
11 minute read
Rabino Sérgio R. Margulies
a benção pela saúde
“O lugar em que temos razão está pisoteado e duro como um pátio. Mas dúvidas e amor escavam o mundo como uma toupeira, como uma lavradura. E um sussurro será ouvido no lugar onde houve uma casa que foi destruída.”1
Advertisement
O corpo
Ao despertar abrimos os olhos. Olho em hebraico é ain, escrito com as letras ain, iud, nun, que também compõem o verbo laanot – responder e a palavra oni, pobreza. A relação etimológica é conceitual: ao vermos a mazela da pobreza respondemos. A resposta é a restauração da dignidade do corpo do outro. O corpo é sagrado. A miséria o profana.
Ao despertar agradecemos pelo funcionamento das funções vitais. Então o corpo é vestido e alimentado. Os comentaristas da Torá observam: o ser humano é o único animal que se veste a fim de que tenha consciência do cuidado para com o corpo e o único que faz da alimentação um ato de reverência. Assim, desperto e cuidado, segue o corpo: os pés conduzindo e as mãos realizando.
Este é o corpo que contemplamos. Casa do nosso espírito. Moradia da centelha divina que emana em nosso espírito. Este é o nosso corpo: um templo. Tal como o templo religioso é denominado a Casa de Deus – Beit Adonai – nosso corpo também é um templo.
O templo do corpo
O templo religioso é a casa que cuidamos para abrigar a mensagem divina, tal como o corpo preserva a dimensão divina, pois imagem e semelhan-
rabino sérgio r. margulies

ça do Criador e guardião do espírito. No Quando o templo de templo recitamos orações e o mesmo fazemos para o funcionamento do corpo. No templo há um altar e para o corpo nosso corpo está com a saúde plena sendo criamos altares: o lar do convívio, a mesa capaz de responder de refeição e a cama para descanso e rela- aos estímulos, cionamento sexual. potencializamos o No templo há uma luz eterna que fica acesa permanentemente e no corpo há sentido de completude um órgão que não pode cessar: o cora- na vida. Porém, a ção. No templo lemos a Torá por meio completude fica do instrumento denominado iad (mão) e abalada diante do corpo o corpo é instrumentalizado para colocar fragilizado pela doença.em prática a mensagem divina.
Para o templo que havia em Jerusalém peregrinávamos no ato chamado regalim, palavra hebraica derivada do termo pé e similarmente nosso corpo peregrina na jornada da vida em busca dos múltiplos encontros. O templo exige uma rotina, no antigo eram as oferendas, no novo são as preces. O corpo, tal como o templo, exige hábitos disciplinares. A realização das orações no templo requer o minian, grupo de no mínimo dez pessoas em que todos são iguais, da mesma forma que não podemos subestimar ou superestimar o corpo de ninguém. Alguns têm mais habilidade e destreza para algo, porém isto não os torna melhores. O antigo sacerdote do Templo trajava-se de modo especial e também nosso corpo deve ser vestido num cuidado não da vaidade excessiva, mas da valorização pertinente. Assim, nosso corpo é um templo sagrado.
A destruição do Templo
O primeiro Templo em Jerusalém foi construído pelo Rei Salomão, cujo nome hebraico Shlomo é oriundo da palavra shalom, que significa paz e completude (estar em paz e encontrar completude são complementares). O Templo, desta maneira, era o símbolo do que almejamos: ser completos. Destruído pelos babilônios em 586 a.e.c. foi restaurado e novamente destruído pelos romanos no primeiro século da era comum. O desespero tomou conta do povo judeu pela ruína da centralidade da vida judaica.
Quando o templo de nosso corpo está com a saúde plena sendo capaz de responder aos estímulos, potencializamos o sentido de completude na vida. Porém, a completude fica abalada diante do corpo fragilizado pela doença. É como se o templo do corpo desmantelasse. Tentamos restaurar a saúde, reconstruir o templo do corpo. A esperança se renova, mas às vezes se frustra: uma nova destruição. Desespero.
A constatação de que o templo do corpo sucumbe e não mais responde ao nosso comando trás a sensação de exílio. Sentimo-nos como as vítimas da Babilônia e de Roma: exilados. É como se o corpo estivesse fora de nós, é exílio de nós próprios.2 O temor de outro exílio surge: o exílio do convívio. Confinados ao hospital, asilo ou casa receamos pelo “deserto da solidão’’.3
O destruidor
Quando o Templo de Jerusalém foi definitivamente destruído, a pergunta: quem causou isto? A resposta óbvia: o Império Romano. Quando o templo de nosso corpo adoece a pergunta: o que causou isto? A resposta óbvia: um vírus, uma bactéria, um acidente, um componente genético ou fisiológico. No entanto, diante da dor, a obviedade das respostas cede a uma formulação distinta.
A literatura rabínica sugere: o próprio povo causou a destruição do Templo por tornar-se vulnerável ao invasor externo. No tormento também atribuímos a nós próprios a responsabilidade sobre a doença que nos aflige. Culpamo-nos. A racionalidade não subsiste à agonia e, assim, o espírito afogado atribui a si a responsabilidade pelo que aconteceu. A lógica das explicações fica subvertida: como Deus é bondoso e misericordioso, então eu – o doente – sou o culpado pela aflição que recai sobre mim. Ou isto, ou outra lógica igualmente subvertida: ira a Deus, afinal Ele, em Sua onipotência, é a causa de todas as causas. Ambas as conclusões desprovidas de sentido podem levar a atitudes extremas e assim à doença física uma nova doença pode ser dramaticamente adicionada. Por isso, a importância do equilíbrio, fonte de saúde espiritual.
Reconstruindo os escombros
Diante do Templo destruído, os rabinos buscaram dar significado para o ocorrido. A destruição levou os judeus
à dispersão. Dispersos poderiam levar a mensagem judaica para os quatro cantos do mundo. A destruição, nem almejada nem acalentada, foi fato. Para lidar com este fato foi formulado um ensinamento que desse sentido aos caminhos antes inesperados na jornada da vida. Quando o corpo é acometido pela doença, em paralelo ao tratamento médico, podemos tentar encontrar um novo sentido para a existência. A ausência do vigor físico pode dar margem a uma sensibilidade espiritual aguçada. A enfermidade pode provocar um reequilíbrio das prioridades, um balanço dos valores e uma reordenação nas prioridades. A enfermidade nos faz enxergar o tempo desperdiçado que antes parecia ser inesgotável. A maneira de encontrar novos sentidos poderia ser outra, mas sendo a doença fato além do controle, o enfermo pode tornar-se um exemplo de postura perante a adversidade. Deste modo, resgata sua autoestima e ensina aos outros a preciosidade da vida. Deixa de estar no exílio de si e no deserto da solidão. Tanto o primeiro quanto o segundo Templo em séculos distintos foram destruídos na mesma data: dia nove do mês de Av. O Talmud afirma que neste exato dia e mês nascerá o Messias. Não é mera coincidência e sim uma mensagem contundente: não se resignar e com coragem se reerguer, não se abater e com fé se superar.
Parceiros da reconstrução
A destruição do Templo de Jerusalém transformou toda a região num desolado campo de batalha. O rabino Abraham Heschel afirma: “A doença é um assalto, o paciente um campo de batalha e um soldado”.4 Um soldado precisa de uma tropa. Quem é a tropa nesta luta? A luta solitária carece de recursos necessários para vencer a batalha, mas mesmo que sozinhos tenhamos a força, esta solidão carrega o peso da indagação: vencer a luta para que se estou sozinho? “Se uma pessoa sentir quando está morrendo [ou enferma]... que deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só”.5 O doente precisa indubitavelmente da medicina, mas também necessita apoio e respeito. Através da visita e da
O doente precisa preocupação dos amigos, familiares e da indubitavelmente da medicina, mas comunidade o espírito do corpo cambaleante é fortalecido. É como se no campo de batalha do corpo doente um aliado também necessita surgisse. Se a tarefa médica é medir a presapoio e respeito. são arterial e ministrar remédios, a religio-
Através da visita e sa é medir a pressão da alma e ministrar da preocupação dos o afeto, sugere Heschel. Talvez o espírito fortalecido no corpo enfraquecido alaamigos, familiares e da vanque a recuperação e, mesmo que não, comunidade o espírito com certeza cria os alicerces da dignidade do corpo cambaleante de uma vida reconhecida e valorizada. é fortalecido. Os esteios da construção A visita ao enfermo é um importante preceito religioso, mas o diálogo neste encontro de apoio não flui naturalmente. Um tem receio de expor sua fragilidade e outro de se espelhar na dor alheia. O silêncio poderia ser cultivado, pois a presença do visitante já traduz a intenção. O silêncio, porém, é incômodo. Assim, uma oração pode ser o elo da comunicação. A oração ecoa a intenção individual e é a voz comunitária. A oração demonstra que o enfermo não é único em seu tormento. Isto não diminui o sofrimento da dor física, mas pode atenuar a aflição espiritual e reduzir a pressão da alma de quem enfrenta o desconsolo de não entender o porquê de sua situação. Através da oração pode perceber que o motivo do sofrimento é frequentemente inexplicável. A bênção que roga pela saúde do enfermo é denominada mi she-berach, que significa “Aquele que abençoou”. É dirigida a Deus que abençoou nossos patriarcas e matriarcas e líderes como Moshé. Ao conectar o doente aos nossos ancestrais, a bênção rompe o isolamento e ensina que a fatalidade de uma adversidade pode acontecer com qualquer um, independentemente de suas virtudes e falhas. O profeta bíblico Irmiáhu (Jeremias) que viveu no período da destruição do primeiro Templo clamou: “Cura-me, ó Eterno, e serei curado! Salva-me, e serei salvo!”.6 Posteriormente, os rabinos na elaboração da Grande Oração (Amidá) recitada diariamente utilizaram as palavras do profeta no plural. Assim, do profeta aprendemos que a oração, como expressão da fé diante da mazela, é antiga e dos rabinos aprendemos que a dificuldade não é singular, pode acontecer com todos. E ainda dos rabinos
Massimo Merlini / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 7


aprendemos a validade de emprestar palavras milenares para resgatar uma esperança e preencher o vazio de quem não sabe o que dizer ao compartilhar da agonia do sofrimento.
O permanente
A bênção pela saúde supera o medo. O medo nos faria dirigir a Deus como crianças temerosas de uma punição e ansiosas por uma proteção. A bênção é a dimensão do adulto espiritual que não considera Deus como causa da punição ou recompensa e sim como a força transcendental capaz de impulsionar a existência humana – seja lá qual for a circunstância – para algo significativo. A bênção pela saúde não é uma barganha com Deus. Se o desígnio divino fosse negociável, seriamos capazes de controlar Deus e O transformaríamos num ídolo. A bênção é uma conexão que reconhece a capacidade humana de encontrar uma dimensão para a vida até então não percebida. A bênção é o reconhecimento do potencial divino que reside em cada de um nós. Ensina o rabino Mordechai Kaplan (1881-1983) que “Deus não fez a pólio’’7 e como ensinou séculos antes o profeta bíblico Eliáhu (Elias) que “Deus não está no vendaval... não está no estrondo... não está no fogo”.8 Diante da pólio – doen-
A visita ao enfermo é ças – a busca da cura no ato humano dium importante preceito religioso, mas o diálogo vinamente inspirado; diante dos estrondos pontua o profeta “a voz silenciosa”, que representa o doar de si para o outro e neste encontro de apoio propicia a presença divina se manifestar. não flui naturalmente. Após a destruição do Templo a preUm tem receio de expor sença divina – shechiná – permaneceu sua fragilidade e o permanentemente no Muro que restou do Templo destruído.9 Nas eventualidaoutro, de se espelhar des em que o templo de nosso corpo fica na dor alheia. Uma abalado, que também nele haja a permaoração pode ser o elo nente presença divina. da comunicação, ecoa a Notas intenção individual e é 1. Trecho de poema do poeta israelense Yehuda Amichai (1924-2000), tradução de Nancy Rozenchan. a voz comunitária. 2. Inspirado na interpretação da rabina Amy Eilberg do Salmo 137, em Healing of Soul, Healing of Body, Jewish Ligths Publishing, Vermont, EUA, 1994. 3. A expressão é de Norberto Elias, A Solidão dos Moribundos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, Brasil, 2001. 4. Heschel, A.I., O paciente como pessoa, em O Último dos Profetas, Ed. Manole-Comunidade Shalom, São Paulo, Brasil, 2000. 5. Elias, N. op.cit., o termo entre colchetes é inclusão do autor deste artigo. 6. Tradução da Bíblia Hebraica, Gorodovits, D. e Frindlin, J., Editora Sefer, São Paulo, Brasil, 2006. 7. Questions Jews ask: Reconstructionist answers, Kaplan, M. Reconstructionist Press, Nova Iorque, EUA, 1956. 8. Tanach: Melachim alef [Reis 1] 19:11-12. 9. Midrash Tehilim. Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
lcoccia / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 9

