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Juliana Portenoy Schlesinger

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

os árabes israelenses e os desaFios da democracia em israel

juliana portenoy schlesinger

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Ocenário político de Israel não é nada animador. No final do ano passado, o jornal Folha de S. Paulo publicou um artigo do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Nele, Llosa perguntava-se como um amigo de Israel deve se comportar perante a situação em que se encontra aquele país.

Tive a oportunidade de passar um mês recentemente em Israel. Hospedei-me em um grande e tradicional hotel de Jerusalém. Os meus dias iniciavam-se no restaurante do local. Lá, garçons recebiam os hóspedes com grande estima e consideração. Eram atenciosos, falavam em hebraico refinado e delicado. Sabah Elheir, eu os cumprimentava em árabe. Eu também tentava ser gentil e delicada, respeitando-os por meio de sua língua-materna, tão pouco ouvida na Israel judaica. Sua presença, maciça e serviçal, denotava a presença, maciça e serviçal, dos árabes israelenses na sua pátria.

Desde o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, o país está envolvido em três principais conflitos referentes à sua população não judaica. Há aquele que acontece entre o Estado de Israel e os países vizinhos; existe aquele entre judeus e palestinos dos territórios ocupados por Israel na Guerra de 1948 e na Guerra de 1967 e, finalmente, o conflito entre judeus e árabes cidadãos do Estado. Esses conflitos são muito complexos por se estabelecerem em dois diferentes níveis, entre países e dentro de países, e por serem mutuamente influenciáveis. Aqui, trataremos do terceiro conflito, o menos conhecido e menos enfrentado. Valores democráticos são característicos ao Estado de Israel, mas a implantação desses valores entre os árabes israelenses resultou numa tensão de duas magnitudes: entre a democracia e a definição de Israel como um Estado judeu e entre a democracia e as preocupações de segurança.

Os árabes israelenses constituem minoria significativa em Israel. Segundo a Central Israelense de Estatísticas, no ano de 2009 a população árabe correspondia a aproximadamente 20% da população israelense total, sendo constituída por muçulmanos (83%, maioria sunita), incluindo os beduínos, 8,5% de cristãos e 8,3% de drusos. Conhecidos de diversas maneiras, codinomes que variam de acordo com a filiação política do locutor, podem também ser chamados de palestinos, palestinos israelenses, setor árabe, árabes cidadãos de Israel, entre tantas outras denominações. Essa população é em sua maioria descendente dos aproximadamente 160 mil árabes que permaneceram em Israel depois do estabelecimento do Estado em 1948 e seus descendentes.

Estes árabes são cidadãos de Israel tanto quanto um judeu o é. Eles possuem totais direitos políticos, econômicos, legais e religiosos assegurados pelo Estado, incluindo direito de expressão e organização política, direito ao voto e, em relação à segurança, a polícia israelense atua em todas as áreas do país. Uma parcela da população árabe israelense, embora pequena, frequenta as universidades israelenses; há partidos árabes no Knesset, o parlamento israelense, e alguns desses cidadãos compõem o corpo diplomático do Estado de Israel, a exemplo do vice-cônsul de São Paulo, atualmente um druso.

Apesar disso, diversos são os pesquisadores que acusam o Estado de Israel e sua estrutura governamental e legal de relegá-los como cidadãos de segunda classe naquele país. Suas escolas, por exemplo, quando comparadas àquelas cuja língua de instrução é o hebraico (nas escolas árabes, é a árabe), são bem menos equipadas e possuem menos professores por aluno. Seus salários, quando comparados aos da população judaica israelense, são significativamente inferiores e eles são residencialmente segregados. Sua língua é oficial em Israel, mas eles necessitam do hebraico para frequentar as melhores universidades e para se postularem aos melhores empregos.

Os cidadãos árabes israelenses são impossibilitados de servir no exército, com a exceção de drusos e beduínos, que estão aptos a ocupar posições bem específicas, en-

É a existência marcante quanto jovens de origem judaica1, tanto e densa dos árabes israelenses em Israel homens como mulheres, são obrigados a cumprir o serviço militar. Os árabes israelenses estão também privados do direito que nos cobra o de trabalhar em empregos relacionados à olhar destes utópicos indústria de defesa, que inclui quase tocientistas sociais, das as indústrias envolvidas com ciência segundo os quais é e tecnologia. Essas exclusões denotam explicitana desterritorialização mente a desconfiança em relação a essa e na não fronteiras, população e sua lealdade para com o Esnum terceiro referente, tado.2 Os árabes israelenses não podem distante da noção possuir terra e não podem manter contade língua-pátria to com a população dos territórios ocupados. Isso sem tocar no tema-chave dae de nação, que queles que estudam o tema, que é a naencontraremos a paz. tureza intrínseca ao Estado de Israel, “um Estado judeu e democrático”. Há tempos que nos perguntamos como será que isso é possível. Que espécie de democracia é esta que privilegia uma parcela de sua população? Valores democráticos são característicos ao Estado de Israel, mas a implantação desses valores entre os árabes israelenses resultou numa tensão de duas magnitudes: entre a democracia e a definição de Israel como um Estado judeu e entre a democracia e as preocupações de segurança, enraizadas nos conflitos que envolvem Israel e nas experiências históricas de perseguição do povo judeu. O crescimento e o fortalecimento dos árabes israelenses são, nesse caso, considerados tanto um perigo para sua segurança como para a identidade judaica do Estado. Assim, a democracia israelense privilegia sua maioria judaica em nome dos esforços pela manutenção do perfil judaico da população e o seu controle em nome da segurança do Estado. Sob essas condições, a comunidade árabe de Israel, embora possua direitos legais aos de seus membros, é politicamente subdesenvolvida e está economicamente em desvantagem em relação à maioria judaica. Apesar deste cenário, os árabes israelenses são considerados uma minoria étnica que aceita sua condição naquele país. Não são separatistas. As pesquisas sugerem que, na criação de um Estado Palestino fronteiriço a Israel, sua maioria não gostaria de ir viver lá, embora apoie o seu estabelecimento. Durante as intifadas, os levantes da população palestina (aquela que habita os territórios

ocupados por Israel na Guerra de 1967), o envolvimento da população árabe israelense em atentados terroristas foi insignificante.

Diversos idealizadores do Sionismo já alertavam que aquela população estava lá e que, mais cedo ou mais tarde, os judeus deveriam lidar com eles. Muitos são os desafios de Israel, mas pouco ou quase nada se lê ou se escreve sobre o futuro da população árabe israelense quando o Estado Palestino for criado. Avigdor Lieberman, membro do Knesset, o parlamento israelense, deputado e ministro do Exterior do governo de Benjamin “Bibi” Netanyahu, propôs no ano de 2004 o Plano Lieberman, denominação que faz referência ao seu pai idealizador.

O plano apoia a troca de terras para assegurar a continuidade da maioria judaica em Israel. Uma proposta específica sugere a transferência da cidadania de parte da população da região do Triângulo (oeste da Linha Verde) para a jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e de um futuro Estado Palestino, em troca do controle sobre a maior parte dos blocos de assentamentos que estão construídos na Cisjordânia (leste da Linha Verde). Lieberman, além de ser um dos mais entusiastas políticos a defender essa ideia, criou o slogan “Ein ezrahut bli neemanut” (“Não há cidadania sem lealdade”), que questiona e coloca em xeque o direito dos árabes à cidadania israelense.

Falar em terra e nação no mundo pós-moderno é quase que uma afronta ao que parte das ciências sociais prega como atualidade – um mundo globalizado e sem frontei-

ras. Mas muitos da elite política daquela região do Oriente Médio vislumbram um cenário geopolítico baseado em limites territoriais e fronteiriços, colonização e conquista de terras. Talvez, mais do que nunca, é de terra e fronteiras, aliás, negociação de terras e fronteiras, que vislumbramos de longe a paz.

É a existência marcante e densa dos árabes israelenses em Israel que nos cobra o olhar destes utópicos cientistas sociais, segundo os quais é na desterritorialização e na não fronteiras, num terceiro referente, distante da noção de língua-pátria e de nação, que encontraremos a paz.

Autores árabes que escrevem em hebraico

Não é de hoje que a literatura hebraica recebe em seu seio autores árabes que escrevem em hebraico. Já na década de 1960 o escritor Emil Habibi, aliás, vencedor do prêmio mais importante de literatura hebraica, o Prêmio Israel, desterritorializava aquele terreno, mudando e ampliando aquilo que se compreendia por literatura hebraica nos primórdios do Sionismo, fosse aquela escrita por escritores judeus que falariam da Nova-velha Terra, na renovada língua, sobre o pioneiro, o chalutz. Naquela literatura não cabia a história judaica de perseguição nem de sofrimento. Nela, o indivíduo dava o lugar ao coletivo no ideal socialista. Era um sonho e a produção literária entrava neste pacote. Mas, parafraseando o escritor israelense Amós Oz, um sonho, quando posto à prova, está fadado ao fracasso, pois um sonho só é um sonho porque não se concretiza. E Israel é real e sua literatura é viva e pulsante. Os árabes israelenses escrevem em hebraico. Utilizam a língua renascida pelo projeto sionista para falar da ambivalência que é ser um árabe cidadão de Israel.

A obra do jovem e bem sucedido escritor Sayed Kashua é o significativo exemplo desta literatura hoje produzida em Israel. Kashua tem três romances publicados por grandes e importantes editoras israelenses. Aravim Rokdim (Árabes Dançantes) foi publicado em hebraico em 2002 e o livro tornou-se um best-seller no país. A obra foi traduzida para sete línguas. Seu segundo livro, Vaiehi Boker (Fez-se a manhã), de 2004, foi traduzido também para sete línguas. Os escritores árabes Uma editora do Líbano publicou esse israelenses escrevem em hebraico. Utilizam romance em árabe em 2011. Guf Sheni Iachid (Segunda Pessoa do Singular), publicado em 2010, foi um dos finalisa língua renascida pelo tas do prêmio literário Sapir, concedido projeto sionista para a jovens escritores israelenses, naquele falar da ambivalência mesmo ano, e foi eleito o romance venque é ser um árabe cedor do Prêmio Bernstein de Literatu ra em 2011. O livro está sendo traduzi cidadão de Israel. do para diversos idiomas. Nenhum romance de Kashua foi, até hoje, traduzido ao português. Sayed Kashua é também o roteirista da série Avodá Aravit (Trabalho de Árabe), que pela primeira vez levou ao horário nobre da televisão israelense personagens falantes do árabe e que já se encontra em sua terceira temporada, e é colunista semanal do mais importante jornal israelense, o Haaretz. Se Israel e sua liderança política atual estão mais do que nunca aterrados nas ideias e concepções de pátria e território, a existência dos árabes israelenses nas ruas e cidades de Israel, quando os enxergamos, só nos faz lembrar que é na maneira como se trata e respeita uma minoria que um país é reconhecido pela sua democracia. A mesma sociedade que dá a um árabe israelense o seu mais importante prêmio de literatura, a mesma sociedade que tem a coragem de ceder o horário nobre de sua televisão a personagens ambíguos e complexos que falam o árabe, ainda não amadureceu o suficiente suas instituições democráticas para tratar a minoria em seu âmago. Uma amiga de Israel e, principalmente, uma amiga da tradição judaica de respeito ao outro, diria: que deixemos os árabes israelenses falarem por si só. Amém!

Notas

1. Como exceção está o setor religioso (ortodoxo) judaico, que está isento da obrigação de prestar o exército. 2. Embora o exército tenha importância central em Israel, a sociedade israelense não é considerada uma sociedade militar pelo fato de o exército não intervir nas questões sociais e políticas, colocando assim em risco as normas democráticas. Contudo, Israel é visto como uma “nação em armas” por intervir nas esferas civis; é um país em que civis servem como soldados quando há a necessidade para defender sua pátria, e depois tiram seus uniformes quando passado o perigo. Juliana Portenoy Schlesinger é pesquisadora de pós-doutorado da Fapesp, doutora em Língua e Literatura Hebraica pela USP, mestre em antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e bacharel em jornalismo pela PUC-SP e Ciências Sociais pela USP.

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