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Tamara Milsztajn

judaísmo em ação em el salvador

tamara milsztajn

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Quando comentava com as pessoas que iria passar quase um ano em El Salvador, muitas delas me perguntavam com estranhamento o que eu iria fazer nesse pequeno país da América Central, quase imperceptível no mapa. Eu havia sido selecionada, junto com outros dez jovens judeus, para participar do World Partners Fellowship, um programa da American Jewish World Service, onde cada jovem era alocado para trabalhar como voluntário por dez meses com uma organização não governamental (ONG) na América Central.

A American Jewish World Service (AJWS) é uma organização americana de desenvolvimento internacional baseada no imperativo judaico de buscar a justiça social. Essa organização tem como missão “aliviar a pobreza, a fome e as doenças nos países em desenvolvimento, independentemente da religião, raça e nacionalidade”.

Com fundos provenientes majoritariamente de pessoas físicas, a American Jewish World Service desenvolve projetos em áreas como HIV/Aids, agricultura sustentável e proteção às minorias em parceria com 400 organizações locais em 36 países da Ásia, África e América Latina. A partir de doações para organizações de base, trabalho voluntário, ativismo e educação, a AJWS busca promover os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável, fomentando, ao mesmo tempo, os valores e as responsabilidades de uma cidadania global dentro da comunidade judaica. Em fevereiro de 2008 cheguei a San Salvador, capital de El Salvador, sem saber ao certo o que me esperaria pelos próximos dez meses. Pensava que auxiliaria, em alguma medida, na transformação social daquele país. Porém, o que recebi em troca – não só uma nova concepção de um judaísmo mais solidário, mas também uma nova visão de mundo – foi muito maior do que a minha contribuição.

Em consonância com o objetivo de formar líderes judeus responsáveis, a AJWS envia voluntários de todas as idades para os mais diversos países. Há programas para jovens do ensino médio, universitários e profissionais. Jovens como eu são impelidos a participar desse tipo de programa não só pela vontade de trabalhar em prol de um mundo melhor, mas também pelo desejo de fazer isso através de uma organização judaica. A ideia desse programa consiste em exercer na prática os valores judaicos e fazer parte de um judaísmo mais engajado e atuante.

Em fevereiro de 2008 cheguei a San Salvador, capital de El Salvador, sem saber ao certo o que me esperaria pelos próximos dez meses. Pensava que auxiliaria, em alguma medida, na transformação social daquele país. Porém, o que recebi em troca – não só uma nova concepção de um judaísmo mais solidário, mas também uma nova visão de mundo – foi muito maior do que a minha contribuição.

Discriminação de gênero e violência

Ao chegar à América Central, apesar de saber que a discriminação de gênero é um problema cultural e histórico de nível mundial, eu nunca havia sofrido pelo fato de ser mulher. As ideias machistas estão arraigadas na sociedade salvadorenha e os homens desrespeitam sistematicamente as mulheres. Todos os dias, a caminhada do ponto de ônibus até o trabalho significava ser assediada por no mínimo uns três homens. Sei que eu não chamava atenção pelos meus atributos físicos, mas sim porque todas as mulheres no país estão sujeitas à violência sexista, ou seja, a violência exercida pelos homens sobre as mulheres com base nas desigualdades de gênero existentes. Além disso, o fato de eu ser estrangeira deixava-me em uma posição ainda mais vulnerável. Quando visitava pequenas comunidades no interior do país não podia sair à noite desacompanhada de um homem, pois os demais agiriam como se não fosse digna de respeito.

Durante meu trabalho com a Organización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz (Ormusa), uma organização não governamental que luta pelos direitos humanos das mulhe-

Com financiamento res, pude presenciar de perto as histórias da American Jewish World Service, a de violência física e psicológica e compreender realmente a dimensão do problema. Passei a frequentar algumas das reuniões

Organización de do grupo de autoajuda, onde as mulheres Mujeres Salvadoreñas agredidas se encontravam para compartipor la Paz criou uma lhar seus traumas e se ajudar mutuamente linha telefônica por a romper com o ciclo de violência. “O meu marido me agredia fisicameio da qual é possível mente e me impedia de trabalhar e sair realizar denúncias de casa”, disse uma salvadorenha de 32 anônimas e receber anos durante uma das reuniões em Oloaconselhamento cuilta, interior de El Salvador. Todas as jurídico. salvadorenhas presentes na reunião possuíam histórias similares de abusos e agressões. Em El Salvador, a violência de gênero não é uma exceção e sim uma constante. Em outra reunião, choquei-me com o depoimento de Doris, uma salvadorenha de 40 anos que, antes de começar a participar dessas sessões, achava que era natural que seu marido a espancasse e a obrigasse a manter relações sexuais com ele. Todas as mulheres do grupo, antes de receber os treinamentos da ONG em autoestima e em direitos humanos, tinham a concepção de que era natural sofrer agressões físicas por ser mulher. A ideia de superioridade hierárquica dos homens, uma mera construção social, estava cristalizada na sociedade salvadorenha. Como consequência, as mulheres sofriam de baixa estima, sentiamse desprovidas de valor e não conseguiam se ver como sujeitas de direito. Apesar de serem vítimas de abusos constantes, as mulheres em El Salvador dificilmente concretizam denúncias, pois têm medo de represália. Assim, parte do trabalho da Ormusa consiste não só em estimular as mulheres a denunciar os abusos, mas também em fornecer assistência legal àquelas que decidem processar os agressores. Com financiamento da American Jewish World Service, a Ormusa criou uma linha telefônica por meio da qual é possível realizar denúncias anônimas e receber aconselhamento jurídico.

Violações aos direitos trabalhistas

Em El Salvador, a discriminação de gênero também se nota claramente pela divisão sexual na inserção no

Apesar de serem vítimas de abusos constantes, as mulheres em El Salvador dificilmente fazem denúncias por medo de represálias.

mercado de trabalho. Na indústria têxtil, Como judeus, nós temos onde as condições de trabalho são péssi- a responsabilidade mas, 84% dos empregados são mulheres. Durante minha estadia em El Salvador, tive a oportunidade de trabalhar e pelo que acontece do outro lado do mundo. conversar com diversas trabalhadoras das Temos uma história de maquilas, indústrias têxteis que produ- mais de dois mil anos zem roupas a custo extremamente baixo de perseguição e, por para grifes nos Estados Unidos e que são conhecidas por suas violações aos direiisso, também temos um tos humanos. dever moral de mostrar “Eu não tenho água potável em meu nossa solidariedade local de trabalho e minha supervisora com aqueles que são controla quantas vezes eu vou ao banhei- oprimidos, sejam ro”, disse Reina, uma das funcionárias. Todos os domingos, diversas trabalhadoas mulheres em El ras de maquilas vinham à ONG na qual Salvador, os dalits na eu estava trabalhando para se informar Índia ou os darfurianos acerca de seus direitos. Ao conversar com no Sudão. essas empregadas, descobri que todas elas trabalham horas extras sem receber nenhum tipo de compensação. Apesar de a legislação salvadorenha garantir o direito de associação, na prática as trabalhadoras que fazem parte de sindicatos são colocadas em uma lista negra. Uma

das funcionárias contou-me que não recebia máscara para trabalhar com materiais químicos e, por isso, começou a sofrer de problemas respiratórios. Ouvi ainda inúmeros casos de abusos sexuais, exigência de realizar teste de gravidez antes da contratação, maltratos verbais, entre inúmeras outras violações aos direitos trabalhistas de El Salvador e às leis da Organização Internacional do Trabalho. Além de ensinar às trabalhadoras de maquilas acerca de seus direitos trabalhistas, a Organización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz trabalha incansavelmente monitorando esses abusos e denunciando-os através de relatórios divulgados na mídia. A organização tem pressionado o governo salvadorenho a inspecionar as fábricas e punir aquelas que não estejam respeitando os direitos dos trabalhadores. Em cooperação com outras ONGs, a Ormusa enviou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA para investigar a omissão do governo salvadorenho em face desses abusos.

Um outro mundo é possível

Frente a todos esses desafios que enfrentam as mulheres salvadorenhas, o mais impressionante foi observar a resiliência das mesmas. Não só o staff da Organización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz, mas principalmente as mulheres vítimas de abusos têm lutado incansavelmente para reverter a situação de discriminação. Doris, a mulher que era vítima de abusos do marido e que achava natural sofrer agressões físicas, hoje em dia dá capacitação em autoestima e direitos humanos a outras mulheres. Reina, uma das trabalhadoras das maquilas, contou-me: “Agora não deixo mais a minha supervisora maltratar-me verbalmente. Eu sei que eu mereço ser respeitada, ainda que eu seja pobre”.

As mulheres salvadorenhas estão tomando controle de seu próprio destino, conscientizando-se acerca de seus direitos e aprendendo a ver o mundo de forma crítica. Esse é o primeiro passo para que elas possam de fato começar a mudar a realidade de discriminação socioeconômica na qual se encontram. As mudanças reais e duradouras são aquelas que se originam nas bases, no seio da própria população local.

Desigualdade e gênero: um problema mundial

A discriminação de gênero é um problema presente não somente em El Salvador, mas em praticamente todos os países do mundo. Segundo relatório publicado pela Unifem (Agência das Nações Unidas para as Mulheres), um terço de todas as mulheres já sofreram algum tipo de violência ao longo de sua vida. É fácil imaginar que a violência de gênero assola nações remotas como, por exemplo, a República Democrática do Congo, onde o estupro é utilizado como arma de guerra e em algumas vilas no interior do país 90% das mulheres já foram estupradas.

Porém, essa realidade está muito mais próxima do que muitos acreditam. No Brasil, segundo estudo publicado pela organização não governamental Agende, uma em cada quatro mulheres foram vítimas de violência entre os anos de 2000 e 2005. Somente no ano de 2006, com a en-

Parte importante trada em vigência da Lei Maria da Penha, dessa experiência também foi mostrar é que o Brasil passou a contar com uma legislação específica que versa sobre a violência contra mulheres. aos salvadorenhos que Essa discriminação de gênero também os judeus se importam se traduz em discriminação econômica e, com questões de justiça em nosso país, apesar de as mulheres estusocial e que a nossa darem mais, essas recebem um salário que equivale a somente 56% do que os hotradição nos ensina, mens recebem. No que tange à participaatravés do preceito ção política, as mulheres ocupam apenas de tikun olam, que 9,4% dos cargos legislativos. Nem mesdevemos fazer a nossa mo em países desenvolvidos a inclusão parte na construção de das mulheres se dá de forma plena. Na Suécia, país considerado com a menor deum mundo melhor. sigualdade de gênero, as mulheres só ocupam 32% dos cargos legislativos e 47% dos cargos de alto escalão (relatório do PNUD, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas). Acabar com a discriminação de gênero consiste em um dos maiores desafios da atualidade. A contínua exclusão das mulheres de oportunidades políticas e econômicas constitui um obstáculo à redução da pobreza. Não se pode atingir um desenvolvimento sustentável enquanto se exclui cerca de 50% da população. A inclusão das mulheres de forma plena na sociedade traz o benefício não somente do desenvolvimento econômico, mas também da redução da mortalidade infantil, da diminuição da contaminação por Aids e de um nível mais alto de educação e prosperidade para a próxima geração. Ao tolher a discriminação de gênero, não somente geramos um benefício para toda a sociedade, mas também asseguramos um direito humano fundamental.

O judaísmo e a Justiça Social

Durante meu tempo na América Central, quase sempre eu era a primeira judia com a qual os salvadorenhos haviam entrado em contato. Assim, parte importante dessa experiência também foi mostrar aos salvadorenhos que os judeus se importam com questões de justiça social e que a nossa tradição nos ensina, através do preceito de tikun olam, que devemos fazer a nossa parte na construção de um mundo melhor. Segundo diz a Torá, todos os seres humanos foram criados à imagem de Deus e, por isso, nós

Tamara Milsztajn com um grupo de mulheres apoiadas pelo programa da American Jewish World Service.

temos o dever de assegurar que todos, independentemente da religião, tenham uma vida digna.

Atualmente, vivemos em um mundo globalizado onde as ideias e informações se movem livremente entre as fronteiras nacionais. Como judeus, nós temos a responsabilidade pelo que acontece do outro lado do mundo. Temos uma história de mais de dois mil anos de perseguição e, por isso, também temos um dever moral de mostrar nossa solidariedade com aqueles que são oprimidos, sejam as mulheres em El Salvador, os dalits na Índia ou os darfurianos no Sudão.

É verdade que muitas vezes nos sentimos intimidados com a enormidade dos problemas que afetam o nosso mundo. Guerras civis, desastres naturais, subdesenvolvimento, discriminação de gênero, a lista de fatos é enorme. Diante de tantos desafios, o mais comum é ficarmos apáticos. Ao ver as mulheres salvadorenhas conseguirem com muita luta mudar sua realidade social, comecei a ter esperança de que outro mundo é possível. Como judeus, cada um de nós tem o dever de fazer a sua parte e modificar esse mundo tão desigual. Como ensina a nossa própria tradição: “Você não é obrigado a completar a tarefa, no entanto, você também não está livre para desistir”. (Pirkei Avot 2:21)

Tamara Milsztajn é formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestranda em Relações Internacionais pela Georgetown University, ex-bolsista da American Jewish World Service e filha e neta de sócios da ARI.

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