
7 minute read
Rabino Sérgio R. Margulies
EXÍLIOS E ENCONTROS
Rabino Sérgio R. Margulies
Advertisement
Há diversos exílios: De nós próprios ao nos afastarmos do que somos; Da família ao rechaçarmos os que nos amam; Da comunidade ao quebrarmos o que nos une como povo; Do mundo ao comprometermos o futuro das gerações. Há diversos encontros: Consigo; Com os outros; Com o passado; Com o futuro. Ir do exílio ao encontro é uma decisão.
O exílio do outro
No ano de 586 a.e.c., parte do povo de Israel, notadamente a elite política, foi exilada de sua terra ancestral. Era o final do reino de Judá. Destino: Babilônia. Este exílio não significou cativeiro e, inclusive, muitos prosperaram. Contudo, a nostalgia da terra de Israel foi intensa como revela o Salmo (137-1): “Às margens dos rios da Babilônia, lá sentávamos e chorávamos ao nos lembrarmos de Sion”.
Na sucessão dos eventos históricos e nos pêndulos que alteram o poder, a ascensão do Império Persa sob o comando de Ciro (reinado de 559 a 529 a.e.c.) deu aos exilados a oportunidade do retorno a Jerusalém e de restabelecer o Templo que havia sido destruído. Esse retorno foi conflituoso, pois os que retornavam reivindicavam o poder de restaurar o Templo e, portanto, de controlá-lo. Em acréscimo, alegavam que eles, em seu exílio, preservaram a denominada pureza do povo, enquanto os que permaneceram em Judá se misturaram através A narrativa de Ruth valoriza o judaísmo não de forma automática, e sim como permanente escolha. Ensina que o judaísmo é um ato de constante decisão.

de casamentos inter-religiosos.
Os que retornavam tinham como objetivo criar comunidades que assegurariam uma estrutura social baseada na centralidade do culto e com restritivas determinações religiosas. Esta concepção de vida judaica insular, alheia ao convívio externo e regrada pelos ditames do culto, é fundamentada no livro bíblico Ezrá. Esta proposição intenciona garantir o caráter judaico. No entanto, por trás havia o interesse estratégico do Império Persa. A autorização do retorno da população judaica intencionava fortalecer a província da Judéia como zona de segurança face à insurgência no Egito. Mas a fim de assegurar que esta população judaica não tivesse reivindicações políticas, é de se supor que a centralidade absoluta do culto ambicionasse subliminar potenciais sentimentos nacionalistas.
O encontro com o outro
O texto bíblico não é uniforme. Traz distintas vozes. Mesmo o enunciador sendo único – Deus –, as vozes de Seu enunciado são múltiplas. Como igualmente são múltiplas as escutas humanas. O estudo da Bíblia impede que alguém se considere detentor absoluto da mensagem religiosa.
A palavra divina – tal como expressa no texto bíblico – não é uniforme. A Bíblia, pontua o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém Israel Knohl, “contém uma variedade de concepções, uma variedade de costumes e uma variedade de leis”.
Neste sentido, a narrativa bíblica de Ruth se distingue da de Ezrá na compreensão do vínculo com o outro. Ruth era originária de Moab, um povo não judeu. Ela junta seu destino ao povo judeu ao afirmar: “Teu povo será meu povo e teu Deus será meu Deus” (Ruth 1:16). Ruth opta por abraçar o judaísmo, sendo aceita pela comunidade estabelecida como membro plena. Enquanto a concepção teológica preconizada pelo livro de Ezrá caracteriza o judaísmo através de sua linhagem ancestral (e como tal previamente determinada), o entendimento religioso propiciado pela história de Ruth reconhece a possibilidade de se optar por um caminho antes não traçado que conduza ao judaísmo.
A narrativa de Ruth valoriza o judaísmo não de forma automática, e sim como permanente escolha. Ensina que o judaísmo é um ato de constante decisão. É possível concluir: Se para os que optam pelo judaísmo há um ato de escolha, também para os que são judeus em função de sua ancestralidade naturalmente dada deve haver a escolha por esta condição. Neste caso, optar significa transformar uma alegada condição inata em prática permanente. A abertura proposta pela concepção de Ruth nos provoca. Através do outro, do estranho, sugere Herman Cohen (18421918), descobrimos a ideia do judaísmo. A ideia de que não basta residirmos no conforto de um status isento de atitude, como se pudéssemos clamar uma condição – a de judeus – independentemente de atos judaicos. Ato judaico é o reconhecimento da responsabilidade para com o outro. Neste sentido, o livro de Ruth enfatiza a conduta benevolente. Enquanto a observância dos procedimentos legais previstos preocupase com a preservação dos hábitos internos e foca na autopreservação, a benevolência sustenta-se na transcendência de perceber e ajudar o outro.
O exílio da responsabilidade
Reconhecendo a relevância dos sentimentos que a ancestralidade evoca na formação da identidade ou na sua procura, o judaísmo liberal abraça os conceitos que emergem da narrativa de Ruth ao compreender que a virtude judaica não é inata e que a postura comunitária deve ser inclusiva. Isto é condizente com a busca de uma resposta à contemporânea realidade demográfica das comunidades judaicas inseridas na sociedade maior.
No entanto, é crucial que a resolução por uma concepção não seja somente consequência de uma necessidade sociológica adaptativa e, sobretudo, decorra dos valores compartilhados e princípios sedimentados através do estudo e da prática almejada. Se for somente uma resposta a uma circunstância, quando outra necessidade surgir poderá se abandonar o princípio e os valores. Ainda que o pragmatismo seja importante nas decisões, os valores não devem emergir ou submergir ao sabor das circunstâncias, pois neste caso deixariam de ser decisões responsáveis. Decisões que têm impacto: opção pelo judaísmo requer o compartilhar de um destino comum.
No vasto leque de interpretações que a pluralidade judaica proporciona, há outra leitura de Ruth que isenta a tomada de decisão, num raciocínio paralelo ao pensamento de Ezrá. Diz esta interpretação que Ruth adotou o judaísmo em função da manifestação de uma centelha já existente em sua alma que a conectava com gerações passadas judaicas. De outro lado, a cunhada de Ruth, Orpa, não seguiu essa opção, pois nela não havia estas centelhas sendo a ela – Orpa – atribuída a origem de Golias, que viria a lutar com David, descendente de Ruth.
O encontro com a decisão
A exposição às distintas concepções convida-nos a estudar ambas, neste caso Ezrá e Ruth, mas, em outros casos, tantas quanto houver para, então, por intermédio do conhecimento adquirido, decidir com autonomia e abalizar uma prática. O judaísmo liberal incentiva a capacidade do indivíduo de exercer sua autonomia enfatizando que essa autonomia é condicionada à tomada de decisões responsáveis. Decisão responsável requer o conhecimento. Neste sentido, o rabino Jakob Petuchowski (1925-1991) afirma que somente se pode falar em judaísmo reformista se houver conhecimento. A bem da verdade, isto vale para o judaísmo como um todo. Diante do ensinamento do sábio Hilel (liderança de 30 a.e.c. a 10 e.c.), que caracteriza o judaísmo como a atitude de não fazer ao outro o que não queremos que façam conosco sendo o resto comentário, Martin Buber (1878-1965) alerta que esquecemos a continuação das palavras de Hilel: “Vá e estude”.
Do exílio ao encontro

O texto bíblico não é uniforme. Traz distintas vozes. Mesmo o enunciador sendo único – Deus –, as vozes de Seu enunciado são múltiplas. Como igualmente são múltiplas as escutas humanas. O judaísmo que é construído a partir da interpretação do texto bíblico tampouco é monólito. O estudo da Bíblia permite apreciar a riqueza de visões e impede que alguém (indivíduo ou grupo) se considere detentor absoluto da mensagem religiosa.
O estudo enxerga as contradições neste pluralismo, porém, ao invés de buscar anulá-las a uma artificial uniformidade, acena para desbravarmos as possibilidades e reconhecermos a diversidade. O professor Israel Knohl sugere: “Reconhecer e estudar as diferentes vozes da Bíblia, e suas múltiplas ideias que inspiram o desenvolvimento do judaísmo, pode ajudar a trazer uma atmosfera de diversidade e tolerância. Expor e entender o caráter pluralístico da Bíblia permite reconhecer que há lugar para que o ponto de vista do outro seja também um reflexo da verdade divina”.
“Vá e estude.” Ao estudar encontre sua decisão, íntegra e genuína, honesta e sincera consigo para que você não se exile de si próprio. E pratique as palavras comumente lembradas de não fazer ao outro o que não quer que façam consigo. Não envie para o exílio das ideias e das opções a escolha que difere da sua. Claro, isto há de ser recíproco!
Bibliografia e sugestões de leitura
Rogerson, J. e Davies, P., The Old Testament, Prentice-Hall, 1989. Knohl, I., The Divine Symphony: the Bible’s many voices, The Jewish Publication Society, 2003. Seinsaltz, A., Biblical Images, Basic Book, Inc. Publishers, 1984. Schulweiss, H. Artigo: “The Stranger in our Mirror”.
Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro–ARI.
