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Miriam Treistman

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

ITZCHAK BELFER

O último menino de Janusz Korczak

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Itzchak Belfer aos 93 anos, durante a entrevista em Tel Aviv.

No topo da página seguinte: Obra de Itzchak Belfer exposta em galeria na cidade de Tel Aviv.

Miriam Treistman

1923 não foi um ano bom para se nascer judeu e em Varsóvia, pois o nazismo se aproximava, apesar de ninguém suspeitar disso naquele momento. Tampouco era auspicioso nascer numa família pobre, e menos ainda perder o pai aos cinco anos de idade. Porém, ninguém escolhe onde e quando nascer, assim Itzchak Belfer nasceu em 1923, com a possibilidade de ter uma infância terrível e uma vida adulta dramaticamente curta, como tantos outros judeus poloneses que nasceram naquela época.

Contudo, eis que 93 anos depois encontramos o outrora pequeno Itzchakale de Varsóvia em Tel Aviv, irradiando uma alegria contagiante e exultando pela vida criativa e cheia de realizações que lhe coube. Uma história de superação? Sem dúvida. Mas com uma surpreendente “pegadinha”. Pois é justamente a sua infância em Varsóvia que evoca suas mais doces lembranças e é sobre ela que ele conversa com mais gosto. E Itzchak é um falante contumaz!

Ele teve a sorte de ser acolhido no orfanato de Janusz Korczak, levado para lá pela mãe, pouco após a morte do pai, para dar chance a ela de trabalhar e sustentar os demais filhos.

Janusz Korczak (Varsóvia 1878 – Treblinka 1942) é o pseudônimo do médico pediatra Henryk Goldszmit. Ele foi um dos principais pedagogos dos nossos tempos e uma das mais dramáticas perdas provocadas pela Shoá. Os revolucionários orfanatos coordenados por ele se baseavam num método de educação fundado na construção da autonomia da criança, no respeito à realidade infantil e na valorização da vida em coletividade. Para isso pressupunha princípios de trabalho, como a autogestão das crianças, a educação pelo trabalho, um sistema de recompensas e punições estabelecido pelas próprias crianças e a profunda integração entre as atividades lúdicas e educativas. Apesar de haver organizado os orfanatos segundo suas ideias, a humildade de Korczak atribui

“Imagine uma casa grande, de quatro andares, onde viviam e trabalhavam 107 crianças e apenas dois adultos. Não havia ninguém para cuidar da disciplina ou da limpeza. Tudo era feito pelas crianças. Sentíamos que estávamos trabalhando de uma forma natural e não por obrigação, por nós mesmos e pelos nossos amigos.”

todo o mérito conquistado ao longo dos anos exclusivamente às crianças. Segundo ele, a casa de órfãos era uma obra delas e não dele.

“Nós nunca usamos a palavra orfanato”, me contou Itzchak. “Para nós, Krochmalna 92 [o endereço do orfanato] era apenas e simplesmente a nossa casa. Era assim que chamávamos o local. Não éramos órfãos, éramos crianças e, principalmente, éramos pessoas.”

Eu estudei a fundo os livros de Janusz Korczak para o meu trabalho de fim de curso de graduação. Suas obras Como amar uma criança e O direito da criança ao respeito ensinam a valorizar a criança pelo que ela é no presente e não pelo que será no futuro. Mas uma coisa é ler e outra é falar com uma testemunha que viveu intensamente a experiência. Ouvir Itzchak tratar o orfanato como uma casa e não um abrigo de vítimas, e principalmente ouvir ele discorrer sobre como a prática de Korczak considerava as crianças como iguais e não como tendo menos voz ou menos direitos e obrigações que os adultos, me fez perceber que o que eu tinha lido de Korczak e sobre Korczak era verdadeiro.

“Fiquei nove anos na casa. Saí aos 15 anos, porque esta era a idade limite para viver lá”, continuou Belfer. “Imagine uma casa grande, de quatro andares, onde viviam e trabalhavam 107 crianças – 56 meninas e 51 meninos – e apenas dois adultos. Não havia ninguém para cuidar da disciplina ou da limpeza. Tudo era feito pelas crianças. E tudo era feito de forma voluntária. Cada criança escolhia as tarefas que queria fazer e as cumpriam em turnos de meia hora por dia. As tarefas dependiam da idade da criança e também de sua força física. Tínhamos uma liberdade absoluta, algo que não dá para acreditar! E eu era muito, muito feliz. Servíamos a mesa, lavávamos os pratos, lavávamos a roupa, varríamos e limpávamos a casa, tudo isso era voluntário, nada era obrigatório. Sentíamos que estávamos trabalhando de uma forma natural e não por obrigação, por nós mesmos e pelos nossos amigos. Você podia inclusive resolver não trabalhar. Nesse caso você estava abrindo mão dos seus direitos e não podia participar do tribunal ou votar na assembleia. Fazia sentido – se você não queria ter o ônus de pertencer ao esforço coletivo também não tinha o bônus. Mas a verdade é que eu não me lembro de nenhuma criança nessa situação. Todos participavam.”

Perguntei se nunca houve um caso de crianças com comportamento incompatível com as regras coletivistas da casa. Belfer explicou que ele soube de alguns poucos casos – um ou dois em todo o tempo do funcionamento da casa. Mas que o regulamento ajudava o arrependimento. Uma criança expulsa poderia requerer o seu retorno à casa num período de seis meses depois da expulsão. No requerimento ela tinha que convencer o tribunal que estava arrependida e que iria se comportar adequadamente dali para frente.

Pedi para ele falar sobre o tribunal. Como era e como funcionava?

“O tribunal era superimportante no funcionamento da casa. Ele garantia os nossos direitos e cobrava as nossas obrigações, inclusive as de tratar os outros de forma adequada. O tribunal funcionava no sábado de manhã. Na sexta-feira, depois do banho e antes da refeição festiva, escolhiam-se por sorteio cinco juízes. Qualquer um podia apresentar uma demanda contra qualquer outro.”

Mulheres e crianças fogem dos nazistas para sobreviver, na pintura de Itzchak Belfer.

“O tribunal era superimportante no funcionamento da casa. Ele garantia os nossos direitos e cobrava as nossas obrigações, inclusive as de tratar os outros de forma adequada. O tribunal funcionava no sábado de manhã. Na sexta-feira, depois do banho e antes da refeição festiva, escolhiam-se por sorteio cinco juízes. E no sábado, numa sala grande, com todo mundo assistindo, eles julgavam as demandas que haviam sido feitas na semana. Qualquer um podia apresentar uma demanda contra qualquer outro. Bastava formular a reclamação e a publicar no quadro de avisos. Havia uma comissão que funcionava permanentemente para a qual a criança se dirigia com o intuito de formular a reclamação. Essa comissão classificava as reclamações por um número – de um a dez, depois de dez em dez até cem e depois de cem em cem até mil. Mil era a reclamação máxima, que requeria a expulsão da criança, mas nunca houve um julgamento desse grau nos meus anos na casa. Depois do julgamento, as reclamações consideradas procedentes tinham seus números somados e o ‘escore’ semanal era afixado no quadro de avisos. Quanto mais baixo o ‘escore’ da semana melhor a nossa sociedade havia se comportado. As reclamações julgadas pro-

Pinturas de Itzchak Belfer sobre a Shoá: à esq., Janusz Korczak, Stefa e as crianças antes da deportação; à dir., um retrato afetuoso de Korczak.

cedentes geravam consequências para as crianças – reclamações formais, pedidos para a não repetição da atitude, coisas que envergonhavam os infratores. Ninguém queria passar pela humilhação de ser julgado e muito menos considerado culpado. A questão moral e da honra era muito importante para nós.”

E de repente Belfer começa a rir e me conta um dos episódios que ele se lembra mais vivamente em seus anos de Krochmalna 92:

“Veja, meidale [termo afetivo para “mocinha” em ídiche – ele me chamou assim durante toda a entrevista], um dia aconteceu algo sensacional! Uma menina de uns oito anos e meio acusou o próprio ‘doktor’. Ela levou um comportamento de Janusz Korczak ao tribunal e ele foi considerado culpado! O caso foi assim: a menina não queria deixar Korczak sair de perto dela, ela queria ficar com ele, ela queria ter toda a atenção dele. Ele explicou para ela que tinha que ir trabalhar, que precisava cumprir as obrigações dele, mas ela continuava segurando-o pela mão e não deixando ele se mexer. Então ele a pegou com as duas mãos e a sentou num banco alto, do qual ela não conseguia descer sozinha. Ela pediu para descer chorando – estou com medo! – mas ele não a baixou de lá. E ela disse que ia processar ele! Foi à comissão, fizeram uma queixa contra Korczak e ele foi julgado culpado no sábado. O tribunal requereu por escrito que ele não mais repetisse aquele comportamento. Todo mundo começou a rir, foi muito engraçado. Por alguns meses, até o assunto ser esquecido, passamos a chamar ele de ‘Cem’ (o número do artigo do qual ele havia sido considerado culpado). O tribunal era muito importante porque garantia o direito de todos, indiscriminadamente, pequenos e grandes, fortes e fracos, eliminando brigas e ofensas”.

Estávamos conversando no Studio Shuki Kook, uma

galeria de arte em Tel Aviv, pertinho de Yafo. Era o último dia da mais recente exibição das obras referentes à Shoá de Itzchak Belfer. Sim, porque o ex-“menino de Korczak” tinha se transformado num artista, ele desenhou, pintou e fez esculturas durante toda a sua vida. Suas obras o sustentaram espiritual e financeiramente, foi com elas que criou as raízes de sua família em Israel, para onde veio logo após a guerra, vivenciada lutando na Rússia. Perguntei para ele sobre suas obras, sobre sua vida de artista. E assim a conversa entrou num outro rumo, mas sem jamais sair da casa.

“Um dia, Stefa [Stefania Wilczynska – a colaboradora de Korczak, sua ‘cúmplice’ nas doutrinas pedagógicas. Eles trabalharam juntos durante quase toda a vida de ambos, compartilhando as realizações e o destino. Ela é a segunda adulta que vivia na casa, à qual Belfer se refere acima neste texto] chegou para mim e disse: ‘Itzchakale, eu sei que você gosta de desenhar. Toma, aqui tem papel, lápis, pincéis e tintas, você pode desenhar e pintar o quanto quiser, pode usar aquele quartinho como seu estúdio’. E eu realmente adorava desenhar! Eu nunca quis ser bombeiro ou policial como a maioria dos meninos. O que me encantava era o desenho. A partir daí comecei a desenhar e a pintar em todos os momentos livres que tinha. Eu não participei das discussões políticas, não me envolvi nos assuntos administrativos, na organização, no conselho. Eu era o artista da casa. Eu desenhava e eu sonhava. Cada vez que precisavam de um desenho para uma festa ou para ilustrar alguma coisa eu fazia. Este era o meu papel lá dentro.”

“Stefa intuiu a minha vocação e me abriu uma porta. Eu entrei por ela e me encontrei no mundo. Depois da guerra voltei para a Polônia, mas a enormidade do que tinha acontecido não me permitiu viver lá e já no caminho para Israel eu desenhava o tempo todo. Em 1957 entrei na academia de artes aqui e descobri que poderia viver disso. Pintei, desenhei e esculpi sobre tudo, adoro as luzes, as formas, as cores. Nesta exposição só colocamos obras sobre a Shoá, porque a Shoá é o crime mais terrível que houve e também a coisa mais importante que aconteceu aos judeus em muitos séculos, mas eu tenho obras sobre tudo, sobre Israel, sobre as pessoas, sobre o mundo.”

“Tenho uma posição especial com relação à Shoá. Não pinto sobre ela. Pinto de dentro dela. Do que eu vivi.” A exposição se chama “Entre Dois Mundos”, sintetizando a vida de Belfer entre o mundo da Shoá e a atualidade israelense na qual ele vive hoje. Ele me contou que logo após a Shoá não conseguia desenhar sobre o que havia acontecido. Mas ao conviver e conversar com outros sobreviventes ele entendeu a necessidade de usar a arte como um instrumento de superação, como uma forma de lidar com o que aconteceu. A necessidade de expor a realidade dos horrores do nazismo, dos guetos, dos campos de extermínio e da guerra para poder confinar isso em sua obra e conseguir viver uma vida sadia sem essas assombrações.

Foi a Shoá que encerrou a experiência pedagógica do orfanato, assassinando seus idealizadores e as crianças. A casa da rua Krochmalna 92 já estava vazia, pois desde o estabelecimento do gueto de Varsóvia os nazistas haviam

Estátua em homenagem a Janusz Korczak em Varsóvia, Polônia.

Hans Laubel / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 45

transferido o orfanato para um novo endereço dentro da área segregada aos judeus. A Gestapo – que meses antes havia oferecido um posto de médico num hospital militar a Janusz Korczak, proposta rejeitada por ele – chega ao orfanato no momento do café da manhã. Os oficiais mandam todos se levantarem e sairem. Korczak pensou em dizer para as crianças que iriam para um acampamento de verão, porém como não fazia parte da sua prática pedagógica a mentira, e como nem ele mesmo sabia ao certo qual seria o destino, pois de Treblinka nunca havia voltado ninguém para lhes contar, falou para as crianças que iriam para um passeio de trem. Sobreviventes do Gueto contam que ele saiu de casa calmamente de mãos dadas com duas crianças. Uma das sobreviventes do gueto, descreveu a cena:

“Eu nunca me esquecerei dessa cena. Isso não era uma marcha para os trens, e sim um protesto mudo, com olhos cheios de desprezo para esse regime assassino”.

Chegando no campo de concentração, mais de uma vez tentaram persuadi-lo, oferecendo-lhe a liberdade, mas o fiel e idealista educador se recusou a deixar as crianças sozinhas, mesmo que por um momento, naquele lugar. Dessa forma, no dia 5 de de agosto de 1942, com 64 anos de idade, Korczak é assassinado em uma câmara de gás no campo de concentração de Treblinka no Norte da Polônia, junto com Stefa e com as crianças, que eram a razão de ser da sua vida. Ele nunca teve filhos seus, talvez porque amava a humanidade mais que a si mesmo.

Belfer encerra a conversa comigo. Seu filho chega e eles estão atrasados para um outro compromisso:

“Nunca houve nada igual à casa de Korczak e de Stefa. Sou testemunha disso. Muitos me interpelam nas palestras e alegam que estou inventando, que aquelas coisas nunca aconteceram, que elas são fruto da minha imaginação de criança. Que um orfanato é sempre triste e muitas vezes ruim. Que é impossível gostar de um orfanato. Que é impossível uma casa de centenas de crianças funcionar através da autodisciplina e do senso de responsabilidade das crianças. Mas aconteceu sim! As crianças eram responsáveis e se autoadministravam. Eu

“Nunca houve nada vivi isso tudo. Adquirimos segurança, igual à casa de Korczak e de Stefa. autoconfiança e liberdade. Eu sabia que ninguém podia fazer nada comigo porque eu vivia num ambiente de justiça e Sou testemunha disso. de amor.”

As crianças eram Saio da galeria para a rua estreita do responsáveis e se sul de Tel Aviv, com meu amigo Ricky autoadministravam. Niskier, que filmou e fotografou a entrevista. Ao me encantar sobre Korczak nas

Eu vivi isso tudo. atividades do movimento juvenil ChaAdquirimos segurança, zit Hanoar e nas minhas leituras, eu jaautoconfiança e mais sonhara um dia encontrar alguém liberdade. Eu sabia que que tivesse vivenciado a experiência peninguém podia fazer dagógica mais relevante e mais bem sucedida na longa história da educação infannada comigo porque eu til. Experiência que foi brutalmente subvivia num ambiente de traída à humanidade pelo racismo e por justiça e de amor.” uma ideologia supremacista e consequentemente assassina. Quando assassinaram Korczak não assassinaram “apenas” mais um judeu. O seu assassinato silenciou uma potencial revolução educacional que acabou não vindo à luz até os dias de hoje. A maioria dos sistemas educacionais do mundo continua a ser tremendamente conservadora, com métodos centenários repetidos à exaustão. O aluno continua a ter um papel passivo. A infância continua a ser tratada como um mero momento de passagem para a vida adulta, sem ser valorizada por si só. Como seria o mundo hoje se Janusz Korczak não tivesse sido apagado pelo horror nazista? A pedagogia será capaz de recuperar a sua formidável intuição a respeito da infância, que gerou uma prática capaz de moldar seres humanos maravilhosos como o artista Itzchak Belfer? O juri ainda está deliberando, mas as perspectivas de curto prazo não são muito animadoras.

Leituras recomendadas

Quando voltar a ser criança – um incrível romance de Janusz Korczak, escrito sob o ponto de vista de uma criança. Como amar uma criança – de Janusz Korczak, a descrição minuciosa da prática dele. O direito da criança ao respeito – de Janusz Korczak. Miriam Gottlieb Treistman é pedagoga formada pela UFRJ do Rio de Janeiro, com mestrado em Sociologia da Educação pela Universidade de Tel Aviv. Vive em Tel Aviv há dez anos.

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