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Entrevista de Eldad Paz a Marcelo Treistman

depoimento de um sheliach israelense expulso da venezuela

entrevista de eldad Paz a Marcelo treistman

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P“ or esta causa estarei sempre disposto!” Assim respondeu Eldad Paz ao meu pedido para entrevistá-lo. Poucas horas, depois sua esposa, Ilana, me ligou convidando para um sábado de sol na piscina do Kibutz Dália, no norte de Israel. Num clima descontraído, Eldad falou a

Devarim sobre a complicada situação dos judeus na Venezuela a partir de sua história pessoal como sheliach da comunidade e o relato de sua expulsão pelo governo de Hugo Chávez.

Devarim: Como você se tornou um sheliach1 e qual era o seu trabalho na Venezuela?

Eldad: Tenho 45 anos de idade e de vida kibutziana. Nasci e cresci no Kibutz Ramot Menashe e atualmente sou membro do Kibutz Dália. Tive a honra de passar por três experiências de shelichut em três momentos bem diferentes da minha vida. A primeira foi quando eu tinha seis anos de idade e meu pai foi convidado pelo movimento juvenil Hashomer Hatzair da Venezuela. Naquela oportunidade conheci o país e aprendi a falar espanhol. Em 1998, com 34 anos e ainda solteiro, tive uma nova experiência na Venezuela, esta fundamental em minha vida, pois foi quando conheci a minha esposa. Ilana era a representante da Hagshamá no Brasil e nos conhecemos num seminário no México. Nos casamos no Rio de Janeiro e, depois de eu terminar a minha shelichut na Venezuela, voltamos a morar em Israel. Aparentemente Chávez resolveu expulsar os israelenses de impulso, ao final de um dos longos discursos que faz frequentemente na televisão, sem seguir nenhum protocolo diplomático conhecido. Somente três horas depois chegou o comunicado oficial declarando que todos os representantes oficiais de Israel teriam que sair do país em 72 horas.

Os povos da Venezuela e de Israel têm uma amizade longa de muitos anos e a maior parte da sociedade venezuelana não é e jamais será antissemita ou racista; ao lado, a imagem de Simon Bolivar (1783-1830), líder do processo de independência da Venezuela e de outros países da América espanhola.

A cidade de Caracas, tendo ao fundo as montanhas de Avila.

Trabalhei como coordenador de vendas na fábrica do Kibutz Arad. Durante esses anos, tivemos nossos dois primeiros filhos Alon e Daniel. Mas nunca perdemos o contato com a comunidade venezuelana e, em julho de 2006, durante a guerra do Líbano, com a Ilana grávida do nosso terceiro filho, aceitamos o convite da kehilá2 da Venezuela e da Sochnut3 para mais uma shelichut na Venezuela. Topamos o desafio, arrumamos nossas coisas e fomos.

A comunidade venezuelana estava se sentindo muito sozinha e fragilizada por conta das repercussões da guerra em nível local. Por questões diplomáticas, o embaixador de Israel foi chamado para consultas em Israel e estava fora da Venezuela. Devarim: Como está organizada a comunidade judaica na Venezuela?

Eldad: A Venezuela conta com um centro comunitário que atende a toda a comunidade: sefaradim e ashkenazim, jovens e adultos, ortodoxos, liberais e laicos. A vida comunitária é extremamente ativa. A Hebraica fica no centro

Poucas semanas antes de Caracas e, em minha opinião, é o cluda expulsão o prefeito de Caracas havia be judaico mais bonito do mundo. Atuei como diretor de Juventude deste centro comunitário. Eu tinha contato com toacendido uma vela na das as instituições juvenis da comunidamenorá, no meio da rua, de para fornecer e garantir conteúdo jujunto com o embaixador daico em todas as atividades do centro code Israel. munitário – esportes, dança, cultura, cinema, música e também atividades extracurriculares no colégio. O grande desafio era localizar e incentivar os jovens a trabalhar em prol da comunidade e conduzi-los ao êxito nessa função. O compromisso e a colaboração funcionavam perfeitamente. A comunidade me auxiliou em tudo. Eu segui uma política educacional que consistia em dar autonomia aos diferentes grupos da juventude, sem obrigá-los a seguir as diretrizes dos adultos. Cada jovem ou grupo teve a liberdade para escolher o que fazer nos campos de judaísmo e de cultura judaica com o objetivo de produzir atividades e programas criativos e de efeitos positivos para a comunidade. O papel do sheliach neste processo é fazer o “coaching”, ajudar nas ideias e na implementação dos projetos.

Neste contexto todos ganham. Quem é passivo percebe que os amigos que se engajam realizam coisas grandes e assim se consegue construir o sentimento generalizado de pertinência à comunidade. Fiquei na Venezuela cerca de dois anos e meio.

Devarim: Como foi a experiência de ser expulso do país?

Eldad: Tínhamos saído de férias para Los Llanos, um lugar incrível, onde pescamos piranhas, demos comida para crocodilos, vimos anacondas e botos-rosa. É um lugar totalmente afastado e não tem sinal de celular. Quando estávamos voltando e recuperamos o sinal do celular, muitas mensagens de texto e de voz começaram a chegar. Era janeiro de 2009, tinha começado a operação militar em Gaza.

Quando conseguimos chegar a um lugar com televisão percebemos como era feita a transmissão do conflito. Passavam somente programas antissemitas e antissionistas, nos quais diziam que “Israel foi imposto ilegal e unilateralmente, que faz a mesma política nazista que o povo judeu sofreu e que ignora a opinião mundial”. Um fato curioso é que a Venezuela votou a favor da criação do Estado israelense em novembro de 1947 na ONU. Mas aparentemente o governo de Chávez se esqueceu disto.

Chegamos em Caracas e um dia depois chegou a irmã da Ilana com suas três filhas e o marido para nos visitar. Nos éramos dez pessoas em casa, era o dia de aniversário do nosso casamento. Eu estava voltando do trabalho, liga a diretora-geral da Hebraica e me diz: – Eldad, você não vai embora? – Embora por quê?

Você não vê televisão? Estão avisando neste momento que Chávez expulsou vocês!

Fiquei atordoado e imediatamente liguei para o embaixador israelense, que também não estava vendo televisão e, por isso, não estava sabendo de nada. Ou seja, não houve nenhum contato diplomático. Aparentemente Chávez resolveu expulsar os israelenses de impulso, ao final de um dos longos discursos que faz frequentemente na televisão, sem seguir nenhum protocolo diplomático conhecido. Somente três horas depois chegou o comunicado oficial declarando que todos os representantes oficiais de Israel teriam que sair do país em 72 horas. Junto havia uma lista de nomes e o meu nome estava incluído nela. Foi uma loucura. A gente não sabia se era algo temporário ou permanente. Não sabíamos se iríamos para algum lugar próximo, esperar umas semanas para depois voltar ou se deveríamos voltar definitivamente para Israel. Passamos 12 horas sem saber o que iria acontecer. Estávamos completamente confusos. Poucas semanas antes da expulsão o prefeito de Caracas havia acendido uma vela na menorá, no meio da rua, junto com o embaixador de Israel... Na manhã seguinte liguei para Israel e recebi o ultimato. Começou a correria: fechar a conta no banco, organizar as coisas pessoais, começar a desmontar a casa, vender o carro e os móveis, enfim, tudo o que precisa ser feito quando você vai se mudar definitivamente de um país para outro. Além disso, não havia casa disponível para uma família do nosso tamanho no kibutz, assim que nem ao menos tínhamos onde ficar em Israel.

E o mais complicado: conseguir um vôo para fora da Venezuela dentro do prazo estipulado. As pessoas da comunidade começaram a chegar para se despedir, para nos consolar, a cabeça estava a mil e as crianças estavam extremamente confusas. Em um momento elas estavam prontas para ir estudar na escola no dia seguinte e de repente elas precisavam se preparar para sair do país. É muito difícil internalizar essa realidade. Começamos a receber muitas manifestações e gestos realmente emocionantes vindos da comunidade. Eles nos deram todo o apoio e a ajuda que puderam. Estavam se sentido muito abalados e machucados com a situação.

Nos mandaram uma advogada não judia para fazer uma procuração outorgando poderes para a comunidade gerir os bens que ficariam para trás. Quando ela entrou na nossa casa eu me desculpei pela bagunça, mas foi ela que começou a se desculpar com lágrimas nos olhos pela situação que nós estávamos passando, dizendo que

As pessoas da comunidade começaram a chegar para se despedir, para nos consolar, a cabeça estava a mil e as crianças estavam extremamente confusas. Em um momento elas estavam prontas para ir estudar na escola no dia seguinte e de repente elas precisavam se preparar para sair do país. É muito difícil internalizar essa realidade.

isso que estava acontecendo não refletia a sociedade venezuelana e que ela se sentia extremamente envergonhada por seu país.

No dia de ir para o aeroporto foi muito difícil aceitar que você não vai ver de novo as pessoas com as quais trabalhou e criou laços de amizade e que você não vai mais poder voltar para aquele país. Hoje nenhum israelense entra na Venezuela. São “personas non grata”. Jovens que trabalhavam comigo e estavam viajando naquele momento ligavam chorando dizendo que não ia dar tempo de chegar para se despedir. Saímos de casa para o aeroporto e no caminho cruzamos com uma manifestação contra a embaixada de Israel, já vazia, com suásticas nas bandeiras de Israel e as pessoas gritando slogans antissemitas.

No aeroporto foi uma confusão grande. Eu tive que ir à polícia federal explicar que estávamos sendo expulsos do país. Mostrei os passaportes para o oficial e ele, com uma troca de olhares, indicou que sabia perfeitamente o que estava acontecendo e que não compactuava de forma alguma com aquilo tudo.

Devarim: Qual o sentimento da comunidade judaica na Venezuela? E o que eles pensam e como estão reagindo aos ataques?

Eldad: Desde 2002, 35% da comunidade já deixou a Venezuela. Foram, em sua maioria, para Miami, Costa Rica, Panamá e alguns para Israel. A liderança da comunidade está se preparando para vários cenários. São pessoas de muita qualidade e estão se preparando para as distintas possibilidades do que pode acontecer lá.

Devarim: O que você prevê de futuro para os judeus na Venezuela?

Eldad: Quem sou eu para opinar sobre o futuro. Eu gostaria que as pessoas das quais eu gosto viessem morar aqui em Israel. Mas é claro que respeito profundamente a determinação deles de querer inserir o judaísmo e a cultura judaica no país onde vivem. Todos têm o direito de viver onde quiserem e de professar a religião que escolherem.

Ao mesmo tempo estou bastante preocupado. Realmente espero que o pior não aconteça. Imigração é um passo muito forte, é sempre muito difícil deixar tudo para trás, porém, quase todos os judeus na Venezuela têm hoje um plano B.

Devarim: Você acha que a política antissionista de Chávez pode implantar um sentimento antissemita nos venezuelanos?

Vista da cidade de Caracas, capital da Venezuela.

Eldad: No curso da história, vemos que o antissemistismo não apoiado por um governo não é muito perigoso. Mas tudo muda quando ganha apoio governamental, porque nesta situação há a possibilidade de os racistas fazerem mais mal do que apenas falar. Hoje em dia há mais racismo na Venezuela e, neste contexto, há mais antissemitismo. Por outro lado, a maior parte da sociedade venezuelana não é e jamais será antissemita ou racista.

Obviamente, há uma grande disseminação de ideias antissemitas. E a política do Chávez tem repercussão em toda América Latina. Eu quero perguntar a toda a sociedade brasileira, não apenas aos judeus: o que vocês vão fazer para que essa onda não se expanda? Há que se construir obstáculos para deter esta ameaça. A situação é realmente muito perigosa e eu tenho a sensação de que as pessoas não estão conseguindo dimensionála corretamente.

Os povos da Venezuela e de Israel têm uma amizade longa de muitos anos. Espero que a gente supere logo esta fase e que no venezuelano. Não posso nem quero misturar as coisas, as minhas observações se restringem à política do Chávez frente à comunidade judaica, onde servi como sheliach.

Devarim: Você aceitaria outra shelichut ou o trauma o afastou para sempre desta possibilidade?

Eldad: O impacto foi muito forte em mim e em toda a minha família. Pensamos nisso o tempo todo, sonhamos com isso à noite. Ainda está tudo muito próximo, ainda conversamos muito sobre tudo o que aconteceu. É muito importante para as crianças saber que nós dividimos com elas as saudades da vida da Venezuela. Porém, eu não encaro a expulsão como algo pessoal. Chávez não me conhece. Eu tive a oportunidade de fazer parte de um momento significativo da história da comunidade da Venezuela. Tentei ajudá-los durante o meu trabalho e continuo em contato com eles agora.

Os três períodos de shelichut mudaram muito a minha forma de ser, tanto como pessoa quanto como israelense e

Eldad Paz: No dia de ir para o aeroporto foi muito difícil aceitar que você não vai ver de novo as pessoas com as quais trabalhou e criou laços de amizade e que você não vai mais poder voltar para aquele país. Hoje nenhum israelense entra na Venezuela. São “personas non grata”.

sigamos amigos do povo venezuelano. Há muitos árabes venezuelanos com laços de amizade com os judeus. Eu acho imprescindível manter esses laços, pois onde há conhecimento não há intolerância.

Devarim: É verdade que o Hizbolá e o Irã são cada vez mais influentes e presentes na Venezuela?

Eldad: Sim. Você anda na rua e vê talibãs, você escuta muito mais árabe do que antes. Existe um vôo direto de Caracas para Damasco e Teerã, com o detalhe de que para Quito, no Equador, não há vôo direto. Antes se via muita tecnologia israelense na Venezuela, agora só há tecnologia iraniana. Dizem que os iranianos entram no país quase sem serem controlados.

Devarim: Na sua opinião, por que Chávez está tomando este caminho antissionista e antissemita? Qual seria seu objetivo no final das contas?

Eldad: Eu não saberia analisar os objetivos do govercomo judeu. Ser parte da vida de outra comunidade é um privilégio que sempre estarei disposto a aceitar. Sempre quis fazer parte disso. Gosto dessa mistura da vida comunitária com a vida pessoal. Contribuir e receber. Sou muito agradecido à comunidade venezuelana e a toda a ajuda que eles me deram antes, durante e depois do meu período lá.

Marcelo Treistman é advogado, ex-boger da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro e madrich da Chazit em Israel, onde mora desde 2007.

Notas

1. “Sheliach” (literalmente “enviado”) é o nome que se dá à pessoa que sai de sua comunidade para exercer alguma função (normalmente educativa) em outra. “Shelichut” é a condição de ser “sheliach”. Na entrevista os termos denotam um israelense que vai servir em comunidades judaicas fora de Israel. 2. Comunidade judaica. 3. Agência judaica – um organismo do governo de Israel e que dá apoio educativo às comunidades judaicas de todo o mundo.

Anna Bella Geiger, Ouvinte do Mundo, 2001, 22 x 33 cm, papel pergaminho, chumbo e pigmento azul cobalto

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