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Rabino Dario E. Bialer
a necessidade do pluralismo religioso
Gavizon, Medan e os jogos mal formulados
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O projeto Gavizon-Medan estava preocupado com a dinâmica entre as populações laica e religiosa em Israel, com a relação entre Torá e Estado e com as decisões que podem transformar uma democracia em teocracia.
rabino dario e. bialer
Lembro-me de uma frase num filme que teve um impacto marcante para mim. O filme “Uma Mente Brilhante” conta a história do genial matemático John Nash, criador da teoria dos jogos, um modelo para estudar a interação entre os indivíduos. A partir da análise de como se comportam num jogo específico, o modelo consegue prever o comportamento deles em outras situações. Esta teoria foi tão bem sucedida que, mesmo estando inicialmente prevista para entender o comportamento apenas no campo econômico, é atualmente usada também em sociologia, filosofia, psicologia e biologia, entre outras.
Quando Nash começa a frequentar a universidade, um professor fez para a turma a pergunta que me comoveu: quem de vocês vai ser o próximo prêmio Nobel? Muitos levantaram as mãos. Não me lembro se ele também o fez, mas Nash foi premiado com o Nobel em 1994.
Nessa época eu estudava sociologia na universidade de Buenos Aires, que contava com a estrutura típica das universidades públicas latino-americanas. Salas de aula com janelas quebradas, sem ar-condicionado nem calefação, superpopulação de alunos, às vezes mais de 300 numa sala, a metade sentada no chão. Greve uma vez por semana, movimentos de esquerda comparando o sionismo com o nazismo, professores mal pagos, orçamento para pesquisa quase zerado. Baratas, banheiros quebrados... enfim... esta é a educação em países que ainda sonham com um dia ser do Primeiro Mundo.
Quando morei em Jerusalém e estudei na Universidade Hebraica, maravilhado liguei para um amigo, contando sobre todas as possibilidades que a universidade oferecia, o campus maravilhoso, os espetaculares cursos de judaísmo, etc. e ele me respondeu: está ensinando aí agora o mais recente Prêmio Nobel de economia, não perca a oportunidade! Lembrei-me do filme. Decidi aproveitar todas as palestras, mesmo as de assuntos fora da pós-graduação em educação que eu estava cursando.
Foi assim que eu conheci o projeto Gavizon-Medan. Ruth Gavizon, juíza secular da Suprema Corte, e Jacob Medan, rabino bem ortodoxo, estavam preocupados com a dinâmica entre as populações laica e religiosa em Israel, com a relação entre Torá e Estado e com as decisões que podem transformar uma democracia em teocracia e advertiram sobre a necessidade urgente de criar um novo pacto social para alcançar uma unidade nacional que contemple a diversidade.
O projeto redigido por eles trata em seu primeiro capítulo da Lei do Retorno, de cidadania e da Lei das Conversões, resgatando sempre os consensos alcançados e deixando num plano secundário as divergências. Destacando a importância de ouvir e aprender da experiência do outro, construindo um modelo em que todas as partes não somente se toleram, mas vivem e agem em conjunto.
Consegui uma cópia daquele documento e o levei para ler mais detidamente em casa. Primeiramente, fiquei empolgado pela saudável iniciativa, depois um pouco cético pelas dificuldades óbvias de sua implementação e, por fim, acabei o texto irritado pela miopia destes dois intelectuais que foram incapazes de enxergar na sociedade israelense outros atores a não ser os laicos e os ortodoxos.
Uma iniciativa que visa o pluralismo, o diálogo e um novo pacto social em Israel não pode desconhecer que 78% dos judeus israelenses, de uma ou de outra forma, se reconhecem como tradicionalistas em questões vinculadas aos rituais judaicos. Desconhecer as linhas liberais dentro do judaísmo é manter o statu quo hoje instalado no rabinato de Israel, que impõe a crença de que a úni-
Uma iniciativa que visa ca forma de ser religioso é ser ortodoxo. o pluralismo, o diálogo e um novo pacto social É evidente que Medan não se preocupava em incluir os liberais, pois não os considera minimamente, mas também em Israel não pode Gavizon não se preocupou com eles, pois desconhecer que 78% essa não é a sua luta. Ela luta para dimidos judeus israelenses nuir o poder político da ortodoxia, mas se reconhecem como sem de forma alguma questionar a “posse” integral da religião pelos ortodoxos. tradicionalistas em Fui à palestra no dia seguinte disposto a questões vinculadas questionar esses pontos, no momento das aos rituais judaicos. perguntas públicas ou em alguma outra Desconhecer as linhas oportunidade em privado. liberais dentro do A palestra foi muito interessante, própria destas universidades onde ganhar um judaísmo é manter prêmio Nobel não parece ser uma piada, o statu quo hoje mas uma aspiração séria num país sério, instalado no rabinato que valoriza a educação, as ciências e a de Israel, que impõe a crença de que a única cultura, mas não consegui esclarecer minhas dúvidas. Diante de minha colocação de que ser religioso é muito mais amforma de ser religioso plo do que ser ortodoxo, a resposta que é ser ortodoxo. tive foi a de que em Israel os conservadores e reformistas não têm força representativa na sociedade. Eu sei que os movimentos liberais em Israel têm muito trabalho pela frente e que precisam alcançar uma força social e política muito mais significativa. Nesses pontos ainda somos muito fracos e devemos assumir isso para repensar nossa missão com mais coragem e compromisso. Sei também que naquele momento – cinco ou seis anos atrás – a situação era ainda mais precária do que hoje, mas uma proposta séria e responsável que pretende refundar a sociedade israelense, tendo a diversidade e o diálogo como bandeiras, não pode continuar a incentivar a falsidade da categorização abrangente do tecido social apenas entre laicos e religiosos. Principalmente quando o elemento religioso é representado pela ultraortodoxia, com sua força política totalmente desproporcional à quantidade de seguidores e com impacto notável na vida pessoal de todos os cidadãos israelenses – o que causa enormes danos e ameaça o caráter judaico do Estado que supõe estar preservando. Quando o venerável rabino ortodoxo Chaim Druckman, chefe da Comissão de Conversão, foi demitido al-
guns anos atrás por causa das maquinações da política ultraortodoxa, o assunto das conversões passou finalmente a preocupar também a setores da comunidade ortodoxa moderna.
Milhares de conversões perfeitamente legítimas que ele tinha supervisionado foram retroativamente declaradas nulas e sem efeito, adicionando injúria ao insulto que esse campo tinha sofrido no início do ano, quando o Rabinato-Chefe de Israel resolveu desafiar a legitimidade das conversões autorizadas pelo Conselho Rabínico Ortodoxo da América.
Esse tipo de decisão, totalmente contrária à Halachá e às normas cívicas mais básicas, denigre o ser humano e tenta roubar dele sua identidade, como vem acontecendo há décadas com a não aceitação dos judeus convertidos pelos movimentos Reformista e Conservador.
O Comitê Neeman1 foi formado há dez anos para resolver essa problemática tão sensível no seio da sociedade, mas suas resoluções e recomendações nunca foram implementadas, e ainda hoje temos uma situação sem solução e com sérias perspectivas de piorar. O monopólio da ortodoxia na definição mais íntima e individual da identidade de uma pessoa está decretando implicitamente que o judaismo é apenas uma expressão religiosa e de uma única interpretação. Portanto... de que diversidade está se falando?
Donniel Hartman, filho do genial Hartman, mas com uma intensa luz própria, é um dos expoentes mais iluminados da ortodoxia moderna na atualidade. Em sua função de diretor no Shalom Hartman Institute em Jerusalém (nome da instituição fundada por seu pai em homenagem a seu avô), expressa ideias que cuidam com muita sensibilidade da preservação do antigo e da necessidade de confrontar o moderno com todas as ferramentas intelectuais e religiosas que dispomos em nossos dias. Ele se pergunta: por que deveríamos celebrar o pluralismo e de que forma ele é celebrado, neste trecho de um discurso proferido na American University, College of Arts and Sciences, em 2004:
Algumas pessoas me perguntam: por que celebrar o pluralismo? Podemos entender que você queira abraçar o outro por conta de conveniência política. Mas qual é o valor real do pluralismo? Você vê isso como a expressão de uma profunda convicção religiosa? O pluralismo não enfraquece a convicção? A convicção e a fé não exigem que se tenha a sensação de possuir a verdade exclusiva e praticar a única forma válida? Pode ser alguém realmente devoto e ter convicções profundas sabendo que o outro também tem valor?
Penso que as pessoas cometem um grande erro ao igualar o pluralismo com o relativismo. Eles pensam que se você é um pluralista você realmente não tem convicções sérias. Se você tem convicções sérias você deve dizer: eu sei a verdade, não me incomodem com outras visões.
Então eu me pergunto: qual é o valor de viver num mundo pluralista, numa cultura pluralista? Por que celebrar a diversidade? Acredito que o segredo da força e da vitalidade da América reside em sua celebração da diversidade. E isto significa abrir mão do ideal de obrigar uma visão monolítica para todas as pessoas.
A celebração da diversidade é a expressão plena de um mandamento bíblico muito profundo. As pessoas pensam que o maior mandamento da Bíblia é: “E amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Eu não nego que este seja um mandamento importante. Eu não nego que seria uma ótima coisa se as pessoas resolvessem implementá-lo.
No entanto, deixem-me dizer-lhes sobre um outro mandamento bíblico que é ainda mais difícil de absorver e é ainda mais importante: “Veahavtem et hager ki mitzryim beeretz gerim haitem” – E amarás ao estrangeiro porque estrangeiro fostes na terra do Egito. O amor ao próximo é muito mais simples, porque o próximo é alguém que vive perto de você, é alguém que você reconhece, alguém que você pode prever o comportamento.
Mas o mandamento também é de amar ao desconhecido, e eu não usaria apenas o termo desconhecido, mas também “o outro”, o radicalmente outro. Como fazer para encontrar o outro? Por que é tão importante que eu abrace o outro? O que os outros te proporcionam como ser humano? O monopólio O outro te cura do absolutismo. O outro da ortodoxia na definição mais te obriga a não considerar as tuas próprias convicções como sendo a verdade exclusiva. O outro te força à criação do espírito crítico, íntima e individual de ser capaz de perceber um mundo diferenda identidade te do teu e de abandonar o absolutismo e o de uma pessoa triunfalismo. O outro te liberta da obsessão está decretando maníaca de verdade exclusiva, de um único caminho para Deus, de uma única forimplicitamente que ma de viver uma vida digna. o judaismo é apenas Há uma diferença entre a celebração da uma expressão diversidade (pluralismo) e o relativismo. No religiosa e de uma relativismo você não tem de expor suas conúnica interpretação. vicções a críticas. Você pode dizer: “Eu gosto”. “Eu gosto de bolo de chocolate, do que Portanto... de que você gosta?” Eu não tenho que justificar, eu diversidade está se não tenho que dar razões. Já no pluralismo falando? você está sempre aberto à crítica dos outros. No pluralismo não se pode simplesmente dizer: “Eu gosto”. É necessário apresentar argumentos inteligentes para justificar suas convicções. E eu digo que pode haver convicção e profundidade se você aprender a ouvir sua própria música sem ter de negar o outro. Aceitação sem negação. Eu não tenho que negar o outro a fim de afirmar o que eu tenho. Como alguém que vive em Jerusalém e que estuda o Talmud e a filosofia, permitam-me contar-lhes o que um sábio disse ao estudante que o procurou. O sábio estava ensinando, e ele estava ensinando coisas diferentes. E, se você já estudou Talmud, você sabe que não há uma só página do Talmud em que não haja divergência. Um diz uma coisa e outra pessoa diz outra coisa. E sempre há discordância. O estudante disse ao sábio: “Como posso estudar a Bíblia se este me aponta um caminho e este outro me aponta para o outro lado? Este me diz que é permitido e este me diz que é proibido? Como posso tornar a Bíblia o meu modo de vida se sua argumentação me confunde?” O conselho do sábio foi: “Assei leibcha chadarim chadrai” – Faça do seu coração uma sala com muitas câmaras. E coloque em cada câmara um diferente ponto de vista. Ouça a Hillel e ouça a Shammai. Saiba como lidar com o contraditório. Eu sempre digo aos meus alunos na universidade: vocês se tornarão filósofos quando entenderem as razões daqueles que discordam de vocês. Ser capaz de ouvir a validade e a força daqueles que não concordam com vocês é o caminho mais seguro para desenvolver suas próprias convicções.
Às vezes eu me pergunto se somos Am Echad, um único povo, ou se se trata de um encontro de subgrupos em relação aos quais cada um vê ao outro como Reachá, como um próximo, ou se diretamente esse outro é um estrangeiro.
Penso que depende muito do momento e das circunstâncias de como nos reconhecemos e nos vinculamos. Já vivemos divididos em tribos quando ingressamos na terra de Israel, já fomos um único povo com um rei para todos, o reino já foi dividido nos reinados de Israel e de Judá, que preferiam se aliar a potências estrangeiras do que entender-se com os judeus do outro reino, já fomos diferentes seitas no tempo do Segundo Templo, já tivemos enormes brigas ideológicas com enorme respeito e união nos tempos da Mishná e do Talmud, já fomos durante séculos pequenas kehilot autônomas, mas também solidárias, espalhadas pelo mundo, já sofremos unidos a Shoá e cantamos felizes o Hatikva e Ierushalaim shel Zahav quando reconstruímos um Estado e quando reconquistamos Jerusalém.
A conjuntura histórica atual exige a grandeza de aceitar que não precisamos pensar igual, sequer concordar. Precisamos construir uma sociedade onde todas as vozes sejam ouvidas e uma lei que contemple a todos. E se essa lei aparenta ser contraditória e nos levar por mais de um caminho ao mesmo tempo, deixemos de ser dogmáticos, abramos o Talmud e façamos do nosso coração uma sala com muitas câmaras.
Sinceramente, eu desconheço as conclusões do Comitê Neeman, mas sei que suas propostas nunca foram seriamente consideradas. Sei um pouco mais sobre o conteúdo do documento Gavizon-Medan e posso dizer que, mesmo com o pluralismo que ele apresenta, sob uma interessante dialética, está ausente – em sua concepção – a trama social israelense, que não é de forma alguma reduzida à simples dicotomia “ortodoxo ou antirreligioso”.
O governo israelense pode declarar animadamente sua boa vontade em ouvir todos os setores do judaísmo mundial e seus ministros podem visitar comunidades reformistas da Diáspora e destacar a vida judaica e espiritualidade. Porém, se mais tarde, não com palavras, mas com ações e decisões, continuar ignorando as vozes de centenas de milhares, então evidentemente estamos participando, todos nós, de um jogo que está mal formulado a partir de suas regras básicas.
Se Israel se orgulha por seus muitos prêmios Nobel e se tem a capacidade de incentivar carreiras de excelência em suas universidades é porque, em matéria de educação, ciência e tecnologia, se espelha nos Estados Unidos e na Europa. Seria bom que nos assuntos religiosos desista de dar largos passos na direção de seus vizinhos do Oriente Médio.
Notas
1. O prof. Yakov Neeman, líder da comunidade ortodoxa, convocou rabinos reformistas e conservadores para alcançar um consenso a respeito do problema das conversões em Israel. Esse comitê foi instituído em 1998, mas suas recomendações, enviadas ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, nunca foram aplicadas.
O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
