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Rabino Stephen Lewis Fuchs
somos realmente um movimento? e, se somos, o que nos une?
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rabino stephen lewis Fuchs
Certa vez, ao final da reunião da comissão de assuntos religiosos de sua sinagoga, dois dos participantes se engajaram em uma acalorada discussão sobre se a congregação deveria ficar de pé ou sentada ao recitar o Shemá. “A nossa tradição foi sempre ficar de pé”, alegava um. “Não”, insistia o outro, “a nossa tradição foi sempre ficarmos sentados”. Ficaram discutindo assim até que um terceiro congregante veio até eles com a seguinte sugestão: “Yosef Leibowitz tem 95 anos, mora em um lar de idosos e ainda está bastante lúcido. Por que vocês não vão a ele para perguntar qual é verdadeiramente a nossa tradição?”
Assim fizeram. O primeiro disse: “Yosef, a nossa tradição não é ficar de pé durante o Shemá?”
“Não tenho 100% de certeza”, respondeu Yosef, “mas, sim, acho que é esta a nossa tradição.”
Então o outro homem disse: “Mas Yosef, a nossa tradição não é ficarmos sentados durante o Shemá?” “Não tenho 100% de certeza”, respondeu o velho sr. Leibowitz, “mas, sim, acho que é esta a nossa tradição.”
Depois disso os dois homens voltaram a discutir com mais ênfase ainda do que antes. Esqueceram completamente do sr. Leibowitz, até que ele os interrompeu para dizer: “Agora eu me lembro bem e tenho 100% de certeza. A nossa tradição é esta discussão... estas diferenças de opinião!”
Todos nós já ouvimos dizer que onde quer que encontremos dois judeus certamente encontraremos três opiniões. Isto parece ser ainda mais verdadeiro no
caso dos judeus progressistas. Portanto, é adequado perguntar: somos realmente um movimento? Diferentes comunidades e diferentes indivíduos têm pontos de vista divergentes quanto ao papel das mulheres, ao casamento gay e lésbico, ao casamento inter-religioso e aos padrões para as conversões. O que realmente nos une?
Refletir sobre esta questão tão importante me remete a uma das minhas passagens favoritas da Torá. Logo depois da revelação dos Dez Mandamentos, em Shemot/Êxodo 20:22, lemos que o Todo Poderoso instruiu Moisés: “E se Me fizeres um altar de pedras, não o farás de pedras polidas (ou torneadas, lavradas) porque [para fazê-lo] a tua espada deverias levantar sobre ele [para polir as pedras] e, ao fazer isto, o profanarias”.
As pedras de diferentes formas e tamanhos no altar sagrado são uma metáfora para as nossas 1.200 comunidades espalhadas por este mundo afora assim como para os indivíduos que as formam. Somos todos diferentes uns dos outros. Temos ideias diferentes, origens diferentes, idiomas diferentes, talentos e habilidades diferentes, e certamente nem sempre concordamos uns com os outros.
Enquanto judeus, já desde o Sinai fomos instruídos a não modificarmos as pedras. Isto significa que devemos aceitar as pessoas como elas são e encontrar maneiras de integrar uma ampla variedade de ideias em um único altar, um todo integrado.
Obviamente existem limites. Não é possível para um judeu acreditar na divindade de Jesus e continuar considerando-se judeu. Mas os limites são – e devem continuar sendo – muito amplos.
Porém isto nos leva de volta à nossa pergunta inicial. Considerando-se todas as diferentes opiniões que cabem sob o nosso guarda-chuva, o que nos une enquanto movimento?
Primeiro, e sobretudo, estão aqueles ideais da nossa Torá e dos profetas, que nos são tão caros e que alicerçam a nossa união. Não assumimos a Torá nem literalmente e nem como verdade histórica. Enquanto judeus progressistas, vemos as histórias, narrativas e leis ali contidas como valiosas fontes de orientação e inspiração, com lições que – caso decidamos segui-las – farão de nós melhores judeus e melhores pessoas.
Estamos unidos por acreditarmos que nossas vidas devem ter propósito e significado! Estamos unidos em nossa afirmação de que a felicidade pessoal não é o objetivo central da vida e que o objetivo deve ser agir, da maneira que estiver ao nosso alcance, de forma a construir um mundo melhor! E com certeza estamos unidos em nosso respeito pela Torá como fonte de tudo em que acreditamos.
Através da Torá o nosso povo apresentou ao mundo um conceito de Divindade totalmente diferente do anteriormente encontrado no mundo pagão. No mundo pagão, os deuses eram forças supostamente poderosas. O único propósito da atividade religiosa era apaziguar estes deuses. As pessoas faziam oferendas para que os deuses usassem seus supostos poderes para ajudar ou, no mínimo, para evitar que prejudicassem aqueles que os adoravam.
Por exemplo, se eu fosse agricultor (como era o caso da maioria das pessoas naquele tempo) eu faria uma oferenda para o “deus da plantação” (ou o deus da agricultu-
ra) ao plantar as minhas sementes. Se a minha colheita fosse boa, eu pensaria que o deus tinha gostado da minha oferenda. Mas se o meu plantio não frutificasse devido a uma seca, enchente, gafanhotos ou qualquer outro motivo, eu suporia que a minha oferenda não tinha sido adequada e trataria de oferecer um sacrifício maior no ano seguinte. O principal problema deste sistema pagão de oferendas crescentes (e não faz diferença se estamos nos referindo ao mundo pagão no antigo Oriente Próximo, na América do Sul e Central com os Astecas, Incas ou Maias, ou no Antigo Havaí) é que ele acabava chegando ao sacrifício humano.
O Deus – nosso Deus – apresentado pela Torá traz uma visão completamente diferente. Já a partir do início do Gênesis percebemos que o objetivo mais elevado do nosso único Deus é fazer com que nós, humanos, possamos criar nesta terra uma sociedade justa, preocupada com o seu próximo e compassiva.
Para isto Deus fez um pacto com Avraham, Sara e seus descendentes (todos nós) pelo qual Ele promete proteger-nos (em sentido amplo) dar-nos filhos (assunto da maior importância para os patriarcas e matriarcas) transformar-nos em um povo permanente (quatro mil anos é permanente segundo qualquer padrão!) e dar-nos a terra de Israel (pois é, a nossa ligação com aquela terra remonta aos primórdios do nosso surgimento como povo).
Mas não ganhamos tudo isto sem um custo! Pela nossa parte do pacto (ou seja, pela promessa “abençoar-te-ei” que Deus fez a Abraão em Bereshit/Gênesis 12:2) nos foi cobrado ”Anda na Minha presença e seja valoroso” (Bereshit/Gênesis 17:1) e obedeça ao Todo Poderoso e ensine a seus filhos a obedecer ao Todo Poderoso preenchendo assim o mundo com dois conceitos hebraicos que lemos repetidamente na Torá e nos escritos proféticos: tzedaká e mishpat, virtude e justiça. Estes valores do pacto são a base da nossa unidade.
Quando o Dr. Martin Luther King Jr. resolveu dar um final imponente para o seu imortal discurso no Monumento a Washington, no verão de 1963, ele escolheu as palavras do profeta Amos: “Que a justiça/mishpat flua poderosa como as águas e que impere a virtude/tzedaká
Estamos unidos por como corrente impetuosa”. (Amos 5:24) acreditarmos que nossas vidas devem Encontramo-nos unidos enquanto movimento em nosso compromisso inabalável com estes ideais dos profetas. São ter propósito e eles a razão de ser da nossa fé religiosa. significado, em nossa Tudo o que fizermos enquanto judeus proafirmação de que a gressistas tem a finalidade de fortalecer o felicidade pessoal não nosso compromisso com estes princípios. Embora comunidades – e até indié o objetivo central da víduos dentro de comunidades – sejam vida e que o objetivo muito diferentes em sua maneira de obdeve ser agir, da servar os Chaguim e o Shabat, acreditamaneira que estiver mos que estes dias especiais, cada um ao nosso alcance, de dentro de sua forma específica, podem nos inspirar e nos transformar em pesforma a construir um soas melhores, cada vez mais dedicadas à mundo melhor. missão central do nosso povo. Por exemplo, o período de Rosh Hashaná a Iom Kipur nos pede – quer acreditemos em Deus ou não1 – que examinemos nossos pensamentos e ações como se o nosso destino dependesse da nossa habilidade de mudar tudo o que existe à nossa volta e que, ao invés de nos elevar, nos rebaixa e causa sofrimento ao próximo. Sukot e Tu b’shvat não nos deixam esquecer que somos dependentes do solo e das coisas que dele crescem para nos alimentarmos e para nos protegermos do sol e da chuva. Ao afirmarmos a mensagem do famoso Midrash que nos ensina que, quando Deus acabou de criar o mundo, Ele falou ao primeiro casal e disse: estou entregando minha criação a vocês, que ficam encarregados da terra e responsáveis por ela. Mas lembrem-se de guardá-la com cuidado, porque é a única terra que terão (Koheleth Rabbah, 7:13, seção 1). Certamente o amor pela Torá também nos une. Celebramos Simchá Torá com fervor uníssono quando completamos a leitura do rolo e o recomeçamos. Encontramos a mesma unidade na celebração do aniversário do recebimento da Torá no Sinai em Shavuot. Chanucá transmite mais uma mensagem de unidade. A Festa das Luzes lembra-nos do quanto precisamos valorizar a identidade judaica. Nunca qualquer força externa foi capaz de nos destruir, mas nós podemos nos autodestruir por apatia e indiferença para com a vida judaica. A mensagem de Purim é parecida. Há um momento na vida de cada um de nós em que – como aconteceu com

Esther – precisamos nos erguer e manifestar o nosso orgulho de sermos judeus se quisermos continuar passando a nossa preciosa herança de geração em geração.
A história de Pessach nos mostra – quer acreditemos ou não que os acontecimentos da nossa escravidão e libertação se passaram como descritos em Shemot/Êxodo – o compromisso para que as nossas ações sirvam o único e verdadeiro Deus, em oposição ao deus pagão Faraó.
O shabat também deveria nos unir. É verdade que cada pessoa tem a sua própria maneira de guardar o shabat e a maioria de nós rejeita as proibições ortodoxas de andar de carro ou acender as luzes. Mas o fato é que, se na verdade constituímos um movimento, precisamos encontrar uma maneira de fazer com que o shabat seja um dia diferente dos outros dias da semana. O shabat deveria proporcionar a todos um tempo de afastamento da rotina do dia a dia para que possamos nos perguntar por que fazemos aquilo que fazemos. Uma das grandes dádivas do nosso povo à Humanidade foi a noção de diferentes tipos de tempo: tempo comum e tempo sagrado. Precisamos de ambos.
Precisamos do tempo comum para trabalhar e realizar. Precisamos do tempo sagrado para refletir sobre o propósito de nossas vidas e sobre os objetivos para os quais dedicamos tempo e energia.
Muito embora nem todos nós observemos o shabat e os outros dias especiais da mesma maneira, estamos unidos ao acreditarmos que vivenciar o shabat e as outras ocasiões sagradas nos oferecem uma oportunidade de compreender melhor qual é o propósito e o significado de nossas vidas.
Se formos honestos teremos que reconhecer que, ao guardar o shabat e os dias santos, frequentemente não cumprimos as expectativas tradicionais e também não cumprimos as nossas próprias expectativas para conosco. Nossa unidade como movimento não está na capacidade de corresponder aos nossos ideais sublimes e sim em sempre manter sublimes os nossos ideais!
É possível que a grande genialidade do judaísmo seja que todos os nossos muitos ritos especiais existam para ins-
Aprendi com o meu pirar-nos – através de uma imensa varierabino, Charles Akiva Annes, há muitos anos, dade de costumes e cerimônias – para que possamos usar nossos talentos e transformar o mundo em um lugar melhor. Se há que as palavras “vá uma festa de que eu não gosto muito, ene estude” são uma tão haverá uma outra para me passar uma parte tão importante mensagem mais inspiradora! das instruções de Hilel Um Midrash famoso fala de um pagão que foi consultar separadamente dois como a versão judaica grandes sábios, Shamai e Hilel, e lhes disda “regra de ouro” que se: “Se você puder me ensinar a Torá inele cita. Parafraseando teira de pé em um pé só, eu me converto!” Hilel, “trabalhar por um Muito zangado, Shamai mandou o homundo melhor é a Torá mem embora. Hilel, pelo contrário, disse-lhe: “Não faça a outrem o que te é odiointeira. Vá e estude!” so. Isto é a Torá inteira. O resto é comentário. Vá e estude.” (Talmudda Babilônia, Shabat 31a). Aprendi com o meu rabino, Charles Akiva Annes, há muitos anos, que as palavras “vá e estude” são uma parte tão importante das instruções de Hilel como a versão judaica da “regra de ouro” que ele cita. Parafraseando Hilel, “trabalhar por um mundo melhor é a Torá inteira. Vá e estude!” Realmente, com frequência nossos estudos nos levam a conclusões divergentes a respeito do que escolher para acreditar e fazer. Apesar de, como as pedras do altar antigo, sermos diferentes uns dos outros em muitos aspectos estamos unidos em nossa esperança e em nossa convicção de que, enquanto judeus progressistas, precisamos lutar para compreender e determinar aquilo que o Todo Poderoso e a nossa tradição exigem de nós. Também estamos unidos em nossa convicção de que nossos estudos e nossas ações enquanto judeus progressistas nos ajudarão a deixar o mundo um lugar mais justo, mais preocupado com o próximo e mais virtuoso para nossos filhos, netos e para todas as gerações vindouras.
Notas
1. Para saber mais sobre a questão da crença em Deus, por favor, vejam meu ensaio “What if I don’t believe in God”. Ele pode ser encontrado em http://scheinerman. net/judaism/Sermons/fuchs-2.html O Rabino Stephen Lewis Fuchs é o presidente da World Union for Progressive Judaism. Traduzido por Teresa Roth
