Bordo Livre 158 - Julho/Agosto 2020

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O CHUMBO Longe no espaço e no calendário, teve lugar uma aventura parecida. Era tempo de Liceu e de vacas magras. Os grupos organizavam-se por idades, experiência, afinidades e, também, por liderança. A antiguidade era um posto e os fedelhos ambicionavam a fama e as facilidades dos mais espigadotes. Poder ir ao cinema, aos bailes, namorar, eram sentimentos e vontades telúricas dos mais novos, que se iniciavam junto dos seniores para tais aventuras. Dorindo Ingénuo e Castor Mata Cães, entre outros, estavam na primeira fila da iniciação ao desembaraço para a resolução de problemas ou situações prementes. Mas, nunca é demais lembrar o velho aforismo: é com dinheiro que se compram os melões. As matérias académicas variavam segundo a orientação do curso do aluno, em termos abrangentes, letras ou ciências. O grupo de alunos em questão “eram”, por mero acaso, da alínea – agrupamento, assim se chama agora – de ciências, pelo que obrigatoriamente teriam que dar a tabela periódica de elementos, da qual, como se sabe, faz parte um metal pesado: o chumbo, bem presente na mente de todos, por outras razões que não são aqui chamadas a capitulo. O convívio de Ingénuo e Mata Cães com os companheiros mais sabidolas, das conversas que respigavam pró-atividade, dos expedientes por eles concebidos; a ideia de que a necessidade aguça o engenho e que é preciso fazer pela vida, projectavam no imaginário de Dorindo e Castor um estimulo excitatório poderosíssimo que teria consequências, a curto prazo, nas cabeças férteis e ávidas de aventura destes dois noviços. Preto no branco: “não é com os bolsos cheios de cotão que compras o bilhete pró cinema, para mandares cantar um

cego tens que fazer pela vida...!” Em teoria tudo era fácil, mas na prática a realidade é dura e crua. Era início do terceiro período, dias longos, a noite a marcar presença. Após jantar, sentados a uma mesa do café Comercial, reunia um grupo liderado por Almor, que Ingénuo acabava de engrossar. As conversas que se desfiavam à volta da mesa criavam um ambiente etéreo de aventura que se adensava com o correr das horas, fazendo a ponte entre o desejo e possibilidade real de compensar as dificuldades. Aí, tão inevitável quanto lógico, Dorindo Ingénuo sentiu-se compelido a perguntar se sobrava alguma tarefa que ele pudesse executar, tendo em conta a resolução de propósitos mais imediatos; ver algum western, entre outros. Almor sugeriu a Ingénuo: “amanhã, pela calada da noite, podes ir ao cemitério municipal resgatar um caixote com chumbo, de colheita recente, que depois será vendido num dos receptores dedicados a esse negócio”. Dorindo aceitou o repto de por à prova a sua intrepidez bem como, daí, esperar melhor entrosamento no grupo; passagem a um estádio mais idóneo e aplicabilidade material da sua gesta. Cerca das 23:00 horas, Dorindo dirigiu-se ao cemitério municipal, usou e abusou das habilidades circenses de que fora devoto praticante, e transpôs o gradeamento encimado por pontiagudas lanças ao estilo centúria romana, indo ao encontro do falado caixote, orientado por um desenho previamente feito no Comercial e uma apetência indomável de descoberta de tesouro perdido nas mãos de piratas piores que cascavéis enfurecidas. Encontrou o alvo no local previsto, inverteu o salto de dentro para fora do cemitério, nem consigo imaginar as artimanhas usadas para pôr fora de

grades o encaixotado valor, e levou-o ao ombro até ao Café, qual troféu a entregar ao grupo que ai continuava reunido à espera do epílogo desta aventura: passava menos que uma volta de ponteiro da meia-noite. Aí chegado com a encomenda prometida, pô-la à disposição do grupo. Desceram à cave do Café, abriram o caixote e, de conteúdo, só pedras. O ambiente assumiu um comportamento de estupefacção teatral, tendo Almor feito apelo à sua árvore genealógica e jurado pela alma de antepassado de consanguinidade duvidosa, que não se tratava de um embuste à pessoa de Ingénuo, e que o valioso chumbo tinha lá sido colocado na véspera e, agora, a olhos vistos, objecto de roubo. A expressão facial de Ingénuo, corado que nem o “alegre bebedor” do pintor Frans Hals, era, também, de raiva e impotência, achincalhado até à ignomínia, em exaspero contido. “Dorindo Ingénuo”, disse Almor em tom reflexivo “o olfacto leva-me a presumir que isto é obra de algum abocanhado que deu com a língua nos dentes, ou de algum lobisomem que andará a espiarnos! Companheiro, não fiques aperreado com esta contrariedade, afinal levaste a carta a Garcia, e ainda a procissão vai no adro.” Grava em tatuagem: quando a sorte não penetra, três ameixas e edecetra.

JUL-AGO 2020 | BORDO LIVRE 158 | 9


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