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Breno Casiuch e Artur Benchimol
seção pilpul liberdade de expressão e racismo
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Breno Casiuch
Volta e meia, nos meandros de nossas vidas cotidianas, somos confrontados com diversos atos de preconceito. Algumas vezes – quiçá a maioria delas – somos alvos de comentários racistas, xenófobos, de taxações e de estereótipos. Como judeus, talvez já tenhamos sido atingidos por palavras de racismo e de intolerância. Noutras oportunidades, somos atores pró-ativos de opiniões preconceituosas a respeito de outras pessoas e fatos.
Se for possível falar em uma verdade absoluta (perdoem o pleonasmo!) com relação a todos os seres humanos, esta seria a de que nenhuma pessoa é neutra. Cada indivíduo carrega consigo valores, ideologias e princípios construídos e lapidados ao longo de sua história pessoal. Repito: nenhum ser humano é neutro. Por consequência, todo ser humano (independentemente de etnia, religião e outros atributos) traz consigo, juntamente com seus valores, inúmeros preconceitos, estereótipos e estigmas. No plano das ideias, portanto, a tolerância e a igualdade são axiomas. No plano da prática, a questão torna-se um pouco mais complexa e difícil.
Qual seria o papel, pergunto, em meio a um mundo aflito pela guerra, pela intolerância e pela belicosidade, do tão importante direito à liberdade de expressão? Qual seria a real proporção deste princípio? Até que ponto as pessoas podem (ou devem?!) falar tudo aquilo que pensam?
É muito comum lermos e ouvirmos na mídia impressa e falada notícias, reportagens e matérias imbuídas de preconceitos subliminares ou, até mesmo, bastante explícitos. Recentemente, por ocasião da invasão de Israel à Faixa de Gaza, os judeus foram alvos de diversos comentários racistas. Tempos atrás, o “É proibido proibir” foi uma das principais palavras de ordem da juventude nos anos 60. Mas este lema, adotado como autoevidente e verdade universal por uma imensa legião de jovens daquela época, não é de forma alguma pacífico. Nesta seção, oferecemos duas visões sobre o assunto para que os leitores tirem suas próprias conclusões e, se assim o desejarem, as compartilhem com a revista pelo mail devarim@ari-rj.com.br.
presidente iraniano, por exemplo, verbalizou que não acreditava que o Holocausto tivesse realmente ocorrido e que o sionismo era uma ideologia racista.
Nestes casos (assim como em outros similares) seria correto falar em um primado da “liberdade de expressão racista” frente ao respeito às minorias? Devese notar que ambos os valores são igualmente caros à nossa sociedade. Afinal, em uma sociedade democrática todos devem poder emitir suas opiniões assim como todos devem ser igualmente respeitados.
Expressar-se é, incontestavelmente, um direito de todo ser humano. É através desta liberdade que lutamos por nossos direitos, verbalizamos nossas opiniões e propagamos conhecimento. A liberdade de expressão, seja ela escrita ou falada, em tese, nunca deveria ser censurada. Em quase todas as sociedades democráticas modernas, a liberdade de expressão é elevada a um patamar de verdadeiro direito humano e de ferramenta fundamental à completude da dignidade da pessoa humana.
Os Framers (como são denominados os filósofos políticos norte-americanos que idealizaram a Independência e a Constituição dos Estados Unidos), cientes do papel que a liberdade de expressão exerce em todo governo e país que se diz democrático e cumpridor das liberdades e dos direitos individuais, elevaram à verdadeira cláusula constitucional este princípio. É assim que a 1a Emenda da Constituição deste país é assim redigida: “Congress shall
A liberdade de make no law respecting an establishment expressão, seja ela escrita ou falada, em of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom speech, or of the press (...)” [“O Congrestese, nunca deveria ser so não legislará no sentido de estabelecer censurada. Em quase uma religião, ou proibindo o livre exercítodas as sociedades cio dos cultos; ou cerceando a liberdade democráticas modernas, de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de a liberdade de dirigir ao Governo petições para a reparaexpressão é elevada ção de seus agravos]. a um patamar de Não coincidentemente é nos Estados verdadeiro direito Unidos, país que institucionalizou a liberhumano e de dade de expressão, onde se encontram talvez os mais curiosos casos e as melhores ferramenta fundamental soluções relativos a este assunto. No ano à completude da de 1987, por exemplo, a famosa organidignidade da pessoa zação Ku Klux Klan solicitou a um canal humana. de televisão de Kansas um espaço de tempo para veicular seu programa, intitulado “Klansas City Kable”. O programa seria dedicado e lidaria com questões raciais. Imediatamente a polêmica se instaurou. Esta foi ainda maior devido ao fato de que o estúdio do referido canal estava situado em uma região da cidade cuja maioria era negra. Para esta comunidade, o preconceito que iria ser demonstrado durante o programa era absolutamente desarrazoável, de forma que seria repugnante assistir a um programa desta espécie dentro de suas próprias casas. Os membros da Ku Klux Klan, incontinentemente, ajuizaram uma ação perante o tribunal local a fim de salvaguardar o seu direito e liberdade de expressão, consagrado na 1a Emenda. Ao final de al-
guns anos, entendeu a Suprema Corte que a liberdade de expressão, por seu importante papel que exerce junto à sociedade, só poderia ser restringida quando o seu discurso pregasse o uso de violência e incitasse diretamente ações ilegais. Caso o discurso tratasse de temas racistas, mas isentos de qualquer teor indutor de violência, não poderia ser restringido ou censurado.
Mesmo que possamos pensar em uma decisão acertada da Corte norte-americana, reflito e chego à conclusão de que é muito difícil existir um discurso racista e preconceituoso não imbuído de incitação à violência. Violência no mínimo psicológica, porque todo tipo de intolerância e desrespeito às minorias e aos mais fracos é naturalmente violenta e odiosa.
Não acredito, portanto, que caiba ao governo e aos nossos juízes definirem qual é o bom discurso, o bom livro, o bom quadro ou o bom filme. Não acredito, inclusive, que é correto censurarmos livros porque emitem ideias racistas. No limite, não acredito até em uma pessoa ser presa devido a um comentário racista. A liberdade de expressão, conforme salientava um ex-ministro da Suprema Corte norteamericana, deve ser compreendida e entendida dentro de um ambiente de livre mercado e, portanto, de liberdade. A liberdade de expressão – que sempre deve se dar em um ambiente de paz e no ambiente das ideias, sem uso da força e da violência – deve ser plena. Comentários e ideias racistas devem ser refutadas por outras ideias e comentários antirracistas. A intolerância, no plano do discurso e das ideias, deve ser combatida pela tolerância e pela dignidade. Somente desta forma, no longo prazo, poderemos pensar em um mundo mais pacífico e menos hostil.
Deve-se ter em mente, contudo, que se esta expressão, este discurso ou debate se transmudarem em violência, ódio, guerra, morte, difamações e injúrias pessoais, os causadores dos danos deverão e merecerão responder pelos seus atos. O texto que aqui escrevo, portanto, não visa legitimar práticas preconceituosas, nem incentivar que pessoas saiam às ruas xingando umas às outras. Estes atos são intrinsecamente odiosos e criminosos. O presente texto cuida, por outro lado, da discussão em tese entre ideias e teorias antitéticas.
Breno Casiuch é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
VISãO 2 – Não se pode tolerar quem não tolera
Artur Benchimol
“... O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” Michel Foucault, em A Ordem do Discurso
Eu não tolero quem não me tolera, principalmente com as palavras e, apesar do paradoxo iminente, não me resta outra opção. Além disso, pensar que o discurso é uma esfera desvinculada da disputa pelo poder, desvinculada da realidade prática e cotidiana em que existe liberdade em termos absolutos, deve ser visto como uma ingenuidade.
Vivemos na era da internet, na qual a comunicação em rede estabeleceu um modelo de comunicação na qual a liberdade é praticamente ilimitada. Existem sites que congregam pessoas para as mais diferentes, e às vezes bizarras, finalidades. Vemos desde comunidades utilizadas para aproximar e facilitar o encontro de cachorros da mesma raça, até grupos de incentivo ao suicídio.
Que uma página desse tipo esteja lá onde o vento faz a curva na internet, muito além dos poderosos olhos do Google, tudo bem, mas quando nos deparamos com práticas violentas ou incompreensíveis nas capas dos jornais, nos chocamos.
Um caso específico nunca me saiu da cabeça: em 2001, o alemão Armin Meiwes publicou um anúncio na internet dizendo que tinha vontade de praticar canibalismo. Prontamente, outro membro da comunidade online se interessou, voluntariando-se para ser devorado. Os dois, então, realizaram o feito entre quatro paredes e em comum acordo. O caso foi para a Justiça e a notícia para o pé da porta de nossas casas no jornal da manhã.
Desculpem a história de terror nessas páginas da Devarim, mas a relação entre a livre propagação do discurso e tal acontecimento é direta. Interferir em um é interferir no outro. Bastava o administrador do suposto site tirar a página do ar, ou pelo menos censurar os posts mais cabeludos, que esse crime não teria sido cometido. Apesar de
ser uma clara violação de uma ideal liberdade de expressão, esse ato teria evitado o homicídio. Não teria suprimido as vontades e as intenções, que são de profundidade específica e psicológica, mas sim a realização e, como consequência, a difusão da prática através dos meios de comunicação.
Entretanto, uma prática de censura e repressão a formas de discurso violentas e propagadoras de violência fere o forte sentimento contemporâneo de que a pluralidade é riqueza. E devo dizer que sim, a pluralidade é a maior das riquezas, mas não tem como conter a antipluralidade, pois assim torna-se impraticável. Não se pode tolerar quem não tolera.
Quem abre a boca ou a caneta para incitar ódio, supremacia, submissão, genocídio, violência e outros tipos de ideias fundamentalistas não será convencido por aquilo que não possui, que não tem. Explico: alguém com ideias que não seguem uma lógica, não será convencido pela lógica.
E chega de cinismos. Sem essa história de que muitos discursos que lemos e encaramos nos botequins da nossa vida não são intolerantes quando claramente são. Um exemplo recente é o presidente do Irã, que defende que Israel não deve existir. Muitas pessoas, inclusive esclarecidas, acabam defendendo esse ponto de vista, argumentando que não se trata de antissemitismo e sim antissionismo. Ora, negar o direito de autodeterminação, um direito humano básico, a um determinado povo e os indivíduos que o compõem não pode ser outra coisa senão racismo. Os jovens franceses que se vestiram de palhaços e chamaram o presidente do Irã de racista na conferência de Durban II o fizeram com muita propriedade.
E agora, como atuar sem se assemelhar aos monstros que tentamos combater? Trivial, além de tentar esclarecer e ajudar essas pobres mentes obscurecidas por ideias violentas e intolerantes, saber separar o joio do trigo, e cortar o mal antes que se propague. Devemos confrontá-las frontalmente nos fóruns democráticos de nossa sociedade. A prática de censura Devemos tentar restringir sua circulae repressão a formas de discurso violentas ção e sua concentração, abertamente. A lógica é simples: para entrar no clube democrático, você deve respeitar as regras e propagadoras da democracia, caso contrário, espere do de violência fere lado de fora e reflita até pensar difereno forte sentimento te. É sempre de torcer o nariz quando ascontemporâneo de sistimos ao surgimento de mais um partido antidemocrático (teocrático, racista, que a pluralidade é totalitário, etc.) no seio de democracias. riqueza. A pluralidade Quando uma ideia intolerante se institué a maior das riquezas, cionaliza a esse ponto, o discurso já cirmas não tem como culou de maneira ampla debaixo de nosconter a antipluralidade, sos narizes. São direitos democráticos também pois assim torna-se querer boicotar revistas racistas, não dar impraticável. Não se ouvidos e não convidar a debates intepode tolerar quem lectuais intolerantes, tentar refutar suas não tolera. declarações, deslegitimizar suas teorias, não financiar suas instituições, etc. Obviamente não é algo agradável de se assumir, mas não estamos aqui para sermos queridos por esse tipo de gente. Claro que devemos manter o bom-senso, sem transformar nossa prática discursiva em um estado de paranoia, em um combate incessante ou em uma cruzada, achar que todos são conspiradores violentos – tais sentimentos só nos transformarão naquilo que tentamos combater. Mas podemos ser incisivos e diretos contra aqueles discursos que tentam, muitas vezes através de subterfúgios, ameaçar a pluralidade e até a própria liberdade na nossa sociedade. Podemos censurar piadas racistas em nossas conversas, lutar pela censura de publicações de mesmo cunho, ser mais incisivos contra sutilezas intolerantes nas conversas que participamos, lutar por legislações mais atentas a essas práticas, apoiar e fortalecer grupos e discursos ameaçados, entre milhares de outras coisas. Até porque, quem tenta propagar uma ideia que tem como objetivo reprimir a vida e a liberdade, seja de outras ideias, seja de outros indivíduos, só pode ser deixado de uma maneira: falando sozinho. Artur Benchimol é publicitário, formado pela ECO-UFRJ e ex-peil da Chazit Hanoar.