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Paulo Geiger
o despertador tocou
paulo geiger
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De repente todo mundo, e todo o mundo, acorda com o barulho das manifestações de revolta e protesto, dos tiros dos tanques e das metralhadoras rebeldes, das bombas lançadas de aviões sobre alvos civis, no Oriente Médio e no norte da África. Mas o que hoje é, óbvia e ululantemente, apontado, acusado, condenado, quase executado como violação de direitos humanos, prevalência do totalitarismo e da opressão como regime político, medievalismo como sistema cultural e social, ainda ontem era parte natural das estruturas internacionais contemporâneas, parceiras na configuração do mundo, sócias na exploração e distribuição de riquezas, interlocutores legais e aceitos, na visão, eivada de realpolitik, dos campeões da democracia, dos líderes mundiais, do Ocidente civilizado e progressista.
Enquanto se escrevem estas linhas, no fim da primeira quinzena de março, ainda não está claro aonde levará tudo isso, nem mesmo se levará à mesma coisa em cada um dos lugares em que se exigem mudanças e em que algumas mudanças começam a acontecer. Não é provável que ao se lerem estas linhas haja maior clareza. O que sim está claro, e a percepção disso não devia ser tão repentina como está sendo para tantos, é a natureza da estrutura política-social-cultural que alimentou a instabilidade e a efervescência daquela região como um dos focos constantes da instabilidade mundial, originadora e estimuladora de extremismos religiosos, da rejeição aos valores ocidentais, do conflito com Israel, do terrorismo.
O descontentamento, a frustração, a submissão de massas desprovidas de direitos e de dignidade podem facilmente ser dirigidos a inimigos externos, sejam outras religiões, o Ocidente corrupto, o sionismo, os judeus, Israel. E foram. A ideia de um paraíso impossível na Terra (direitos fundamentais, nível de vida, dignidade) – impossível porque exigiria mudanças internas, inimaginável para os regimes autoritários dominantes – é compensada pela do paraíso divino, alcançável pelo ódio ao ‘outro’.
Parte do conflito com Israel (não todo) e da rejeição à convivência se alimenta dessa frustração. Daí a ideia, um pouco mas nem tanto fruto de wishful thinking, de que uma transformação democrática pode eliminar parte das motivações mais profundas dessa rejeição, e abrir uma melhor perspectiva para uma convivência que se aproximaria cada vez mais da paz verdadeira. Porque a paz de Mubarak, e a de Hussein, embora honestas e cumpridoras de compromissos, ainda não são a paz verdadeira, ao menos na concepção de Rui Barbosa, que escreveu em Haia que a ‘paz verdadeira é a que emana do coração dos povos’.
É sob esse ângulo que as perspectivas de uma ‘paz verdeira’, extensiva aos palestinos e a outros países da região, aumentam com a democracia. Porque quando de repente se fala na necessidade de que regimes democráticos substituam as autocracias republicanas, ditatoriais ou monárquicas que caracterizam a região há décadas, não se está falando apenas do direito de depositar um voto numa urna de tanto em tanto tempo. Está-se falando da liberdade real de escolha, da liberdade de se inserir no mundo moderno, civilizado e progressista, do livre acesso à informação, do direito ao diálogo e à participação...
O que torna a convivência e a partilha de concessões mútuas infinitamente preferíveis ao conflito é o que se arrisca perder no conflito e na guerra depois da conquista de tantos direitos, depois de ganhar um passaporte para um futuro melhor. Shimon Peres cansou de dizer (sendo chamado por isso de ingênuo utopista) que o melhor caminho para uma paz ‘verdadeira’ seria o progresso econômico e social dos palestinos.
Contanto que o vazio da transição não seja ocupado pelos fundamentalistas, religiosos, políticos oportunistas, chauvinistas. Este é o grande perigo. E maior ainda o perigo de que, mesmo que isso aconteça, todo mundo e todo o mundo adormeça de novo, conivente – realpolitik – com o ‘caminho próprio’ da África do norte e do Oriente Médio. Ajustando seu despertador para um dia, tarde demais, no qual fundamentalistas, chauvinistas, terroristas façam realmente, ou tentem fazer, o que já hoje pregam como seu objetivo. Como fez Hitler, como fez Pol Pot, como fizeram certos líderes tribais africanos, como tenta fazer Ahmadinejad, o Hizbolah, o Hamas, como se desenha que Chavez quer fazer. Crônica anunciada. Tudo previsível. O despertador que agora está tocando não deve ser desligado jamais.
O fundamentalismo religioso, o extremismo político, o chauvinismo alimentam-se da insatisfação dirigida ao ‘outro’. Os terroristas prometem um paraíso facilmente acessível, a partir de uma missão “divina”. Mas se o mundo terreno for melhor, mais equitativo e justo, se se tiver o que perder com o conflito e a guerra, isso poderá ser fator mais preponderante do que a promessa de um paraíso como prêmio pelo ódio.
Slavoljub Pantelic / iStockphoto.com

