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Breno Casiuch
seção livros
O povo do livro: uma análise do Complexo de Portnoy, de Philip Roth
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Há muito que nos envaidecemos (e com toda razão!) de sermos reputados como o “povo do livro”. Creio que a explicação para tão honorífico título não deve se reportar tão somente ao fato de que foram outorgados ao povo judeu, dentre outros tantos povos, os mandamentos ou as tábuas da lei, durante o período de peregrinação pelo deserto, após ter conquistado, a ferro-e-fogo, sua liberdade. Essa explicação sempre me pareceu assaz simplória para tão nobre distinção.
Em determinada ocasião, tempos atrás, o escritor argentino Ernesto Sabato, ao discorrer sobre a importância da literatura – especificamente a literatura ficcional –, disse que seu grande préstimo à Humanidade não era servir à evasão ou ao passatempo aos homens. Para o autor, a literatura “representava a forma mais efetiva de se examinar a condição humana”. Confesso
breno casiuch
que tive certa dificuldade em compreender o exato sentido dessa frase, talvez em razão do grande mal do qual padecem os mais jovens, que é a ingenuidade em compreender, nas suas exatas proporções, as complexidades que envolvem todos os fatos da vida humana. Foi apenas tempos depois, ao ler O Complexo de Portnoy, que compreendi o que o autor argentino queria dizer.
Todos os homens – e essa é uma regra que não comporta qualquer tipo de exceções –, dos mais loucos e desvairados aos mais corretos e previsíveis, vivem em um estado permanente de relativo aprisionamento, de relativa clausura. Explico: esse estado é uma consequência natural da vida em sociedade, a qual inibe ou impede que todos os indivíduos deem vazão a todos seus apetites, desejos, sonhos, aspirações, medos, sentimentos e impulsos, muitas vezes impossíveis de serem concretizados ou manifestados. Penso que à arte, de uma maneira geral, cabe suprir esse estado de impotência da Humanidade.
E acredito também que, dentre todos os tipos de artes, sem querer desmerecer a dança, o teatro, o cinema ou a pintura, a literatura é a que melhor vem preenchendo e cumprindo esse papel de confortar esse ininterrupto vazio. Através da literatura, os homens conseguem manifestar plenamente, por meio de palavras, toda sua rebeldia, dizendo tudo aquilo que gostariam de viver com absoluta e total autenticidade. Através das histórias desenvolvidas e dos personagens criados pelos romancistas, torna-se possível criar indivíduos plenos, uma extensão melhorada e mais profunda de nós mesmos, uma vez que, só assim, se torna possível liberar sentimentos que, infelizmente (ou felizmente!), não se pode liberar.
Graças à literatura, a Humanidade desenvolveu o poder de manifestar-se plenamente. Não acredito ser coincidência o fato de que em sociedades onde a ficcção é censurada ou controlada, esses sentimentos humanos, que existem, mas não podem ser manifestados, acabem sendo revelados através de meios mais perigosos, como o fanatismo, religioso, político ou ideológico. Todavia, você deve estar se perguntando: qual o propósito desta digressão sobre a natureza da ficção em uma resenha sobre O Complexo de Portnoy?
Novamente tentarei me explicar: o livro O Complexo de Portnoy, escrito nos idos da década de1960 pelo romancista americano Philip Roth, conta a história de um advogado americano e judeu, que passa algumas horas da sua atribulada vida dentro de um consultório de psicanálise, tratando das suas questões, muitas delas relacionadas a relacionamento familiar e religião. Devo confessar que de todos os livros que li, O Complexo de Portnoy talvez seja o que, para mim, melhor retrata a essência do povo judeu no mundo contemporâneo. O livro se propõe a retratar o judeu comum, em toda sua amplitude, com todas as suas questões, neuroses, imperfeições, defeitos e preocupações. Para mim, Portnoy (o advogado) representa o judeu que, em alguma medida, todos somos, mas que, em outra medida, evitamos transparecer, escondendo-o em algum canto ou embaixo de algum tapete da nossa alma. O livro é o retrato perfeito das imperfeições judaicas e das questões que nos cercam.
Mais do que a história, a essência de um povo é descoberta através dos romances que produz. Ao contrário da história, que deve sempre basear-se em documentos para desvendar as verdades sobre um povo e que ocorreram em determinado tempo, é somente através da ficção que é possível contar (e, por consequência, descobrir) as mentiras e as reais questões de determinado povo, como se pudesse escutar e desvendar, por detrás do batente da porta, as mentes dos indivíduos.
Dito isso, voltemos à questão à qual me referia no primeiro parágrafo sobre o povo judeu ser considerado o “povo do livro”. Prefiro acreditar que esse título se deve ao fato de que, ao longo de sua conturbada existência, ele foi o mais bem sucedido na tarefa de desenvolver a nobre e difícil capacidade de escrever sobre si mesmo (bem como a tolerância de ler e analisar esses escritos), traduzindo em palavras sentimentos que nem sempre são claros e diáfanos, situações familiares por vezes complexas, mas sempre únicas, cheias de yachnes e mischugnes (como diria minha avó), estados de espírito turvos, bem como objetos, emoções, caráteres, personalidades, filosofias e ideologias absolutamente complicadas de serem descritas. A habilidade do povo judeu de escrever sobre si próprio com tamanha profundidade, humor, sensibilidade, afeto e doses homeopáticas de loucura, mas, ao mesmo tempo, com tanta autocrítica, é uma característica que raramente vi ou verei acontecer. Com esta habilidade, o povo judeu tornou-se e torna-se cada vez mais capacitado a melhor se autocompreender e, ao fazê-lo, desenvolve automaticamente a qualidade de compreender os outros (judeus ou não!), pois, ao ler os tipos de romances que Roth produz, aprendemos mais sobre a nossa vida e de todos os outros, ao preencher, de certa forma, o vazio que todo indivíduo carrega consigo.
Assim, se você ainda não (re)leu O Complexo de Portnoy, (re)leia. Entendo que o livro não é novo, ainda que não consiga pensar em retrato mais moderno! Também entendo que, em determinados momentos, o livro pode parecer perturbador (afinal, raras são às vezes em que os seres humanos permanecem tranquilos e sossegados ao confrontarem-se com seus próprios fantasmas). Ainda assim, estou certo que, depois de o terem lido, a mentalidade e algumas das mais interessantes características do povo judeu serão compreendidas ou, pelo menos, descobertas.