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Avraham Milgram
os “judeus do vaticano”: postscriptum
avraham milgram
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Em 1985 comecei a pesquisar o capítulo histórico sobre o Brasil e os refugiados judeus durante o nazismo para a minha tese de mestrado na Universidade Hebraica de Jerusalém. Este aspecto da história do Brasil e dos judeus em particular era desconhecido na historiografia e, de fato, não existia à época nenhum estudo a respeito. Havia encontrado algumas passagens que remetiam ao tema na biografia que Alberto Dines publicara sobre Stefan Zweig – Morte no Paraíso – em 1981, e estas suscitaram meu interesse pelo Brasil e a questão judaica.
E mais, neste livro encontrei as primeiras pistas de um grande tema e compreendi que deveria acessar os arquivos do Itamaraty para elucidar este assunto. Passei horas e horas lendo quantidades enormes de dossiês e relatórios escritos pelos agentes do Itamaraty nas diversas legações e consulados brasileiros na Europa e a correspondência com a Secretaria-Geral do Ministério das Relações Exteriores. Foi assim que me familiarizei com a tentativa de salvação de “católicos não arianos” da Alemanha e outros países ao Brasil por intermédio do Vaticano, assunto que eu desconhecia por completo.
Na conceituação nazista, “católicos não arianos” eram indivíduos que professavam a religião católica que as leis raciais do III Reich excluíram da “raça ariana”. Por esta lógica, eles eram cristãos de religião e judeus de raça. A conversão não só não os protegeu das perseguições raciais como eles se encontraram numa situação depreciável, desprotegidos e discriminados. Pelas leis do Estado nazista eles eram judeus, aos olhos dos judeus eles eram cristãos e a igreja católica alemã não tinha estrutura religiosa e política para evitar a violação racial, inaceitável do ponto de vista dos princípios universais da igreja. Na conceituação nazista, “católicos não arianos” eram indivíduos que professavam a religião católica que as leis raciais do III Reich excluíram da “raça ariana”. Por esta lógica, eles eram cristãos de religião e judeus de raça.
Página 11 da lista da cota especial do Vaticano. Números 484-488, nomes da família Gottlieb. Salomé Gottlieb de solteira, depois Lonca Lucki. Na mesma página, aparecem os nomes de Margarete Josepha Sohr e Rosa Sohr, impedidas de descer do navio pelas autoridades brasileiras. Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty Página 13 da lista da cota especial do Vaticano. Números 569-570, casal Karpsen (o correto é Karpfen). Depois Otto Maria Carpeaux, destacadíssimo crítico de literatura no Brasil. Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty
O fatídico pogrom da Kristallnacht (“Noite dos Cristais”) de 9 a 10 de novembro de 1938 foi o auge da política antissemita alemã contra os judeus desde a ascensão de Hitler ao poder em 1933. A partir daí não restavam mais dúvidas: mesmo os judeus que até então se iludiram com respeito às intenções nazistas perceberam que era preciso abandonar a Alemanha, e a qualquer preço. Os convertidos “católicos não arianos” também se viram na iminência de abandoná-la. Porém, no seu caso, a salvação viria das instituições e lideranças católicas na Alemanha e da intervenção do Papa.
Em 31 de março de 1939, dois líderes de grande destaque do catolicismo alemão, Faulhaber, arcebispo de Munique, e Berning, bispo de Osnabruck, apelaram ao recém-eleito Papa Pio XII para obter do presidente Vargas uma concessão especial de 3.000 vistos brasileiros para “católicos não arianos” que estavam sendo perseguidos na Alemanha. No Brasil, o órgão responsável pela política imigratória era o recém-criado Conselho de Imigração e Colonização que relutava em recebê-los.
Contudo, Getúlio Vargas e o ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, decidiram não contrariar a vontade do Papa e, paralelamente, amainar os pedidos incessantes do Comitê Intergovernamental para Refugiados1 , que desde sua criação insistia para o Brasil aceitar refugiados [judeus]. Foi a maneira que Vargas e Aranha encontraram para conciliar opostos. Ficar bem com a en-

tidade internacional apoiada pelas grandes potências – EUA e Grã-Bretanha – e, ao mesmo tempo, “contornar” a política imigratória brasileira de restrição à entrada de judeus, o que paradoxalmente era da incumbência de ambos. Aceitar “católicos não arianos” era o menor dos males. Para efeitos internos tratava-se de conceder asilo a “católicos”, e não a judeus e, para efeitos externos (do Comitê Intergovernamental), tratava-se de prestar ajuda a refugiados de origem judaica, apesar de católicos.
Contudo, não tardou muito até o regime de Vargas expor as primeiras dificuldades de uma longa série, visando dificultar e, no final, frustrar a concessão dos vistos especiais ao Vaticano. Primeiro exigiram dos batizados que viessem providos com uma quantia de dinheiro que eles não possuíam, visto que as medidas de ‘arianização’, diga-se, confisco das propriedades e contas bancárias dos judeus, levaram-nos à falência. Mais tarde, opuseram-se a aceitar famílias mistas em que um dos cônjuges era judeu. Quando aportaram os primeiros imigrantes da cota especial de 3.000 vistos do Vaticano no Brasil, logo surgiu a suspeita da ilegitimidade dos certificados de batismo dos beneficiários, condição sine qua non para receber o visto brasileiro, e assim por diante.
Do total dos 3.000 vistos, dois terços, ou seja, 2.000 deveriam ser concedidos pela embaixada brasileira em Berlim, posteriormente transferidos ao Consulado Geral em Hamburgo, e 1.000 vistos seriam autorizados e concedidos pela embaixada brasileira junto à Santa Sé. A documentação demonstra que apenas 959 vistos foram concedidos do total da cota especial. Trata-se dos vistos que estavam em poder do embaixador Hildebrando Accioly em Roma.
O embaixador em Berlim, Ciro de Freitas Vale, era um antissemita convicto e se opôs categoricamente a conceder vistos, seja para judeus ou para católicos de origem judaica. Chama a atenção que o embaixador, ao se negar a conceder vistos aos “católicos não arianos” perseguidos na Alemanha, violou de forma concludente as resoluções do Itamaraty e do presidente Vargas, comprometendo sua promessa e obrigação em relação ao Papa. Por outro lado, considerando a radicalização de leis e decretos adotados
O que ocorreu com os no Brasil para restringir a entrada de ju“católicos não arianos” no Brasil? Optaram pelo deus, inclusive de “católicos não arianos” que chegaram em 1941 com vistos expirados, não surpreende que o embaixador catolicismo? Ou quiçá, Ciro de Freitas Vale jamais tenha sido removidos por suspeitas preendido por desobediência. e medo, resquícios Dos 959 judeus batizados que obtivedas perseguições ram vistos na embaixada em Roma sabemos ao certo que apenas uma parcela deantissemitas do Velho les conseguiu abandonar a Europa e sal-
Mundo, acabaram por var suas vidas. Outros, com vistos expirase transformar numa dos devido às dificuldades de transporte, versão moderna do falta de vistos para atravessar países, enmarranismo? tre outros, foram impedidos de aportar no Brasil e obrigados a retornar à Europa. Por exemplo, as Sras. Margarete Josepha Sohr e Rosa Sohr (na lista, nos 476 e 477, respectivamente) chegaram em 27 de novembro de 1941 e o Ministério de Justiça e Negócios Interiores impediu-lhes o desembarque. O mesmo ocorreu com o menino Raphael Jonas (no 505), que foi impedido de desembarcar em 1942.2 Nas notas da Secretaria de Estado do Vaticano encontramos um caso “kafkiano” de uma senhora que, “tendo partido com visto brasileiro regular, obtido através da Santa Sé, há três meses se encontra no navio e já duas vezes completou a viagem Lisboa-Rio de Janeiro, sem conseguir desembarcar nem no Brasil nem em Portugal”.3 Depois de pesquisar e reunir grande quantidade de documentos sobre este affair, fiquei curioso para saber quem eram os “católicos não arianos” denominados no livro que publiquei em 1994, Os Judeus do Vaticano. Queria saber o que ocorrera com eles no Brasil. Teriam retornado ao judaísmo? Optaram pelo catolicismo? Ou quiçá, movidos por suspeitas e medo, resquícios das perseguições antissemitas do Velho Mundo, acabaram por se transformar numa versão moderna do marranismo? Desde então, reuni algumas informações que me permitem concluir que parte daqueles que figuram na lista dos “Judeus do Vaticano” se tornaram católicos convictos, como, por exemplo, o famoso crítico literário Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, no 569 da lista dos “Judeus do Vaticano”; lá aparece por engano Karpsen, e sua esposa Helene [Karpsen] no 570), enquanto outros jamais deixaram de ser judeus. No entanto, eles se sujeitaram às formalidades do batismo, ou à adoção temporária da identidade católica para salvar suas vidas, con-

Visto no passaporte de Otto Karpfen (Otto Maria Carpeaux), autorizando-o a entrar no Brasil pela cota de 3.000 “israelitas católicos”. Antuérpia 25.7.1939. Cópia gentilmente cedida pelo historiador Fábio Koifman. Fonte: Acervo Casa Stefan Zweig, Petrópolis.
forme lembrou o Rabino Fritz Pinkuss, que os acolheu em São Paulo no início dos anos 1940:
“Dentro deste contexto, gostaria de mencionar o cardeal Schuster, de Milão, e seus assistentes. Sem nada perguntar, deram documentos de batismo a qualquer judeu que estivesse em perigo e os procurasse. Eles emitiram dezenas de documentos e eu tive a oportunidade de os ver e recolher. Como no Brasil se vivia no então chamado Estado-Novo e os direitos civis eram restritos, tomei a liberdade de destruir os documentos depois que a vasta maioria desses imigrantes retornou ao judaísmo e se integrou na vida judaica”.4
São raros os depoimentos de “Judeus do Vaticano”. Em geral perdura o silêncio. Eles se abstiveram de falar, escrever e transmitir suas histórias. A maioria absoluta levou suas memórias para o túmulo. Exceção à regra são duas entrevistas que Liana Gottlieb5 realizou com seu pai, Markus Gottlieb (no 485 da lista), e com sua tia Lonca Lucki (Salomé Gottlieb de solteira, no 486) em 19996. Ambos assumiram o judaísmo. Outro depoimento pertence a Rolf Udo Zelmanowicz (no 599). Seu pai se converteu ao catolicismo na Alemanha, em 1931, e a família manteve a fé cristã no Brasil. Estes depoimentos refletem, em parte, aspectos obscuros de suas trajetórias anteriores e posteriores à emigração.
Esta dualidade aparece nos depoimentos prestados por Salomé (Gottlieb) Lucki à sua sobrinha Liana Gottlieb em 18 de abril de 1999 e nas memórias de Rolf Udo Zelmanowicz, publicadas recentemente7:
“(...) O ‘sonho do passaporte’ se instalou na cabeça de mamãe, logo que papai foi levado para o campo.8 Ela sabia que tínhamos que fugir para outro país, de preferência do outro lado do Oceano. Mas, era quase impossível conseguir vistos de entrada em qualquer país. Mamãe era tão ‘viradora’ que descobriu que alguns judeus estavam conseguindo os vistos através do Vaticano. Depois de muitas tentativas e devido à sua teimosia e determinação, ela conseguiu comprar certidões falsas de judeus convertidos a católicos, e teve início a sua odisseia no Vaticano. Ela esteve inúmeras vezes no Vaticano com o Monsenhor X (não quero identificá-lo). Logo na primeira vez ela entregou as certidões, que ele, mesmo sabendo serem falsas, aceitou, acompanhadas, é claro, de uma maleta repleta de dinheiro. Por outro lado, nessas inúmeras visitas os bispos foram se encantando com mamãe. Muitos deles eram poloneses e mamãe tinha sido criada numa aldeia polonesa, falava polonês perfeitamente e conhecia as orações católicas. Ela também se ajoelhava (o que é terminantemente proibido a qualquer judeu) e beijava o anel do Monsenhor e dos bispos, o que mexia ainda mais com eles. Sem dúvida, esse comportamento todo da minha mãe contribuiu, e muito, para que conseguíssemos os vistos de saída para o Brasil e, além disso, o mais difícil, que o próprio Monsenhor X fosse se encontrar conosco em Lisboa levando o pouco que
restara do nosso dinheiro, mas fundamental para que começássemos a vida no Brasil, que era o nosso destino. Eu estive algumas vezes com mamãe no Vaticano, e ficava deslumbrada com a suntuosidade das escadarias e dos salões. Depois de conseguidos os vistos, começavam os novos problemas. Primeiramente, meu pai e meu irmão tinham que ser libertados dos campos, o que demorou uns meses. Minha mãe me incumbiu de viajar para Torino, onde conseguiria os vistos [de trânsito para seu pai e irmão poderem chegar a Lisboa – A.M.].
“(...) Meu pai e meu irmão foram liberados. Mamãe tinha que ir até Roma pegar os documentos, e eu fui acompanhar meu pai e meu irmão Markus a Torino, de onde eles pegariam o trem que partiria para a Espanha e depois para Portugal. (...) Partimos para Roma. Tínhamos que ficar lá até receber o telegrama avisando que papai e Markus tinham chegado em Lisboa. Mamãe estava tão agoniada que jejuou até receber a notícia da chegada deles. Despachamos a nossa bagagem antes, e no dia da partida de avião mamãe preparou uns sanduíches e embarcamos para Lisboa. O voo era ‘pinga-pinga’ e demoramos muito tempo para chegar. Quando finalmente chegamos, mais problemas nos esperavam. Sabíamos que meu pai e Markus estavam lá no aeroporto nos esperando, mas não podíamos vê-los, pois ficamos retidos. (...) Meus pais alugaram um sobrado por umas três semanas, quando chegaria o navio que nos levaria para o Brasil. Essas três semanas que passamos em Lisboa foram um sonho, uma delícia. Não tinha black out e os portugueses eram muito simpáticos e nos acolheram muito bem. (...) Descemos em Santos, viajamos para São Paulo, ficamos alguns dias em um hotel e depois partimos para Varginha. (...)”
Uma perspectiva diferente, na qual apenas o pai da família era judeu convertido ao catolicismo, aparece nas memórias de Rolf Udo Zelmanowicz9, o filho menor da família Zelmanowicz, que chegou ao Brasil em 12 de dezembro de 1939.
O avô de Rolf, Arie Meier Zelmanowicz, judeu de origem polonesa, era representante comercial de famosas marcas de tecidos ingleses na Alemanha pós-guerra. Lá ele conheceu a jovem Maria Veronika Schleipen, doze anos mais moça do que ele e, ao casar com ela, em 1927, foi batizado como católico e mudou seu nome para Markus. Os meninos foram batizados e educados como católicos, religião da mãe. O sinistro antissemitismo nazista impele a fuga de Markus para a Bélgica em abril de 1939. Através de amigos, ele passa a viver com a família Flaam que o acolhe e, pouco tempo depois, sua esposa e filhos. Foram os Flaam que, gozando de grande simpatia junto à Igreja católica local, apresentaram Markus, a mulher e os filhos ao Núncio Apostólico em Bruxelas.
O consulado-geral do Brasil em Antuérpia, a pedido do Núncio Apostólico de Bruxelas, Clemente Micara, concedeu vistos da cota do Vaticano que permitiram aos Zelmanowicz emigrar ao Brasil. Chegando ao Rio de Janeiro e aconselhados por outros estrangeiros, resolveram ir para o Sul do País, onde moravam alemães e italianos, e o calor não era tão intenso. A condição de judeu de Markus (Arie Meier), batizado católico, foi fundamental para que ele entrasse na lista do Papa Pio XII e, embora tenha dado liberdade religiosa para seus filhos, ele sempre teve um comportamento de acordo com a religião judaica. Seus filhos, reconhecendo isso, enterraram-no no Cemitério Israelita de Rio Grande.
A história dos Judeus do Vaticano, como se percebe, não está concluída.
Notas
1. Comitê Internacional estabelecido pela Conferência de Evian de julho de 1938 para solucionar o problema dos refugiados políticos da Alemanha, diga-se, judeus. 2. Estas informações me foram prestadas pelo historiador carioca Fábio Koifman, que conhece a fundo os arquivos do Itamaraty, do Ministério de Justiça e Negócios Interiores e outros. Deixo aqui meu agradecimento. 3. Notas da Secretaria de Estado do Vaticano, 10.1.1942. Actes et Documents du Saint
Siège. (Ed. par Pierre Blet, Robert A. Graham, Angelo Martini, Burkhart Schneider) Libreria Editrice Vaticana, vol. VIII, 1974, pp. 409-410. Mais informações sobre o final do projeto no meu livro Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1994, pp. 147-151. 4. Fritz Pinkuss, Estudar, ensinar, ajudar – seis décadas de um rabino em dois continentes. São Paulo, Livraria Cultura Editora, 1989, p. 65. 5. Pedagoga, psicodramaticista, professora na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, co-autora dos livros Diálogos sobre educação... e se Platão voltasse? e O professor universitário: herói ou vilão?, autora do livro Mafalda vai à escola. 6. Liana Gottlieb, “A Lista de Pio XII”, inédito. 7. Marianne Zelmanowicz, A lista do Papa Pio XII. Porto Alegre 2011. 8. O pai de Salomé, Avraham, e o irmão dela, Markus Gottlieb, estiveram presos no campo de concentração italiano de Ferramonti de Tarsia. 9. Rolf exerceu a Medicina durante 17 anos, como Gastroenterologista e Professor
Assistente da Faculdade de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e da Faculdade Católica de Medicina. Em 1964, fundou, juntamente com outros profissionais, uma entidade de Previdência Privada (seguradora), a Aplub, da qual foi dirigente durante 20 anos. Atualmente, trabalha no site ABC da Saúde.
Avraham Milgram é historiador no Instituto Internacional para a Pesquisa do Holocausto no Yad Vashem e ex-sheliach da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro.
