
14 minute read
Rabino Marcelo Polakoff
brit HaKeHilá: o pacto da comunidade
A avaliação do trabalho de uma kehilá necessita contar com ferramentas capazes de propor as perguntas corretas e de ter ao mesmo tempo a capacidade de projetar os instrumentos que nos permitam realizar as valorações necessárias para encontrar as respostas almejadas.
Advertisement
rabino marcelo polakoff
Avaliando avaliações
Aempresa aumentou suas vendas em 18% no primeiro quadrimestre do ano em relação ao ano anterior. Seu lucro líquido aumentou 15% no mesmo período. Indubitavelmente o negócio vai muito bem...
Acontece que, em geral, no mundo da economia, não é muito difícil avaliar o sucesso de uma determinada empresa, ou desta ou daquela loja ou operação financeira. Talvez as contas sejam um pouco mais difíceis num caso do que noutro, porém o fato é que a forma de medir os resultados é bastante simples.
Pois bem, quando transpomos essas perguntas para o âmbito puramente comunitário, a coisa fica mais complicada. Bastante, aliás. Nem sequer está muito claro qual ou quais devam ser as perguntas. Como saber se estamos fazendo as coisas direito? A kehilá está crescendo ou não? Em que estamos errando?
Não se trata apenas da velha questão da diferença conceitual entre uma avaliação quantitativa e uma evolução qualitativa. Obviamente isso também faz parte do problema. Trata-se também de compreender a necessidade de contar com ferramentas capazes de propor as perguntas corretas (uma coisa não muito simples), e de ter ao mesmo tempo a capacidade de projetar os instrumentos que nos permitam realizar as valorações necessárias para encontrar as respostas almejadas.
Caso contrário, o que acontece comumente é apelar quase exclusivamente para a intuição dos dirigentes para “avaliarem”, num sentido muito condescendente do termo, como a comunidade está indo em geral (diria “em geral” demais). Evidentemente, o número de bar e bat mitzvá ou a quantidade de pes-

Detalhe da sinagoga de Córdoba, Argentina.
soas que comparecem ao shabat poderia ser um indicador, porém a verdade é que é muito pobre para essa finalidade.
A avaliação do trabalho de uma kehilá sem dúvida vai além desses dados... E o fato de contar com uma missão e uma visão muito bem redigidas ajuda, porém é no mínimo insuficiente.
Do outro lado do balcão
E as famílias? A pergunta tem a intenção de refletir por alguns instantes sobre de que forma está cada família comprometida com a própria kehilá. Vale dizer que certamente poderemos perguntar se, além de pagar uma contribuição social, as famílias levam a sério ou não seu pertencer à comunidade.
Como fazer essa medição? Como avaliar esta responsabilidade que nos une como famílias a um determinado arcabouço comunitário? Até onde vai esse compromisso?
Muitas vezes a liderança comunitária peca por omissão por não reclamar das famílias sócias um compromisso maior com a kehilá. A desculpa tende a se apoiar numa ideia falsa de que quanto menos for exigido das pessoas, mais pessoas se unirão à comunidade.
Não me parece uma boa ideia, considero-a até mesmo bastante pobre, pois pressupõe que não vale a pena esperar mais de cada família, justamente quando o virtuoso passa pelo contrário, já que no próprio pedido de um compromisso maior se revela a confiança dos dirigentes no potencial crescimento das famílias em termos comunitários.
As demandas não devem ser unilaterais. Uma comunidade que funciona bem não é aquela na qual somente seus membros exigem da comunidade certos padrões, certas práticas e atividades de determinado nível e sentido, mas é aquela que, além disso, deve também constituir uma fonte de demandas, justamente porque confia em seus membros e busca deles essencialmente a mesma coisa: certos padrões, certas práticas e atividades de determinado nível e sentido...
Além da dimensão administrativa
Já de cara poderíamos sugerir que, salvo exceções, a entrada de uma família nova na comunidade está quase exclusivamente ligada a um ato meramente administrativo.
Uma ficha é preenchida com dados, é definida uma contribuição social e a forma de pagamento e a família será incluída entre os assinantes do sistema informativo comunitário, via e-mail, website, impresso, telefonemas ou o meio que for.
Nada disso é demais. E naturalmente é imprescindível, porém atrevo-me a afirmar que não basta. Porque mesmo que implicitamente o fato de se tornar sócio de determinada kehilá possa indicar que a nova família concorda com seus princípios gerais, não é frequente explicitar os referidos princípios e, quando isso é feito, estes costumam ser tão amplos que acabam por não dizer mais do que belas palavras...
Do diagnóstico à proposta
Com esses dados na pasta, lá pelo ano 2003 e em colaboração com Claudio Epelman (naquela época diretor executivo da Comunidade Judaica de Córdoba e, desde 2006, na direção executiva do Congresso Judaico Latino-Americano), nos vimos diante do desafio.
Queríamos criar um dispositivo que permitisse ao mesmo tempo modificar estes três fenômenos já descritos e tão repetidos na vida das comunidades judaicas, a saber: 1 – a falta de instrumentos de avaliação do trabalho comunitário 2 – a ausência de solicitações claras e específicas em relação ao que a kehilá espera de cada família 3 – a forma exclusivamente administrativa em que se dá a associação à comunidade.
A ideia, confesso, não foi inovadora, já que é uma das ideias fundadoras do nosso povo. Contudo, talvez o seu desenvolvimento o seja. Trata-se do “Brit HaKehilá”, do “Pacto Comunitário”. Mesmo que implicitamente o fato de se tornar sócio de determinada kehilá possa indicar que a nova família concorda com seus princípios gerais, não é frequente explicitar os referidos princípios e, quando isso é feito, estes costumam ser tão amplos que acabam por não dizer mais do que belas palavras...
A elaboração
Um brit para todos
Não é preciso se assustar, nem se esconder. Não é um “brit milá” generalizado…
Porém é um “brit”, visto que um “pacto” ou um “brit” é o que origina uma identidade específica. Por isso, assim como o povo de Israel surgiu como tal ao pé do Monte Sinai quando aceitou o pacto da lei, simbolizado na entrega da Torá, é também a partir do brit (neste caso do “brit milá” que é o “pacto da circuncisão”), que um menino judeu é recebido formalmente como membro de “Klal Israel”, da comunidade hebraica. Na tradição do nosso povo, vale lembrar que um brit (pacto) conta também com o caráter de “neder” (uma promessa religiosa), na qual não somente a palavra é empenhada, mas fundamentalmente a ação sustenta nos fatos essa palavra empenhada. E caso isso seja pouco, todo pacto que se preza tem necessariamente associado a ele um conteúdo dual. Sobre estes fundamentos essenciais, criamos o “Brit HaKehilá”, o “Pacto da Comunidade”, um pacto que reflete em termos concretos que a família e a comunidade se constituem como espelho uma da outra, evidenciando que o que acontece em um de seus polos, inevitavelmente se verá refletido no outro.
A ideia também visava mudar o paradigma de associação, já que paralelamente ao ato administrativo, na verdade previamente a ele, o interesse familiar de fazer parte da kehilá se vê cristalizado na assinatura de um compromisso claro e completamente explícito.
Este “Brit HaKehilá”, após várias consultas a diversos dirigentes e umas tantas idas e vindas de conversas com pessoas-chave da comunidade, teve o potencial para se tornar em si mesmo a melhor plataforma de avaliação comunitária e familiar.
A leitura completa do mesmo permite ter uma ideia exata do que significa. Entretanto, é conveniente desmembrar o processo através do qual nos demos a luz.
Com o Talmud à mão, lembramos que, segundo Pirkei Avot, em Tratado dos Princípios, o mundo inteiro se sustenta tão somente sobre três pilares: o estudo (Torá), o desenvolvimento espiritual (Avodá) e a prática das boas ações (Guemilut Chassidim). Não foi muito complicado perceber que provavelmente toda kehilá que se preza encontrará nestes três pilares uma espécie de guia abrangente de todo o seu trabalho. O Centro União Israelita de Cór-

doba não seria a exceção à regra. Mesmo assim, e de alguma forma isto já foi sugerido por nós anteriormente, talvez a missão esteja clara, porém, para que seja possível avaliar se ela está sendo alcançada, é necessário tornar o seu desenvolvimento mais concreto.
Assim, começamos a considerar quais eram os valores e conceitos centrais que englobavam cada um desses três pilares, de forma tal que eles fossem se tornando mais visíveis. E se tomarmos como exemplo o pilar da Torá, que no sentido amplo implica tudo que cerca o desenvolvimento intelectual, vimos que era possível subdividir em educação formal para crianças e jovens, educação para adultos, aprendizagem de idiomas etc. Claro que todos esses pontos já faziam parte do trabalho comunitário, mas era preciso explicitá-lo.
Escolhemos fazê-lo testemunhando o valor apontado e acrescentando uma fonte judaica que sustentasse o referido valor, como introdução a cada um dos compromissos que fariam parte do “Brit HaKehilá”.
No caso do segundo ponto do Pacto Comunitário, e apenas a título de exemplo, o resultado foi o seguinte:
“... nele medita dia e noite...” (Josué 1:8)
O estudo como prática permanente é um valor que sustentamos há mais de 3.000 anos.
Como família, nos comprometemos a participar de pelo menos uma das diversas propostas de estudo judaico e como Centro União Israelita nos comprometemos a organizar diferentes propostas de estudo.
Este esquema se repetiria para cada um dos onze pontos que constituíram em 2003 a primeira proposta do Brit HaKehilá. Fica claro aqui com o que a comunidade se compromete e com o que a família se compromete.
E depois de uma lida integral do Pacto Comunitário, começa a ficar muito mais simples analisar se o trabalho da kehilá está sendo bem realizado e o mesmo se aplica aos compromissos assumidos por cada família.
Um novo ritual
Em Rosh Hashaná de 5764 (2003) propusemos (e de fato distribuímos) o primeiro Pacto Comunitário para
Acreditamos que o cada família considerar durante os dez
Pacto Comunitário é uma boa opção para dias que precedem Iom Kipur, solicitando que o assinassem se concordassem com seu conteúdo. muitas comunidades A data não foi escolhida por acaso, judaicas. É uma já que esses são os dias do “cheshbón haferramenta adequada nefesh”, do “balanço espiritual”. E, apepara o planejamento sar desse balanço ter sido pensado para se estar voltado para o passado, acrescentar do trabalho comunitário, como parte dessa avaliação pensar sobre sua avaliação, geração os compromissos para o futuro foi uma de compromissos claros proposta muito boa. Naquele Iom Kipur para os dirigentes centenas de famílias incluíram seus pactos e os sócios. assinados no Sefer da Kehilá, o Livro da Comunidade, especialmente elaborado para essa finalidade, inaugurando assim um costume que se propagou no tempo e perdura até hoje. Ano após ano, foi se tornando um novo costume comunitário ao começo de cada ano novo. É que nos parece que um bom começo é concordar justamente com a ideia de entender a vida judaica em função de um brit, de um pacto. É precisamente nesse sentido que este pacto apenas afirma e reafirma o trabalho sagrado compartilhado entre a família e a comunidade.
Renovando compromissos
A ideia de renovar anualmente este brit se concretiza com a firmeza aplicada para poder manter nossa palavra e ao mesmo tempo na capacidade de adequá-la constantemente ao nosso presente, sem perder a visão do passado. Por isso, a duração anual do Brit HaKehilá está baseada no fato de os pactos que funcionam serem aqueles passíveis de serem renovados com certa continuidade. Foi assim que no ano seguinte e durante o mês anterior a Rosh Hashaná, o mês de Elul, que também é de preparação espiritual, propusemos à comunidade que sugerissem acréscimos ou modificações à primeira versão do Brit HaKehilá. Os onze pontos originais foram com o tempo aumentando, ano após ano, e já se transformaram em 21, somente com a participação das famílias que queriam acrescentar compromissos, ou porque a mesma kehilá ia encontrando outras vertentes concretas para o desenvolvimento do ser judeu.



O Anuário detalha o que a Comunidade fez e deixou de fazer com relação aos compromissos assumidos para o ano que finda.
E a avaliação?
Nunca faltou. O Pacto Comunitário produziu como consequência a edição de um “Shnatón” (um anuário), cujo índice estava, e continua estando, baseado em cada um dos pontos do Brit HaKehilá.
Para ficar mais claro: depois de termos apresentado o Pacto no Rosh Hashaná 5764, no ano seguinte e paralelamente à distribuição do novo pacto do ano 5765, que acabava de começar, entregamos a cada família o Shnatón, que não era nem mais, nem menos do que a publicação detalhada do que a kehilá havia feito ou deixado de fazer em relação a cada ponto do Pacto.
Avaliar o trabalho comunitário passou a ser uma das atividades centrais da kehilá, e a intuição tinha passado a ser dispensável. Os compromissos estavam assumidos previamente e bastava somente informar o que havia sido feito como consequência.
Ao mesmo tempo, no próprio anuário e no final do relatório comunitário, foi editada uma “Autoavaliação familiar” para que na mesa das festas fosse debatido nas casas como haviam sido concretizados os compromissos que haviam sido assumidos no âmbito familiar.
Seguindo o exemplo do segundo ponto do pacto que já utilizamos, era classificado como “baixo, regular, bom, muito bom ou ótimo” aquilo que havia sido assinado no ponto em questão.
Em termos concretos: Como avaliam o compromisso familiar de participar de pelo menos uma das diversas propostas de estudo judaico?
É assim que em todos e em cada um dos compromissos existe uma forma direta e muito representativa de avaliá-los, também a partir do seio de cada família. O sentido é claro, como repetimos por escrito no final de cada avaliação:
Esperamos que esta autoavaliação tenha sido positiva, o que já por si só o é, por estimular esta conversa familiar. E mesmo quando não tenham sido cumpridos todos os compromissos, um novo ano, junto com o novo pacto comunitário que assinaremos, é a melhor motivação para continuar avan-
çando na construção compartilhada de uma Comunidade responsável.
E aqueles que não querem assinar?
A pergunta é importante. No caso das nossas famílias sócias, numa instituição de quase 100 anos, era impossível coagir todas as famílias a assinarem o Pacto quando já tinham muito tempo como membros da kehilá. Consequentemente não fizemos isso, mas, sim, sugerimos que todos o referendassem. E de fato quase todos o fizeram, exceto um par de famílias que não quiseram assinar, especialmente pela questão da doação de órgãos, mas naturalmente continuam fazendo parte da comunidade.
Pois bem, toda família nova que se aproxima da kehilá não tem alternativa a não ser assinar o Pacto para ser considerada sócia. Se não fosse assim, a proposta perderia o sentido, porque, tal como foi assinalado por nós, a kehilá tem também todo o direito de aceitar somente os sócios que concordarem com seus objetivos.
Dificuldades
Os pontos mais difíceis foram o da kashrut e o da doação de órgãos.
Ambos suscitaram muito debate e a redação final inclui parte desses debates.
No caso da comida kasher, o compromisso solicitado às famílias da kehilá é “considerarem uma incorporação paulatina” deste preceito. Não é um dado menor, já que se for considerado seriamente, aos olhos da kehilá basta para fazer parte do Pacto.
Tentamos desta forma preservar a autonomia e a liberdade de decisão que sempre caracterizaram nosso povo, mas acompanhadas de uma análise séria de todos os temas, especialmente aqueles que estão contaminados com muitos preconceitos. Neste sentido, se a mitzvá da kashrut é considerada com seriedade, mas ao mesmo tempo não assumida, também basta.
Preferiríamos que todas as famílias adotassem esta dieta judaica, porém também compreendemos que não é
A ideia de renovar uma decisão fácil e que as idiossincrasias anualmente este brit se concretiza com particulares da nossa comunidade também não pesam a seu favor. Fenômeno semelhante ocorreu com a firmeza aplicada a questão da doação de órgãos, neste caso para poder manter fundamentalmente devido à ignorância nossa palavra e ao generalizada das famílias em relação a esta mesmo tempo na delicada questão. A maioria acreditava se tratar de uma capacidade de adequá- prática absolutamente proibida pela lei -la constantemente ao judaica, quando de fato é quase exatanosso presente, sem mente o oposto. Por isso escrevemos o perder a visão compromisso de tal forma a assegurar que do passado. cada família “considerasse a doação de órgãos como uma mitzvá”.
Um modelo “exportável”
Acreditamos que este Pacto Comunitário é uma boa opção para muitas comunidades judaicas do planeta. E naturalmente não tem que ser uma cópia no que tange ao seu conteúdo, tampouco à sua metodologia. Não obstante, é um ferramenta que demonstrou ser adequada para o planejamento do trabalho comunitário, sua avaliação, geração de compromissos claros tanto para os dirigentes com para os sócios e também é uma espécie de boas-vindas especial na hora de inscrever novas famílias na kehilá. Existirão comunidades que poderão utilizar este dispositivo para criar sua própria agenda comunitária; outras poderão emular as virtudes deste brit para medir os “resultados comunitários”, ou usarão algo semelhante para medir o compromisso de cada família, e em outros lares, passará despercebido, ou será considerado pouco relevante. Porém, em Córdoba, e há quase oito anos, o Brit HaKehilá é parte constitutiva da nossa comunidade. E isso também podemos assinar. Marcelo Polakoff é rabino do Centro Unión Israelita de Cordoba, Argentina, e presidente da Assembleia Rabínica Latinoamericana do movimento Massorti (Conservador) para o período 2010-2012. Rabino formado pelo Senior Educators Program da Universidade Hebraica de Jerusalém, é graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Belgrano (Buenos Aires) e Mestre em Estudos Judaicos pelo Jewish Theological Seminar de Nova York.
