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Rabino Sérgio R. Margulies

rabino lemle: o centenário de um jovem

rabino sérgio r. margulies

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Recentemente faleceu o ídolo da música pop Michael Jackson. A notícia de sua morte foi acompanhada por milhões de pessoas. A cerimônia prévia ao sepultamento foi literalmente um show. No final, ficou a incógnita do lugar em que foi enterrado e mais triste: quem se importava realmente pelo ser humano Michael?

Recentemente lembramos os 150 anos de nascimento do grande escritor da literatura idish Scholem Aleichem, que nos legou, entre tantos clássicos, o primoroso texto de “O Violinista no Telhado”. Falecido em 1916, numa era em que a informação percorria passos lentos, a cerimônia de seu sepultamento em lugar conhecido e ritual ancestral foi acompanhada por cem mil pessoas. A sua obra literária celebra com humor os relacionamentos humanos. Seus textos são como falas. O leitor tem a real sensação de estar ouvindo o escritor. Fala, assim, sobre seres humanos, e trata o leitor como ser humano.

Estes dois fenômenos, ainda que distantes no tempo e separados pelo propósito, permitem o encontro de um elemento que distingue o destino de um ídolo das massas descaracterizado de si próprio e o de um apreciador do gênero humano que caracteriza o seu pensar e sentir. Quem é realmente famoso? Certamente Michael Jackson é mais conhecido, porém Scholem Aleichem deixou marcas mais profundas na vida de tantos.

Este ano estamos lembrando da efeméride do rabino Henrique Lemle z´l que, se estivesse vivo, celebraria cem anos no mês de outubro. Deixou, como erudito do judaísmo, líder comunitário, humanista e professor, uma marca transcendental na vida de nossa comunidade e na vida de tantos. O que o imO rabino Henrique Lemle deixou, como erudito do judaísmo, líder comunitário, humanista e professor, uma marca transcendental na vida de nossa comunidade.

pulsionava era a sensibilidade para com o ser humano, sendo capaz de sentir e compartilhar as alegrias e as dores, de vibrar em conjunto e amparar a todos e a cada um, de falar com o coração e fazer sua mensagem chegar ao coração. O púlpito poderia ser um palco para projetá-lo para o sucesso e estrelato, pois, sim, frequentemente o púlpito – mesmo que religioso – é assim utilizado.

No entanto, ainda que tenha tido contato com as mais altas autoridades do país de sua época, do alto da imponência do púlpito e revestido de reverência, enxergava a profunda dimensão do ser humano. Como ser humano, dialogava de igual para igual com todos. Foi, assim, como se intitula o livro biográfico escrito por seu filho, “o rabino que gostava de gente”. O sucesso não foi seu combustível. O seu sucesso foi consequência de sua missão: abraçar gente. Entre esta gente, sobretudo e especialmente os jovens. Enquanto em nossas categorias estanques o jovem fica separado da terceira idade, Lemle, também preocupado com os mais idosos, agregava. Talvez seja por isso que vários jovens – egressos da ARI e que se tornariam futuros rabinos e chazanim – passaram por experiências comunitárias no Lar da União.

No centenário de seu nascimento, a revista Devarim atinge seu décimo número. A coincidência é oportuna. Devarim em hebraico significa palavras e ele foi um homem dotado de palavras – palavras instigantes e provocativas, confrontadoras e confortantes, eloquentes e simples. A oportunidade das coincidências permite-nos ver na décima edição o mesmo nú-

O sucesso do rabino Lemle foi consequência de sua missão: abraçar gente, sobretudo e especialmente os jovens. Enquanto em nossas categorias estanques o jovem fica separado da terceira idade, Lemle, também preocupado com os mais idosos, agregava. Talvez seja por isso que vários jovens passaram por experiências comunitárias no Lar da União.

Henrique Lemle, um rabino que sabia dialogar, e o presidente Juscelino Kubitschek em evento na ARI.

mero de pessoas necessárias para constituir um grupo de reza, o minian. Rabino Lemle queria trazer para o nosso minian comunitário jovens. Trazer jovens, mesmo que o décimo não faltasse no minian, mas entendia que sem jovens no futuro não haveria o décimo, e talvez nem o nono, o oitavo... Ora convocava os jovens, ora ia até eles abrindo caminhos múltiplos para o diálogo. Um de seus textos chama-se “O judaísmo no diálogo das gerações”, no qual conta:

“Numa discussão sobre o significado dos Dez Mandamentos que há pouco realizei com um grupo de jovens estudantes, levantou-se uma das participantes e fez a seguinte contribuição, curta, mas bem clara: ‘eu estava já há muito tempo com a opinião de que se deve acrescentar uma emenda ao Quinto Mandamento. Em continuação ao tradicional ‘Honrarás ao teu pai e à tua mãe’ deve-se exigir: ‘Respeitarás ao teu filho e à tua filha’. Somente na base do respeito mútuo pode-se obter a compreensão entre as gerações”.

Ao relatar as palavras da jovem, o rabino Lemle amplificou o comentário dela e o corroborou. Ele ouvia os jovens e dava ressonância ao que diziam.

Numa mensagem de Rosh Hashaná (o ano é desconhecido, mas pouco importa diante da transcendência do texto) escreveu:

“Eu confio na juventude, naqueles jovens que por nada no mundo se deixam arrancar a vontade de construir e reconstruir. Pois eles dão prova que o verdadeiramente jovem quer ver a fruta e flor, construção e avanço, amor e nova vida.

“Naqueles jovens que, apesar de tudo, aspiram por um ponto de compreensão com os mais velhos. Pois eles compreendem que eles, é verdade, sabem mais matemática e física, são melhores técnicos e conhecedores de aparelhos modernos – mas os mais velhos conhecem melhor a vida, a força da persistência, a beleza da dedicação ao outro, a riqueza da moral e fé.

“Naqueles jovens que conseguem manter abertos seus olhos e sua mente para as conquistas e orientações que vêm do passado. Pois eles estão compenetrados do fato de que nada que se faz hoje podia se alcançado sem que as gerações anteriores tivessem se esforçado a passar avante seus conhecimentos, sua sabedoria. Se Lemle, em sua época, não tivesse confiado na juventude, hoje não haveria uma nova juventude. Mas ela está aqui, escrevendo, pensando, deixando sua marca. Pode parecer óbvio confiar na juventude, porém tantas vezes o óbvio é esquecido.

“Naqueles jovens que firmemente ficam leais a si mesmos e àquilo que a voz mais íntima neles lhes diz ser bom e justo, reto e nobre. Pois eles encontram sua verdadeira força na inspiração que cada um tem, por ser criado com a capacidade de fazer de si mesmo uma criatura valiosa, criatura nobremente humana. “Eu desejo aos jovens, agora aos jovens judeus, por ocasião do início de um novo ano, que, ao lado de todos os seus companheiros e amigos, consigam ser realmente jovens para sua felicidade e a de suas famílias, da sua sociedade, deste mundo que tanto deles precisa”. Esta edição da Devarim com artigos escritos por jovens ecoa as palavras “eu confio na juventude”. Aliás, se Lemle, em sua época, não tivesse confiado na juventude, hoje não haveria uma nova juventude. Mas ela está aqui, escrevendo, pensando, deixando sua marca. Pode parecer óbvio confiar na juventude, porém tantas vezes o óbvio é esquecido e deixamos o menos óbvio sobressair, como, por exemplo, o artificialismo do ídolo descaracterizado construído para o consumo mais do que o genuíno que nos faz rir. Aqui – fazendo o óbvio prevalecer e espelhados na convocação de Lemle – confiamos na juventude. Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. O Rabino Lemle ouvia os jovens e dava ressonância ao que diziam.

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