresso e pela presidente Dilma, ao votarem e sancionarem a lei da Transparência Tributária, que propiciará, em seis meses – se não for adiada (!!) – que os brasileiros finalmente conheçam o tamanho e a extensão da carga tributária embutida nos produtos e serviços que adquirem. Essa nova lei de Transparência sancionada por Dilma é equivalente à do Ventre Livre, que precedeu à Lei Áurea. Esta última, aliás, também foi assinada pela pena sensível de uma mulher. Retrocessos não são vislumbrados, mas o que prejudica o País é que o(s) governo(s) tenta(m) fazer as mudanças apenas de forma pontual. Prepotência e arrogância são contraproducentes; melhor seria negociar com os setores econômicos interessados. Há queixas recorrentes do centralismo e do intervencionismo do atual governo. É possível resumir o principal problema pelo maior paradoxo de todos: o Brasil arrecada demais, gasta muito e mal, mas está sempre sem recursos. Portanto, é primordial fazer uma reforma tributária – a mãe de todas as reformas. Para executá-la, o ponto de partida, necessário, porém insuficiente, deveria ser o da busca da neutralidade nos impactos iniciais da mudança e transição para o novo modelo, para que, de início, não haja ganhadores nem perdedores na reforma, como, aliás, foi praticado no próprio Plano Real, via implantação das URVs. Não fosse pela observância desse princípio de neutralidade, provavelmente o Real seria mais um plano natimorto. Realmente, tudo poderia estar melhor. Depende apenas de nós.

Notas (1) Fishlow, Albert; Professor Emeritus, University of Columbia. "It's Better than It Seems: Brazil in the Coming Decades", mimeo by the Center for Hemispheric Policy, University of Miami, November 7, 2012 (9 pages). https://www6.miami.edu/hemispheric-policy/Task_Force_Papers/FishlowGlobalizationTFPaper.pdf (2) A Política industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior - PITCE foi lançada em 31 de março de 2004, com o objetivo de fortalecer e expandir a base industrial brasileira por meio da melhoria da capacidade inovadora das empresas. O PDP prevê um conjunto de medidas de estímulo ao investimento e à inovação, apoio ao comercio exterior, à defesa da indústria e ao mercado interno. Ambos foram iniciativas do MDIC e da ABDI. (3) O autor endossa as propostas do Movimento e as comenta em linhas gerais neste trabalho. Os que tiverem interesse em aprofundar o tema e as propostas do MBE poderão encontrar material abundante no site www.brasileficiente.org.br ou, ainda, no site do Grupo de Lideres Empresariais LIDE, que é uma das principais entidades engajadas na defesa das mesmas propostas (www.lidebr.com.br) através de sua Agenda Brasil: Proposta para o Avanço Acelerado do Brasil, maio 2012, . (4) "A Grande Falha do Modelo Brasileiro", jornal Brasil Econômico, 11/01/13. (5) Num artigo para O Globo e O Estado de São Paulo, Edward Amadeo e Armínio Fraga ressaltam que o PIB per capita do Brasil continuará em 20% do americano em 2012/2013 (6) O Estado de São Paulo, 18 de novembro de 2012. (7)Ibid. (8)A Anfavea encomendou preparou um estudo à consultoria PriceWaterhouseCoopers que concluiu que a falta de competitividade de produtos brasileiros se devia ao "custo Brasil". Esse estudo foi apresentado à várias entidades governamentais - Ministérios da Fazenda, Desenvolvimento, Indústria e Comercio Exterior, e Ciência e Tecnologia, e ao BNDES - e o governo respondeu com o aumento do IPI. (9)Miriam Leitão, Saga Brasileira. A longa luta de um povo por sua moeda, Editora Record, 2011. (10)O Estado de São Paulo, 3 de dezembro de 2012. (11) O levantamento Competitividade Brasil 2012, feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), mostra que o Brasil ocupa a 13ª posição em um grupo que considera os integrantes dos BRICs (Rússia, Índia, China e África do Sul), alguns países da América do Sul e outros, como México, Polônia, Espanha e Austrália. (12) "Now there comes the much harder task of persuading Brazilian citizens that immediate gratification has to be postponed for the greater good. The state must become a central element in generating the savings to finance a higher rate of investment-exactly the opposite of its past role in the 1950s and 1970s-in actively supporting rapid industrial growth." Fishlow, op.cit. pg. 8. (13) Ver a esse respeito, o estudo mais completo de que se tem notícia, publicado pela FECOMERCIO em apoio ao Movimento Brasil Eficiente, em 2010. Rabello de Castro, Paulo e Velloso, Raul. Panorama Fiscal Brasileiro: Proposta de Ação. Ed. FECOMERCIO, São Paulo, 2010. (14) O Globo, 22 de novembro de 2012. (15) Exemplos: Pré-sal, maiores reservas de petróleo do mundo! Árvore de Natal da lagoa, maior árvore flutuante do mundo! Brasileirão, maior campeonato de futebol do mundo! Carnaval, maior espetáculo da Terra!

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Transposição do Rio São Francisco e o pacote de logística anunciado pela presidente.

Pouco investimento... Carlos Ossamu

N

o começo de 2012, o governo sonhava com um crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) na casa dos 4%. Já em abril do mesmo ano, a projeção havia caído para 3,5%, mesmo assim, dizia o governo, maior do que em 2011, quando o crescimento havia sido de 2,7%. Ao longo do ano, as estimativas foram despencando ainda mais. Em novembro houve certo otimismo, já que números do IBC-Br, índice do Banco Central que estima a variação do PIB, mostrou um aumento de 1,15% na atividade econômica, número que indicava que a economia brasileira estava crescendo na faixa de 4% a 5% ao ano. Mesmo assim, a própria estimativa do BC era que o PIB de 2012 ficaria

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em torno de 1% – o Banco Mundial estimou um crescimento de apenas 0,9%. Há uma relação direta entre crescimento do PIB e a taxa de investimento. Todos concordam que o País vem crescendo pouco porque os investimentos estão caindo cada vez mais. Perguntamos as razões para este baixo nível de investimento a três renomados economistas – Marcel Domingos Solimeo, Paulo Rabello de Castro e Roberto Fendt. Leia a seguir as opiniões, que passam por desconfianças do empresariado em relação à economia, a alta carga tributária, apesar das desonerações pontuais em alguns setores, e do forte intervencionismo do Estado na economia:


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Intervencionismo do governo nas áreas de petróleo e energia elétrica afastam investimentos.

...baixo crescimento Marcel Domingos Solimeo Economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

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m primeiro lugar, é preciso olhar a questão do ponto de vista global. Uma das razões de a taxa de investimento estar baixa é porque a taxa de poupança também está baixa. O que financia o investimento é a poupança interna, complementada com a poupança externa, isso com relação aos recursos. Mas há situações em que empresas que têm recursos não estão investindo. A razão disso pode ser encontrada nesse voluntarismo do governo. Mesmo quando ele está na direção correta,

Newton Santos/Hype

Ma

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André Susin/PressDigitalAE

Reduções temporárias de tributos não aumentam a demanda, apenas antecipam a compra.

a forma de se fazer as coisas nem sempre é a melhor. Por exemplo, a redução da tarifa de energia: é um objetivo louvável, necessário, mas o mais simples seria ter reduzido tributos. Porém, o governo criou uma celeuma com a MP 579. Uma coisa dessa profundidade, que envolve investimento de longo prazo, tratar com uma MP é sinal de que não se tem segurança nas regras. Em segundo lugar, a forma de tentar obrigar algumas empresas a antecipar o fim dos seus contratos, dentro de novas condições que não eram interessantes para elas. A discussão se rompeu ou não contratos não é o importante, o que importa é que rompeu a confiança. Agora, dificilmente o governo conseguirá alavancar novos investimentos privados para o setor enquanto não cicatrizar a ferida dessa intervenção. No caso do petróleo, há uma exigência em todas as licitações de participação da Petrobras com 30%. Além de ela não ter recursos para isso, é uma medida absolutamente descabida. Nos aeroportos é preciso ter participação da Infraero; nos portos, o governo agora foi um pouco mais flexível; e no caso das ferrovias, recriou-se o Geipot (Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes), que vai administrar as cargas. No caso das rodovias, o governo fixa condições de rentabilidade desinteressantes e que agora estão sendo revistas. A forma como o governo está ofere-

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cendo para o setor privado investir na infraestrutura não está sendo atrativa ou não inspira confiança necessária. De outro lado, o governo tem dois problemas para investir: o primeiro é a falta de recursos, pois ele gasta muito em custeio, e outro é a capacidade gerencial – vemos resultados pífios nas obras que os órgãos públicos estão tocando. O exemplo clássico são as obras de transposição do Rio São Francisco, que mostra uma falta de capacidade gerencial. Ao mesmo tempo, o governo anuncia investimentos no trem-bala, que é uma obra no mínimo discutível quanto a prioridade, e muito mais discutível agora em relação às regras, que o governo oferece o financiamento e ainda banca o risco. A característica da economia de mercado é que o empresário tem de correr o risco, que ele irá mensurar se vale a pena. Mas não um risco como ocorreu com a energia elétrica, que saiu uma MP mudando a regra. Por não ser atrativo em si, o governo, sem uma discussão com a sociedade, quer impor um trem-bala com um volume de investimento que daria para modernizar todas as ferrovias do Brasil. Outra questão são as perspectivas de rentabilidade para quem investe. Não há uma sinalização clara de que a economia brasileira vá crescer 3% a 4% nos próximos anos. As expectativas de 2012 fracassaram e as de 2013 vêm se deterioran-


Diogo Moreira/Frame/AE

A alta carga tributária é outro fator que inibe a taxa de investimento por parte do empresariado.

do. De outro lado, o governo tem estimulado o consumo com reduções temporárias de impostos. Mas isso não é suficiente para incentivar o investimento, já que as reduções são temporárias. Essas reduções não aumentam a demanda, elas somente antecipam a demanda – ninguém compra o segundo carro, a segunda geladeira, por causa dessa redução nos impostos, eles antecipam uma compra que fariam mais para frente. Qualquer aumento aí é marginal, não chega a ser expressivo no final das contas. Na questão do câmbio, ninguém sabe se temos um câmbio flutuante ou fixo, se a banda é de R$ 1,85 a R$ 2,00, se é de R$ 2 a R$ 2,20. O governo transmite sinalizações contraditórias sobre os principais fatores da economia, como câmbio, juros etc. A alta carga tributária é outro fator que inibe a taxa de investimento, pois quanto mais a empresa paga de imposto, menos sobra para ela se capitalizar e investir. O pior dos mundos é que você transfere da empresa para o governo e o governo não investe. A expectativa do mercado também é outro fator que interfere no investimento. E há aspectos institucionais, em casos em que há qualquer dependência de licenciamento ambiental, gerando uma complexidade muito grande e vários tipos de restrições. Também há fatos, como o que fizeram no Mato Grosso, e antes em

Roraima, de expulsar produtores das terras em que eles estavam há muitos anos, com a alegação de que são terras indígenas. Tudo isso contribui para incertezas, com restrições de compras de terras por estrangeiros – hoje se tem fortes investimentos estrangeiros em etanol, que exige terras para o plantio de cana. Ao contrário de outros países da América Latina, como Colômbia, Chile, México, o Brasil está com inflação alta e crescimento baixo. O nosso desempenho é um dos piores da América Latina. Quais perspectivas de investimentos se apresentam com esse cenário? Fora os problemas estruturais e institucionais já comentados, os fatores conjunturais também não são atrativos. Nos últimos dois anos, estamos vivendo um excesso de intervenções do governo e falta de clareza no futuro. Imagino que esse quadro não deva mudar este ano e a taxa de investimento deve continuar baixa. Se realmente o governo flexibilizar as regras, como ele parece que está sinalizando com a remuneração das rodovias, será possível avançar nas licitações para aumentar os investimentos em 2014. Este seria o cenário otimista. E o cenário pessimista é que nem isso a gente avance. É preciso ter um avanço nas condições que o governo vem oferecendo para atrair investimentos da iniciativa privada, para que ocorram as licitações e que haja interessados em participar do processo e investir.

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L.C. Leite/Luz

Paulo Rabello de Castro Doutor em Economia pela Universidade de Chicago (EUA), coordenador do Movimento Brasil Eficiente e presidente do Instituto Atlântico.

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fator determinante do crescimento é sempre a taxa de investimento. O PIB nos últimos dois anos tem crescido abaixo do que seria esperado devido ao baixo nível dos investimentos. Há uma relação entre a taxa de investimento e o crescimento esperado do PIB, dada a relação média entre o PIB e o capital, que depende de um coeficiente de eficiência, onde está a produtividade dos fatores de produção. Em termos gerais, o comportamento da produção num país depende matematicamente da taxa média de investimento, não só do último ano, mas da sequência dos últimos anos, como também da produtividade total dos fatores de produção, ou seja, genericamente falando, da eficiência com que os fatores entram na "culinária" do PIB – os mesmos ingredientes podem virar uma gororoba ou um prato delicioso, dependendo de como se cozinha. Essa é a produtividade dos fatores, que no Brasil passou a ser gororoba. Há de se perguntar a razão de essa produtividade estar capengando. Além disso, a taxa de investimento vem sendo estruturalmente baixa, na faixa de 15% a 16% no período FHC, de 18% a 19% no período Lula/Dilma, com discreta aceleração de

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três pontos percentuais entre um período e outro. Daí a explicação de no período FHC ficarmos numa faixa de crescimento de 2,5% e já pulamos para uma faixa média de 3,5% nesse outro período. Ou seja, com três pontos percentuais a mais de investimentos, ganhamos um ponto a mais de PIB. Só que nos últimos dois anos nós estaremos até abaixo da média do período FHC. Isso porque o segundo fator, que é a produtividade total, que vinha sofrível no período FHC, melhorou discretamente no período Lula por motivos de conjuntura externa, mas que agora caiu para praticamente zero e deixou de dar a sua contribuição, que era de 1 a 1,5 ponto percentual do PIB. Em outras palavras: a contribuição média dos fatores em termos de produtividade dava de presente ao País 1,5 ponto percentual para além do que cresce os próprios fatores de produção. Quando falamos em taxa de investimento, estamos falando quanto está crescendo o capital, além do trabalho. A eficiência do cozinheiro dá esse presente de 1,5 ponto percentual. Quando um país está passando por um período altamente eficiente, esse ganho a mais pode chegar a 2 ou a 2,5 pontos percentuais. E quando na cozinha está dando tudo errado, pode cair a 0,5 ou até zero ponto percentual, o que deve ter acontecido no Brasil no ano passado. Isso não significa que não vem ocorrendo investimentos. Muitos estão investindo em vários segmentos. Mas para dar uma taxa maior de investimento do que os 18%, é preciso que


Marcelo Camargo/ABr

O ministro está desonerando, mas a oneração que provém do "manicômio" tributário é muito maior que todas as desonerações.

os empresários invistam mais do pouco que estão investindo. Estamos falando de uma melhoria da taxa de investimento. No varejo tem gente ganhando dinheiro, porque a produção do varejo é colocar uma loja para vender, e tem gente comprando, mesmos que seja produto importado. No setor rural, no Mato Grosso, tem gente produzindo soja, pois nesse segmento tem rentabilidade. O que não está acontecendo é uma difusão das oportunidades de boa rentabilidade na maioria dos setores. Essa rentabilidade está concentrada em alguns poucos setores. Na maior parte dos setores da indústria, essa rentabilidade está prejudicada. Está aí uma parte importante da perda de investimentos. Essa perda existe por causa de um confisco crescente dos lucros de todos os empresários – aqueles com rentabilidade menor ficam com quase nenhum lucro e não investem, que é o caso da indústria, mas todos são confiscados por uma carga tributária crescente. A carga tributária escorchante no Brasil é a razão fundamental desse impasse na taxa de investimento. Mostramos isso em um trabalho extenso que fizemos no ano passado dentro do Movimento Brasil Eficiente, chamado Agenda Brasil. Esse trabalho mostra que essa alegada longa lista de razões pelas quais o Brasil não investe é na verdade uma lista curta, de onde se tem que extrair, por exemplo, a educação e até infraestrutura, que são coisas que precisam ser remendadas, mas não é por isso que não se investiu. Não que

educação não seja um problema, mas não foi por isso que o empresário não investiu. Não investe porque não sobra dinheiro, pois a carga tributária não deixa. Isso apesar das desonerações anunciadas pelo ministro. É como se ele estivesse nadando e dizendo que vai chegar em um ponto, mas a gente só vê ele indo para trás, pois tudo o que ele nada não é suficiente por causa da correnteza contrária. Ele está nadando, mas está sendo levado pela correnteza. O ministro está desonerando, mas a oneração que provém do "manicômio" tributário é muito maior que todas as desonerações. Pelo menos, ele já descobriu que é preciso desonerar. O que ele ainda não descobriu é que é preciso reordenar o sistema inteiro, simplificando radicalmente e entrar em outro sistema. É preciso uma reforma que tenha de fato o mérito de ser chamado de reforma. Escrevi um livro sobre isso e dei o título de Reforma da Reforma. Hoje, o conceito de reforma tributária está tão desgastada, que é preciso reformar inclusive a reforma. A minha ideia não é criar novos conceitos, mas simplificar, é eliminar burocracias, é destruir obstáculos. O intervencionismo do governo no mercado sempre houve, mas agora há uma sensação de que esse intervencionismo está maior. Isso decorre do fato que o governo não consegue fazer o diagnóstico das causas profundas da estagnação. Então, ele passa a criar uma espécie de ativismo governamental. Ele pontualmente atua, tentando resolver problemas se-

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toriais. A soma dessas atuações dá a sensação de maior intervencionismo, mas faltam as atuações fundamentais. No governo Lula, ninguém admite, mas foi menos intervencionista, isso foi muito fácil por um motivo simples: manteve a taxa de juros artificialmente elevada, mas foi abençoado por um vento a favor que inflou as velas do barquinho brasileiro de 2003 a 2010 praticamente com uma única interrupção rápida, que foi em 2009. Assim, até um mau marinheiro vai para frente. Não é o caso da Dilma Rousseff, nem foi o caso do Fernando Henrique. É preciso entender que o governo está errado não porque pratica o intervencionismo, para que a gente não fique equivocadamente defendendo uma visão liberalizadora, não atuante, quando são tantas e tão graves as distorções já existentes na economia brasileira. Assim, o governo não pode dizer simplesmente que não vai atuar. Nós não estamos gostando da forma dele atuar. Quando o governo diz ao empresário quanto ele vai ganhar, como é o caso de setores de infraestrutura, isso já não é intervencionismo, ele é determinista, quer atuar no placar do jogo. Esse hiperdeterminismo do governo também atua negativamente sobre a taxa de investimento. A taxa de investimento é composta de duas parcelas, que têm de ser vistas sempre separadas, mas que são complementares. Uma parcela são os investimentos públicos, aqueles que de uma forma ou outra estão nas mãos do governo, por exemplo, o Dnit diretamente executando uma estrada. Também há obras que ele indiretamente executa por meio de concessões, permissões etc. No primeiro caso, a atuação direta do governo é fundamental e isso evoca um conceito de eficiência – se ele não fizer isso eficientemente, ele não consegue chegar ao investimento, não consegue executá-lo. A segunda parcela da taxa de investimento é a do setor pri-

vado. Sobre este, o governo não precisa atuar nem indiretamente, mas ele precisa criar os instrumentos, como créditos de longo prazo, não através de um BNDES, que é mais fácil de fazer, porém cria distorções, mas através de instrumentos que levem a poupança a chegar nesse longo prazo. Isso está na Agenda Brasil. Muito diferentemente do que se alega, quando o governo se recusa a enxergar a Previdência Social como um mecanismo de geração de poupança de longo prazo, ele está determinando – por omissão, e esse é o pior tipo de intervencionismo, que é o de não fazer nada – que a Previdência é não poupadora no Brasil. Só com isso ele corta uns 2 pontos percentuais na taxa de investimento no setor privado. Existe até vontade de investir, há perspectivas de rentabilidade, mas não têm fundos. Quantas empresas abriram capital no Brasil no ano passado? Menos do que as que fecharam. Somos um país nanico do ponto de vista da participação democrática da população no mercado de capitais. Mais uma vez, a alta taxa de tributação, agora também da pessoa física, está na raiz disso. Diz-se que o brasileiro poupa pouco, mas ele já sai "despoupado" quando recebe o contra cheque. O trabalhador é descontado do INSS, que deveria ser poupança, mas não é; o FGTS o empregador paga, mas poderia ser salário líquido do trabalhador; tem mais 20% que o patrão acresce na Previdência, mas poderia ser salário. Só isso dá 36% sobre o salário base, sem falar no Imposto de Renda. Além de tudo, querem que se faça uma poupança com o que restou no salário líquido? Quem conseguir é um herói. Portanto, a taxa de poupança só não é maior e não vai para o mercado de capitais porque mais uma vez a forma de o governo intervir no fluxo de renda das pessoas físicas e das pessoas jurídicas beira o manicômio, é muito ruim, muito negativo, muito mal para a saúde econômica dos agentes.

Roberto Fendt Doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA).

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Marcelo Correa/1000 Palavras

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emos de analisar essa questão em duas frentes: o investimento público e o investimento privado. O investimento do setor público, a despeito de todos os programas do governo, como os do PAC (Programa de Aceleração do Investimento), têm tido um desempenho muito aquém do que se poderia esperar – projetos não são levados a cabo, muita coisa está no meio do caminho e os orçamentos nunca são cumpridos. Basta olhar as obras para a Copa do Mundo, os atrasos que estão ocorrendo, ou as obras de transposição do Rio São Francisco, um projeto ainda do tempo do governo Lula. O Estado brasileiro é um grande investidor em infraestrutura, ele chamou para si a responsabilidade de investir nesta área e a verdade é que o faz muito mal. Nós já partimos de um limitador, que é a pouca capacidade de o

Estado desempenhar uma atividade que chamou para si, que não é só de criar infraestrutura, mas também de mantê-la – basta andar pelas estradas do País para constatar que a manutenção é precária. Do lado do setor privado, o investidor investe sempre quando vê perspectivas de ganhos. É para isso que serve o investimento, para produzir mais e gerar ganhos para o investidor. Ao contrário do governo, que é sempre muito otimista em relação ao crescimento, o empresariado brasileiro percebeu, já em 2011, que em 2012 o Brasil teria um crescimento pequeno. Ao perceber isso, o empresariado se retraiu. Para complicar este quadro, o governo tem dado mostras de intervenções na atividade econômica, que para alguns ferem contratos já assinados, para outros, embora isso não ocorra, são intervenções de grande monta, que mudam as condições de negócio de uma hora para outra. Enfim, juntou-se o fato de que as perspectivas para 2011/2012 eram de crescimento peque-


Ed Ferreira/AE

no, com a enorme instabilidade nas regras que temos hoje. Combinando as duas coisas, é natural que o empresário, em seu cálculo econômico, decida não investir agora, prefira investir mais para frente, quando as perspectivas forem melhores. Por aí passa uma boa parte da explicação. Para completar, o investimento da indústria em máquinas e equipamentos se faz, em grande parte, de bens de capital importados. No ano passado, houve uma desvalorização do câmbio de cerca de 25%. Isso tornou os bens de capital importados bem mais caros, o que também desestimulou parte do investimento em bens de capital que a indústria faria, caso o câmbio não tivesse se desvalorizado. Não estou dizendo que o câmbio não deveria ter sido desvalorizado, apenas estou comentando um fator que foi importante para desestimular os investimentos em máquinas e equipamentos importados. Foi um fato visto pela indústria como benéfico, pois reestabelece a capacidade de competição da indústria nacional, mas que em contrapartida torna os bens de capital importados mais caros, tirando a competitividade da indústria.

O Estado brasileiro é um grande investidor em infraestrutura, ele chamou para si a responsabilidade de investir nesta área e a verdade é que o faz muito mal – projetos não são levados a cabo e os orçamentos nunca são cumpridos.

Mas esse baixo investimento atual não significa que não se vá investir no futuro. Os empresários estão olhando para frente e certamente estão achando que é uma situação conjuntural, mais adiante esta situação se reverterá. O nível de emprego tem se mantido, mas há de se levar em conta que demitir no Brasil é muito caro – se é uma tragédia para quem fica desempregado, é muito custoso para quem demite, pois é preciso pagar todos os encargos e correr o risco de mais adiante, quando a economia se recupera, não conseguir mais trazer de volta os funcionários que o empresário treinou. Acredito que este ano, pelas próprias expectativas dos empresários, o País deve crescer por volta de 3,5%. Um dos fatores que explica o investimento é a expectativa. Se os empresários acreditam que a economia, ao invés de crescer 1% vai crescer 3,5%, agora há muito mais chance de que eles decidam investir. É um círculo virtuoso: acredita-se que haverá crescimento e em razão dessa crença ocorrerão investimentos, que causarão o crescimento. É uma explicação também do que aconteceu no ano passado.

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QUE ANO NOVO QUEREMOS Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre." Carlos Drummond de Andrade

Bruno Poletti/Luz

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Alencar Burti

Presidente do Conselho Deliberativo do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP) e membro do Conselho Superior da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

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credito que este poema de Carlos Drummond de Andrade – Receita de Ano Novo – cujo extrato abre este artigo, contém um dos mais belos ensinamentos para que façamos de 2013 um ano mais que novo, um ano renovado. E como precisamos fazer diferente. Em 2012, o Brasil acumulou alguns índices que não nos dão motivo de comemoração: projeção para crescimento modesto do Produto Interno Bruto (PIB) – analistas do mercado apontam que será em torno de 1% –, uma inflação resistente à queda, que fechou o ano em 5,84%, forte endividamento dos consumidores, entre outros. Apesar destas dificuldades, temos motivo para nos mostrar otimistas. É esperada certa recuperação na atividade econômica, a partir dos efeitos das medidas de estímulo ao crescimento lançadas ao longo de 2012. Entre estas medidas, destacam-se: (i) A redução nos juros básicos (taxa Selic). A taxa Selic sofreu reduções, passando de 12,5%, em agosto de 2011, para 7,25% no momento atual (janeiro de 2013). Juros menores facilitam financiamentos, tendendo a incentivar investimentos e vendas no crediário; (ii) A desvalorização do real ante o dólar. Neste caso, os bens importados tendem a ficar mais caros em reais e os bens produzidos pela indústria brasileira tendem a ficar mais baratos em dólares, reduzindo a concorrência com produtos importados e favorecendo a exportação de produtos nacionais; (iii) A desoneração da folha de pagamentos das empresas de alguns setores, onde a contribuição passou a incidir sobre a receita das empresas; e

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(iv) A redução dos custos da energia elétrica. As medidas dos itens iii e iv têm por objetivo reduzir os custos das empresas. A projeção dos analistas de mercado é de crescimento de 3,1% no PIB brasileiro para 2013 (Fonte: Boletim Focus do Banco Central; edição de 1/2/13). Entende-se que essas projeções do "mercado" incorporam, entre outras coisas, um cenário onde o consumo interno se mantém num nível relativamente forte e efeitos positivos de algumas das medidas acima, especialmente para o setor industrial.


SXC

PARA O NOSSO Brasil?

Em 2012, o Brasil acumulou alguns índices que não nos dão motivo de comemoração: crescimento modesto do PIB, inflação resistente e forte, endividamento dos consumidores. Mas 2013 vislumbra uma recuperação econômica e há razões para otimismo.

Somam-se a estes fatores, outros dois que tributo como essenciais para garantir nosso otimismo: a pujança dos pequenos negócios brasileiros e força que o empreendedorismo vem ganhando ao longo da última década. O mais recente estudo Global Entrepreneurship Monitor (GEM), que mede a taxa de atividade empreendedora (TAE) em 69 países, mostra que no Brasil 43,5% dos brasileiros desejam ter o próprio negócio (contra 24,7% que querem fazer carreira em empresas). O estudo, que no Brasil é realizado pelo Se-

brae em parceria com o Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), apontou ainda que no Brasil, 30,2% da população adulta (entre 18 e 64 anos) estava envolvida na criação ou administração de um negócio, contra um índice de 20,9% em 2002, um crescimento expressivo de 44%. Além disso, dos negócios abertos nos últimos três anos, 69% foram abertos porque os empresários detectaram uma oportunidade de negócios (contra 31% por necessidade). Em 2002, esta relação era completamente diferente: 56% por

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SXC

necessidade e 44% por oportunidade. No Brasil existem quase 9 milhões de pessoas com o próprio negócio, sendo 6,1 milhões de pequenos negócios no Brasil e 2,6 milhões de empreendedores individuais (EIs) – o Estado de São Paulo abriga 1/3 deste total de empreendimentos. Eles são responsáveis por 20% do Produto Interno Bruto, 52% do saldo de empregos formais, 70% das novas vagas geradas por mês e 40% da massa salarial. E para corroborar a importância do empreendedorismo no crescimento econômico sustentável, somente no Estado de São Paulo, 1,5 milhão de micro e pequenas empresas (MPEs) do comércio, da indústria e de serviços faturaram R$ 500 bilhões em 2012, um crescimento da receita real de 8,1% na comparação com os resultados de 2011. Além disso, em 2012, cerca de 7,1 milhões de pessoas estavam ocupadas nas micro e pequenas empresas (MPEs) paulistas, responsáveis por uma folha de salários de cerca de R$ 8 bilhões, o que significa uma remuneração média de R$ 1.583,64, e representa, em 10 anos, um aumento real de salários três vezes superior ao das empresas de maior porte. Acreditamos que estas melhorias são resultados de dois conjuntos de fatores: o aprimoramento, por parte dos empreendedores, da gestão das pequenas empresas e a concretização de políticas públicas federais, estaduais e municipais, que garantem o tratamento diferenciado às microempresas e empreendimentos de pequeno porte. Nos últimos anos, tivemos um avanço significativo na regulamentação e implementação

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DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2013

Não vamos trabalhar de forma isolada, pois acreditamos que o processo de apoio aos empreendimentos de pequeno porte será vitorioso somente com o esforço conjunto de todos os elos envolvidos.

do Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, mais conhecido como a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, sancionada em 2006. Somente no Estado de São Paulo, 80% do total das MPEs já têm garantidos os benefícios do tripé de sustentação da Lei: desburocratização, desoneração tributária (por meio do Simples Nacional) e o estímulo ao desenvolvimento (através de apoio à inovação e ao crédito). A partir de 2007 e até o ano passado, com sua efetiva implementação, a Lei Geral garantiu um salto de 455% na arrecadação da União, Estados e Municípios, somando R$ 183,5 bilhões aos cofres públicos. Com base nestes resultados, podemos dizer que o Simples Nacional se mostrou prova incontestável que a mudança é sim possível e que gera dividendos para todos. Trata-se do embrião da tão almejada reforma tributária. Isso foi possível por conta das medidas derivativas da Lei Geral, como implementação do Super Simples (ou Simples Nacional), que permitiu a redução de 40% dos impostos, em média; da criação de nova figura jurídica – o Microempreendedor Individual – que colocou na rota da cidadania empresarial cerca de 2,8 milhões de pessoas que atuavam na informalidade e na atualização dos limites de faturamento do Simples. Outro resultado importante: a participação das MPEs nas compras governamentais saltou de 15%, em 2006, para 30% em 2011. Estima-se que este mercado movimente 10% do PIB, que hoje está em torno de US$ 2,3 trilhões. Além disso, nossos empresários estão mais bem preparados: de acordo com pesquisa do Sebrae-SP: 83% dos proprietários das empresas recém-constituídas têm pelo menos o ensino médio, 78% declararam que abriram a empresa porque encontraram uma oportunidade de negócio e 36% participaram de algum curso com relação à gestão empresarial. E nos procuram mais. Em 2012, esperávamos atender cerca de 350 mil empresas e 122 mil empreendedores individuais. Encerramos o ano com atendimento de 427,56 mil e 261,7 mil, respectivamente. Todos estes fatores levaram à queda dos índices de mortalidade dos pequenos negócios, que saiu da casa dos 70% para 58%, para MPEs com até cinco anos de atividade, e para 27% ao longo da primeira década dos anos 2000 (Fonte: Sebrae-SP). Diante deste quadro, o que esta parcela significativa do sistema produtivo brasileiro pode esperar de 2013?


Newton Santos/hype

Se tomarmos como base o cenário que prevê a manutenção do consumo dos brasileiros e a repercussão positiva das medidas de estímulo à economia, tomadas pelo governo federal em 2012, acreditamos no crescimento de faturamento mais equilibrado entre os três setores, indústria, comércio e serviços. Entretanto, existem alguns riscos para o cenário acima que precisam ser monitorados de perto. Além dos já citados, está a incerteza quanto à evolução de várias economias mundiais relevantes, particularmente da Europa (com ênfase nos países da Zona do Euro). Num cenário de forte incerteza, podem ocorrer turbulências nos mercados financeiros e tais oscilações podem afetar a economia brasileira, tanto por meio da queda da demanda internacional por produtos brasileiros, quanto pela redução dos investimentos ao redor do globo. Entre os riscos internos, destaca-se a inflação que, como já falamos, tem se mostrado resistente à baixa. Caso este quadro permaneça, com a inflação anual na casa dos 5,68% conforme projeção de alguns analistas do mercado, o consumo das famílias poderá ser fortemente afetado, impactando diretamente nas vendas das MPEs, que são dependentes, em sua imensa maioria, do mercado interno. Outro fator interno que deve ser levado em conta é o dos investimentos. Ainda há incertezas quanto à intensidade da reação dos investimentos ante as medidas de estímulo adotadas. Os resultados dos pacotes direcionados à ampliação do consumo já mostraram que não surtem mais os efeitos desejados. Se queremos crescer, e crescer a longo prazo e de forma sustentável, só há uma alternativa viável: é preciso investir de forma firme, decidida e sem soluços, criando uma relação de confiança entre os investidores. A evolução da taxa do PIB depende diretamente da capacidade do governo convencer o setor privado – nacional e internacional – a fazer investimentos. Além disso, precisamos avançar e aprimorar as políticas públicas de apoio ao setor produtivo, em especial das micro e pequenas empresas, desatando os nós da burocracia, da tributação, do financiamento e do acesso às exportações. À frente do Conselho Deliberativo do Sebrae-SP, queremos continuar fazendo nossa parte e utilizar as lições aprendidas para dar mais um salto significativo no efetivo apoio aos pequenos negócios. Nos próximos dois anos, nossos esforços, conhecimentos e recursos estarão voltados para o aprimoramento do Simples Nacional, ampliando as faixas de faturamento, calibrando o

Se queremos crescer, e crescer a longo prazo e de forma sustentável, só há uma alternativa viável: é preciso investir de forma firme, decidida e sem soluços, criando uma relação de confiança entre os investidores.

Regime da Substituição Tributária e trabalhando pelo acesso de novas categorias econômicas ao Regime Tributário Diferenciado. Também vamos trabalhar firmemente para obter as mudanças essenciais na legislação trabalhista, que envolvem a revisão e adoção de formas modernas de contratação de empregados, a regulamentação da figura da terceirização de mão de obra, tão importante para as pequenas empresas e a flexibilização legal das formas de pagamento dos benefícios trabalhistas aos empregados das micro e pequenas empresas, respeitando a vontade das partes e a realidade dos pequenos negócios. Não vamos trabalhar de forma isolada, pois acreditamos que o processo de apoio aos empreendimentos de pequeno porte será vitorioso somente com o esforço conjunto de todos os elos envolvidos. Por isso, vamos incrementar nossa participação nos ambientes de discussão de políticas de incentivo aos empreendimentos de pequeno porte. E continuaremos a orientar, capacitar e promover os pequenos negócios. Este ano vamos atender e capacitar mais de 387 mil pequenos negócios e 143 mil com soluções inovadoras de gestão, além de garantir a implementação da Lei Geral em outros 104 municípios paulistas. Desta forma, no final de 2014 teremos não só números ainda mais positivos; teremos feito do Estado de São Paulo e do Brasil um dos lugares de maior estímulo ao sucesso e ao crescimento daqueles que escolheram o ato de empreender como a forma de realização pessoal e profissional. Somente assim, vamos fazer por merecer este ano novo, como diz o poeta Drummond de Andrade.

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ÉTICA E INSTITUIÇÕES

J. Duran Machfee/Futura Press

Denis Rosenfield Ueslei Marcelino/Folha Imagem

Graduado em Filosofia pela Universidade Autônoma do México, Doutor de Estado pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne e professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O

PT, ao conquistar o Poder, aniquilou a bandeira que tinha sido sua de ética na política. Durante anos, senão década, os cidadãos brasileiros se acostumaram com o lema partidário da pureza moral, da virtude, contra "tudo o que está aí". A moralidade pública, desta maneira, tornou-se uma bandeira identificada a um só partido, revestindo-se, neste sentido, de um perfil propriamente particular, senão corporativo. Isto significava que todos os outros partidos não seriam éticos, pois haveria, aqui, uma reserva de mercado do ponto de vista moral. A identificação entre moralidade e petismo constituiu-se, nessa perspectiva, em um grave problema, pois a ética, por definição, deveria ter um sentido universal, próprio, por exemplo, de instituições democráticas e republicanas. Nenhum partido poderia, então, seja o PT ou outro qualquer, arrogar-se o monopólio da virtude. Convém ainda ressaltar que a ética, durante muitos anos, tornou-se um poderoso instrumento de mobilização popular, com profundas repercussões eleitorais. A "ética na política" foi, em um longo período na vida pública nacional, propriamente política. A questão ganhou, contudo, um contorno mais problemático quando o PT, no exercício do Poder, tornou-se, no dizer mesmo de Lula, um "partido igual aos outros". Independentemente da validade ou não desse dizer, o que conta é o fato de o partido ter abandonado a pureza da virtude, identificandose aos que criticava. Tornar-se igual aos outros significava, e significa, abandonar uma bandeira partidária que tinha valor de princípio incondicionado. O incondicionado tornou-se condicionado e relativo. Do ponto de vista partidário abriu-se um vácuo. O partido da virtude tinha se transformado no partido do "pecado", da "transgressão", em suma, da corrupção e do desvio de recursos

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Para Lula, o PT se tornou "um partido igual aos outros".

públicos. A ética na política sumiu politicamente, como se fosse coisa de ingênuos, daqueles que desconhecem a "verdadeira política". O cinismo é aqui total, pois foram os mesmos que se diziam virtuosos que veem a considerar os que defendem a moralidade pública como ingênuos. Pior ainda, consideram mesmo a defesa da moralidade pública como algo de "direita", própria de um "udenismo" moralizante. Antes de chegar ao Poder, para o PT, defender a ética na política era coisa de uma esquerda virtuosa; depois, coisa de ingênuos e direitistas. O julgamento do mensalão foi um golpe mortal naqueles que ainda tinham uma certa ilusão na virtude petista, ou melhor, na coerência de seus princípios partidários. A confusão nas hostes partidárias foi total, pois alguns importantes dirigentes partidários não acreditavam que as instituições, em particular o Supremo e o Ministério Público Federal, iriam agir de uma forma republicana, justa e imparcial. O golpe foi tanto mais sentido pelo fato de os ministros julgadores, em boa parte, terem sido designados durante os dois governos petistas. Mais importante, todavia, é que a moralidade pública tenha sido incorporada institucionalmente, dando um basta à impunidade em geral e à partidária em particular. O Supremo deu um exemplo à nação de que as instituições


Antonio Cruz/ABr

funcionam a-partidariamente, querendo com isto significar que a ética na política é um princípio republicano. Significar que a ética na política é um princípio republicano quer dizer que ela não pode ser apropriada partidariamente, não sendo monopólio de ninguém. Um princípio, por definição, não se encarna particularmente, conservando, sempre, uma conotação universal. As particularidades sempre devem procurar se aproximar do universal, sabendo de antemão que ele sempre escapa, dada a sua natureza formal. Ou seja, os partidos políticos devem todos agir segundo um princípio de moralidade pública, sem que nenhum deles possa se apropriar do monopólio dessa moralidade. A ética na política nos dois mandatos do ex-presidente Lula foi amortecida. Lula quase foi levado a não recandidatar-se quando da divulgação do mensalão, o PT foi severamente abalado, porém nada disto se traduziu por mobilizações populares, nem por repercussões eleitorais. Afinal, ele foi reeleito, vindo, inclusive, a fazer a sua sucessora. No momento em que o partido da ética na política abandonava essa sua bandeira sua, esse abandono, porém, demorou a ter consequências junto à opinião pública. Seja dito de passagem que a presidente Dilma teve a sensibilidade de perceber esse problema, recuperando, enquanto marca do seu governo, a moralidade de seus ministros, mediante o que foi convencionado chamar de "faxina ética" no primeiro ano de seu mandato. Assim agindo, resgatou para si a validade de um princípio que tinha sido relegado por seu antecessor. Teve a inteligência de ocupar um espaço vazio do ponto de vista partidário, vazio tanto para o PT quanto para os partidos de oposição, envolvidos com seus próprios "mensalões". Ocorre que o julgamento do mensalão, ao condenar severamente os envolvidos nessa trama e ao comprovar a veracidade de todas as denúncias que o PT procurava ocultar, estabeleceu um novo patamar na vida institucional, o de que a ética na política é, na verdade, um princípio republicano. A repercussão do julgamento, tornando, inclusive, o ministro Joaquim Barbosa, uma figura propriamente popular, faz reviver a ética na política enquanto guia da vida pública nacional. A moralidade pública, que tinha sido colocada em segundo plano, volta pela porta da frente. A vida pública se faz por exemplos, para o bem ou para o mal. Se os governantes dão o bom exemplo, os cidadãos tendem a repetir o seu comportamento, alçando a política e as instituições em geral a um novo patamar. No caso em pauta, o exemplo oferecido pelo STF é o de que a impunidade não será tolerada e os poderosos, inclusive eles, podem acabar na prisão, sejam eles banqueiros, empresários, publicitários ou dirigentes políticos. É impossível não reconhecer a novidade do que está acontecendo. Se os governantes seguem o mau exemplo, se são infratores e criminosos, os cidadãos e as instituições sofrem uma redução do seu patamar moral, passando a imitar comportamentos delituosos. Se o exemplo do crime é apresentado nacionalmente, a única consequência política é a proliferação dos delitos em todos os níveis da vida nacional. A impunidade tende a tornar-se a regra. A afirmação de um princípio republicano, como o da ética na política, exige tempo, constituído por avanços e retrocessos. Não foi pelo seu fortalecimento no julgamento do mensalão, que ele vai se transmitir imediatamente à vida política, passando a nor-

Renan Calheiros: mobilização popular com mais de 1 milhão de assinaturas pede sua renúncia da presidência do Senado.

teá-la. Um novo patamar foi constituído, falta, no entanto, a sua tradução no dia a dia da política, o que exige uma mobilização dos cidadãos e uma atenção redobrada da opinião pública. O caso da eleição do senador Renan Calheiros para a presidência do Senado é emblemático. Em uma situação de consolidação republicana da ética na política, nem a sua postulação deveria ter sido cogitada, dado o seu envolvimento em uma série de denúncias, inclusive com inquérito instaurado no Ministério Público Federal, com denúncia apresentada ao Supremo Tribunal Federal. Vigora ainda aqui a cultura legislativa da impunidade, amplamente apoiada pelos parlamentares que o elegeram. Não agem consoantes com os novos tempos pós-mensalão. Contudo, os tempos estão mudando e uma mobilização foi provocada. Corre um abaixo assinado, que conseguiu em curto prazo mais de um milhão de adesões, apregoando a sua renúncia à Presidência do Senado. Ou seja, o seu caso não está passando despercebido, como era a sua expectativa. Em um momento em que a ética na política ganha a vida pública novamente, comportamentos desse tipo começam a não mais ser tolerados. Assim iniciam as mudanças.

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Memórias do Barão do Rio Branco Nota liminar do organizador

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entre os muitos papéis deixados pelo Barão no momento de sua morte, na mais completa desordem, encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro durante muito tempo – et pour cause –, cujas características passo aqui a relatar, antes de pronunciarme rapidamente sobre seu interessante conteúdo. De aparência anódina, como um caderno qualquer de obrigações escolares – desses que instituições veneráveis, como o Colégio D. Pedro, adotavam como suporte de trabalhos de seus alunos, quase um caderno de rascunhos –, o que foi encontrado entre a barafunda de papéis que o Barão tinha deixado espalhados por pelo menos três mesas de seu gabinete (e em algumas gavetas da única cômoda que ali existia) era um [este que passei a ler a partir de cópias fotostáticas feitas por alguém certo tempo depois] de capa oleada marrom, lombada preta, circundado por um barbante (um tanto sujo devido a um uso provavelmente constante), que por sua vez retinha um simples pedaço de papel com esta inscrição a lápis, na letra inconfundível de Paranhos: "Reservado; não tocar". Ao abrir o caderno – como constatei, na única manipulação que me foi dada fazer pelos zelosos guardiões do Arquivo Histórico Diplomático do Itamaraty, no Rio de Janeiro – o consulente se depara com outro pedaço de papel, de igual feitura (provavelmente destacado às pressas do mesmo pedaço de papel que serviu para compor a nota na capa), também rabiscado a lápis, na mesma letra, com estas simples indicações: "Proibida a reprodução ou divulgação antes de cem anos de minha morte; ver com Moniz de Aragão e Araújo Jorge as condições de sua preservação e manutenção sob sigilo pelo tempo indicado." [Nota do compilador: o Barão se refere a seus dois principais auxiliares de chancelaria: José Joaquim Moniz de Aragão e Artur Guimarães de Araújo Jorge, mais tarde biógrafo e introdutor de suas obras completas, pelo menos aquelas publicáveis.] Apenas isto, e nada mais. Nas páginas seguintes, numeradas à mão, já começavam as anotações manuscritas do Barão, algumas datadas, outras simplesmente localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras entradas feitas em Petrópolis), sem maiores indicações quanto ao dia exato de sua redação, a não ser alguma referência à agenda diplomática corrente – o que permite definir, em princípio, um momento provável de redação – ou a algum despacho por ele mesmo preparado – na

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Divulgação

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, responsável pela transcrição e modernização da ortografia, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo Barão; títulos e intertítulos dos capítulos sob responsabilidade do organizador.

sua indefectível letra cursiva – o que também permite reconstituir a cronologia da inscrição original. As inserções são obviamente lineares, ou seja, feitas sequencialmente pelo Barão nos três anos seguintes ao seu aniversário de 1909, quando ele começou a redigir as notas do caderno escolar, em momentos diversos e com humores diferentes, mas sem o cuidado de manter a estrita cronologia de um diário "normal". Por "diário normal" entenda-se o registro sistemático dos eventos correntes pelo seu redator, uma peça íntima que preserve o retrato exato do que o autor está pensando no ato de sua redação, a partir dos fatos do dia. Não é o caso deste "caderno de memórias" do Barão, que não concebeu os registros com esta intenção, mas provavelmente com o propósito de anotar pensamentos que lhe vinham ocasionalmente ao espírito quando confrontado a uma questão qualquer da agenda diplomática do Brasil ou de suas relações pessoais. Ou seja – aqui já entrando na interpretação do que entendo seja a substância mesma do caderno de notas do qual empreendo agora a transcrição –, o conteúdo do volume em questão não conforma exatamente o que poderíamos chamar de "memórias", no sentido corrente do termo. O Barão provavelmente pretendia – ao sentir o peso dos anos e o acúmulo de responsabilidades, depois de tantos presidentes a que serviu – deixar um testemunho sobre seu pensamento profundo – e verdadeiro – sobre os temas com os quais se entretinha, independentemente e além dos papéis oficiais que ocupavam 99% do seu tempo útil de diplomacia oficial a serviço da nação. E por que ele não queria que estas notas fossem divulgadas antes de pelo menos cem anos decorridos de sua morte? Presumivelmente, porque tinha consciência do delicado de suas opiniões sinceras


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sobre pessoas, países, sobre fagistro fiel de sua labuta cotidiatos e percepções pessoais que na à frente da chancelaria. Ele mantinha nas mais diversas sitalvez quisesse utilizar os rastuações que enfrentava na lacunhos do caderno como a hibuta diária à frente da chancepotética base futura de um verlaria, que já tinha sido a de seu dadeiro volume de "memórias pai e mentor respeitado. póstumas", se o tempo e uma Rio Branco sentia necessidaaposentadoria tranquila lhe tide de expressar-se de alguma vessem permitido retomá-los outra forma que os telegramas e em condições de lazer e de deofícios que mandava preparar dicação integral a tal tipo de sobre temas diversos, que as empreendimento. Disso não tenotas que redigia à intenção dos mos certeza, pois nenhuma inpresidentes a que serviu – e eles dicação concreta nessa direção foram muitos, mesmo que ele foi deixada no caderno ou em não pretendesse continuidade qualquer um dos muitos panas suas funções – ou que os péis – numerosos, desordenamuitos artigos de imprensa que dos, alguns até incompreensíredigiu ao longo dos anos, alveis, fora do contexto em que guns até assinados com algum foram criados e deixados ao léu nom de plume, que ele escolhia – amontoados em seu gabinete ao sabor do momento, para dede trabalho (e de residência, fender-se de, ou atacar, algum quase podemos dizer) ao longo inimigo concreto ou imaginário dos muitos anos que passou naque ele detectava em certos ediquele casarão da rua Larga que toriais e artigos de opinião não veio a tomar outro nome, com assinados sobre algum aspecto as inconstâncias da vida repuqualquer de sua diplomacia ou blicana e a instabilidade que das relações internacionais do sempre tiveram os aspectos Brasil que ele tão bem conduinstitucionais num Brasil quase zia. Ele não podia fazê-lo de tão desordenado quanto os pamodo público, pois muitas de peis deixados por Paranhos. suas impressões pessoais certaMas os elementos especificamente causariam impacto – almente formais desse "caderno gumas até escândalo – se viesíntimo" do Barão interessam ao sem a público pouco depois de público de hoje em dimensão sua morte, ou mesmo alguns menor do que seu conteúdo anos depois. Ao iniciar a redapropriamente político, e diploção destas "memórias" não memático. Este constitui o verdamorialísticas, Paranhos sabia deiro cerne de um pensamento rique suas notas não poderiam, co que agora podemos desvelar em não deveriam, ser postas ao cosua integralidade, sem as amarras nhecimento público, dada a sensibique o século decorrido desde sua reCaricatura do Barão lidade de certos temas, e também por dação original impôs a um homem que, uma razão muito simples: ele próprio estaria além de amar profundamente o país do qual infringindo uma das normas básicas da diplomacia, que é a neficou afastado durante tanto tempo – mais de vinte anos, a partir cessária discrição sobre as reais intenções dos atores da política de sua designação para o consulado em Liverpool –, também internacional de um país em temas delicados da vida nacional, soube consignar de modo mais claro um conjunto de opiniões assuntos que têm a ver, necessariamente, com a autoestima namomentâneas, mas reveladoras de sua preocupação com o fucional e o orgulho próprio que um Estado responsável mantém a turo da nação grandiosa que ele antevia com sua visão de estarespeito de seus interesses imediatos, sempre envelopados nudista responsável e ponderado. O Barão tinha, sim, ademais dos ma teia de boas relações e de desejos de positiva colaboração com cuidados triviais com a diplomacia corrente, uma visão de fualgum outro ator da vida internacional, no plano bilateral, ou no turo para o Brasil, uma grande estratégia que ele não conseguiu quadro mais amplo de sua inserção mundial. formalizar em algum livro de história diplomática ou de síntese As notas e inscrições rápidas do "caderno escolar" do Barão das relações internacionais do país, mas que ele provavelmente são, assim, mais uma espécie de "exercícios filosóficos" sobre as pretendia redigir a partir destas notas que, graças a um conjunto relações internacionais do Brasil, do que propriamente um refortuito de circunstâncias, passamos agora a revelar...

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Petrópolis, 20 de Abril de 1909

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scritores são, em geral, fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que, aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente, não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas memórias, sobretudo se elas tratam da pátria! Por que o faço agora? Porque, justamente, quero registrar de meu próprio punho uma longa trajetória de vida, antes que algum desses áulicos que me seguem fielmente no meu reduto diplomático, ou que alguns, dentre os muitos jornalistas que me têm apreço nos pasquins e mesmo nos jornalões cariocas, decidam empreender, eles mesmos, alguma biografia não autorizada. Qualquer que seja seu caráter, simpática ou não ao que venho fazendo para engrandecer a pátria, acredito que ela não será muito fiel ao que penso deva ser um relato seletivo da minha vida e das minhas atividades à frente do único ministério capaz de fazer orgulho a um Brasil nem sempre admirado no cenário internacional. Mas, confessemos, cá entre nós: esta nossa Casa, que nos velhos tempos do Império se chamava Repartição dos Negócios Estrangeiros, de tão nobre memória, sempre foi a maior admiradora de si mesma... Também o faço porque alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora longínquo, dia de dezembro de 1902, numa das mais importantes inversões da minha já longa trajetória de vida. Sete anos atrás, não sabia se era justa a minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em direção ao meu chalé de montanha. Não pretendo desculpar-me com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão; talvez até encontrem estas memórias – que não sei bem quando terminarei – entre as pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de meu gabinete. On n'est jamais si bien servi que par soi-même. Mais, passons... Também quero deixar agora consignadas, neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura, praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época. Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições, já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional - de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional. O próximo presidente da República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo, quando todos sabem que minhas preferências - a despeito das diferenças que acumulamos desde a conferência da Haia - estariam naquele brilhante advogado baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista, ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para fazê-lo... Minha aspiração - sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente - é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No

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Por que decidi escrever estas memórias?


momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado, propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de limites com o Peru e com o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas... O que tenho a dizer sobre a minha obra diplomática? Não me cabe, em causa própria, relatar tudo o que fiz, desde a primeira questão de arbitragem contra nossos vizinhos platinos, passando por todos os outros casos de limites, arbitrados ou negociados, ao longo dos primeiros anos da República, ou como ministro da mesma nos últimos sete anos. A vida me deu muito mais do que eu poderia querer, já que minha intenção, enquanto ainda estava em Liverpool - por obra e graça da princesa regente, diga-se de passagem, pois seu pai imperador nunca me designou para nada -, era juntar dinheiro suficiente para comprar um fazendola de café no interior de São Paulo, juntar os meus livros de história e passar o resto dos meus dias especulando com o nosso "ouro negro" e, finalmente, terminar a minha prometida história militar e diplomática do saudoso Império. Quis a História, essa outra madrasta sempre misteriosa e tão cheia de surpresas, que não fosse assim: a morte infeliz do primeiro negociador do território das missões me tirou de um plácido esquecimento em Liverpool - na verdade, trocada frequentemente pela mais vibrante capital francesa -para me jogar no centro da mais importante questão de limites a dividir castelhanos e portugueses desde os tempos coloniais, problemas nunca resolvidos satisfatoriamente pelos tratados de Madri, de El Pardo e Santo Ildefonso. Além da justeza das nossas posições, bem fundamentadas na documentação colonial - parte da qual coletada décadas antes por Ponte Ribeiro em suas andanças sul-americanas creio que o Brasil foi beneficiado pela simpatia natural que o presidente da grande república do Norte tinha pela sua contraparte no hemisfério meridional. Depois, apoiado no meu primeiro sucesso diplomático, fui novamente convocado a servir ao país, desta vez enfrentando os franceses, na chamada questão do Oiapoque: confesso ter me utilizado de todos os meios disponíveis, inclusive os menos confessáveis, facilitados pelo amigo Emilio Goeldi, em Berna, para colocar o presidente da neutra Confederação do nosso lado, a despeito dos laços tradicionais de amizade que uniam a Suíça à França vizinha, em especial desde os tempos de Napoleão. O cansaço físico e o desejo de, por uma vez, gozar de uma vida diplomática normal - já que eu tinha sido apenas cônsul por longos anos - me impeliram a recusar uma nova arbitragem nas fronteiras do norte, desta vez contra a pérfida Albion, que pretendia abocanhar boa parte do nosso território amazônico para incorporar à sua Guiana. Indiquei para a tarefa o meu amigo dos tempos monárquicos, Quincas Nabuco, e procurei ajudá-lo em tudo o que estivesse em meu alcance. Mal sabia eu que a aceitação do rei da Itália como árbitro iria trazer-nos tantos dissabores, já que Vitório Emanuel agiu franca e desonestamente em favor da Grã-Bretanha, subtraindo-nos milhares de quilômetros quadrados a que tínhamos direito, pela força dos braços e pernas dos nossos exploradores lusitanos e pelos traçados detalhados dos cartógrafos que lhes seguiram. Foi por isso que no próximo caso que se me apresentou - já nos preparativos para assumir o ministério, a que relutantemente acedi depois de muita insistência de Rodrigues Alves - decidi não mais recorrer a essas arriscada arbitragens, preferindo entabular negociações diretas com os volúveis bolivianos, que nesses tempos andavam cedendo sua soberania nacional a sindicatos de aventureiros imperialistas. Para tanto, reuni, na tarefa de ajudar-me a construir o caso do Brasil, uma penca de jovens diplomatas ambiciosos, tendo, no entanto, de dispensar os serviços do mais experiente Oliveira Lima, um espírito por demais cheio de si para consentir auxiliar-me junto aos peruanos, inquietos com o que se lhes podia vir em prejuízo, dada minha intenção de separar as duas questões. Mas, dessa e de outras negociações de limites eu tratarei mais adiante, bastando-me mencionar agora que encontrei o ministério bem cuidado, sob o olhar vigilante, mesmo se cansado, do velho Cabo Frio, ainda que excessivamente vetusto nas maneiras e conservador nas suas práticas, necessitando ademais de alguns empurrões aqui e ali para mostrar do que o Brasil era capaz, nas Américas e no mundo. Felizmente Campos Salles e Murtinho realizaram oportuna obra saneadora de nossas finanças, o que me habilitou a requisitar novos meios e fundos públicos para investir num mais do que bem-vindo processo de modernização deste velho ministério de tradições ainda muito lusitanas. Como sempre, a velha Albion fornece o modelo ideal segundo o qual deveria funcionar nossa diplomacia, já que o seu Foreign Office é, por outras vias, uma verdadeira "esquadra inglesa". Sobre isso falarei um outro dia...

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Rio de Janeiro, 2 de maio de 1910 Los hermanos, siempre tan hermosos...

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ronto! Acabo de confirmar ao Senhor Presidente, que me havia Comemoração pelo 10 de mai interrogado a esse respeito, que o Brasil participará das o comemorações do assim chamado "centenário da independência argentina" (com aspas, comme il faut), neste próximo 10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares, todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive, parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos... Curiosa essa menção a erro, porque isto me lembra de uma frase à propos, que já ouvi há muito tempo, de um desses nuestros hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que no sé cual... Talvez eu também tenha cometido algum erro fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus auxiliares - que se desesperam com esta minha decisão - teria sido representado pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente, designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que me parece um pouco exagerado, mais laissons cela à leur critère. Chacun est maître de ses décisions... Descarto qualquer erro de minha parte, mas como não posso externar minha opinião au grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em todas as circunstâncias. Qual erro cometi, afinal, já que não vejo nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário? Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...) Os argentinos estão festejando, com orgulho indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos acreditam que "conquistaram" a sua independência da Espanha (ou de Napoleão, sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de 1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente vacante - mas não foi nesse dia - em função da "destituição", de seu real cargo, de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus... Eles, os argentinos, que nisso são equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência começou nesse dia - eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo da utilidade - quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem muitas vezes em declarações chorosas, que falam da "opressão dos invasores", ou da "usurpação do trono", enfim, essas frases ocas, em que se comprazem nossos colegas de carreira. Todas essas construções intencionais, de uma pré-ciência de "momentos históricos", de fato delineados a posteriori, servem apenas para alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan

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hermosos, inventaram o mito do 10 de maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta! Se me permito aqui parafrasear o general Roca, nosso amigo sincero - dos poucos que temos naquele país de arrogantes gaúchos que se creem ingleses dos pampas - eu diria que muitas coisas nos unem, mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco inconstante, este). Os argentinos são, sem sombra de dúvida, muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em suas operetas, de riche comme un argentin...). Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos militares, ainda que a quebra do Barings - quando eu começava a me ocupar, justamente, do nosso conflito em torno de Palmas - comprove que, mesmo assim, nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos, aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional, foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante, em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café, como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano Lopez. Pois bem, voltando às "comemorações do 10 de maio", imagino que um dos meus críticos argentinos - me refiro ao inacreditável Estanislao Zeballos - possa estar agora falando de mim: "Maldito barón" - com b minúsculo, para me diminuir um pouco mais - "siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...". Foi ele mesmo que nos levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de "desmembración" do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados na história - e na nossa boa cartografia lusitana - em defesa do nosso pedaço das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar nossas aquisições de fragatas na Europa, e até "dividi-las" com eles (o absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro pela força. Como querem, agora, que eu conceda em enviar uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo de comércio preferencial com nossos vizinhos - concedendo-lhes as mesmas vantagens que eu concedi às farinhas americanas - se eles continuam a comprar quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a pompa e circunstância da Corte de St. James. Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos Salles que, ao desenvolver "laços da mais íntima amizade", Brasil e Argentina, juntos, seriam "ricos, fortes, poderosos e livres". Pode ser que, um dia, de fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas economias, mas não antes que nuestros hermanos abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também, um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual como ele, entre nós? Esse dia chegará, estou seguro, mas certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei um outro dia...

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Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1910 Militares e intelectuais: tão diferentes, tão semelhantes...

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novo presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca, tomou posse hoje, numa cerimônia assez simple, feita de assinatura de livros de posse, dois discursos rápidos e poucas congratulações. Fui reconduzido nas mesmas funções em seu gabinete (que aliás ainda não está todo constituído), como tinham anunciado alguns meses antes os auxiliares do presidente eleito, mesmo sem ter me consultado, o que me pareceu demonstrar duas coisas: ou benemerência sincera, em relação a meus serviços à frente desta Secretaria de Estado, ou arrogância desmedida, de quem se julga mestre de tudo e de todos. O Marechal o fez a despeito de meus protestos de desprendimento ao cargo, o que eu já tinha demonstrado de sobejo. Como todos sabem, a candidatura à esta presidência me foi oferecida, de bandeja, se ouso dizer, mais de um ano atrás, coincidindo a pressão política em favor do lançamento de meu nome com o meu natalício dos 64 anos; creio ter feito muito bem em recusar. A despeito de ter uma eleição praticamente assegurada, uma vez que o congresso do partido ratifica o nome do candidato, nunca gostei, de fato, da vida política, pois acho os homens dessa sorte muito enfatuados, e dispostos a prometer qualquer coisa aos políticos que os elegem, o que apenas confirma meu desgosto da vida política. Sim, porque no Brasil não são os eleitores que determinam a vida política do país, e sim é o atual sistema de partidos estaduais que decide quem serão os "representantes" do povo. Não fosse isso, dois outros fatores contribuiriam para me afastar desse mundo de pequenas trapaças e grandes enganações, como é a política no Brasil: as intervenções nos estados, o que vem gerando tensões insuportáveis não apenas no meio político, mas também no Judiciário; e o fato de termos uma Constituição muito contraditória, que permite tudo aos estados - depois de décadas de centralização monárquica - e lhes deixa numa situação de virtual liberdade, para contrair dívidas e conduzir os seus negócios como se fossem verdadeiros países soberanos; isso vai acabar por tornar periclitante a própria federação que os republicanos quiseram criar, contra os sãos princípios do Império. Acresce a isso o fato de que eu sempre vi com muita simpatia a candidatura do Doutor Ruy ao cargo supremo da Nação, destino O marechal Hermes da Fonseca foi que lhe parece estar reservado em algum momento do nosso futuro, presidente do Brasil entre 1910 e 1914. a despeito mesmo dessas frustrações que hão de ser temporárias. Não obstante os pequenos desentendimentos que ambos tivemos ao longo de todos esses anos de turbulências republicanas, a começar pela negociação com os bolivianos e, depois, o affaire Drago-Porter na segunda conferência da Haia, eu considero o jurisconsulto baiano um dos homens mais preparados para governar um país quase ingovernável como o Brasil. E, apesar disso, de todas as suas qualidades e de suas propostas altamente necessárias num país de pouca inteligência política como o Brasil, o grande civilista Ruy foi derrotado pelo militarista Hermes, o que demonstra que, depois de tantas desventuras com seus caudilhos militares nas repúblicas irmãs do continente, nosso país também se deixa seduzir pelo charme pouco discreto dos homens da farda. Explica talvez a vitória de Hermes - certamente conseguida à custa do famoso "bico de pena" - o fato de ser sobrinho do Marechal que inaugurou esse sistema anárquico em nosso país, quando estávamos tão bem na condição de única monarquia do Novo Mundo, uma verdadeira república neste continente de caudilhos, como aliás disse de nós um presidente venezuelano. Os militares de nossos turbulentos vizinhos sempre interferiram nos negócios internos desses países, talvez à falta de grandes ameaças à soberania nacional, como soe acontecer na velha Europa: por aqui eles cuidam mais dos soldos do que dos soldados inimigos, e como os políticos relutam em aumentar-lhes a paga...


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José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como Barão do Rio Branco (1845-1912).

No Brasil, eu os respeito, mas de forma nenhuma os venero, pois sei que muita gente no partido militar tem inclinações que beiram o despotismo, como já nos demonstrou sobejamente aquele marechal das Alagoas, que disse que iria responder à bala qualquer intromissão de estrangeiros nos assuntos do seu governo. Não é coisa que se faça, obviamente, sequer que se diga, pelo menos não de público, ainda mais quando os estrangeiros já estavam de fato envolvidos na infeliz guerra fraticida que sacudiu esta bela capital, pelo fato de alguns dos bravos da marinha, que lutavam contra a ditadura do dito marechal, se terem homiziado em barcos estrangeiros. A "diplomacia" do Marechal não foi diplomacia nem aqui nem no Império chinês e Deus nos livre de um dia cair numa ditadura de marechais como esse de olhar mortiço, de língua solta e de sabre ainda mais folgado (se não são os canhões, que ele não hesita em mandar disparar, contras seus próprios companheiros). Apenas espero que este Marechal que agora começa seu quadriênio, e que me tem amarrado ao seu governo, não tenha as mesmas ideias liberticidas... Enfim, se o Ruy não vencer em alguma próxima eleição, em vista da sua idade, que bate com a minha (com 4 anos de

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vantagem), pode ser que o Brasil não tenha mais nenhum candidato dessa estatura intelectual nem nos próximos cem anos. Com efeito, olhando-se o panorama de miséria educacional brasileira, não se pode esperar por algum outro sábio do porte do Ruy antes de muito tempo; não quero tripudiar sobre o ensino do nosso Colégio Imperial, onde já fui professor e conheço a qualidade dos seus mestres, mas o quadro da cultura em geral, e o da cultura política em particular, é lamentável. O ambiente político no Brasil tende a recrutar as piores vocações, os seres mais oportunistas, as inteligências mais medíocres, se nisso não vai nenhuma contradição. Em contraste, os militares não são melhor dotados em inteligência, mas são mais bem organizados, dispõem, em todo caso, de uma máquina bem azeitada que, com exceção de algumas áreas da nossa magistratura, justamente (e nem todas, pois também frutas podres existem nesses meios), pode oferecer-lhes as condições ideais para que se ocupem das mais variadas funções no Brasil, pela razão, ou pela força, como dizem os chilenos. De fato, os únicos bons matemáticos e engenheiros que temos neste país são os que saem das escolas militares, pois no ambiente civil o que temos é uma pletora de bacharéis em direito. Como digo sempre, quem cria a riqueza de um país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público. Pois, a primeira coisa que fez o Marechal eleito, quando "venceu" esse escrutínio de cartas marcadas, em março último, foi mandar-me sondar para saber se eu não queria continuar no cargo. Não lhe respondi de imediato, apesar de todos saberem que eu estava com o Ruy nessas eleições (tão previsíveis como as que temos por aqui), porque não pretendia ser indelicado, recusando por intermediários uma nova recondução ao cargo que já tenho para mim há quase oito anos, o que me tem fatigado a retina e amolecido os ossos. De resto, como sempre fazem todos os presidentes eleitos, o Marechal pronto embarcou para sua viagem à Europa, o que me oferecia um tempo conveniente para pensar e refletir sobre o que significa, para mim, servir a um militar dos mais coroados. Como eu dizia, intelectuais têm poucas chances de se sobressaírem neste país de poucas luzes e de muita escuridão mental. Eu mesmo ando cercado por alguns, mas não vejo sair de suas cabeças brilhantes nenhuma proposta sensata para diminuir a nossa falta de progresso material e o nosso atraso espiritual, capaz de vencer o abismo de prosperidade que nos separa da vizinha Argentina, que não só é rica, como extraordinariamente educada (e uma coisa vai com a outra, suponho). Intelectuais, aqui, estão sempre querendo alguma prebenda pública, algum favor do governo, algum cargo em comissão, uma sinecura em alguma de nossas legações, enfim, essas coisas que herdamos dos nossos patrícios d'além-mar e que continuam a infernizar nossas vidas e as burras do Estado, mesmo oitenta anos depois de o termos para nós, exclusivamente. Os militares tampouco exibem propostas muito diferentes, mas o quê os intelectuais têm de desorganizados, eles querem se ver como os mais organizados do país, e de certo modo o são. Na verdade, eles fazem de tudo para parecer organizados e racionais, positivistas, como é de seu estilo, embora eu ache que esse Auguste Comte errou em quase tudo (e que essa tal de sociologia só me parece servir para alimentar revoluções). Enfim, não se pode pedir muito rigor matemático a quem se ocupa de assuntos humanos e sociais... O Marechal, em todo caso, me parece de um rigor exemplar, meticuloso no planejamento de suas atividades e exigente na sua execução. Ele talvez coloque um pouco de ordem nessa confusão de vontades estaduais, cada qual voltada para pequenos assuntos de velhas oligarquias, sempre renitentes em abandonar o poder, e de novas ambições, sempre muito vastas, de fato desmesuradas. As antigas províncias imperiais eram mais bem administradas, já que o Imperador escolhia ele mesmo os seus governadores; agora, quando predominam os interesses mesquinhos e as propostas mais descentralizadoras, o governo da União tem estado a "corrigir" alguns desses desvios, por vezes com a mão de ferro das intervenções. O novo Marechal, ao menos, parece estar imbuído do sentido da ordem e da unidade nacional: esperemos apenas que não seja a ordem da espada. Do seu apreço à ordem, quem me relatou foi o Oliveira Lima, em ofício de Bruxelas, no qual confessou não ter ido buscar o Marechal à chegada do trem de Paris, por falta de um telegrama de instruções de nossa Secretaria de Estado. Ora essa! Ele que se informasse do itinerário do Marechal, que estava anunciado em todas as folhas e até mesmo nos pasquins da oposição. Por um momento temi que o Marechal considerasse que eu não tinha mandado telegrama a Bruxelas pelo fato de ambos, Lima e eu, termos apoiado seu opositor nas eleições, quando o que ocorreu foi apenas um atraso na entrega do cable da Western Union (por uma vez!). O Marechal parece ter antipatizado com o Lima, também um apoiador declarado da campanha civilista, como não se pejou de informar em seus artigos de imprensa: mal avisado andou, pois diplomata não devia ter partido político... Dois meses depois recebi nova comunicação do mesmo Oliveira Lima solicitando-me autorização para se ausentar do seu posto em Bruxelas, por umas tantas semanas, para dar o que ele me apresentou como sendo um curso na Sorbonne, especificamente numa "chaire du Brésil" (que eu sequer sabia que existia). Tal como dito no telegrama, se trata de uma "chaire des études brésiliennes" criada na Universidade de Paris, sob pretenso patrocínio de uma mal conhecida "Union Scolaire franco-pauliste", afiliada ao "Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour les

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Como diplomata, o Barão não podia expressar seus verdadeiros pensamentos abertamente.

Relations avec l'Amérique Latine", o que me parece ter o ar de manigance. Oliveira Lima explica que ele deve dar o seu curso em "douze leçons à l'amphitéâtre de la Faculté de Lettres" e isso da 15 de março a 5 de maio de 1911, ou seja, dentro de aproximadamente três meses. Tudo isso ele colocou num cable da Western Union, que pela sua extensão, deve ter custado metade de toda a verba alocada a comunicações em Bruxelas durante um ano; entendo que o gastador jogará mais essa despesa na conta da legação, como ele já fez algumas vezes, ao comprar livros raros auprès de libraires da Europa. Pela data de criação dessa chaire, em 2 de novembro último, deduzo que foi o próprio Oliveira Lima quem instigou sua criação, apenas para passar algumas semanas em Paris, o aproveitador. E isso por uma duração de quase três meses, por acaso, ou por coincidência, justo na primavera parisiense. Creio que nem vou responder a seu pedido, pois ele já decidiu ir, de seu próprio chef, e não se comoveria com alguma ponderação minha para que se atenha a suas funções de enviado do Brasil nas terras da Bélgica e nos reinos escandinavos. Oliveira Lima é um exemplo de intelectual que se deixou meter pelo mundo da política e que pretende grandes cargos na República, ainda que faça tudo para diminuí-la em comparação com a velha monarquia que tivemos por tantos anos. Não quero depreciar seu trabalho de historiador, mas o seu tato para a política é o de um orangotango numa loja de porcelana. Seu trabalho sobre D. João VI no Brasil é certamente uma obra memorável - feita, aliás, com a minha ajuda indireta, pois deixei-o de "férias" no Rio, enquanto ele não aceitava outro posto - mas ele devia dedicar-se mais aos trabalhos do seu ofício do que a esses ofícios de escritor que lhe dão tanto trabalho... Ele vai querer mais um conto de réis para ficar em Paris por uma primavera, dar algumas palestras das quais certamente resultará um novo livro, provavelmente vai colocar outros tantos livros na conta da legação, e ainda acha que a Secretaria de Estado deve pagar por todas essas mordomias. Alguém precisa dizer-lhe: Haja dinheiro, senhor embaixador!

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Varejo ultratecnológico

Fotos: Reprodução

O cabide que ilustra a capa desta edição foi desenvolvido pela empresa japonesa TeamLab (www.team-lab.net). Quando o cliente retira da arara o cabide com a roupa, o sistema RFID (Identificação por Radiofrequência) informa o computador da loja, que imediatamente exibe fotos e vídeos do produto em telas próximas ao cliente, inclusive sugerindo combinações com outras peças e acessórios.

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2013 Data 12 de março 01 de abril 25 de abril 06 de maio 21 de maio 03 de junho 12 de junho 25 de junho 16 de julho 17 de julho 14 de agosto 21 de agosto 05 de setembro 17 de setembro 20 de setembro 04 de Outubro 11 de outubro 16 de outubro 06 de novembro 12 de dezembro

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