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Annette M. Boeckler
NOSSO PAI, NOSSO REI: UMA VIAGEM NO TEMPO
Annette M. Boeckler
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Às vezes congregações me pedem para liderar um serviço religioso. Quando eu não os conheço de visitas anteriores, sempre procuro me informar quais melodias eles normalmente usam. Então, quando fui uma vez a uma congregação antes do Iom Kipur, eu lhes perguntei: “Qual é a vossa melodia para o Avinu Malkeinu?”. Eles cantaram e eu fiquei muito surpresa. Uma melodia realmente bonita, mas que eu nunca tinha ouvido antes (era uma tradição da Suíça). Eu disse: “Que melodia linda!”. E eles me responderam: “Como isso é possível? Você não conhece a melodia para o Avinu Malkeinu!?”. Eu disse: “Bem, conheço sete outras, mas esta nunca ouvi”. Para eles foi uma grande surpresa saberem da existência de outras melodias além daquela que eles cantavam.
Somos acostumados à nossa liturgia, quero dizer, a uma atmosfera típica. Mesmo que só apareçamos uma vez por ano, reconhecemos: sim, esta é a minha sinagoga. Só quando um dia nos deslocamos a um outro país notamos as diferenças na liturgia, mesmo para o mesmo serviço.
O mesmo pode ser dito sobre os nossos antepassados. Se pudéssemos viajar 500 anos para trás para experimentar um serviço no século 16 ficaríamos muito surpresos, talvez não fôssemos capazes de reconhecer quase nada, porque não apenas as melodias seriam diferentes como também alguns textos das rezas. Somente a Torá permaneceu exatamente a mesma durante todos os séculos, pelo menos desde quase 500 a.e.c.
Vamos viajar no tempo. Vamos viajar para trás em nossos pensamentos e observar o Avinu Malkeinu. E vamos aprender algo sobre Avinu Malkeinu em cada período de tempo. Se pudéssemos viajar 500 anos para trás para experimentar um serviço no século 16 ficaríamos muito surpresos, talvez não fôssemos capazes de reconhecer quase nada, porque não apenas as melodias seriam diferentes como também alguns textos das rezas. Somente a Torá permaneceu exatamente a mesma durante todos os séculos.
Tudo começa no primeiro século da era comum. O Talmud conta (em Tratado Taanít, na página 25b):
Uma vez (durante uma seca) aconteceu que Rabi Eliezer parou diante da arca e disse 24 bênçãos (rezas para o dia de jejum que estavam fazendo pedindo chuva); e ele não foi ouvido. Em seguida, Rabi Akiva veio diante [da arca], e disse: “Nosso Pai, nosso Rei (Avinu Malkeinu), conceda-nos a Tua justiça”. E imediatamente começou a chover.
Podemos aprender duas coisas sobre a reza Avinu Malkeinu nessa narrativa: No início, o Avinu Malkeinu era muito curto. Era quase só a última linha do nosso texto de hoje: Avinu Malkeinu, chonenu veanenu, ki en banu maassim. Asse imanu tsedaka vachesed vehoshieinu (“Nosso Pai, nosso Rei, concede-nos graça e atendenos! Pois carecemos de boas ações. Mostra-nos caridade e amor e salva-nos.”)
Aprendemos uma outra coisa nessa narrativa: O que fará Deus ouvir a oração? Como se Deus tivesse preferido Akiva, não tendo ouvido Eliezer. Eliezer terá sido menos importante? Os sábios no Talmud debateram essa questão. Especialmente nas Grandes Festas, é uma pergunta importante: o que faz Deus ouvir-nos? O Talmud conta (depois do episódio que citei acima):
Os Rabanan começaram a difamar-lhe [Eliezer], mas uma voz disse: “Não é porque Akiva é mais importante do que Eliezer, mas porque ele tem a alma generosa1”.
Viajemos um pouco mais no tempo até o século 12. Estamos agora no tempo das Cruzadas, na Europa. Como a oração Avinu Malkeinu original havia sido usada para salvar da morte, os judeus no tempo das Cruzadas também rogaram a Deus por ajuda através dela. No primeiro século, a morte era causada pela seca, já no século em questão eram as perseguições religiosas que punham a vida em perigo. Os judeus da Idade Média adicionaram umas linhas à oração do Rabi Akiva:
Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que foram mortos por [invocar] Teu santo Nome.
Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que foram massacrados por [invocar] Tua Unicidade.
Nosso Pai e nosso Rei, faze por aqueles que padeceram no fogo e na água pela santificação do Teu Nome.
Nosso Pai e nosso Rei, vinga-Te pelo sangue de Teus servos.
Aprendemos aqui mais coisas sobre o Avinu Malkeinu. As pessoas que viviam na Idade Média pensaram que não seria suficiente ser generoso. Porque obviamente muitas pessoas generosas morreram nas Cruzadas; era como se Deus não as ouvisse. Por isso, eles então disseram: “Deus, veja este nosso grande sofrimento! Não tendes piedade de nós? Se sim, ouvi-nos AGORA!”.
Vejamos o século 14, no tempo da peste. Em muitas cidades da Europa Central ocorreram pogroms contra os judeus. O Avinu Malkeinu tinha se tornado uma poderosa litania de esperança, uma possibilidade para expressar as dores mais profundas e os maiores medos. Por isso se manteve um texto vivo ao longo dos séculos e mais linhas foram adicionadas, pedindo coisas como:
Nosso Pai e nosso Rei: afasta de nós todo opressor e adversário.
Nosso Pai e nosso Rei: cala as bocas de nossos inimigos e daqueles que nos acusam.
Nosso Pai e nosso Rei: afasta a peste, a espada, a fome, o cativeiro, a destruição, a iniquidade e o extermínio dos filhos do Teu pacto.
Nosso Pai e nosso Rei: impede a epidemia contra a Tua herança.
Nosso Pai e nosso Rei: perdoa e desculpa todos os nossos pecados. [...]
A lista é mais longa, muitos pedidos foram adicionados. Súplicas que exprimiram exatamente o espírito da época; algumas estritamente pessoais, outras, para a congregação. Os livros de rezas ortodoxos preservaram muitas linhas da Idade Média. Existem machzorim ortodoxos com 23 linhas (tradição Luso-Espanhola), com 38 linhas (ritos da Alemanha do Sul), com 44 linhas (ritos da Polônia/Alemanha do Norte; e também no machzor ortodoxo brasileiro organizado por Jairo Fridlin).
Os acréscimos mais recentes são os pedidos em relação ao ano-novo:
Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da vida boa.
Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da redenção e da salvação.
Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da manutenção e do sustento.
Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro dos méritos.
Nosso Pai e nosso Rei: inscreve-nos no livro da indulgência e do perdão.
Essa lista se desenvolveu por causa da imagem em que Deus nos inscreve no livro da vida, quer dizer que Deus nos dá a vida por mais um ano. A vida é tão frá-
gil. Tem tanta coisa além do nosso controle. É importante saber, mas também não ter medo.
Abandonando a Idade Média, viajamos um pouco mais no tempo, desta vez até ao século 19. Paramos na Alemanha, no tempo em que o judaísmo progressista começou. No ano de 1868, diz o professor alemão, Dr. Abraham Geiger:
O nosso serviço religioso... é a expressão plena das convicções profundas, a apresentação completa de todas as inspiradoras verdades da fé, todas as emoções oriundas dos pensamentos. 2
Um mundo novo. Os judeus tinham deixado de viver nos guetos ou judiarias e tinham alcançado a possibilidade – pelo menos no papel – de viverem como cidadãos do país (nesse tempo, na França ou Alemanha) tal como todos os outros. Desde o ano de 1810 o serviço religioso judaico tinha mudado. Tinha sido modernizado. Sermões regulares haviam sido introduzidos, e também o órgão, rezas na língua do país. O serviço em geral havia sido resumido para obter mais concentração. Nesse tempo as pessoas começaram a pensar sobre o Avinu Malkeinu
Aprendemos uma outra de novo, com uma perspectiva completacoisa nessa narrativa: mente nova. Era o século da iluminação, O que fará Deus ouvir do racionalismo. Precisamos realmente de tantas linhas? a oração? Os sábios no Muitas são só repetições. No século 19 Talmud debateram essa não soava bem mencionar todos os mártiquestão. Especialmente res das Cruzadas, os tempos eram outros. nas Grandes Festas, é uma pergunta No século 19 éramos otimistas. E será que Deus intercederia por nós por causa dos mártires da Idade Média? Quem crê nisimportante: o que faz so? Os rabinos tinham reuniões e debaDeus ouvir-nos? tiam sobre quais são as linhas mais importantes e sobre quais linhas seriam relevantes para aquela época. Isso foi possível porque apenas a Torá é um texto que não se muda, o livro de rezas é a nossa expressão; a reza é a nossa resposta à Torá. E isso muda em cada época. Talvez algumas das coisas que os nossos antepassados eliminaram no século 19 hoje em dia têm relevância de novo e outras perderam a sua relevância desde então. Um livro de reza sempre é a expressão de uma comunidade num lugar específico, num tempo específico. O livro de rezas mais famoso no judaísmo progressista clássico, que se chamou Einheitsgebetbuch, tinha apenas 29 linhas do Avinu Malkeinu. Isso foi a base para o

primeiro machzor progressista na língua portuguesa: Machzor, Livro de Rezas para os Dias Sagrados de Rosh Hashaná – Yom Kipur, editado pelas entidades Congregação Israelita Paulista de São Paulo, Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro, redigido no Rito Liberal e traduzido por seus rabinos, os doutores H. Lemle e Fr. Pinkuss. A primeira edição foi lançada em 1949, tendo havido mais duas edições. A terceira edição foi em 1966, onde o Avinu Malkeinu tem 37 linhas (3ª ed., p. 136-140), porque as linhas sobre os mártires que os pais (apenas eles naquele tempo) do judaísmo progressista haviam eliminado foram reintegradas no Brasil, depois da Shoá. O machzor usado no Rio de Janeiro e em São Paulo hoje em dia tem um Avinu Malkeinu com 39 linhas. E considero por agora suficientes estes exemplos para que tenham a noção de que existem muitas versões do texto do Avinu Malkeinu, com vários números de linhas e várias ordens de bênçãos.
Voltamos à nossa viajem no tempo até aos dias de hoje. No ano passado, o movimento reformista da Inglaterra lançou uma edição de teste para um novo machzor de Rosh Hashaná, onde figuram quatro Avinu Malkeinu seguidos! Realmente, vários pelos quais escolher!
A primeira versão é a versão antiga, como sempre foi feita nas sinagogas reformistas no Reino Unido, com 20 bênçãos. A segunda versão publica o texto da composição musical de Max Janowski (a melodia que foi cantada por Barbara Streisand). Algumas congregações gostam muito dessa canção tão popular, mas o texto não é o texto tradicional e a ordem não é a ordem de um livro de rezas. É uma composição nova baseada num texto dos EUA. Para as congregações que gostam dessa melodia, o livro de rezas fornece esse texto. As outras duas versões refletem o problema grande que nós temos hoje em dia relativamente a esse texto: Avinu Malkeinu quer dizer “Nosso Pai, nosso Rei”. Mas Deus, será ele masculino? De onde nós sabemos isso? Não é permitido fazer uma imagem fixa de Deus. Mas parece que durante os séculos uma imagem se estabeleceu muito fixa nos pensamentos de muita gente. Numa reunião dos editores do novo livro de rezas inglês, muitos rabinos e rabinas dizem: esse texto, Avinu Malkeinu,
Vejamos o século 14, é um grande problema. Contudo, outros no tempo da peste. Em muitas cidades dizem: Mas as pessoas estão tão acostumadas a ele, imagine a comoção que seria mudar o Avinu Malkeinu!!! da Europa Central Então os editores tentaram criar uma ocorreram pogroms versão com diferentes imagens de Deus, contra os judeus. O masculinas e femininas, por ordem alfaAvinu Malkeinu tinha se bética. Esse Avinu Malkeinu começa com as palavras Avinu Malkeinu – “Nosso pai, tornado uma poderosa nosso rei”. Mas depois nunca mais usa litania de esperança, essa imagem e continua com Goaleinu uma possibilidade para Somcheinu – “Nosso Redentor, o nosso expressar as dores apoio” –, Hodenu Peereinu – “Nossa comais profundas e os roa, nossa glória” –, e assim por diante. E finalmente eles oferecem a versão maiores medos. antiga do judaísmo reformista, a Versão do Templo de Hamburgo do século 19, na verdade um texto da tradição sefardita. Essa versão não tem as palavras “Avinu Malkeinu”, todas as linhas começam com Eloheinu shebashamaim – “Nosso Deus, que está no céu” – que não tem definição de gênero. Então, não só existem várias melodias para o Avinu Malkeinu como também existem várias versões do texto. Mostra que as nossas rezas não são somente expressões da nossa tradição, mas igualmente expressões da situação do momento e que cada geração tem que buscar suas próprias palavras, conectando o passado e exprimindo o presente num lugar especial.
Notas
1. A palavra no original em hebraico significa uma pessoa que perdoa o erro dos outros. Uma pessoa indulgente. Optei por “alma generosa” porque me pareceu mais coloquial. 2. Unser Gottesdienst ... ist der volle Ausdruck der tiefinnersten Ueberzeugungen, die umfassende Darstellung aller anregenden Glaubenswahrheiten, aller das Gemüth ergreifenden Ahnungen.“ - Abraham Geiger, Unser Gottesdienst. Eine Frage, die dringend Lösung verlangt. Breslau, 1868, p. 1. A doutora Annette M. Boeckler cresceu na Alemanha e vive atualmente na Inglaterra. É professora de Liturgia e Bíblia no Leo Baeck College em Londres. É autora de vários artigos sobre Liturgia Judaica, por exemplo, nos livros da série “Prayers of Awe”, de Lawrence A. Hoffman. Tem interesse especial na história da Liturgia Alemã e sua evolução. Escrito em português com a ajuda da Congregação Progressista Ohel Jacob, Lisboa.