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Nelson Hoineff
usinas de verdades
nelson Hoineff
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Épraticamente consensual que uma grande parte dos melhores documentários que se fazem hoje no mundo tem origem em Israel. Pode haver muitas razões para isso. Uma é completamente pragmática. O documentário, em geral, não entretém. Como cinema de resultado, está muito abaixo da ficção. De uma historieta perfeitamente idiota, por exemplo, pode-se esperar um bom desempenho de bilheteria, com resultados satisfatórios para o produtor. Não de um documentário. Seja ele investigativo, denso, instigante, de um documentário não se pode esperar resultados financeiros atraentes. Nem mesmo em casos especialíssimos como o do excelente Trabalho Interno, que acaba de ganhar o Oscar da categoria. O público responde ao entretenimento, não à informação.
Por isso, documentários são geralmente feitos no contexto de sociedades que têm algo a dizer, com recursos específicos – e de maneira irredutível a outras formas de expressão –, algo que não pode ser ficcionalizado e, ainda assim, tem que ser contado. Não é absurdo associar a qualidade da produção documental à necessidade que uma sociedade tem de se exprimir.
E o que a sociedade israelense tem a dizer é, para o bem ou para o mal, um manancial inesgotável. O que se passa num lar israelense tende a ser ligeiramente mais rico do que o que acontece na casa do Big Brother Brasil.
O israelense Tomer Heymann, por exemplo, tem muito o que dizer. Seu filme The Queen has no Crown, apresentado em fevereiro no Festival de Cinema de Berlim, traça um pequeno painel do que muitos outros israelenses têm engasgado. Documentários são geralmente feitos no contexto de sociedades que têm algo a dizer, com recursos específicos – e de maneira irredutível a outras formas de expressão –, algo que não pode ser ficcionalizado e, ainda assim, tem que ser contado.

No documentário de Tomer Heymann, a família, o cotidiano, as paixões e as razões para viver.
Tomer fala de suas experiências mais profundas, mas faz isso como se estivesse contando o resultado de um jogo de futebol. Está falando dele, mas dialogando com cada espectador.
A questão central é o esfacelamento de sua família, que vive em Nathania. A rainha é sua mãe, uma sionista que ainda jovem foi para Israel – cujos filhos agora estão deixando o lar para estudar nos EUA, trabalhar nos EUA, tentar outra vida nos EUA. Ela se divorciou do marido, também sionista convicto, depois de 33 anos de casada. Hoje ambos não se falam. O lar, que era cheio, esvazia-se a cada ano. Os jantares de Pessach, que outrora eram concorridos, agora têm cada vez menos participantes e são mais artificiais.
A alegria lá, como em muitas outras partes, é forjada. Não há verdade no que estão cantando. A verdade foi-se embora com a família. O documentário de Tomer é sobre essa família. Por que ela faz hoje o caminho inverso do sonho sionista? Por que a utopia já não a alcança?
Aos 39 anos, Tomer pertence a uma geração de documentaristas particularmente inovadores, corajosos e controversos em Israel. É um ativista de muitas causas: a liberação dos territórios ocupados e os direitos civis de comunidades de diferentes orientações sexuais.
O realizador é uma importante voz dos movimentos anti-homofobia em todo o mundo. Isso está expresso em alguns de seus filmes exibidos em outros anos em Berlim: Paper Dolls (2004) e I Shot my Love (2010), entre eles. Para Tomer, o ativismo e as relações familiares são partes da mesma questão.
O irmão gêmeo de Tomer tem o mesmo nome de seu namorado: Ben. É uma situação embaraçosa, um dos pequenos problemas cotidianos com que tem que lidar. Outro irmão desafia permanentemente o próprio ofício de fazer filmes, que considera uma coisa menor, uma atividade inútil. Atira, particularmente, sobre o método utilizado por seu irmão para fazer esse filme.
Pois seu método é o seguinte: por mais de dez anos, Tomer não largou nem por um segundo a sua câmera portátil. Documentou tudo o que acontecia ao seu redor. Os encontros e desencontros com a mãe e o pai, as partidas de seus irmãos para sempre, o encolhimento da família, a solidão de sua mãe, o seu flerte com Ben, depois o tórrido namoro – e finalmente a separação, indesejada por ele.
E, no entanto, não é Tomer o foco de seu filme. Ou por outra: The Queen has no Crown fala do diretor o tempo todo, e na primeira pessoa. Mas está falando mesmo é sobre o mundo que está ao seu redor. Sobre o seu país. Sobre os entraves à expressão de sua sexualidade e o papel de sua família para tornar isso mais fácil ou mais penoso. Sobre paixões e razões para viver. Sobre a inserção de cada um no seu núcleo familiar.
Há um importante vetor político nas proposições de Tomer: discutir como o Estado de Israel está tratando a sua gente; pensar por que tantas famílias, descendentes
de sionistas e sionistas elas próprias, têm deixado o país. O foco para isso está em sua mãe. Nesses dez anos ou mais, Tomer captou todas as suas reações à partida dos filhos, às suas revelações, aos jantares cada vez menos animados. A mãe subiu ao palco com ele na primeira exibição do filme em Berlim.
O outro vetor está na maneira pela qual Tomer utiliza a câmera como um instrumento para surfar pela vida. Ele tem um papel político a cumprir, mas também uma experiência humanista a compartilhar. Na maior parte do seu filme, Tomer parece profundamente feliz. Não se pode dizer a mesma coisa de muitos outros personagens – e é fácil entender porquê. A culpa e a intolerância estão por toda parte, mas não se pode imaginar que haja alguma culpa a ser contabilizada pelo fato de Tomer viver bem a sua vida, a sua opção política, a sua orientação sexual.
A contemporaneidade de The Queen has no Crown deriva dessa atitude. Não há nada no filme que não seja real
O método do israelense (na medida em que nada foi encenado e
Tomer Heymann é o seguinte: por mais de nem preparado como depoimento formal); nada que não seja verdadeiro – ainda que seu irmão não ache isso e o classidez anos, não largou fique de “manipulativo, com essa cameranem por um segundo zinha de merda”. a sua câmera portátil. Não tenho certeza que seja uma came-
Documentou tudo o razinha de merda, mas estou seguro quanto aos limites da manipulação. Esse é um que acontecia ao seu filme menos manipulativo do que um redor, os encontros e único acorde musical numa comédia rodesencontros com a mântica. Uma obra sobre emoção e permãe e o pai, as partidas plexidade em estado bruto. Por isso, o dode seus irmãos para cumentário israelense tem sido tão rico, tão abrangente. Porque cada vez mais josempre, o seu flerte vens como Tomer encontram razões para com Ben. pegar “uma camerazinha de merda” e surpreender todo mundo com duas horas repletas de verdades que todos precisavam ouvir – mesmo que algumas vezes não quisessem. Nelson Hoineff é jornalista, crítico de cinema, produtor e diretor de cinema e televisão e sócio da ARI.


Não há nenhuma imagem no filme que não seja real, verdadeira.