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Bruno Feitler
escravos judaizantes? cristãos-novos, negros, índios e mestiços no brasil colônia
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bruno Feitler
Desde 1497 a prática de qualquer outra religião além do catolicismo foi proibida em Portugal. Os poucos muçulmanos que lá ainda havia foram expulsos e a importante comunidade judaica local convertida à força, praticamente na sua totalidade, à religião dominante. Pouco menos de quarenta anos mais tarde, o rei D. João III obteve do papa a permissão para criar um tribunal da Inquisição no seu reino, nos moldes da que já existia na Espanha.
O Santo Ofício da Inquisição tinha como principal objetivo perseguir os judeus convertidos ao catolicismo e seus descendentes (os chamados cristãos-novos) que continuassem a praticar a religião ancestral. Pouco a pouco sua atuação se estendeu ao império português, e se o Brasil nunca teve um tribunal permanente, muitas foram as pessoas presas na colônia e levadas para o Reino para ser julgadas em Lisboa.
Assim, partiram deste lado do Atlântico pouco mais de mil prisioneiros entre 1546 e 1822, cerca da metade deles para serem processados por judaísmo. Poucos foram os que acabaram na fogueira, como o dramaturgo Antônio José da Silva, “o Judeu”, mas a ação inquisitorial incutiu o medo e dilacerou muitas famílias, desfazendo vínculos sociais e econômicos, deixando assim por muito tempo sua marca nas diferentes sociedades do mundo português.
A história dessas pessoas, e também da instituição que as perseguiu, pode ser reconstituída graças à conservação da documentação (processos, correspondências, ofícios, listagens) inquisitorial, mantida no arquivo nacional portu-
guês, a Torre do Tombo. Documentação que, para a felicidade do historiador e do curioso, está parcialmente disponível on-line no site http://digitarq.dgarq.gov.pt/. Os arquivos são sempre instigantes e a abundância da documentação inquisitorial portuguesa muitas vezes surpreendente. Mesmo se, na maioria das vezes, no dia a dia da pesquisa depara-se com o deserto, não é incomum encontrarmos a resposta a uma velha interrogação, a certeza de uma teoria e algumas vezes casos inusitados que nos colocam outras perguntas.
Origem cristã-velha, indígena e/ou negra
Dentre as mais de duzentas pessoas presas pela Inquisição no Rio de Janeiro por judaísmo durante a primeira metade do século XVIII, encontramos dois casos bastante originais, que nos colocam várias interrogações. Sebastião da Silva e Maria Pequena, ou Mariana, não eram o que imaginamos típicos cristãos-novos, ou seja, os descendentes dos judeus convertidos à força em Portugal em 1497, e principal alvo da Inquisição portuguesa. Sebastião da Silva, preso no Rio de Janeiro em 1715, é dado como ¼ de cristão-novo e “alfaiate, escravo”.1
Evidentemente não é nada raro encontrarmos cristãos-novos julgados por judaísmo. Devido à perpetuação do preconceito, que de religioso tornou-se racial depois da conversão forçada, mesmo duzentos anos depois do batismo em massa, todo cristão-novo era suspeito de ser um péssimo católico. Esse preconceito se mantinha mesmo quando não se tratava de um “cristão-novo inteiro”: um “meio cristão-novo”, alguém com “¼ de cristão-novo”, e até gente com uma vaga “parte de cristão-novo” era suspeita, não importando a origem dos outros um, dois ou três avos.
Assim, não foi incomum, no Rio de Janeiro e no seu recôncavo nos anos 1710, 1720 e 1730, mas também em outras regiões do Brasil, encontrarmos pessoas julgadas por judaísmo que tivessem origem cristã-velha, indígena e/ou negra. A endogamia racial do grupo era assaz relativa. Das 94 mulheres cristãs-novas casadas ou viúvas presas no Rio nos séculos XVII e XVIII (a grande maioria no século XVIII) por judaísmo, 34 casaram-se com cristãos-velhos.2
Uma boa parte dos Na Paraíba, região igualmente de ocucristãos-novos do Rio estava ligada à pação antiga e majoritariamente agrária, das 44 pessoas presas por judaísmo no século XVIII para quem temos informaprodução agrícola, como ções, apenas 20 eram cristãs-novas inteisenhores de engenho, ras, todas as outras tendo alguma porção plantadores de cana, cristã-velha. Dos presos, há apenas uma ou de mandioca e, mestiça, filha de uma negra forra, mas havia, no grupo, muitos outros filhos de recomo membros daquela lações ilegítimas com escravas.3 sociedade típica Pelo que toca a taxa de exogamia, ou descrita por Gilberto seja, de casamentos fora do grupo, da po-
Freyre, não deixaram pulação masculina do Rio de Janeiro, ela de se amancebar e de devia ser bem maior. Uma boa parte dos cristãos-novos do Rio estava ligada à profazer filhos com negras dução agrícola, como senhores de engee mulatas, escravas ou nho, plantadores de cana, ou de mandiolibertas. ca e, como membros daquela sociedade típica descrita por Gilberto Freyre, não deixaram de se amancebar e de fazer filhos com negras e mulatas, escravas ou libertas. Das cerca de 325 pessoas presas por judaísmo no Rio de Janeiro (séculos XVII-XVIII), 48 são dadas como mestiças e três como negras4. Como lembra Alberto Dines, muitos dos membros do clã dos Paredes eram descritos nas listas de autos-da-fé como “pessoas pardas” ou como “mulatos da nação de cristãos-novos”5. O patriarca Rodrigo Mendes de Paredes, para além dos quatro filhos tidos com a esposa legítima, teve pelo menos dez outros com duas negras libertas. Seus filhos e netos também tiveram filhos com índias e negras, às vezes mantendo relações estáveis com elas. Os filhos dessas relações consensuais fatalmente tinham uma condição social inferior à do pai, mas alguns chegaram a ser padres, a se casar com pessoas abastadas, e outros eram filhos de relações legítimas. Segundo Lina Gorenstein, dos cerca de 48 mestiços presos no Rio por judaísmo (entre homens e mulheres, sem contar os que não foram diretamente inquietados pela Inquisição), algo como 25 eram filhos ilegítimos.6
Sebastião da Silva era uma exceção?
Ou seja, não havia nada de incomum – era até habitual na região fluminense – cristãos-novos de origem africana
ou indígena. É, contudo, difícil de saber, no caso de terem recebido uma iniciação judaica, se isto aconteceu enquanto eles ainda estavam na condição de cativos, no caso de não terem já nascido livres. Em todo caso, parece que a totalidade dos mulatos presos como judaizantes pela Inquisição eram livres. Seria Sebastião uma exceção?
Nas três denúncias feitas contra ele – a de seu pai e a de duas parentas, que o denunciaram depois que souberam de sua prisão – ele é apenas identificado como “parte de cristão-novo”, solteiro, filho de João Rodrigues de Andrade e de Micaela parda e residente no Rio7 .
Sebastião deu entrada nas prisões inquisitoriais no dia 29 de outubro de 1715. Uma semana depois ele faz o inventário dos seus bens, identificando-se como tendo “parte de cristão-novo, sem ofício, solteiro, filho bastardo de João Rodrigues de Andrade, mineiro, e de Micaela Pedrosa”, e que tinha dezoito anos de idade. Ele começa por dizer não ter culpas que confessar, e ser o proprietário de dois escravos-de-ganho, ou seja, de escravos que eram “alugados” a outras pessoas, em sociedade com seu irmão, além de possuir dívidas da compra de dois cavalos. No final do depoimento, ele assina (fls. 3 e 13-14). Essas posses e o fato de assinar não condizem, evidentemente, com a condição escrava, que não aparece no depoimento.
Uma semana mais tarde, no dia 13 de novembro, durante a sessão de genealogia, Sebastião muda seu discurso. Ele se diz alfaiate, se ter em conta de cristão-velho, não saber ao certo quem era seu pai, já que sua mãe era “mulher dama”, mas que era tido por filho de um padre cristão-velho já defunto. Para finalizar, se disse escravo de dona Isabel Pedrosa, mulher solteira; sem dúvida a antiga senhora de sua mãe (fls. 15-17).
Nos dois interrogatórios seguintes, as sessões in genere e in specie, quando são evocadas as denúncias, sem menção de nomes, datas ou lugares, ele manteve sua inocência (fls. 19-23v), mas no dia 18 de janeiro de 1716 Sebastião, cedendo certamente à angústia e à pressão psicológica que representava estar preso nos cárceres inquisitoriais, pediu audiência para confessar ter crido e praticado ritos judaicos. Ele volta atrás e diz ser filho do cristão-novo João Rodrigues, que lhe teria introduzido na “crença da lei de Moisés”, dizendo-lhe que devia fazer um jejum, “mas não
Duncan Walker / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 49
lhe lembra a forma”, e mais outras coisas “de que também não é lembrado”. Ele denuncia depois vários outros parentes, sem tocar na questão do seu estatuto legal de livre ou escravo (fls. 24-27). Claramente, o fato de dizer não saber quem era seu pai, reforçando a questão numa suposta condição de escravo, filho de padre, era uma tática de defesa, mas Sebastião, apesar de não ter sido torturado, não aguentou a pressão. Muitos foram os mulatos e mestiços que como ele alegaram não saber quem eram seus pais para tentar assim escapar da pecha de cristão-novo, como o carioca padre Francisco de Paredes ou a paraibana Joana do Rego, mas nunca evocando uma condição escrava.8 Também parece claro que ele sabia exatamente o que dizer aos inquisidores, e que possivelmente nunca tenha aprendido ou praticado ritos judaicos. Para os inquisidores, pelo jeito, tanto fazia, pois tampouco tocaram no assunto do seu estatuto em nenhuma parte do processo, já que para eles o que interessava era a confissão e as denúncias.
Na sentença lida durante o auto-da-fé do dia 16 de fevereiro de 1716, ele é tido como escravo de dona Isabel (fls. 35-36v). Em todo caso, o fato da condição de escravo ser para ele mais cômoda do que a de cristão-novo, isto sim é inusitado!
Maria Pequena, negra liberta e acusada de judaizante

Outro caso inusitado é o de Maria Pequena, ou Mariana, presa também por judaísmo no Rio de Janeiro poucos anos antes que Sebastião. Assim que chegou aos cárceres da Inquisição, em novembro de 1712, ela confessou ter judaizado com várias pessoas, sendo que aprendera tais práticas e crenças havia vinte anos com um certo Antonio da Costa, mercador já então falecido com quem “andava em trato ilícito”.9
Mariana foi reconciliada no auto público da fé de 9 de julho do ano seguinte. O detalhe instigante é que Mariana era uma negra liberta, nascida em Angola por volta de 1670, batizada em Luanda, e que teria, segundo os testemunhos recolhidos contra ela, caído em heresia ainda na condição de escrava, por influência de seus senhores, Diogo Bernal e Maria de Andrade (fls. 7-25). Ela foi alforriada em algum momento entre 1704 e 1711, e continuou, depois de liberta, tendo contatos com vários cristãos-novos judaizantes.
Nenhuma origem cristã-nova! Escrava! No processo, escrito na linguagem asséptica e objetiva da Inquisição portuguesa, ninguém se espanta com a situação, nem os
denunciantes nem os inquisidores. Ou seja, a defesa bolada por Sebastião alguns anos depois não teria surtido efeito mesmo que ele tivesse continuado afirmando ser escravo filho de cristão-velho. Como explicar esta “normalidade”, quando se conhece a atenção que os inquisidores prestavam à origem étnica das pessoas denunciadas por judaísmo?
Apesar do preconceito existente contra os cristãos-novos, houve muitos “casamentos mistos” em Portugal, o que aumentou pouco a pouco a porcentagem de pessoas com apenas alguma parte de cristão-novo presas por judaísmo. No Brasil, o comportamento sexual dos cristãos-novos não diferia daquele do resto da população branca, e o “viver em colônias” fez com que eles tivessem muitos filhos mestiços e convivessem naturalmente com escravos e libertos. Por outro lado, os descendentes dos judeus convertidos à força que ainda praticavam secretamente a religião ancestral nunca parecem ter respeitado uma regra específica quanto ao modo de transmissão do judaísmo, como o fazem claramente os judeus hoje em dia (é judeu quem é filho de mulher judia). É claro que se manteve sempre a ideia de um exclusivismo, sustentado também (mas não só) pelo preconceito vigente. Mas pode-se dizer que, quando havia transmissão do criptojudaísmo, isto se dava mais por uma questão de afinidade, facilitada pela origem étnica compartilhada e pelo convívio familiar. Isso também surge no caso de Mariana de Andrade, filha de Catarina, preta forra, que fora escrava de Simão Rodrigues de Andrade, de pai incerto, confessou seu judaísmo, aos 56 anos de idade, em novembro de 171210 .
Nas denúncias contra ela, ora aparece somente como mulher parda, ora como mulata, parte de cristã-nova, mas sem identificação dos pais.11 Na sua sessão de genealogia Mariana diz ser possivelmente filha do cristão-novo Simão Rodrigues de Andrade, que comprou a sua mãe quando estava grávida dela. Mas este nunca a reconheceu, e chegou a vendê-la a Domingos Rodrigues Ramires, de quem Mariana teve dois filhos. Ela não menciona ter sido alforriada por este, e a questão tampouco é abordada pelos inquisidores. Não há nenhuma menção à sua condição na sentença, onde aparece como “mulher parda... de cuja qualidade de sangue não consta” (fl. 39).
Como já em sua primeira audiência Mariana começou a confessar, e fez confissões satisfatórias aos olhos dos inquisidores, não lhes importava ter certezas sobre a sua qualidade de sangue. Mariana, que pela vida promíscua da mãe, não tinha como saber com certeza se tinha sangue judeu ou não, convivia entre cristãos-novos e meio-cristãos-novos, parentes de Simão Rodrigues de Andrade, senhor de sua mãe (segundo ela, quem primeiro lhe falou das práticas e das crenças criptojudaicas foi um filho dele), e parentes do seu próprio dono, Domingos Rodrigues Ramires, com quem aparentemente teve uma relação durável o suficiente para dele ter dois filhos, e valer-lhe, quem sabe, a alforria. Outras escravas e forras ligadas a famílias cristãs-novas chegaram a ser denunciadas à Inquisição como judaizantes, mas essas denúncias não foram suficientes para que elas fossem presas e julgadas.12
É então esse tipo de convivência que talvez possa explicar como descendentes de africanos e índios, com apenas um avô cristão-novo, pudesse ser suspeito de judaizar, mas também que um cônjuge cristão-velho (como o paraibano Francisco Pereira de Moura13) ou uma escrava africana, fossem iniciados na crença e nas práticas tão especiais e por vezes vagas, observadas pelos judaizantes do Brasil colônia.
Notas
1. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa (IL), processo. 7974. 2. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres. Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII, São Paulo: Humanitas, 2005, p. 263. 3. Bruno Feitler, Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Le Nordeste XVIIe-XVIIIe siècles. Leuven University Press, 2003, tabela III. 4. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres, op. cit., p. 269. 5. Alberto Dines, Vínculos de Fogo. Antônio José da Silva, O Judeu, e outras histórias da
Inquisição em Portugal e no Brasil, São Paulo: Cia. das Letras, 1992, pp. 141, 782 (n. 53) e 783. 6. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres, op. cit., pp. 268271. 7. ANTT, IL, processo 7974, fls. 7-11. 8. Alberto Dines, Vínculos de fogo, op. cit., p. 377 e Bruno Feitler, Inquisition, op. cit, pp. 252-253. 9. ANTT, IL, processo 11786, fl. 29-30. 10. ANTT, IL, processo 11784, fl. 7. 11. Cf. ANTT, IL, processo 1191 (João Rodrigues do Vale), confissão de 15 de abril de 1711 e processo 661 (Isabel de Mesquita), fl. 52v, confissão de 26 de março de 1711. 12. Antônia, preta forra de Esperança de Azevedo, Sebastiana, escrava de Inácio Cardoso, Francisca e Antônia, escravas de Guiomar de Paredes. Alberto Dines, Vínculos de Fogo, op.cit., p. 372, n. 20. 13. ANTT, IL, processo 436. Cf. Bruno Feitler, Inquisition, op. cit., p. 268.
Bruno Feitler é professor de História Moderna da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pesquisador do CNPq e autor, entre outros textos, do livro Nas malhas da consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda/Phoebus, 2007.
