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Levi Kellman

encorajando o questionamento: entrevista com o rabino levi Kellman

Colocamos a palavra Deus também no feminino e rezamos pela paz misturando árabe e hebraico. São ideias radicais colocadas dentro de um contexto tradicional, o que faz sentido para os congregantes da Kol Haneshamá e para mim.

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7 “A primeira aula é como preparar as cadeiras numa sala, é preciso pensar muito em como preparar o espaço porque isto tem uma importância enorme na mensagem que será passada”.

redação de devarim

Orabino Levi Kellman, fundador da sinagoga Kol Haneshamá de Jerusalém, a primeira sinagoga Reformista de Israel, esteve no Brasil em novembro passado, liderando um seminário de estudos promovido pela seção latino-americana da World Union for Progressive Judaism – WUPJ, que reuniu mais de 30 rabinos de toda a região. Na ocasião ele concedeu a seguinte entrevista para Devarim.

Devarim: O movimento reformista se caracteriza por uma abordagem racional do judaísmo e a Kol Haneshamá combina isto com uma prática ritual muito próxima aos primórdios do Chassidismo, com ênfase na expressão espontânea e na música introspectiva. Como o senhor explica isso?

Levi Kellman: Eu acredito mais em biografia do que em ideologia, desta forma a minha abordagem judaica foi formada pela família na qual fui criado. Meu pai foi um rabino conservador, filho de um rabino ortodoxo. Minha mãe era filha de um rabino reformista e juntos eles nos ensinaram a amar e apreciar todos os caminhos judaicos. Era normal passar um shabat com nossos parentes ortodoxos no Brooklin e o outro com nossos parentes reformistas em Chicago ou em Long Island. Proporcionando aos seus filhos estas experiências completamente diversas, meus pais nos transmitiram um profundo respeito por todas as expressões do judaísmo, de uma forma que quase não se encontra mais hoje em dia.

No entanto, eu não fui influenciado unicamente pela família. A intensidade dos anos 60 nos Estados Unidos – o movimento contra a guerra no Vietnã, a contracultura expressa no poder transformador da música e na espiritualidade, a grande suspeição contra a autoridade – tudo isto teve um papel muito im-

“Pode parecer para muitos que fazemos uma combinação esquisita de Reforma com Chassidismo, mas quem chega à nossa congregação vê que somos muito tradicionais, pois rezamos com muita kavaná.”

portante em minha visão de mundo. Eu tenho um grande amor pela música e um igualmente grande compromisso para com a transformação social. E como música e transformação social são partes do judaísmo, fica claro que eu não inventei nada de novo.

Aliás, cada vez que eu imaginei ter achado algo novo e interessante na minha vida fora do judaísmo acabei descobrindo que aquilo também era judaico. O exemplo mais forte que eu experimentei sobre isso aconteceu com a ioga. Por muito tempo eu pratiquei ioga diariamente. Eu meditava com o sidur ao lado e um dia o vento soprou pela janela, virou as folhas e parou na brachá [benção] “Elohai, neshamá she natata bi tehorá hi” [meu Deus, a respiração1 que pusestes em mim é pura]. Eu tinha 19 anos e achava que a respiração da ioga era uma coisa nova e maravilhosa e o sidur veio me dizer que ela é judaica também.

Pode parecer para muitos que fazemos uma combinação esquisita de Reforma com Chassidismo, mas quem chega à nossa congregação vê que somos muito tradicionais, pois rezamos com muita kavaná [intenção]. No entanto, colocamos a palavra Deus também no feminino e rezamos pela paz misturando árabe e hebraico. São ideias radicais colocadas dentro de um contexto tradicional, o que faz sentido para os congregantes da Kol Haneshamá e para mim. Devarim: Para conduzir os serviços religiosos no formato da Kol Haneshamá é preciso que a congregação compartilhe do mesmo “comprimento de onda”. Como o senhor faz isso?

Levi Kellman: Bem, duas coisas acontecem ao mesmo tempo. De um lado eu tenho uma personalidade forte e sou eu quem determina o que vamos fazer a cada momento. Ao mesmo tempo, tenho que ser muito sensível, escutar e sentir onde a congregação está e onde ela quer chegar. A tefilá [reza] é quase um diálogo entre a congregação e eu. E às vezes eu estou num clima e a congregação está noutro. Eu tenho que me ajustar ao momento, às vezes sou eu quem os puxa e às vezes são eles que me empurram. Posso entrar na sinagoga com muita vontade de cantar e dançar e achar a congregação mais introspectiva. Existem ocasiões nas quais consigo fazê-los entrar na minha e também acontece o contrário, ou, quem sabe, chegamos juntos a um meio termo.

A arquitetura da minha sinagoga ajuda muito este processo. A bimá [palco a partir do qual se conduz os serviços religiosos] fica a poucos centímetros do solo e as pessoas se sentam em torno dela, o que permite que elas olhem umas para as outras, em vez de dirigir todos os olhares apenas para o palco. A primeira aula que eu dou aos estudantes de Rabinato [Kellman é professor no Hebrew Union College em Jerusalém] é como preparar as cadeiras numa sala. Não

que haja uma forma certa e uma errada, mas é preciso pensar muito em como preparar o espaço porque isto tem uma importância enorme na mensagem que será passada. Depois de arrumar as cadeiras é necessário sair do prédio e entrar de novo para avaliar o que as pessoas sentem ao entrar no ambiente.

Eu acho que o que acontece na tefilá da Kol Haneshamá é a metáfora da relação muito especial que mantemos lá entre o líder e a congregação. E eu acredito que este tipo de relação funciona bem para todos os tipos de liderança. Eu acredito que o líder que tenta levar a congregação onde ela não quer ir e não entende qual o seu momento e onde ela está situada vai falhar. Assim como um líder que se limita a escutar sua congregação e apenas faz o que a congregação exige dele não é um líder verdadeiro.

O mundo judaico está se movendo para fora do modelo de sinagoga onde o rabino e a Torá ficavam lá em cima, distantes da congregação. Há hoje uma distância muito menor entre o rabino e a congregação. Quando meu avô, o rabino reformista, entrava num ambiente todos se levan-

O líder que tenta levar tavam. Já com o meu outro avô, o rabino a congregação onde ela não quer ir e não chassídico, todos vinham beijar sua mão. Isto não acontece mais hoje em dia, o que eu acho muito bom. Os anos 60 me deientende qual o seu xaram com uma forte suspeição às figumomento e onde ela ras autoritárias. Quero que cada um tome está situada vai falhar. o controle de suas vidas e que cada um Assim como um líder seja a sua própria figura autoritária. Meu papel como rabino não é dizer o que as que se limita a escutar pessoas devem fazer e sim ajudá-las, com sua congregação e orientação e ensinamento, a entender o apenas faz o que a que querem fazer. O que elas farão é uma congregação exige decisão delas e não minha. dele não é um líder Devarim: A meditação é uma técnica verdadeiro. oriental, desenvolvida a partir de uma mentalidade completamente diferente da judaica. Como é possível combinar judaísmo com meditação? Levi Kellman: No passado houve uma forte tradição judaica de meditação, mas, principalmente após o iluminismo, o mundo judaico se tornou muito racional e a tradição de meditação foi esquecida. Temos muitas evidências de meditação judaica, começando pelo Tanach [a Bíblia] onde o Salmo 65, verso 2, diz “lechá dumiá tehilá”

“Os anos 60 me deixaram com uma forte suspeição às figuras autoritárias. Quero que cada um tome o controle de suas vidas.”

[para Vós silêncio é louvor], em outras palavras: ficar quieto é uma forma de reza. A Mishná [parte do Talmud] relata que certos rabinos esperavam até uma hora antes de estarem prontos para recitar a Amidá [parte central da reza judaica]. A Mishná não nos diz como eles faziam sua meditação, mas é certo que temos uma tradição de mais de 1.500 anos na qual a regra não era de simplesmente recitar as palavras da Amidá, mas de estar pronto para recitá-la, de fazê-la sair de uma região muito íntima e profunda de seu ser. E temos também a Cabala, desenvolvida na Idade Média, que tem uma forte tradição na meditação.

Todas estas tradições foram submersas, assim que parte do meu papel, e de outros professores, é trazer estas tradições de novo para a superfície. Não há dúvida que professores budistas tiveram uma grande influência no mundo judaico deste século. Há um intenso diálogo budista-judaico acontecendo neste momento. Por exemplo, Sylvia Boorstein é uma judia praticante e escreveu um livro maravilhoso intitulado “Funny, you don´t look like a Budhist” [Engraçado, você não parece um budista] cujo subtítulo é “como ser um fiel judeu e um budista apaixonado”. Ela está envolvida no treinamento de rabinos e chazanim [cantores litúrgicos] com o objetivo de aprofundar sua experiência espiritual.

É um fenômeno que está crescendo atualmente e que reflete os nossos tempos. Penso que na geração dos meus avós, onde os rabinos eram figuras autoritárias, muito frequentemente eles negligenciavam sua vida espiritual. Eu me lembro de um professor daquela geração que dizia aos seus alunos que quando eles estavam liderando um serviço religioso eles não podiam rezar, pois sua função era liderar a reza e não rezar. E isto é exatamente o oposto do que eu penso. Para mim, se quem está liderando a reza não está rezando, ele está falhando completamente.

Algumas pessoas que vêm à sinagoga podem não ter o mesmo conhecimento judaico que os rabinos e chazanim, mas isto não significa que sejam menos sábias ou sensíveis. E estas pessoas, ao perceber que a reza não é importante para quem a está conduzindo, se dirão: “Se o líder não encontra significado na reza, como ela terá significado para mim?” É muito importante comunicar quão importante a reza é para você. Meu papel como Devarim: Uma coisa que nos intriga é rabino não é dizer o que as pessoas devem a distância do Chassidismo “original”, que lemos nos livros e que se parece com tudo o que o senhor falou até agora, e o fazer e sim ajudá-las, de hoje, com sua centralidade extrema no com orientação ritual. O que aconteceu? e ensinamento, Levi Kellman: O que aconteceu é tía entender o que pico dos movimentos revolucionários que começam com uma mensagem muito claquerem fazer. ra, mas que já na terceira ou quarta gerações se dilui significativamente. Os fundadores e as primeiras gerações do Chassidismo estavam cheios de paixão, mas como eram acusados de não serem suficientemente “tradicionais” foram se transformando e hoje são superaderentes ao ritual ortodoxo. Devarim: O senhor acha que algo parecido pode acontecer conosco, com a Reforma? Levi Kellman: Este é um processo natural e, de uma certa forma, já temos isto. Existem “reformistas ortodoxos”, pessoas que ficam muito incomodadas se o serviço não tiver certas melodias ou até mesmo se não mantiver uma certa disposição das pessoas no espaço da sinagoga. Eu não conheço a ARI, mas com certeza vocês têm isto por aqui. E é por isto que é sempre vital achar formas de trazer gente jovem, com seu espírito de rebelião e questionamento. Isto é muito difícil e às vezes doloroso para a comunidade. A coisa natural para uma comunidade é lutar para se manter como é. Manter-se homogênea com pessoas que pensam da mesma forma. Mas ao mesmo tempo acredito que é muito importante trazer jovens famílias, que nos desafiem, que nos contestem, que não nos deixem acomodados. Falar é simples, mas fazer não é nada fácil. Porque as pessoas têm muito medo de danificar coisas que amam e respeitam profundamente. Desafios implicam sempre em perigo e é muito compreensível que haja resistência aos desafios. Mas ao mesmo tempo é também muito perigoso parar no tempo, empacar. O equilíbrio entre estes dois polos é uma dança muito complexa. Ninguém quer causar desconforto a pessoas que são membros da congregação há anos, muito pelo contrário todos sabem que eles merecem o máximo de carinho, respeito e consideração. Porém, se pensarmos apenas neles a congregação naufraga.

“Nós inovamos há 25 anos, por que não podemos inovar hoje de novo?”

Nossa congregação tem apenas 25 anos e já temos esta luta. Temos pessoas que não querem mudar uma vírgula do que introduzimos de forma revolucionária 25 anos atrás. Eu penso: nós inovamos há 25 anos, por que não podemos inovar hoje de novo? Porque esta é a verdade por trás das mudanças – tudo o que é statu quo hoje foi um dia revolucionário. Mas de alguma forma as pessoas realmente sentem uma grande necessidade de manter o que existe e isto é muito perigoso.

Devarim: Uma questão sempre presente em todas as mudanças é a unidade do povo judeu, porque é evidente que apenas muito raramente todos caminharão no mesmo passo ou até mesmo no mesmo caminho. Mas todos querem manter a unidade. O senhor poderia comentar sobre isto? Levi Kellman: Muitas vezes a questão da unidade é usada por demagogos para matar dissensões e questionamentos quanto a sua forma particular de agir. E penso que abafar a dissensão é oposto à essência judaica. Você percebe, já no Talmud, que uma das grandes forças do judaísmo é que ele encoraja o questionamento. E não há contradição alguma entre ser um só povo e manter um leque de opiniões divergentes, mesmo quando fortemente divergentes. E mesmo discordando da opinião do outro você pode entender que, ainda assim, ambas são a palavra do Deus que vive.

Este é um conceito muito profundo. Parte da essência judaica está no fato de que nós encorajamos o questionamento. Uma das minhas histórias favoritas do Talmud é a relação entre Rabbi Yochanan e Raish Lakish, que foram companheiros de estudos por muitos anos, até que Raish Lakish morre e Yochanan fica sozinho e desconsolado. Ele passa a estudar com seus alunos mais brilhantes, porém cada vez que ele emite uma opinião seus alunos se apressam a justificá-la, até que certo dia Rabbi Yochanan explode: quem precisa de vocês?! Certamente eu creio que minhas opiniões estão certas! Raish Lakish era meu companheiro de estudos justamente porque ele me desafiava constantemente apontando as falhas do meu pensamento. É para isto que serve um parceiro: para fazer você descobrir os teus erros e não para aplaudir os teus acertos.

E para mim a essência da unidade judaica é a habilidade de acolher diferentes pontos de vista. Mais uma vez isto parece simples, mas é na verdade muito difícil. No entanto, este é um importante valor judaico: abrigar eternamente a ideia que podemos estar errados.

Notas

1. Neshamá em hebraico significa tanto respiração como alma. É comum encontrar esta brachá traduzida como “meu Deus, a alma que pusestes em mim é pura”.

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