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Francisco Moreno de Carvalho
o rabino, o jumento e a pérola, ou como lidar com o outro
Devemos promover o Bom Nome de Deus entre as nações. Mesmo que a lei permita uma coisa, deve-se ultrapassar a lei, sair da halachá e ir para a meta-halachá com o intuito de se obter algo maior, o respeito e a possibilidade de diálogo e coexistência com o Outro.
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7 Compete ao homem procurar o conhecimento de Deus ou seguir suas paixões e tendências naturais e submergir na natureza e em seus instintos. Ilustração de Gustav Dore (1832-1883) sobre as muralhas de Jericó.
Francisco moreno carvalho
Nos últimos tempos ecoam notícias inquietantes oriundas de segmentos da ortodoxia judaica. Nada mais ligado a discussões sobre uso ou não de determinados aparelhos no shabat, ou se, afinal, descobriu-se um porco ruminante em alguma ilha da Oceania. O tema agora é bem mais sério.
Um grupo de trezentos rabinos ortodoxos decretou, há alguns meses, que judeus não devem vender ou alugar imóveis para não-judeus na Terra de Israel (leia-se, para cidadãos árabe-israelenses), pois isto representa uma violação aos preceitos da Torá.
Alguns rabinos ligados ao movimento dos colonos judeus na Autoridade Palestina invocam preceitos e tradições e alertam: o termo “homem” aplica-se apenas aos judeus. Não-judeus têm uma alma diferente, sub-humana. Portanto as leis referentes à proibição de assassinato não são aplicáveis aos não-judeus.
Grande festa nas hostes antissemitas, que, com estas posições, só reforçam a milenar acusação contra os judeus de misoginia, de ódio à espécie humana.
Os rabinos que lidam com imóveis foram desmentidos e atacados por outros rabinos tão ortodoxos quanto. Os racistas que usam solidéu representam minoria entre os judeus e recebem o repúdio que lhes é merecido por parte de setores expressivos da sociedade israelense.
Apesar disto, ficamos diante da pergunta: o que está acontecendo? De onde surge tanto racismo, tanta exclusão em nome da religião, em nome da fé?
Poderíamos dizer que esta é uma pergunta retórica. Afinal, das mais diferentes fés e religiões, em especial o cristianismo e o islamismo, emanam e emanaram, ao longo dos séculos, os mais atrozes crimes, as maiores exclusões, as maiores negações ao direito do Outro existir enquanto tal.
O problema é que entre os judeus costuma-se proclamar que tal característica nos é estranha. Que o judaísmo é uma religião ética, que não converte ninguém à força, que respeita o direito à diferença. Neste sentido, os rabinos ortodoxos que demonstram estas vergonhosas posições não só não representam o judaísmo, em termos numéricos, mas são quase que sua antítese. Afinal, foi o judaísmo o primeiro sistema de pensamento a proclamar a unidade da espécie humana, oriunda de um mesmo pai primordial (Adão), criado à imagem e semelhança de um único Deus, universal, Deus de todos os homens.
Afinal, o que significa um grupo de rabinos que se ocupam de negar direito de propriedade a não-judeus sobre partes da Terra de Israel, ou mesmo defenderam atitudes racistas diante dos crimes feitos em nome da religião, como as Cruzadas, o Santo Ofício, os homens-bomba do Hamas e as atrocidades do Taleban e da teocracia xiita do Irã?
O problema é que, ao tentarmos relativizar estes graves fenômenos que ocorrem no mundo religioso judaico, incorremos no risco de jogarmos para debaixo do tapete um sério problema. Se hoje não podemos mais falar em “judaísmo” como um único bloco monolítico, a predominância institucional da versão ortodoxa do mesmo em Israel torna necessário que se entenda melhor quais os pontos de partida, quais as premissas que regem esta versão do judaísmo no que diz respeito à sua relação com o mundo não judeu.
Um primeiro componente que temos que tratar aqui é, digamos, filosófico. Qual o status que o judaísmo rabínico confere à figura do não-judeu? Como resumo desta questão, temos posições extremas que se espelham em duas figuras no pensamento judaico: Maimônides (Rambam) e Yehuda Halevi, ambos do século XII.
Para Maimônides, o “ser judeu” é meramente consequência, função, da escolha de um indivíduo ou grupo em servir a Deus seguindo seus mandamentos que constam na Torá. Reafirmando o que já existia na tradição anterior, judeu é todo aquele que nega a idolatria. Mais do que um povo escolhido, os judeus foram o povo que escolheu seguir a Deus na sua forma mais sublime, no cumprimento dos mandamentos da Torá.
Por isso, vemos ao longo de sua obra de legislação rabínica uma série de decisões, que acabaram incorporadas ao universo da halachá, coerentes com este ponto de vista.
5 O que está acontecendo? De onde surge tanto racismo, tanta exclusão em nome da religião, em nome da fé? (Estátua de Caim no Jardim de Tuileries, Paris)
Por exemplo, a Mishná no tratado Bikurim (primícias) declara que um prosélito, alguém convertido ao judaísmo, ao ofertar as primícias não deve dizer “Deus de meus pais” e em outras ocasiões deve dizer “Deus de teus pais” (Bikurim 1:4). O converso não tem genealogia física com os Patriarcas. Vem Maimônides e corrige a Mishná. Segundo ele, o converso deve dizer “Deus de meus pais”. Ao se converter, torna-se filho de Abraão e Sara. A filiação aos Patriarcas não é sanguínea, genética. O homem é capaz de se recriar na história a cada dia.
Sendo assim, não há nenhuma diferença ontológica entre judeu e não-judeu. Ambos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Compete ao homem procurar o conhecimento de Deus ou seguir suas paixões e tendências naturais e submergir na natureza e em seus instintos. Pode escolher servir a Deus pelo caminho da Torá, pode escolher servi-Lo por outros caminhos, não tão sublimes na visão de Maimônides, mas nem por isso dignos de repúdio.
Em seu livro Cuzari, Yehuda Halevi envereda pelo caminho oposto. O rei cázaro está ávido por interpretar o sonho que lhe diz “tuas intenções são certas, mas teus atos não” e para isso chama um cristão, um muçulmano, um filósofo e um judeu para descobrir do que se trata. Ao fim e ao cabo se interessa por converter-se ao judaísmo. Mas o representante do judaísmo, no livro, lhe diz: isto nunca será possível. Os judeus são intrinsecamente, ontologicamente, diferentes dos outros povos. Só aos judeus foi dado o dom da profecia, o dom de conhecer a Deus. Nenhuma decisão ou ato humano podem mudar esta realidade.
As duas posições extremas sintetizam diferentes abordagens a esta temática no pensamento judaico. Para talvez rastrearmos como se desenvolveram, qual a mais antiga ou a mais preponderante, devemos olhar para uma passagem na Mishná de Sanhedrin (Sanhedrin 4:5). Numa discussão sobre a pena de morte, se diz que quem mata uma pessoa é como se tivesse matado um mundo inteiro e quem salva uma vida, é como se salvasse um mundo inteiro. Assassinato nada mais é do que uma forma de genocídio. Fala também da singularidade, da riqueza intrínseca, que existe em cada ser humano. Para Maimônides, não Certas edições da Mishná trocaram o há nenhuma diferença ontológica entre judeu termo “homem” por “Israel”. Contudo, fica claro pelo contexto que a frase original, a intenção primeira do texto, referee não-judeu. Ambos -se a homem como tal, sem qualquer coforam criados à nexão com determinada religião ou gruimagem e semelhança po étnico. Portanto, era estabelecido no de Deus. Compete ao texto mais antigo a igualdade de todos os homens e esta era a concepção predomihomem procurar o nante no pensamento rabínico original e conhecimento de Deus a que representa e encontra eco nas prinou seguir suas paixões cipais correntes do judaísmo. e tendências naturais e O segundo componente desta questão submergir na natureza e é o legal. O direito rabínico, como outros sistemas jurídicos da Antiguidade e do em seus instintos. medievo, não comporta o conceito de direito universal. Entre os gregos e romanos havia uma lei para os cidadãos e outra para os estrangeiros. Esta marca está presente também na halachá. Isto envolve questões bem concretas, de dia a dia. As leis de shabat não dizem respeito aos não-judeus. Também as leis de pureza e impureza sexual não lhes são aplicáveis. Mas uma sorte de leis deram muito o que falar entre os detratores do judaísmo, as que dizem respeito aos danos pecuniários e à devolução de algo perdido. A lei rabínica não obriga um judeu a devolver algo que um não-judeu perdeu. Como ambos são regidos por sistemas jurídicos distintos, não há a possibilidade de se aplicar leis pecuniárias comuns. Mas aqui entra em cena uma história relatada no Talmud Yerushalmi, tratado Bava Metziah 8: c. Refere-se a rabi Shimon ben Shetach, que viveu mais ou menos no século I AEC. Figura importante no pensamento rabínico. Era nassi, presidente, do Sinédrio, a mais alta corte religiosa. Portanto, não estamos falando de um rabino qualquer, funcionário público ou dirigente de uma pequena yeshivá. Certo dia, Shimon ben Shetach despachou seus discípulos para que lhe comprassem um jumento. Eles encontram um árabe (neste contexto, daquela época, “árabe” era o que vivia nas “aravot”, nos ermos; num significado parecido ao termo latino paganus) de quem compram o tal jumento. No caminho de volta, descobrem que no mesmo há uma pérola escondida, da qual o antigo dono não tinha conhecimento. Chegam então felizes a seu mestre e contam o que aconteceu. Este lhes pergunta: o árabe sabia da existência da pérola? Os discípulos logo respondem “não”.

E arrematam: mestre, não temos que devolver algo perdido por um não judeu. A pérola é sua segundo a lei.
Simon ben Shetach lhes repreende e responde: devolvam-lhe a pérola. Que ele diga: grande e justo é o Deus de Israel. Pois todas as pérolas do mundo não valem o bom Nome de Deus.
O que se passa aqui não é uma questão de marketing, de ser “bom mocinho”. Mas sim um conceito profundo: Hilul Hashem, profanação do Nome de Deus. Devemos promover o Bom Nome de Deus entre as nações. Mesmo que a lei permita uma coisa, deve-se ultrapassar a lei, sair-se da halachá e ir-se para a meta-halachá com o intuito de se obter algo maior, o respeito e a possibilidade de diálogo e coexistência com o Outro.
Alguns setores da ortodoxia em Israel acreditam que os tempos em que devíamos nos preocupar com a profanação do Nome de Deus já passaram. Seriam resquícios dos dias da Diáspora, quando os judeus viviam como minoria. Por acaso, Shimon ben Shetach era irmão da rainha Shlomt-
Na Mishná, em sion. Nos seus dias o reino dos macabeus
Sanhedrin, era estabelecida a prosperava e os judeus tinham, também, seu exército. Mas é de Yehuda Halevi, o mesmo que igualdade de todos advogava a diferença ontológica entre juos homens e esta deus e não-judeus, que nos vem uma perera a concepção gunta crucial. Em determinado momenpredominante no to, o rabino judeu dirige-se ao rei cáza ro e aponta como os judeus jamais ma pensamento rabínico taram pela sua fé, jamais oprimiram ninoriginal e a que guém, não massacraram. O rei então resrepresenta e encontra ponde: “Não fizeram pois não tinham o eco nas principais poder para tal. Se um dia tiverem, farão correntes do judaísmo. estas mesmas coisas”. E então, que resposta surgirá em nossos dias? A de que se resgate os princípios éticos que nortearam gerações de sábios que preferiam o bom Nome de Deus à aplicação fria de regulamentos, ou daremos razão ao rei dos cázaros? (Para Antônio de Gouveia Junior, companheiro de intermináveis conversas, in memoriam.) Francisco Moreno Carvalho é médico e historiador.
7 Moisés quebra o primeiro conjunto de tábuas com os Dez Mandamentos (gravura de Julius Schnorr Von Carosfeld 1794-1872). 5 Estátua de sal da esposa de Lot, próxima ao Mar Morto.

