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Eduardo Zylberstajn
cooperação e continuidade
eduardo zylberstajn
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Oprimeiro gueto judaico na Europa de que se tem notícia foi o de Veneza. Criado por um decreto governamental em 1516, nunca abrigou mais do que 4.000 judeus. Além de ser o responsável por popularizar mundialmente o termo “‘gueto”, que se originou do termo “ghetta” do dialeto local, há outras peculiaridades nessa minúscula área. Uma das mais curiosas é a presença de cinco sinagogas no local. Isso mesmo: cinco sinagogas, para no máximo 4.000 frequentadores. Duas ashkenazim (uma para os franceses e outra para os alemães), uma sefaradi, para espanhóis e portugueses, uma turca e uma dos judeus italianos.
Não é preciso muito esforço para imaginar a guerra de vaidades que existia na época. Cinco sinagogas vizinhas! Quando uma contratava o arquiteto mais famoso da região para um projeto de reforma, a outra não deixava por menos e fazia o mesmo. Mas o curioso dessa história é notar como é antiga a nossa necessidade de criar e gerenciar instituições. Certamente trata-se de um costume com mais do que cinco séculos, mas que continua forte entre nós: hoje temos mais de 200 organizações judaicas somente no Brasil. De todo modo, é importante notar uma diferença básica entre os tempos atuais e a época dos nossos antepassados venezianos: eles tinham os muros do gueto para lhes proteger. Ao mesmo tempo em que enfrentavam restrições severas em suas vidas, como o local em que podiam morar e as profissões que podiam exercer, os judeus que moravam no gueto não precisavam lidar com questões como assimilação ou projeções demográficas catastróficas.
Quando os guetos europeus começaram a se abrir (o de Veneza terminou em 1797, quando Napoleão conquistou a cidade e concedeu igualdade civil aos judeus), o tema da assimilação começou a fazer parte da agenda comunitária. Foi no século XIX que surgiram, então, os movimentos reformista, ortodoxo e, depois de algum tempo, o conservador. Desde então, uma disputa (às vezes não tão saudável) se iniciou.
Provavelmente essa disputa terminará na próxima geração. Nos EUA, o índice de casamentos mistos é superior a 50%, o que significa dizer que daqui a 30 anos, pelo menos 50% dos judeus adultos (descendentes dos atuais casais) terão dificuldades para serem aceitos em comunidades ortodoxas. No Brasil não existem dados oficiais, mas há quem estime esse número em mais de 70%. A maior parte dos nossos filhos, portanto, será presenteada com apenas duas alternativas religiosas: abandonar as tradições judaicas ou frequentar sinagogas não ortodoxas. Para completar o quadro, temos que adicionar a demografia. Se nos tempos de Herodes os judeus chegaram a representar 10% de toda a população do Império Romano, hoje não somos mais do que 0,2% da população mundial, com uma clara tendência de redução. É possível, num cenário apenas levemente pessimista, que em 40 anos o número de judeus no Brasil caia pela metade.
Tudo isso significa apenas uma coisa: os líderes de hoje devem se preocupar muito mais com o futuro próximo do que vêm fazendo. Em termos práticos, as sinagogas reformistas e conservadoras devem se preparar para um mundo com menos gente para contribuir e muito mais pessoas para alcançar e incluir. O futuro exigirá uma nova postura dessas sinagogas, que terão que ser muito mais ativas do que passivas; apenas esperar que as pessoas venham para o shabat ou as Grandes Festas não funcionará mais.
Podemos contar nos dedos das mãos as sinagogas liberais que existem no Brasil. Capilarizar essa estrutura custará caro, por isso o uso dos recursos tem que começar a ser mais bem gerenciado desde já. As instituições devem seriamente passar a considerar a geração de superávits para formar fundos que, no futuro, lhes permitam sobreviver sem depender tanto das contribuições individuais (os chamados endowment funds). A formação de líderes religiosos também deve entrar na agenda: hoje é muito caro formar um rabino não ortodoxo.
Mas não devemos parar por aí. Se as instituições liberais passarem a ajudar umas às outras, os recursos serão utilizados de maneira muito mais eficiente. Não há porque ter uma mikve por sinagoga; machanot ou colônias de férias poderiam ser organizadas em conjunto, talvez até em âmbito nacional; livros de rezas transliterados poderiam ser editados e impressos em conjunto, sem repetir a competição que existia em Veneza.
Enfim, as possibilidades são enormes, assim como o desafio que nos aguarda. Para vencê-lo, precisamos de coragem e novas ideias. Novas ideias, normalmente, são trazidas por novos líderes. Por isso, é hora de, por um lado, os líderes atuais abrirem cada vez mais espaço para os jovens e, por outro, os jovens deixarem de acreditar que tudo vai continuar a cair do céu e passar a atuar cada vez mais comunitariamente.
Em tempo: hoje não há mais do que 300 judeus em Veneza. Das cinco sinagogas, somente uma funciona o ano inteiro. Uma só abre em Rosh Hashaná e Yom Kipur, outra só em Pessach, outra só em Sucot e uma delas está sempre fechada.
Eduardo Zylberstajn é engenheiro e presidente do Conselho Deliberativo da Congregação Israelita Paulista (CIP).
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