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Paulo Geiger

cHacHamim ou aiatolás? paulo geiger

Só li alguns trechos esparsos do Corão, por isso não posso afirmar com certeza se a interpretação correta dessa obra-guia do islamismo é a dos aiatolás do Irã e das várias Jihads, Hizbolá e Hamas (fundamentalista, radical, intolerante para com a coexistência de outras crenças, inimiga do Estado dos judeus e do povo judeu a ponto de pregar sua destruição e se armar para isso, erigida em poder político para realizar tudo isso), ou, por exemplo, a de Ali Kamel em seu livro Sobre o Islã (humanista, generosa, aberta à convivência). Mas sei como é ameaçador que a primeira interpretação tenha instrumentos de poder, pratique o terrorismo e tenha armas de destruição em massa em seu poder, no caminho para as nucleares, e a segunda seja, por enquanto, apenas um exercício sincero mas inócuo de opinião, com poucos ecos até mesmo no mundo islâmico não radical, se é que ele existe (e esperamos que sim).

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Mutatis mutandi (não me venham acusar de estar comparando, como se fossem análogos), não me aprofundei o bastante nas escrituras judaicas (o Tanach, o Talmud, o Shulchan Aruch e todos os comentários filosófico-religiosos que os interpretam e explicam) para ter a certeza de que é impossível um judaísmo sem o cumprimento literal de todas as mitzvot tais como interpretadas por chachameinu zal até o século 6. Mas, ao contrário dos aiatolás e dos líderes ativos do islamismo radical que conseguem se basear no Corão como fundamento de seu extremismo, sei de nossas escrituras o suficiente para ter a certeza (esta certeza dá para ter) que nossas escrituras e o comportamento que elas prescrevem e suscitam não podem ser interpretados como expressão de uma verdade absoluta que deve prevalecer no mundo, e que para isso todas as outras crenças e pretensões de verdades devem ser subjugadas ou extintas. O judaísmo se baseia na convivência.

O embasamento ético, moral, comportamental expresso no texto básico de nossa herança histórica e religiosa, a Torá, foi interpretado por nossos chachamim em regras práticas de acordo com realidades temporais, mas sua essência é atemporal e universal. É um valor que o judaísmo compartilhou com o mundo, como parte dele que é, e no qual se baseiam outras crenças, outras culturas. A verdade interna do judaísmo não aspira a ser, na forma, a única verdade, a ser imposta a todas as crenças. Ao contrário, para ser um ‘reino de sacerdotes’, um servidor da humanidade na qual se insere, o povo judeu precisa conviver com esse mundo, conviver com outras crenças, outras culturas. É o que tem feito em toda a sua história, é o que seu judaísmo lhe ensina.

Por isso, é doloroso ver como, em Israel, alguns setores do povo judeu se arvoram a serem os únicos intérpretes válidos de uma única ‘verdade’ possível, a ser imposta pela exclusão dos ‘outros’ e da convivência com eles. Mais doloroso ainda é ver essa atitude ter como alvo prioritário seus correligionários, não só nos discursos e nas prédicas (algumas delas verdadeiras incitações à violência), mas em atitudes proativas de intolerância e repúdio. E é trágico ver como representantes desse grupo vão até o Irã prestar homenagem e se identificar (e se fotografar) com quem promete que vai apagar o Estado dos judeus do mapa, por que eles preferem nenhum judaísmo a um judaísmo que não seja exatamente o da interpretação deles.

Eles se parecem muito com os aiatolás que foram cumprimentar, e a mentalidade dos aiatolás parece estar cada vez mais presente no tratamento radical, por esses grupos, da antiga questão israelense dos limites entre seu caráter judaico num Estado democrático, moderno e liberal e uma interpretação radical e fundamentalista do judaísmo. Essa questão diz respeito não só à necessidade legal e moral de que convivam dentro de Israel todas as crenças que ele abriga – e isso inclui, dentro da maioria judaica, diferentes interpretações de como deve ser o judaísmo no Estado judaico no século 21, como menciona a Declaração de Independência –, mas ao próprio caráter do Estado judaico.

Sintomaticamente, e não por acaso, a intolerância (e a aversão à convivência) dos radicais religiosos vai impregnando também a ideologia e a política. Atacar fisicamente opositores, tentar deslegitimar a Corte Suprema quando faz prevalecer a lei, chamar de traidor quem não concorda com suas ideias em relação a uma possível paz com palestinos, tentando criar uma divisão entre ‘patriotas’ (os que aprovam suas ideias) e ‘traidores’ (os que discordam delas), até mesmo algumas iniciativas visando silenciar vozes e controlar a imprensa, nos moldes de Chavez e Correa, são eventos que começam a trazer a intolerância para o plano nacional e político. Ainda são sintomas, mas já exigem atenção e causam preocupação.

Independentemente de qual é ou será o governo, de como a nação e o Estado e a sociedade israelenses vão decidir seu futuro na segurança, na economia, nas prioridades sociais e culturais, seu caráter democrático e liberal precisa ser o fundamento de sua visão conceitual e prática. Isso pressupõe a prevalência, no conceito e na prática, da coexistência das diferenças, da liberdade de expressão, da liberdade de crença e de culto, e no respeito mútuo como catalisador dessa realidade. Foi essa a visão que inspirou os judeus em 2.000 anos de dispersão, tornada realidade pelo projeto sionista. Ela é o denominador comum entre o Estado judeu e o povo judeu. Sem ela, a própria essência do judaísmo e do ideal sionista estará ameaçada.

Felizmente não temos a certeza dos aiatolás, felizmente nosso chachamim nos ensinaram que o judaísmo se constrói questionando e debatendo como preservar nosso legado e ao mesmo tempo nos inserir no mundo. Vamos ser como os chachamim ou como os aiatolás?

Zu_09 / iStockphoto.com

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