5 minute read

Paulo Geiger

BERESHIT, MAS NÃO TANTO Paulo Geiger

Segundo a Bíblia, a primeira coisa que se constatou logo após a criação do céu e da terra, na segunda frase do texto, foi a existência do caos. E todo o processo de criação que se seguiu foi o de criar ordem no caos, o que significou não só criar o que não existia, mas principalmente harmonizar tudo que passava a existir, em suas totalidades e em suas diversidades. Porque a um Criador digno desse nome não basta fazer surgirem coisas aleatoriamente, a existência em si mesma não é suficiente para configurar fruição, a fruição só advém da coexistência, que pressupõe equilíbrio, troca, interação.

Advertisement

Independentemente de aceitar ou não o criacionismo bíblico como explicação para a origem do universo como um todo e de nosso planeta como o palco natural e biológico da história que conhecemos, podemos aprender na estória da Criação uma lição necessária aos criadores que continuaram o trabalho de pôr ordem no caos a partir de então, e que em milênios não conseguiram completar um serviço que deveria durar seis dias.

Parece que o problema começou quando, culpa da serpente ou não, os novos criadores trocaram o equilíbrio e a felicidade do paraíso pela liberdade de saber e de agir. Para encurtar as metáforas e os simbolismos, parece que o rompimento do equilíbrio de origem divina deu lugar a um novo caos de origem humana, caos que depois de quase seis mil anos na contagem criacionista ou milhões na contagem evolucionária ainda não cedeu lugar ao equilíbrio entre tudo que foi sendo criado em quantidades e diversidades.

Por quê? Considerando os níveis de conhecimento, de entendimento, de experiência, que aumentam e se acumulam em milênios ou “milhênios”, levando em conta que as causas de desequilíbrio são conhecidas, que já se aprendeu na história o que não dá certo e como se desenrolam os processos, o que impede os novos criadores (segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, Homo deus) de reassentarem o que existe para integrá-lo num sistema harmônico de felicidade COM liberdade para saber e para agir? Ou melhor, inversamente, reassentarem a liberdade de saber (conhecimento, ciência, tecnologia) e agir (progresso, perspectiva e qualidade de vida) num sistema de coexistência e convivência e de equilíbrio social e ecológico, ou seja, de felicidade terrena, já que não mais paradisíaca?

É a resposta de um n-lhão de dólares, libras, reais, shekalim... Simples de conceber e aparentemente impossível de concretizar. Pois aparentemente seria tarefa divina a de recriar do caos um universo, um mundo, uma humanidade de equilíbrio e felicidade que já não se bastará com a tranquilidade do Éden e com a ignorância da árvore do conhecimento. Um equilíbrio e uma felicidade que sejam compatíveis com computadores, inteligência artificial, realidade virtual, nanorrobôs, informação global e instantânea, confortos e benesses inimagináveis, mas também compatíveis com uma distribuição equitativa, preservação do meio ambiente, sustentabilidade, relacionamento interespécies e inter-reinos da natureza. Tarefa de Homo deus?

Não necessariamente. Lembro que me referi em outro artigo à ideia de que às vezes a única solução para um processo que se desvirtua em relação a seus objetivos é – não tentar uma mudança de direção como continuação corrigida, e sim – recomeçar a partir de um ponto anterior, antes da subversão do modelo. Mencionei isso em relação a Israel, e aproveito para reiterá-lo, sem argumentar. A lógica simples tem elementos de obviedade: é melhor voltar a um ponto em que a realidade correspondia ao projeto e continuar na direção certa a partir daí do que corrigir uma dinâmica desvirtuada a partir de um ponto desvirtuado.

Estamos hoje – em Israel, no Brasil, no mundo – num ponto em que parece que o projeto inicial de busca de equilíbrio (entre os homens e entre o homem e a natureza) e de felicidade (para todos) com liberdade de conhecimento e de ação (ciência, progresso, qualidade de vida) desandou em conflitos de não coexistência, crise ecológica, desigualdades crescentes. Um desequilíbrio que configura, ao menos em parte, as condições de caos, de existências cada vez mais numerosas e mais sofisticadas e cada vez mais desequilibradas, o céu e a terra multiplicados, assim como o tohu vavohu.

Lugar e hora para a ação do criador, para pôr ordem no caos, para retomar o projeto original: a felicidade do equilíbrio MAIS a liberdade de conhecimento e de ação.

Não é necessariamente tarefa para Homo deus. Não é preciso regredir ao caos total e recomeçar tudo a partir do zero. Não é preciso a tabula rasa das espécies animais, como no Dilúvio, nem a da Terra como um todo, como nos cataclismos nucleares ou climáticos que o cinema tanto explora. Não é preciso abrir mão da liberdade de conhecimento e de ação, nem do que essa liberdade criou no decorrer de milênios ou “milhênios”. Só é preciso reencontrar o equilíbrio. Equilíbrio entre os homens (coexistência, equanimidade, diversidade), entre os homens e a natureza (sustentabilidade, respeito ao meio ambiente), entre o desejável e o possível levando em conta o futuro, o da natureza e o das gerações humanas e não humanas.

Sim, eu disse ‘só’. Porque ‘só’ se precisa retomar o projeto, repensar a utopia, redirecionar a intenção. O resto já existe. Não só resistiu ao caos como às vezes se alimentou dele, e é nesse círculo vicioso que reside o principal problema. Mas o inverso do caos é o equilíbrio, o do conflito é a coexistência das diferenças. As ferramentas estão prontas, as existências foram criadas, o conhecimento foi adquirido, assim como a liberdade de saber e de agir. O paraíso existe, e está ao alcance do criador e das criaturas.

Vaiehi or.

This article is from: