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Rabino Sérgio R. Margulies
do silêncio à escuta: as etapas judaicas
Alef
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rabino sérgio r. margulies
O que havia antes do começo?
Nada! Se houvesse algo, o começo não seria o começo.
Nada é o impronunciável. Inominável.
Se fosse pronunciável tornar-se-ia algo. Deixaria de ser nada.
O começo, assim, é o silêncio. O impossível de ser dito ou enunciado.
O silêncio é indefinido.
O silêncio é transcendental. Além do tempo. Não confinado às categorias temporais.
A Torá começa com a letra beit – a segunda do alfabeto hebraico.
Começa através do relato da criação do mundo.
Antes havia o nada. O silêncio.
O silêncio é simbolizado pela letra hebraica alef.
É paradoxal o silêncio ser simbolizado.
A simbolização corresponde à necessidade humana de compreender.
Compreender para prender os conceitos aos seus domínios.
A simbolização atende ao anseio pelo domínio.
O ser humano nomina para dominar.
Ainda assim, o silêncio é inominável, indominável, incompreendido.
O silêncio coloca o ser humano na esfera humana. Não permite a arrogância. Impede o ser humano de se julgar superior e de crer que tudo pode dominar. Entender os limites é ter capacidade de exercer o potencial. A energia é canalizada com propriedade.
Alef é a primeira letra do alfabeto hebraico. Não tem som. Simboliza o que não pode ser dito, compreendido, captado. O que está além do domínio humano. Adquire som ao ser acoplado a uma vogal. O silêncio espera ser enunciado através de um som que brota do ser humano. A vogal que o som da fala coloca é o chamado para a ação humana. Nasce o potencial de atuação. Alef pode ser lido elef dado que as vogais são secundárias na língua hebraica. Elef significa mil. Do silêncio pode emergir um grande potencial criativo caracterizado pela grandeza do número mil.
O silêncio divino convida a parceria humana.
O silêncio humano – a ausência de resposta – a este convite representa a recusa humana em atuar no mundo. O silêncio humano – a surdez diante do convite divino – é conivente com as mazelas.
Conforme a Torá ensina, Deus convida o ser humano a romper o silêncio e pergunta, apesar de sua onisciência, “onde estás?”
A Torá é a pergunta divina e a busca da resposta humana.
A resposta humana é o início do mundo. Não do mundo dos elementos da natureza, mas do mundo habitado pela consciência humana e pelo potencial humano de agir.
Beit
Bereshit, que significa ‘no início’, é a primeira palavra da Torá e começa com a segunda letra do alfabeto hebraico: beit. Como as vogais são secundárias nas palavras hebraicas beit pode ser lida bait, que significa casa. A criação maior é de nossas casas. Casas são nossas moradias, nossa comunidade, nossos ambientes de trabalho. Construir casas implica em erguê-las com as vigas dos relacionamentos. Casas são, sobretudo, ambientes de convivência.
O formato da letra beit é fechado para trás, para cima e baixo, aberto somente para frente. Este é o foco da construção: para frente. Este, aliás, é o foco que o judaísmo dá a vida. Honrar o passado é saber seguir adiante. Por isso o termo hebreu – ivri em hebraico – está ligado ao verbo la-
Alef – Conforme a avor, atravessar. Atravessar e seguir. O que
Torá ensina, Deus convida o ser humano vem adiante é uma incógnita. Desconhecido, mas será construído, realizado e solidificado com bênçãos. a romper o silêncio A letra beit inicia a palavra beracha, e pergunta, apesar que significa bênção. de sua onisciência, Bênção é a expressão do agradecimento.
“onde estás?” Ser judeu é saber agradecer. O termo judeu – iehudi em hebraico – é a raiz do
Beit – A letra beit verbo lehodot, agradecer. Agradecer pelo inicia a palavra berachá, que recebemos como, por exemplo, os que significa bênção. meios que a natureza nos disponibili-
Bênção é a expressão za para com nossa ação transformar em do agradecimento. alimentos, roupa, moradia e remédios. A bênção reconhece que a realização de nos-
Ser judeu é saber so potencial deve ser acompanhada pela agradecer. apreciação e preservação do mundo. Um exercício ecológico. A recitação de uma bênção tem uma fórmula dada através de uma precisa sequência de palavras. Logo após a palavra ‘abençoado’, o termo exigido é ‘Tu’. Refere-se a Deus. Deus em seu silêncio convidou o ser humano para a ação. O ‘Tu’ indica o diálogo estabelecido e a aceitação deste convite. Imediatamente, prosseguindo com as palavras estabelecidas pela fórmula da bênção, Deus é chamado de Senhor. Assim são os vínculos: abrem opções, ora para a intimidade (Tu), ora para a reverência (Senhor). Seja como for o vínculo, a interação se faz presente. Conjugado ao “Senhor” há um pronome possessivo que pode dar a impressão de exclusividade. Um dos dramas da religião é quando uma pessoa ou um grupo arvora-se detentor da palavra divina. O drama neste caso é de toda a sociedade que vê o pluralismo ameaçado. Assim, enquanto o vínculo individual é uma avenida genuína na relação com Deus, para não criar a exclusividade, a bênção acrescenta o pronome “nosso”. É a unidade inclusiva de todos. Cada parte do todo tem seu modo particular de conectar-se com a força divina, mas todos têm igualmente o potencial de trilhar os caminhos espirituais da conexão. Não é privilégio de um indivíduo ou de um grupo. A fim de evitar o privilégio, a fórmula da bênção continua com o termo ‘Soberano do Universo’. Acima dos seres humanos somente um: Aquele que é o Soberano de todos. A bênção democratiza a convivência: ninguém é soberano
de ninguém. Ninguém é vassalo de ninguém. Caminhamos juntos.
Guimel
Neste caminho, às vezes, o tropeço. Uma queda. Dos salmos bíblicos aprendemos que Deus é Aquele que ergue os que caem. Deus age através do ser humano. Os atos de ajuda são denominados pela expressão em hebraico guemilut chassadim.
Guemilut é bondade. Começa com a terceira letra do alfabeto hebraico, guimel. Assim, segue o alfabeto refletindo um ideal: do silêncio divino ao convite para a bênção que encontra a expressão concreta nos atos de guemilut. O termo guemilut começa com a letra guimel, que tem a mesma grafia da palavra gamal que significa camelo.
A raiz da palavra guemilut é gamal. Tal como o camelo é capaz de fazer a travessia em condições inóspitas o ato de guemilut visa também permitir que cada um realize sua jornada pela vida, sobretudo nas ocasiões de aridez simbo-
Dalet – A abertura lizada pelo deserto. Quando as perspectidas portas pressupõe perceber o outro e vas se estreitam e os problemas predominam a ação urge para que ninguém veja as portas fechadas às oportunidades que a escutar o som de sua vida deve oferecer. vida. Até mesmo nas palavras do profeta Dalet bíblico, o som silencioso. Segue o alfabeto para a letra dalet, a quarta do alfabeto, associada à palavra delet, que significa porta. Novamente basta alterar as vogais – secundárias. Em acréscimo, o formato da letra dalet se assemelha a uma porta entreaberta. O ato de compaixão abre as portas para que as quedas sejam circunstâncias superáveis, para que o sonho não murche, para que o ideal não evapore, para que a esperança não fuja, para que o espírito solitário encontre o alento do afeto, para que a dor do corpo encontre o conforto, para que o cambaleante consiga continuar. O ato de compaixão não é conivente com o silêncio humano diante da aflição humana.

Uma parábola. Um homem bate na porta da casa de sua amada. Ela pergunta: “Quem é?” Ele responde: “Sou eu!” Ela não abre a porta. Ele bate novamente. Ela pergunta: “Quem é?” Ele responde: “Sou você”. Ela abre a porta.
A abertura das portas pressupõe perceber o outro e escutar o som de sua vida. Até mesmo nas palavras do profeta bíblico, o som silencioso.
Hei
Nenhum som é silencioso. Parece ser silencioso aos ouvidos não dispostos a escutar o outro.
A escuta deve ser apurada para captar o sutil som, como a da próxima letra do alfabeto hebraico, hei. O som do hei é semelhante ao ‘h’ gutural que sai suavemente da garganta. Na correria das conversas pode não ser apropriadamente escutado. Como também a aflição e o clamor, a emoção e o sentimento igualmente podem não ser escutados, pois atropelados pela desenfreada correria das falas moldadas pelos ritmos acelerados da vida.
O formato da letra hei se assemelha ao da orelha. Lembra a importância da escuta genuína que não é automática ou instantânea. Começa com o cultivo do silêncio e com a apreciação do espaço que Deus nos concede para entrar no sagrado vínculo dos relacionamentos que um ser humano é capaz de forjar com outro. O silêncio é frequentemente incomodativo: escutar o outro pode implicar em assumir responsabilidade de atuação. Isto pode ser um transtorno. Quebra a comodidade. Altera a rotina.
Escutar não implica em concordância, mas em compreensão. Difícil quando tantos rompem o silêncio divino para se proclamarem detentores da verdade. Proclamadores de uma verdade que anula o outro e rejeita a compreensão.
Os passos
Hei – O formato da letra hei se assemelha ao da orelha. Lembra a importância da escuta genuína que não é automática ou instantânea. Começa com o cultivo do silêncio e com a apreciação do espaço que Deus nos concede para entrar no sagrado vínculo dos relacionamentos que um ser humano é capaz de forjar com outro.
Estes são alguns passos preconizados pelo judaísmo: (alef) o silêncio divino que (beit) dá espaço para a expressão humana através da bênção que por sua vez (guimel) convida para atuação em prol do outro, abrindo (dalet) as portas de relacionamentos através do (hei) da escuta sensível. Estes passos pavimentam o caminho da responsabilidade. Responsabilidade em hebraico é achraiut. A raiz etimológica desta palavra é acher, que significa outro. Responsabilidade é atuar em prol do outro. Para o outro, nós somos o “outro”. Responsabilidade rompe com a satisfação exclusiva de nossas necessidades. Responsabilidade é inclusiva. Responsabilidade pode implicar em desviar o caminho para perceber os que estão – ou deveriam estar – conosco. Não somente aonde se chega é importante, mas como e com quem se chega. A chegada a um objetivo solitário é uma vitória oca, vazia. Ergue-se um suposto troféu e afunda-se na depressão.
Acher – outro – é escrito em hebraico com letras parecidas às da palavra um – echad – que significa um. Ambas começam com a letra alef, continuam com a letra chet, mas terminam com letras diferentes, respectivamente reish e dalet. Detalhe: o formato das letras reish e dalet é parecido. Para evitar confusão que a semelhança pode provocar, a Torá destaca a letra dalet do echad quando menciona a unicidade divina. Assim enfatiza que Deus é um e não outro.
Contraponto: Deus é um, não há outro. Os seres humanos são vários, há outros. Para Deus o reconhecimento da unicidade, aos seres humanos a valorização da alteridade. No fundo, a própria unicidade divina abrange a pluralidade da alteridade humana. Louvar a Deus, como Criador, é estender a benção a todas as Suas criaturas.
De alef a hei, estes são alguns passos que nunca concluem. Quando chegamos a tav, a última letra do alfabeto, lembramos da Torá (palavra que começa com a letra tav), cuja leitura nunca cessa. A responsabilidade, a atuação humana, a escuta, a busca das bênçãos, o louvor a Deus continuam. Como a vida.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
