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Rabino Dario E. Bialer

A REVOLUÇÃO DE EZRÁ E NEEMIAS

Ezrá e Neemias instituem a leitura pública da Torá e seu estudo, e ao fazer isso eles mudam o povo judeu para sempre. Somos todos herdeiros espirituais e também materiais dessa atitude.

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Rabino Dario E. Bialer

“Então, todo o povo se reuniu como uma só pessoa diante da praça, de fronte à porta das águas. E disseram a Ezrá, o escriba, que trouxesse o livro da Torá de Moshé, que Deus tinha ordenado a Israel. E no primeiro dia do sétimo mês, Ezrá, o sacerdote, trouxe a Torá perante a congregação – homens e mulheres e todos os capacitados a escutar e entender. E ali, na praça localizada em frente da porta das águas, ele a leu, começando cedo pela manhã e seguindo até o meio dia, perante os homens e as mulheres e os que podiam compreender; e os ouvidos de todo o povo estavam atentos à Torá.”

(Neemias, capítulo 8)

Esse é o povo do livro que carregou os mandamentos em placas de pedra pelo deserto durante 40 anos e que, carregando aquelas pedras, nos libertou do peso da ignorância.

O povo judeu não nasceu nem especial nem escolhido. Não é mais inteligente nem geneticamente melhor do que ninguém. Mas resulta inegável que ao longo da sua história tomou decisões fundamentais que lhe permitiram superar suas próprias limitações e conformar uma identidade nacional intrinsecamente vinculada ao estudo.

Acontecimentos como a entrega da Torá no Sinai, a saída da escravidão do Egito e o começo da jornada de Abrão são muito significativos para nós. Mas esta assembleia reunida na frente da porta das águas em Jerusalém não foi menos decisiva.

Os livros de Ezrá e Neemias, escritos 2.500 anos atrás, descrevem como as decisões desses líderes transformaram não apenas aquela sociedade, mas todo o corpo de um novo judaísmo que começava a ser delineado.1

Em 586 a.e.c., o rei Nabucodonosor da Babilônia conquistou o Reino de Judá, destruiu Jerusalém e deportou para o seu país toda a classe dirigente judaica e grande parte do povo. Parecia que a singularidade cultural do povo judeu chegaria ao fim. Contudo, poucas décadas depois, quando a Babilônia foi, por sua vez, conquistada pelo rei Ciro da Pérsia, ele permitiu aos judeus de seu recém-conquistado reino retornar, os que assim o desejassem, a Judá para a reconstrução de Jerusalém e de seu Templo.

Assim, em 445 a.e.c., Neemias, filho de Chachaliá, um judeu que servia num importante cargo honorífico na corte do rei persa (o que não era algo fora do normal no império multicultural de Ciro e seus descendentes, haja visto a história de Mordechai e Ester na corte de Achashverosh) obtém a licença do rei para ir a Jerusalém e supervisionar os trabalhos de reconstrução.

Mesmo enfrentando dificuldades, Neemias tem sucesso em sua missão. Os muros de Jerusalém são concluídos e o Templo é edificado. Mas ele faz muito mais do que cuidar da proteção física dos judeus. Juntamente com o escriba e sacerdote Ezrá, que havia feito alguns anos antes o mesmo caminho dele da Babilônia para Jerusalém, ele recria a espiritualidade judaica.

Ezrá e Neemias instituem a leitura pública da Torá e seu estudo, e ao fazer isso eles mudam o povo judeu para sempre. Somos todos herdeiros espirituais e também materiais dessa atitude.

Como se a Torá fosse “picuach nefesh” e “picuach neshamá” simultaneamente. Aquela que preserva o corpo e a alma ao mesmo tempo.

Picuach neshamá, dizia Heschel, é a preservação da alma. Nós a preservamos cada vez que transformamos o que parecia destino em desafio. Desafiar o estabelecido. A opressão estrangeira. E a opressão interna também.

Ezrá e Neemias perpetuaram a continuidade de um modelo reconstruindo o Templo, ao mesmo tempo em

que, com o estudo da Torá, plantaram as sementes de transformação para um modelo religioso/espiritual completamente diferente, que será chamado, séculos depois, de judaísmo rabínico.

Todo o povo como uma só pessoa

Quando o capítulo 8 do livro de Neemias abre dizendo que todo o povo se reuniu como uma só pessoa na praça de fronte à porta das águas, o autor do texto não está fazendo apologia do esmagamento das individualidades e o abandono da autodeterminação. Podemos estar ouvindo juntos e manter uma escuta diferente. Existem também momentos em que as diferenças dão lugar a um projeto comum. E esse foi um desses momentos decisivos na história.

Homens, mulheres e todos os capacitados a escutar e entender

Um novo projeto nacional está sendo configurado e a forma com que se interpreta o versículo 2 tem muito a ver com isso, pois nele se descreve quem seria parte ativa dessa sociedade.

O hebraico, na sua riqueza linguística, permite ler este versículo de duas formas antagônicas. Estavam reunidos todos os homens e as mulheres capacitadas para entender? Ou todos os homens, todas as mulheres e um terceiro grupo que também podia compreender a Torá (como crianças, estrangeiros, não judeus), todos integrados nesse momento fundacional da nova nação?

Uma leitura sugere que aos homens adultos capacitados a entender a Torá podem se somar as mulheres que possuem compreensão. Contudo, a outra interpretação indica que os homens e as mulheres por igual podem e devem se envolver com a Torá, bem como qualquer outro integrante da sociedade capacitado em estabelecer uma interação com o texto ou com os outros atores sociais.

O judaísmo foi se desenvolvendo desde aqueles dias até hoje, mantendo essa duplicidade na interpretação.

Hoje também coexiste um judaísmo que tenta confinar a mulher em casa, que esconde sua presença do espaço público, que a impede de ler a Torá em público, que a segrega atrás de uma cerca, e o judaísmo que tem sucesso

O objetivo final – em integrar homens e mulheres, judeus e estudo da Torá por todos – nunca foi não judeus, todos que buscam pertinência comunitária. Os Muros de Jerusalém, que nos temperdido de vista, pos de Ezrá e Neemias foram símbolo de pois no judaísmo o unidade, hoje são o campo de batalha conteúdo é sempre entre o pluralismo e o totalitarismo remais importante que ligioso. Fui testemunha presencial disso quando pouco tempo atrás acompanhei a forma”. as Mulheres do Muro e as reivindicações dos movimentos reformista e conservador em Israel para que se aplique o reconhecimento da Suprema Corte em Israel de que o Muro seja um espaço pluralista para todas as correntes religiosas. O que está em jogo não é a disputa de um espaço público e sim a identidade nacional, que vai sendo construída, balanceando a lei, com seus impactos sociais, políticos e econômicos. Até a aparição de Ezrá e Neemias os judeus eram um povo agrícola, como todos os demais povos do mundo, e a prática do judaísmo se parecia com a dos povos a seu redor. O culto sacrificial, as peregrinações ao Templo, as oferendas materiais a Deus através dos sacerdotes, são costumes religiosos compartilhados por vários povos da Antiguidade. Mas a leitura universal da Torá representou uma enorme revolução. Nenhum povo compartilhava um ritual de leitura pública das leis e dos textos formadores de sua identidade. Assim como inédita era a obrigatoriedade de todo o povo – e não apenas uma casta – se envolver com a leitura e a compreensão do texto. A universalização do estudo foi sendo aprimorada ao longo do tempo. Cada vez que se percebia uma deficiência que impedia a obtenção dos resultados esperados o método era reformado. O objetivo final – o estudo da Torá por todos – nunca foi perdido de vista, pois no judaísmo o conteúdo é sempre mais importante do que a forma. Primeiramente pensou-se que bastava seguir a injunção da Torá, que obriga os pais a ensinar seus filhos. Porém, este ensino caseiro cobria apenas os aspectos básicos de conhecimento. Um tempo depois, uma academia de alto nível foi criada em Jerusalém. Com o tempo, sentiu-se a necessidade de alimentar essa academia com estudantes originados em todas as cidades, assim que, sob a influência do presidente do Sanhedrin, Shimon ben Shetah (65 a.e.c.),

escolas preparatórias gratuitas para jovens de 16 e 17 anos se espalharam por onde viviam os judeus. Mas apenas as crianças que tinham obtido educação básica com os pais podiam acompanhar o estudo nessas escolas. Órfãos e filhos de pais iliteratos ficaram de fora do sistema ao mesmo tempo em que se identificou que 16 anos era uma idade muito avançada para introduzir uma pessoa num sistema organizado de ensino.

Entre 63 e 65 e.c., o sacerdote Joshua ben Gamla baixou um decreto religioso obrigando todos os pais a enviar os filhos a partir dos seis ou sete anos para uma escola primária gratuita. A grandes problemas nada melhor que pequenas soluções. Assim o Talmud reconhece e perpetua essa lembrança (numa tradução livre):

Joshua ben Gamla tem que ser lembrado para sempre pois se não fosse por ele a Torá teria sido esquecida em Israel.

Antes dele, quem tinha pai aprendia a Torá com ele, mas quem não tinha pai, não estudava a Torá. Foi então decretado que professores para jovens deveriam ser estabelecidos em todos os distritos da terra. Mas os jovens entravam na escola aos 16 e 17 anos e se um professor os admoestasse eles se ressentiam e iam embora.

Assim foi até que Joshua ben Gamla decretou que professores de crianças deveriam ser estabelecidos em todos os distritos e cidades e que crianças de seis e sete anos deveriam ser matriculadas nas escolas.

Este é o primeiro registro de um sistema público de ensino e os judeus foram o único povo a manter um sistema desses até a Idade Moderna! Evidentemente que alguma consequência isto deveria provocar.

Os economistas Maristella Botticini (italiana) e Zvi Eckstein (israelense) realizaram uma enorme e interessantíssima pesquisa para identificar como foi que os judeus se tornaram o povo que hoje são. O resultado dessa pesquisa está no livro The Chosen Few – How Jewish Education Shaped Jewish History, 70-1492 (Os Poucos Privilegiados – Como a Educação Judaica Formatou a História Judaica entre 70 e 1492, em tradução não oficial, pois o livro ainda não foi traduzido para o português), editado em 2012 pela Princeton University Press. Como o título do livro já revela, a con-

Quando Ezrá e Neemias, clusão deles é que os judeus foram formanuma das portas do Templo recémtados pela educação mais do que a educação formatou os judeus. O estudo obrigatório afastou os ju-reconstruído, decidiram deus da agricultura, pois era muito comreunir o povo ao redor plicado a um lavrador mandar seus filhos da Torá, eles criaram para a escola na cidade. Assim, os agrium sistema que nunca cultores judeus tinham duas alternativas: ou abandonar o judaísmo ou abandonar será vencido por algum a agricultura. Segundo os pesquisadores, poder político, pois, é falsa a percepção de que os judeus timesmo que a terra veram que abandonar a agricultura porseja conquistada e os que os governos sob os quais eles viviam templos destruídos, a os proibiram de possuir terras. O que a maioria abandonou foi o judaísmo e não palavra continuará viva. a agricultura. Eles afirmam que a queda acentuada na população judaica desde o tempo dos romanos não se deve a perseguições, postulando que a assimilação voluntária, pela dificuldade de manter a obrigatória literalidade, foi maior do que qualquer outro fator de perda de população judaica. E percebam que a queda na população foi imensa! Segundo os autores, em 65 e.c. os judeus representavam 10% da população nas áreas em que viviam (5,5 em 55 milhões). Porém, em 1490 e.c. eles representavam apenas 1,14% (1 em 87,5 milhões). A literalidade dos judeus os fez abraçar profissões mais rentáveis que de seus vizinhos agricultores analfabetos. Então, ao mesmo tempo em que diminuíam em número, os judeus aumentavam em renda. Em paralelo – e muito importante –, o estabelecimento de um código religioso de conduta ética nos negócios fez dos judeus os financiadores ideais dos empreendimentos. A obediência aos contratos firmados, e não a proibição da Igreja à usura, foi, segundo os pesquisadores, o motor por trás do firme estabelecimento dos judeus no mercado financeiro. Este motor é turbinado pelo exílio judaico, que criou uma imensa rede de pessoas ligadas por um idioma comum e por uma obediência às mesmas normas morais e éticas. E vejam que interessante. Embora o hebraico seja a língua do povo judeu, nos períodos históricos em que seu uso era basicamente ritual e não popular – como nos tempos de Ezrá e Neemias –, eles não hesitaram em decretar que a Torá também deveria ser lida na língua falada pelo povo. Na época era o aramaico e coube a Onkelos traduzir a Torá para o aramaico. Ou seja, o importante não era en-

tender hebraico – o idioma ancestral e tradicional –, mas também, e principalmente, entender o que está escrito na Torá, pois a sua leitura, antes do que ritual, tem primeiramente função educativa.

Agora, deixem a imaginação voar e pensem como o mundo seria hoje se as demais culturas da época tivessem adotado a obrigação da literalidade há milênios e não apenas algumas dezenas de anos atrás.

Pensemos, por exemplo, no grande valor simbólico das cerimônias de bat ou bar-mitsvá. Celebramos o amadurecimento das crianças com a abertura e leitura de um livro; um ritual muito simples e também muito profundo. Toda a cerimônia, toda a preparação para chegar a esse momento, toda a festa posterior, a alegria e a emoção que envolvem cada uma das famílias, tudo em volta do jovem abraça Torá e, na sua leitura pública, aceita o desafio de ser mais um portador dos seus valores milenares.

Quando Ezrá e Neemias, numa das portas do Templo recém-reconstruído, decidiram reunir o povo ao redor da Torá, eles criaram um sistema que nunca será vencido por algum poder político, pois, mesmo que a terra seja conquistada e os templos destruídos, a palavra continuará viva. Em cada novo lugar, através do estudo e da prática, serão criadas novas expressões do ser judeu. Assim o demonstrou a história nos últimos milhares de anos.

Hoje não somos mais exilados, e cada vez que voltamos a Jerusalém temos a possibilidade de ver no único muro do Templo ainda em pé não apenas a reminiscência do passado de um templo de santidade que não mais existe, mas também a comprovação que a preservação do estudo da Torá continua intacto. E é por isso que, quando visitamos o Muro, não nos entristecemos pelo que foi

perdido, mas, ao contrário, nos alegramos por tudo o que temos e celebramos o que ainda nos falta.

Talvez fosse exatamente a isto que Neemias se referiu ao relatar o que se passava durante a leitura de Ezrá:

“Hoje é um dia sagrado para o Eterno, teu Deus; não se lamentem e não chorem. Pois todo o povo estava chorando enquanto ouviam as palavras da Torá [porque perceberam quão afastados estavam de seus preceitos]. Ele lhes disse: ‘Vão! Comam comidas saborosas e bebam bebidas doces e enviem porções aos que nada têm, pois hoje é um dia sagrado para o Senhor. Não se entristeçam; a

Quando visitamos alegria no Eterno é a nossa força!’” o Muro, não nos entristecemos pelo Leituras recomendadas • The Chosen Few – Maristella Botticini e Zvi que foi perdido, mas, Eckstein. ao contrário, nos • Ezrá e Neemias – Tanach. alegramos por tudo o Notas que temos e celebramos 1. Os nomes dos personagens bíblicos estão grafados conforme o livro A Bíblia Hebraica, da Editora Sefer. o que ainda nos falta. O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na ARI-Rio de Janeiro e foi ordenado pelo Seminário Rabínico Latino Americano Marshall T. Mayer de Buenos Aires e pelo Instituto Schechter de Jerusalém.

Quatro aviões Hércules C-130, como este da fotografia, participaram da operação.

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