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Gabriel Mordoch

a singularidade das línguas judaicas

gabriel mordoch

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Um dos pioneiros do estudo acadêmico das línguas judaicas, o linguista israelense Chaim Rabin levanta a seguinte questão: por que os judeus não levaram o hebraico à diáspora enquanto idioma falado? Os armênios, por exemplo, outro povo diaspórico, apesar de dispersos mantiveram sua língua ancestral enquanto meio de comunicação oral no âmbito da família e da comunidade (Rabin, 1979:41). Diferentemente dos armênios, conforme Rabin, quando do início de sua grande dispersão, no séc. 1, os judeus já não mais se comunicavam cotidianamente na língua ancestral. De fato, nesta época o hebraico já havia sido substituído entre os judeus, no âmbito vernacular, pelo aramaico e pelo grego, línguas predominantes então em Eretz Israel e no Egito helenístico.

A integração às paisagens linguísticas locais continuou a caracterizar as comunidades judaicas dispersas pelo mundo, demarcando assim o caráter essencialmente diaspórico das línguas judaicas que vieram a se constituir a partir de então. De modo que as diferentes comunidades judaicas diaspóricas estiveram ligadas entre si menos por uma língua franca vernacular do que por uma ancestralidade e filiação religiosa em comum.

O hebraico obviamente não deixou de atuar enquanto fator de coesão, muito embora retirado da esfera vernacular. Nas palavras do linguista norte-americano John Myhill, aspectos não linguísticos da identidade judaica são igualmente importantes para a compreensão do comportamento sociolinguístico judaico, Segundo Moshe Bar-Asher, um dos principais elos entre as línguas judaicas é a herança literária hebraica comum, mais ou menos presente na consciência de seus falantes. Essa herança literária ganhou expressão nas línguas às quais os judeus estiveram integrados, ao longo da história através de traduções.

Obras de Anna Bella Geiger

principalmente porque permitiram aos judeus adotar diferentes línguas de comunicação diária sem, no entanto, afetar sua identidade enquanto judeus (2004:32).

O parâmetro étnico religioso é, portanto, o critério que coloca num mesmo grupo línguas geneticamente tão diferentes como iídiche, judeu-espanhol, árabejudaico, entre outras. Dentro da diferença, quais são as marcas distintivas ou os denominadores comuns das línguas judaicas? Ou, de outro modo, como se define ou se manifesta o caráter judaico deste grupo de línguas?

Segundo o linguista israelense Moshe Bar-Asher (2009:30), um dos principais elos entre as línguas judaicas é a herança literária hebraica comum, mais ou menos presente na consciência de seus falantes. Essa herança literária ganhou expressão nas línguas às quais os judeus estiveram integrados ao longo da história através de traduções. As traduções possibilitaram o acesso à literatura sacra àqueles não mais proficientes no idioma original, o hebraico denominado leshon ha-kodesh (literalmente “a língua da santidade”), bem como serviram para fins didáticos, ou seja, o ensino da leitura do texto original. É neste contexto que Rabin formula a seguinte definição: língua judaica é aquela que convive com o hebraico sagrado numa relação de diglossia1 (1981:21). O consequente fluxo de vocábulos e estruturas hebraicas – e aramaicas intrínsecas – às línguas judaicas vem a ser uma das características que as torna diferentes das línguas não judaicas.

O Pentateuco, a literatura profética e as Escrituras foram traduzidas por judeus às mais diversas línguas, e o corpus literário traduzido muitas vezes também incluiu a Hagada de Pessach, a Ética dos Pais, exegese rabínica e outros textos do currículo judaico tradicional. Algumas destas traduções são muito famosas, como por exemplo a Bíblia judaica grega alexandrina conhecida como Septuaginta (redação iniciada no século 3 a.e.c.), as traduções bíblicas de Onkelos ao aramaico (séc. 3) e de Saadiah Gaon (882942) ao árabe, bem como a tradução ao ladino conhecida como Bíblia de Ferrara (1553). A tendência arcaizante O sistema de tradução calcada, palatambém constitui uma das marcas de vra por palavra na mesma ordem original do versículo, reflete a construção sintática estrangeira do original hebraico na singularidade das linguagem de algumas das traduções; por línguas judaicas. Ela exemplo, na Bíblia de Ferrara: Y atemo el resulta não somente Dio en el dia el seteno su obra que hizo, y do deslocamento holgo enel dia el seteno de toda su obra que hizo (Genesis 2,2). geográfico, como no Cabe assinalar que o termo ladino decaso do judeu-espanhol signa a língua das traduções castelhanas e do íidiche, como judaicas calcadas no hebraico, enquanto também pelo seguinte judeu-espanhol refere-se ao idioma falado fato: as comunidades (e eventualmente escrito) pelos judeus de ascendência ibérica (e seus descendentes) judaicas estiveram que vieram a residir na península balcânigeralmente afastadas ca, no norte africano e em outros centros dos sistemas de ensino do Império Otomano a partir de 1492. e de outros órgãos responsáveis pelas Contudo, o termo ladino é comumente usado nas duas acepções. O contato entre a linguagem da trainovações linguísticas. dução e a língua judaica falada (e por vezes também escrita) resulta na influência, em maior ou menor medida, da primeira sobre a segunda, de maneira que, por exemplo, a presença de Ayifto (para “Egito”) na Hagada de Pessach em ladino pode explicar a presença desta palavra na boca dos locutores do judeu-espanhol. A medida de inteligibilidade entre a língua judaica e a língua correlata da qual originou-se parece ser um bom critério para declarar a independência da primeira em relação à segunda. O judeu-espanhol possui aspectos de um sistema linguístico independente do castelhano, e várias das marcas distintivas do judeu-espanhol, bem como uma periodização histórica da língua, estão apresentadas no fundamental artigo do professor David Bunis (1992). Esta língua também ganhou expressão jornalística, a partir do século 19, em alguns centros judaicos, principalmente Salônica e Istambul. Apesar das várias investigações sobre o jornalismo em judeu-espanhol, a maior parte do vasto material disponível nunca foi analisado. Desterrado da Península Ibérica, o castelhano falado pelos judeus trilhou seu próprio caminho, de modo a conhecer desenvolvimento próprio nas novas paisagens linguísticas, das quais tomou empréstimos. O mesmo se apli-

Anna Bella Geiger, ESTERsblues, 2005, 60 x 200 x 10 cm, papel pergaminho, pigmento de azul cobalto e chumbo

ca ao iídiche, língua de base germânica que veio a se cristalizar num entorno leste europeu de expressão majoritariamente eslava. Por outro lado, o francês, o provençal e o italiano dos judeus da Idade Média foram escritos em ambientes homófonos, de modo que não se desgarraram geograficamente de seu berço de formação. A versão judaica do provençal ganhou o nome de chuadit, e esta variante aparece, enquanto recurso dramático, na fala de personagens judeus do teatro provençal. A despeito de sua realidade intertextual em relação ao hebraico, estas variedades menos independentes da língua correlata talvez melhor se enquadrariam numa subdivisão das línguas judaicas, a dos dialetos judaicos.

A tendência arcaizante, em maior ou menor medida, também constitui uma das marcas de singularidade das línguas judaicas. Ela resulta não somente do deslocamento geográfico, como no caso do judeu-espanhol e do íidiche, como também pelo seguinte fato: as comunidades judaicas estiveram geralmente afastadas dos sistemas de ensino e de outros órgãos responsáveis pelas inovações linguísticas. Em seu artigo pioneiro, Rabin (1979:43) assinala o “atraso” de entre cem e cento e cinquenta anos da escrita judaica em italiano em relação à língua de seu respectivo entorno.

Dado que até recentemente houve direta relação entre tradição religiosa e alfabeto, as línguas judaicas foram geralmente escritas no alfabeto hebraico(-aramaico), sendo esta mais uma marca singular. Temos em Maimônides (1138-1204), entre outros, um exemplo de escrita judaica árabe em alfabeto hebraico(-aramaico). Entretanto, nas circunstâncias em que o público leitor não era proficiente neste alfabeto, empregou-se o alfabeto local, como por exemplo na supracitada Septuaginta ou em grande parte do material escrito em espanhol e português pelos sefaraditas ocidentais.

Nos séculos 17 e 18 o espanhol e o português foram, conforme assinala o historiador Cecil Roth (1945:15), as principais línguas da comunidade judaica de Amsterdam, a capital da “diáspora marrana”. Segundo o linguista Paul Wexler (1985:190), até o século 19 um singular português foi falado e escrito nas comunidades judaicas de ascendência portuguesa espalhadas pela Europa Ocidental e o Novo Mundo. Além de servir de língua de comunicação diária, o português também foi empregado em drashot (prédicas), literatura panegírico-apologética, registros comunitários, livros de acordos, registros do mahamad (conselho administrativo), etc. A famosa excomunhão de Espinosa (1656), por exemplo, está registrada em português. Os critérios de distinção das línguas judaicas também se aplicam ao português destas comunidades de “judeus novos”, conforme a expressão do professor Yosef Kaplan. Trata-se, contudo, de um fenômeno único: esta variedade do português não foi uma versão judaizada da língua local e tampouco desconectou-se definitivamente de sua fonte

Cartografia e memória AnnA bellA GeIGeR

Acontinuidade e a coerência no meu trabalho de arte se revelam no trato de certas questões tais como o eixo da arte, a condição de múltipla identidade como a de ser brasileira, judia, de origem européia oriental, cosmopolita, entre outras reflexões.

Dizem em alguns textos da critica que revisito minhas origens e junto reinvento minha identidade brasileira. A realidade é que a conexão que existe nas obras em que utilizo cartografia e memória é acima de tudo profundamente marcada por minha experiência brasileira. Nesses rolos procuro criar um elo dialógico entre presente e passado, acentuando no processo ora mudança ora permanência, relações entre história e local.

Seria também uma outra tentativa de correspondência entre geografia e arte, isto é, de poder trazer para esse espaço reflexivo e imaginário que é a arte sinais, símbolos, possíveis modelos do inconsciente coletivo através de alguns arquétipos que a todo momento retornam, como os signos judaicos, expressos em várias obras além desta série de RrolosScrolls.

São repletos de camadas, numa superposição de informações que permite incorporar, através das folhas de pergaminho, chumbo, gravura, desenho, pigmento de cor, narrativas diversas.

original – dado o contato permanente, por diversos motivos, entre as comunidades judaicas de origem portuguesa e a Península Ibérica. O historiador português Mendes dos Remédios (1911) oferece um inventário da literatura judaica escrita em português na cidade de Amsterdam a partir do século 17, e há também um importante estudo da variedade judaica do português de autoria de Giuseppe Tavani (1988).

Apesar de menos representativas quantitativamente, várias outras línguas faladas e/ou escritas por judeus, como, por exemplo, o malaiam de judeus de Cochim (Índia) ou o neoaramaico de judeus de origem curda, têm recebido atenção de pesquisadores e vêm sendo abordadas enquanto línguas judaicas.

Qual é a situação das línguas judaicas no século 21? Alguns motivos explicam a quase extinção das línguas judaicas: o golpe fatal sofrido pelas comunidades iídiche falantes durante a Segunda Guerra Mundial, a política linguística do Estado de Israel e a integração linguística praticamente completa das comunidades judaicas contemporâneas fora de Israel e o abandono da tradição religiosa são alguns exemplos.

A construção da identidade israelense implicou na negação da identidade judaica diaspórica, à qual as lín-

guas judaicas estiveram intrinsecamente ligadas. Na disputa pelo posto de língua cotidiana da nova comunidade judaica na terra ancestral, o hebraico israelense, que por um lado funcionou enquanto fator de coesão, por outro foi responsável pela marginalização das línguas trazidas pelos imigrantes provenientes de mais de cem países.

Os jovens [judeus] nascidos sob o mandato britânico, conforme assinala o professor Cyril Aslanov, envergonhavamse de seus pais ou de seus avós que ainda falavam o íidiche ao menos na esfera privada (2006:87). De maneira anedótica, o destacado poeta e prosador israelense de origem polonesa Pinchas Sadeh (1929-1994) conta em sua autobiografia que em sua juventude um diálogo em íidiche no dia de aniversário da declaração do Estado virou motivo de conflito. Quem poderia imaginar que no recente aniversário de 61 anos da fundação do Estado o canal público israelense Arutz 2 ofereceria uma programação de canções em íidiche, antítese da hebraicidade das gerações pioneiras e fundadoras? Além do mais, a estação estatal de rádio Kol Israel oferece diariamente programas de notícias em íidiche, em judeu-espanhol e em outras línguas diaspóricas.

A instituição do hebraico enquanto língua vernacular e língua materna das gerações nascidas ou educadas no Estado de Israel é considerado por muitos um dos grandes méritos do sionismo. Como é sabido, Herzl descartou o hebraico enquanto língua oficial do futuro Estado judeu: “Quem de nós sabe bastante hebraico para pedir nesta língua um bilhete de trem?”, indagou o visionário em 1896.

Posteriormente vinculados, o projeto sionista e o ressurgimento do hebraico vernáculo caminharam juntos, não sem percalços, até o estabelecimento definitivo do hebraico modernizado enquanto língua oficial do Estado. Há algumas décadas já não mais “ameaçado” por nenhuma concorrência linguística, um dos sintomas do sucesso e segurança do hebraico moderno é a abertura social e a valorização das até recentemente caladas vozes da diáspora – interesse este que também se explica pelo crescente reconhecimento ou pela legitimização do multiculturalismo em Israel. Certamente que o moderno hebraico israelense também tem seu lugar no horizonte das línguas judaicas,

Quem poderia imaginar contudwo este tema se reserva a uma disque no recente aniversário de 61 anos cussão à parte. A integração linguística característica do judaísmo reflete a convivência consda fundação do Estado o tante entre populações judaicas e não jucanal público israelense daicas, de modo que refuta hipóteses so-

Arutz 2 ofereceria bre o isolacionismo dos judeus ao longo uma programação de dos séculos. Além disso, a multifacetada investigação das línguas judaicas também canções em íidiche, reflete o caráter polifônico da milenária antítese da hebraicidade tradição judaica, capaz de manter sua sindas gerações pioneiras gularidade através da história sem deixar e fundadoras? de ao mesmo tempo expressar sua pluralidade essencial. Gabriel Mordoch é mestrando em Línguas e Literaturas Judaicas na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Referências bibliográficas

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Notas

1. Diglossia: situação de bilinguismo na qual há relação de hierarquia entre as línguas.

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