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Guershon Kwasniewski

teFilat HaderecH, uma reza com muito caminHo

Quando tiramos do nosso bolso uma pequena reza antes de empreender uma viagem e pronunciamos a Tefilat Haderech – a “reza do caminho” –, estamos também fazendo uma viagem no tempo. Essas poucas linhas que pronunciamos estão carregadas de história, de um significado profundo e de um pedido sincero de proteção a Deus para garantir que consigamos atingir o nosso destino final.

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A proposta deste artigo é estudar a origem desta reza, o seu conteúdo e as suas derivações, conforme diferentes fontes literárias judaicas.

Antes de entrar na abordagem da temática, apresento para o leitor o texto que constitui esta reza, na sua língua original, o hebraico, com tradução para o português (Figura 1).

A origem desta reza é encontrada no Talmud da Babilônia, na ordem de Zeraim, tratado de Brachot/Benções- 29-B.

É válido lembrar que o Talmud foi compilado pelo século V da era comum na Babilônia, e os rabinos que aparecem no parágrafo a seguir viveram entre os séculos III e IV (Figura 2).

guershon Kwasniewski

É impressionante como este texto talmúdico é tão contemporâneo em seu conteúdo. Vivemos num mundo com altos índices de violência, sabemos que quando traspassamos o limite das nossas moradias estamos expostos a bandidos; hoje ouvimos as campanhas do governo “se beber não dirija”. Imaginemos então, um cavaleiro, tentando chegar de uma cidade a outra, sem estradas e ainda com o efeito da bebida. Não considero casualidade que a temática da bebida esteja relacionada com o tema viagem. Os nossos sábios se anteciparam aos tempos. Estado emocional alterado mais bebida não garantirão uma boa viagem e portanto acabaremos pecando – acidentes, lesões, morte.

No livro Kitzur Shulchan Aruch, capítulo 68, encontramos os detalhes a serem considerados para pronunciar esta reza:

Quando alguém sai da cidade e ultrapassa 35 metros dos limites da última casa deve pronunciar a brachá. Se esta distância for menor, a reza não deve ser pronunciada, a não ser que exista verdadeiro perigo, mas então não se pronuncia o Baruch Atá Adonai do final.

Esta benção está escrita no plural, mesmo que a obrigação seja que cada indivíduo a pronuncie.

1. Que seja da Tua vontade, Eterno, nosso Deus e Deus de nossos ancestrais, conduzir-nos em paz, dirigir nossos passos em paz, guiar-nos em paz, fazer-nos chegar ao nosso destino em vida, com alegria e em paz. Livra-nos das mãos de todo tipo de inimigo pelo caminho e de todas as formas de calamidades que venham assolar o mundo. Envia uma bênção sobre as obras de nossas mãos, e faze com que achemos graça, misericórdia e piedade aos Teus olhos e aos olhos de todos os que nos veem. Ouve a voz de nossas súplicas, pois Tu és Deus, que ouves a oração e a súplica. Louvado sejas Tu, Eterno, que ouves a oração.

Deve ser dita em pé e de preferência quando se está fixo num local antes de partir. Mas se partiu e a pessoa está em movimento pode ser dita no início da viagem.

Existe uma divergência de opiniões sobre quantas vezes deve ser dita, uma vez que a pessoa está de viagem. Alguns rabinos argumentaram que a brachá deve ser dita uma vez antes de toda a viagem, e outros rabinos sustentam que deve ser dita a cada manhã quando se está de viagem.

Antes de sair de viagem é costume dar Tzedaká – geralmente um donativo em dinheiro –, conforme está escrito no livro de Salmos 85:14: “A Justiça irá adiante dele, quando encaminha os seus passos para o caminho”.

É costume também se despedir de pessoas importantes da cidade para que estas lhe abençoem com uma boa viagem.

Quando se acompanha um amigo para lhe cumprimentar antes da viagem, deve a pessoa ficar em pé até que quem viaja suma da nossa visão.

Quem abençoa a quem viaja deve dizer Lech LeShalom e não Lech beShalom (vá para a paz e não vá em paz). Isto se deduz dos seguintes versículos: “David falou a seu filho Avshalom: Vá em paz; e este acabou enforcado” (Shmuel II 15:9). Yitró falou a seu genro Moshé: “Vá para a paz e ele teve sucesso” (Shemot14:18).

Durante a viagem devemos ocupar o nosso tempo com o estudo da Torá, mas não em forma minuciosa para não confundir o caminho, conforme rezamos no Shemá: “Tu as ensinarás aos teus filhos, falando delas... quando estiveres caminhando” (Devarim 6:7).

Mesmo se o destino da viagem for próximo deve-se levar pão e um tzitzit extra, caso estrague para que ninguém se veja impedido de cumprir a mitzvá.

Quando alguém chegar pela tarde num destino onde passará a noite deve desmontar antes do por do sol, aguardar o próximo dia até enxergar o sol no horizonte e só depois partir. Isto vai lhe beneficiar e lhe fará bem. A justificativa para esta ação está em: “E viu Deus que a luz era boa” (Bereshit 1:4).

Não se deve comer muito durante a viagem.

Quando se para numa pousada deve-se verificar a idoneidade dos donos. Quem faz uma refeição deve pesquisar quem é o shochet (matador ritual) e o rabino que supervisiona os alimentos, assim também como o vinho.

Quando se rezam as tefilot de shacharit – da manhã – se a pessoa não puder estar num local fixo e deve continuar a viagem, deve tentar ficar em pé durante a Amidá – Grande Oração – e se estiver numa carruagem e não puder ficar em pé deverá mesmo sentado inclinar o corpo fazendo as reverências como se estivessem em pé.

Está proibido na sexta-feira viajar mais de 11,5 km, seja para voltar à própria casa ou para outro destino devido aos preparativos necessários com as comidas do Shabat. Numerosas profanações do shabat acontecem por chegar tarde.

Se o viajante tiver que passar o shabat fora da sua cidade e estiver hospedado num hotel não poderá sair com o seu dinheiro a não ser costurado na sua roupa. Não poderá levar o mesmo no bolso porque será considerado muktze – carregar um objeto de um domínio a outro é uma proibição sabática.

Cabe lembrar que estas cláusulas do Kitzur Shulchan Aruch, livro escrito pelo rabino Shlomo Ganzfried em 1863, são completamente contemporâneas, e têm intenção de proteger, advertir, preparar e orientar o judeu antes da sua viagem.

Em tempos modernos, costumamos revisar o carro, carregamos o GPS com os mapas das cidades que visitaremos, reservamos os nossos hotéis on-line, procuramos uma sinagoga próxima à nossa hospedagem, restaurantes

2. Ensinaram os rabinos: quem transita por um local cheio de animais e bandos de ladrões, reza uma breve oração. – Que breve oração? – falou rabi Eliezer: Faz tua vontade acima no céu e concede serenidade aqui em baixo àqueles que te temem e fazem o que é bom aos teus olhos. Abençoado sejas Senhor, que escutas os pedidos. – Disse Rabi Iehoshua: Atende os pedidos de teu povo Israel e satisfaz rapidamente os seus desejos. Abençoado sejas Senhor, que escutas as orações. – Disse o rabi Eleazar filho do rabi Tzadoc: Escuta o clamor de teu povo Israel e satisfaz logo o seu pedido. Bendito sejas Senhor, que escutas as orações. Segundo outros: As necessidades de teu povo Israel são muitas e seu saber é pequeno. Seja a tua vontade, Senhor nosso Deus, dar a cada um sustento suficiente e a cada corpo o que lhe falta. Bendito seja, Senhor, que escutas as orações. – Disse Rabi Huna: A jurisprudência concorda com os outros. Disse Elias ao Rabi Iehudá, irmão do Rabi Sala o piedoso: Não enfureças e não pecarás; não bebas e não pecarás; e quando sair de viagem, consulta o teu Fazedor e olha. – O que significa “consulta o teu Fazedor e olha?” – Disse Rabi Jacob em nome do rabi Chisda: Quem sai de viagem deve dizer a oração do viajante. – Qual é a reza do caminho? – Seja tua vontade, Senhor meu Deus, conduzir-me em paz, guiar os meus passos em paz, manter-me em paz, livrar-me dos inimigos e dos perigos do caminho, abençoar a obra das minhas mãos, e fazer-me encontrar graça, bondade e compaixão em teus olhos e nos olhos de todos o que me vejam. Bendito sejas, Senhor, que escutas os pedidos.

kasher, levamos alguma comida e bebida para a viagem, procuramos fazer paradas em locais seguros e limpos, programamos no celular os telefones mais importantes para contatar. Preocupações que não são bem distantes nem diferentes da época do Talmud.

Mesmo quem viaja de avião, navio ou trem, assim também com o carro mais moderno com o maior número de airbags, não está isento de ter algum contratempo ou problema na viagem, por isso a tefilat haderech é tão atual e vigente.

Em nossos dias, as sinagogas e os movimentos religiosos costumam distribuir esta tefilá entre os seus congregantes para que seja carregada e pronunciada quando surja a oportunidade.

Deixo como registro o dado curioso e único que esta tefilá na sua íntegra pode ser encontrada no Espaço Inter-Religioso do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, por iniciativa da sinagoga Sibra.

Em contrapartida, uma vez que se chega a um destino, depois de ter atravessado um oceano, um deserto, após uma viagem aérea ou ter se salvo de um acidente ou situação de perigo, costuma-se dizer Birkat Hagomél.

Uma benção pela qual agradecemos a Deus por ter nos recompensado mais do que merecíamos.

Boa viagem, lechule Shalom!

O professor Guershon Kwasniewski é líder religioso da SIBRA – Sociedade Israelita de Cultura e Beneficência de Porto Alegre –, membro de Grupo de Diálogo Inter-religioso e aluno de rabinato do Seminário Rabínico Latinoamericano de Buenos Aires, Argentina.

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