A Poesia é um Atentado Celeste

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A palavra poesia desperta no imaginário coletivo as mais variadas definições, desde certa mistificação, espécie de devoção, objeto, arte impenetrável, bem como cenas de musas descendo nuvens aos ombros dos poetas. Há também muita teoria, estudos acadêmicos rigorosos, indispensáveis, e igualmente belos e prazerosos de serem lidos. O tema é vasto, a poesia parece-nos um paraquedas. O presente livro não tem por pretensão dar respostas definitivas sobre à poesia, esquadrinhá-la enquanto objeto de estudo, nem, sobretudo, oferecer um manual de como escrever poemas. Nossa intenção surgiu a partir da oficina “ A poesia é um atentado celeste”, que ocorreu em diferentes espaços da cidade de Porto Alegre, escolas e eventos de literatura a partir do ano de 2018. O objetivo era refletir sobre alguns aspectos do fazer poético, possibilidades criativas e modos de leitura. Acreditamos que anterior ao desejo de escrever poemas, venha o amor pela poesia, ou seja, relação que é estabelecida pela leitura ou mediação. Ainda assim, é indispensável relembrar e reforçar a importância da oralidade na e para a poesia, portanto, saraus, slams, a mediação feita por professores e bibliotecários são fundamentais para a difusão e afeição poética, para que alcance espaços e possibilidades muito além dos livros impressos. A intenção do material é apresentar os principais tópicos da oficina de maneira acessível, trazer sugestões de leitura e práticas para serem executadas tanto por alunos quanto pelo público em geral, contudo, não sendo - relembrando, nosso propósito ser manual ou guia de como se fazer poesia, mas, sim, de suas possibilidades criativas, servindo também para estimular modos de sensibilidade e percepção do mundo.

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Apresentação....................................................................................................2

O caos como um jogo de armar.........................................................................4

Todas as coisas perdem as vírgulas que as separam.........................................9

Será que a minha boca diz lá embaixo essas majestosas e violentas palavras dos poemas?...................................................................................................11

A poesia é um atentado Celeste......................................................................14

Sobre o autor...................................................................................................17

Bibliografia consultada....................................................................................18

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O conceito de poesia, pensado a partir dos próprios poetas que a produzem, assume os mais variados significados, e achamos importante olhar o que nos disseram esses fazedores e fazedoras. Todavia, mais do que encontrar uma definição precisa, é interessante olhar alguns aspectos que os poemas e o fazer poético pode apresentar. O poeta Jorge Tufic (2009, p.74), nascido no Acre, sobre a poesia afirmou: Deve ser o substrato da primeira manhã do universo, algo que teria se fixado em minha retina nos albores de minha infância em Sena Madureira, AC, lá pelos idos de 1935. Um cenário bucólico onde o rio, a mata, os igapés, violões à distância e o desafio dos cantadores nordestinos, soldados da borracha, tanto me deslumbravam quanto acenavam desafios que somente anos depois eu viria a aceitar, compondo o meu primeiro soneto.

Nesta bela resposta, o poeta nos traz muito mais do que uma definição, oferece-nos algo que é essencial ao labor da poesia: a observação do mundo, a percepção do ambiente, as emoções e sentimentos que suscita, o efeito de deslumbramento ou espanto. A relação entre o mundo objetivo e subjetivo, o mundo concreto e os sentimentos do poeta proporciona imagens literárias inusitadas, renovadas pela associação das palavras. Escrever é, em boa medida, também descrever aquilo que se vê, e para isso aprender a olhar é um exercício fundamental; ver detalhes, cores, as nuances pequenas do dia, a semelhança entre imagens, como encontrar, e imaginar, formas diversas no mundo. A observação alimentará o imaginário. Podemos fazer uma conexão entre o esforço imaginativo e ao que o poeta cubano José Kozer (2009, p.76) chamará como pertencente “à zona do inconsciente, intuitivo.” Ele afirma que a poesia é uma junção entre o ofício, a parte manual do processo – escrever, corrigir, limpar o poema, e outra que é a surpresa, portanto sempre uma incógnita, da ordem da intuição. A imaginação é o componente que movimenta e conecta essas partes.

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Pensando ainda naquilo que alimenta o imaginário, não podemos esquecer de ressaltar a importância da leitura e apreciação da própria poesia, alargando o horizonte, incluindo aqui a literatura de um modo geral. A leitura de poemas nos coloca em contato com diferentes poetas, estilos, escolas literárias e, sobretudo, possibilidades que poderemos testar e incorporar ao nosso próprio repertório poético. Isso faz com que dialoguemos com uma longa e riquíssima tradição literária, a qual nos pertencem também, ao mesmo tempo em que dialogamos e inventamos a contemporaneidade. Uma espécie de leitura situada entre o prazer, a curiosidade e a atenção. Sobre a leitura, sugerimos entrar no poema como quem entra no Mar, sem rigidez, água clara e morna aos joelhos. Em geral, entramos em um texto disposto a dissecá-lo como uma equação – já ouvir falar nos catetos? A leitura da poesia nos convida a abordá-lo de uma forma mais ampla, tomado não apenas pela razão, mas também pelo sentindo, pela sonoridade, imagens criadas, até pela sua própria intangibilidade. Entrar no poema como quem entra no rio, aos poucos, deixando o corpo se acostumar com a temperatura da água e o movimento e o som das pedras. De maneira geral, o poema é bastante caracterizado e reconhecido pela forma mais tradicional em que se apresenta no papel: organizado em estrofes e versos.

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Mandinga Desejo escrever um poema de dez minutos e alguns segundos um grande poema dos séculos um grande poema preto um homem poema de unhas grandes e negras Um poema pra limpar da boca a era da técnica pra sujar a boca com o gosto do barro cutucar o dente até sair sangue uma mandinga filha da pressa e da preguiça Negativa de Angola contra o capital O poema não tem solução cresce dos murros que recebe transforma a raiva em ferro arremessa versos contra os muros do mundo [do livro A Matéria Inacabada das Coisas. Marcelo Martins Silva]

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O verso é cada linha do poema e as estrofes são os conjuntos de versos até o espaço em branco. No entanto, dentro dessa relação há uma variedade de conformações, de formas como sonetos, tercetos, rondós, entre outros. Essas formas também se relacionam com a métrica dos versos, ou seja, seu número de sílabas poéticas. Há um belo e intricado jogo entre versos, estrofes, métrica, todavia, nossa proposta não é disseca-los, acreditamos que o estudo minucioso desses aspectos por si só daria outro livro. As formas livres proporcionam uma composição que permite desde o poema em prosa até a construção de imagens com as linhas e palavras do próprio texto, engendrando assim outras possibilidades de significação. O movimento concretista, que despontou no Brasil em meados dos anos 50 com Décio Pignatari e os irmãos Campos – Haroldo e Augusto, é um dos maiores expoentes do trabalho poético valorizando a forma. Com seus poemas-objetos incorporaram formas geométricas, eliminaram versos, enfatizando o conteúdo visual e sonoro das palavras, sem abrir mão da carga semântica do poema.

A desconstrução do verso, de Haroldo de Campos

No poema Poema Jet-Lagged, do fantástico Waly Salomão, há o seguinte verso: “o caos como um jogo de armar”. Penso que ele diz muito sobre o fazer poético – um infinito jogo de armar. Longe de ser apenas intuição ou pura técnica, um poema é como armar uma teia, montar uma imagem a partir de vários elementos sonoros, visuais, semânticos, verbais, e ainda que não possui uma fórmula. A cada novo poema, uma tentativa, o encontro com o inusitado, nunca se resolve dá mesma forma e nem se pretende algo a ser resolvido. O poema é um ser da linguagem, portanto concreto, porém, parafraseando Décio Pignatari, parece o mais abstrato dos seres.

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NA ESFERA DA PRODUÇÃO DE SI MESMO XIII em diante Tenho fome de me tornar em tudo que não sou tenho fome de fiction ficciones fictionários tenho fome das fricções de ser contra ser tudo que não sou ser de encontro a outro ser tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra douto doutra em tudo em tudo que não sou me tornar o outro de me me tornar o nome distinto o outro distinguido por um nome distinto do meu nome distinto tenho fome de me tornar no que se esconde sob o meu nome embaixo do nome no subsolo do nome o sob nome o sobnome e por uma fresta num abraço contíguo penetra passa habitar o fictionário que me tornei em tudo que feixe de não fixas ficciones sou em tudo por tudo por uma fresta de tudo por uma fresta tudo se fixa por uma toda por uma toda fresta as fixações penetram passam a habitar o ficcionário que me habituei em ME me ME tornar em tudo todo o TUDO personas personagens bailes de máscaras reais que pessoas que penetram que pessoas penetram pelas frestas e num abraço contínuo se casam fazem casa e se inscrevem e se incrustam máscaras moluscas no meu rosto me tornar uma escala crescente milesimal centesimal decimal inteira a face dum baile de máscaras reais vir a ser este fictionário que não sou me casar que ainda AINDA que não sou e que sou sempre sempre quando quando sempre tenho fome qual a escala crescente ou decrescente pra saber se um milésimo centésimo décimo inteiro todo ou fração todo meu fictionário ser se revelou no abraço contínuo contíguo em que se desvelou tornar tudo tenho fome de me tenho fome de de de tornar EM tudo que não sou EU esta pessoa que está aqui falando na primeira pessoa eu do singular esta pessoa singular que sou eu pronome pessoal irredutível enquanto pronome mas que mas que se esconde se expande se estende sob o embaixo do no sub solo do pronome eu pessoal irredutível e é qualquer coisa além aquém qualquer alter outrem outra coisa além aquém alter outrem que mora no subsolo do pronome pessoal eu um sob pronome qualquer dia destes passo pra te ver gosto de te como você nem imagina nem fictiona nem funciona sem teu fictionário pra imaginar e é uma alegria muito grande não tenho de que me queixar é uma alegria muito grande estar aqui entre pessoas boníssimas é uma alegria muito grande conviver com vocês todos neste dado neste dia dado em que uso da palavra pra me dirigir em agradecimento a todas as pessoas boníssimas bonissíssimas que me acolhem sempre na maior alegria me acolhem me aquecem é uma grande alegria é uma alegria muito grande não tenho do que me queixar é uma alegria muito estar fruindo entre pessoas boníssimas melhor dizendo bonissíssimas neste dado neste dia dado em que uso tenho o que não sou para meu uso e com o mesmo fuso fundo de fundar fundo de fundar fundo de fundir e com o mesmo fuso fundo a fome e a saciez num mesmo uso eu fundo e não sou tudo que uso tenho fome de me tornar tenho fome de me tenho fome de tenho fome tenho um funditionário fundicionário fruicionário confitionário friccionário e das fricções de fiction que sou com a fiction que não sou me aqueço me aquece me dá calor me acalece mas que fiction sou e que fiction não sou se me componho do que fundo do que se funde do fundido do confundido se o que não sou é uma composição que compunge o que não sou e é uma grande alegria quando quando me tornar o que não sou e o NÃO e o negro e o negativo e a noite e o vir a ser e o me tornar e o me tornar e o futuro e o passado e o fundido fundido no presente deste dia dado que toco deste dia dado que me toca tenho de me tornar em tudo que toco e o que me toca deste dia dado e nada nada nada – pode deixar passar de leve o vento por entre as frestas dos meus dedos que posso deixar passar de leve o vento por entre as frestas dos seus dedos que nada se esconde sob o nome da palavra NADA nada nada – os passos os passos leves do vento os passos leves do vento por entre nos interstícios Waly Salomão – Poesia Total. Companhia das Letras

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A poesia é identificada e reconhecida pela característica da musicalidade ou, definindo melhor, pelo ritmo que apresenta. Essa noção, ou vocação, talvez, é em parte dada pelas rimas. Em linhas gerais, podemos definí-las como a semelhança sonora entre palavras, não sendo necessária a mesma ortografia, antes, porém, a fonética. As rimas podem se organizar de acordo com um número variado de arranjos e combinações. Quando externas, podem vir organizadas em pares ou alternadamente, podem se combinar entre versos que estão nos polos da estrofe. Podem ainda se organizar de modo a rimarem palavras que sejam da mesma classe gramatical (rimas ricas) ou de classes gramaticais diferentes (rimas pobres). Existe a possibilidade de fazer com que as palavras que estão sendo rimadas sejam organizadas de modo a terem a mesma sílaba tônica. Quase infinito o número de arranjos possíveis, mas seria tal afirmação. Essas combinações apresentam alternativas a serem exploradas no poema, na sonoridade e na forma também. Gostaríamos de destacar que a musicalidade pode abranger um espectro muito maior que podemos prever, que o ritmo pode se expandir no tempo e no espaço, que é também fruto do jogo entre fundo e figura, ou seja, entre silêncio e som, entre a distribuição que fazemos das palavras e sílabas no tempo, da combinação entre velocidade, aceleração e entonações. Tudo isso faz parte do jogo da sonoridade, da musicalidade do poema. O grande poeta Décio Pignatari, no livro O que é comunicação Poética (2006, p.30), incentiva aqueles de nós que desejam ou já se arriscam no exercício da poesia, a utilizar a sensibilidade do ouvir, sentir a pulsação, ler os poemas em voz alta. Essa leitura proporciona exercitar e brincar com a noção de ritmo, acelerar e desacelerar, fazer novos pontos de inflexão no texto, ou seja, onde queremos dar maior ênfase, quais palavras desejamos destacar. Aprendemos a modular a própria voz, ouví-la, descobrir como soam nossos versos, como é nossa voz. Um processo de afirmação de nossa prática poética. Neste intercâmbio entre a escrita e leitura, quando retornamos ao papel dando continuidade ao trabalho de construção do poema – reescrever, revisar, cortar; o efeito da audição ajudará a encontrar e fazer ajustes para que encontremos o ritmo do poema.

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A Língua Portuguesa apresenta uma sílaba tônica em todas as palavras e outras sílabas mais fracas que chamamos de átonas, podemos assim então pensá-las em termos de graves e agudas. Prestar atenção a essa alternância entre sílabas e entre as palavras como um todo, nos ajudará a dar ritmo ao poema, encontrar certa melodia. Gosto de aproximar o exercício da escrita com o da música. Tenho por hábito escrever ouvindo música instrumental, de modo, que, além de não ser influenciado pela em si letra, tento de alguma forma colocar em palavras as imagens e o clima que a música sugere. Não é exatamente uma tradução, mas como se fosse uma trilha a acompanhar a escrita e igualmente uma inspiração. Em outros momentos procuro observar o ritmo da música, sem com isso tentar encaixá-la como se fosse a letra da música. Por fim, outra atividade que me agrada muito, pois prazerosa, faz parte do meu dia a dia, é, sim, prestar atenção às letras das músicas. Existe um extenso debate sobre poesia e letra de canções, suas relações, semelhanças e diferenças. Penso que, apesar do quase parentesco (há músicas que eu mesmo cantarolo e digo: isso é uma poesia!), cada uma delas possui suas especificidades. Vale o registro que muitos poetas brasileiros escreveram letras maravilhosas da nossa MPB como Waly Salomão, Antônio Cícero, Paulo Lemnski, entre outros. De igual maneira, possuímos cantores/letristas de excelência como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Chico Buarque. Ouvir música, prestar atenção às letras, criativamente pode ser muito rico, em mim teve grande influência. Aqui transcrevo umas das letras que mais amo: Na frente do cortejo O meu beijo Forte como o aço Meu abraço Lágrimas Negras - Jorge Mautner e Nelson Jacobina 10


Se houvesse Um museu De momentos

Quando a poeta Ana Martins Marques, no O Livro das Semelhanças, escreve os versos acima, ela produz uma imagem inusitada para falar das memórias, aberta a múltiplas significações e interpretações, inclusive levando o leitor a criar outras imagens. O poeta Federico Garcia Lorca deixou escrito no belo poema Gazel da Morte Sombria: Quero dormir o sono das maçãs, Afastar-me do tumulto dos cemitérios Os versos acima nos lançam em um cenário de imagens literárias, dialogando com algumas que já possuímos no imaginário (o sono das maças conforme o conto de fadas da Branca de Neve) com outras muito originais como: o tumulto dos cemitérios. Ao associar essas palavras, ou imagens, sobretudo maçã e cemitério, o poeta causa um estranhamento, pois os termos apresentam uma tensão de oposição entre si (o cemitério é o lugar do silenciamento, onde a vida deixa de existir, que tumulto é esse? Será dos mortos?).

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A imagem poética é a combinação potente de palavras, de signos, que resultam tanto numa imagem insólita, nova, quanto numa explosão de significações, capaz, segundo Armindo Trevisan (2010, p1.2), de produzir novos sentimentos. Não se trata de buscar a originalidade por si própria, como se o objetivo fosse encontrar uma imagem nunca antes vista. O que nos interessa é explorar o potencial criativo dessa construção, pois boa parte da força da poesia reside na liberdade de criar imagens, ressignificar signos, recombinar palavras e ampliae sentidos. As palavras gastas, cansadas do uso cotidiano, que quase nos caem automaticamente da boca então se regeneram, transfigurarem-se, ganham amplidão e cores novas. A criação de uma imagem poética é também uma tentativa de dar forma ao que não tem, ao etéreo, como se fizesse ver além daquilo que as palavras sugerem. Toda criação não deixa de ser um modo de recriação da realidade ou do mundo. Quando falamos de imagens poéticas somos logo remetidos para as figuras de linguagem, conjunto de recursos expressivos da língua. Sim, as figuras de linguagem são intimamente ligadas à poesia, à construção imagética dos poemas. Metáforas, metonímias, comparações – muito utilizadas, entre outras nos vêm à mente. Estudá-las, por certo é um recurso valioso. Porém, desejamos destacar o efeito que combinações de diferentes imagens podem criar. Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti fizeram uma versão em português chamada Negro Amor para a música All Over New, Baby Blue, do cantor americano Bob Dylan. Na versão há os seguintes versos: Seu filho feio e louco ficou só Chorando feito fogo a luz do sol

Os versos são uma mostra da força da construção da imagem a partir de termos que apresentam uma tensão entre si, ou seja, que de alguma forma tem sentidos opostos. A comparação do filho que ficou só queimando ao fogo já é por si só potente, porém o que torna o verso maravilhado, pois insólito, é comparar ação de chorar – do filho, com a ação do fogo, que na verdade é arder. Elemento associado à energia, força, aqui ele é humanizado, vulnerabilizado pela relação em que a comparação o colocou. De modo inverso, mostra o tamanho dessa dor, da solidão que fez o filho chorar como se ardesse a luz do sol. Os versos criam um campo imenso de plurissignificação. Deslocar o sentido das palavras, que também é o processo de deslocar o leitor, nisso reside a força dos poemas, na tensão. Todavia, reforçamos que a construção do poema caminha organicamente, por diferentes vias, mas em conjunto, forma e conteúdo. É preciso ter cuidado com a gratuidade, perder-se na busca do verso inusitado, da imagem etérea e original como se fosse um fim em si mesmo não nos parece o caminha a ser percorrido. Cada poema irá apresentar um repertório de possibilidades, a simplicidade também é uma delas. Talvez aquilo que entendemos por simples, seja equivocado, pois nela reside igual potência.

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II Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima — eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. Excerto do poema Tríptico, Herberto Helder

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A poesia é uma linguagem que inventa a si mesma pela mão do poeta, pelos olhos que entram em contato com o mundo, fundando novos modelos de sensibilidade, alargando nossa dimensão reflexiva. Uma parte, aliás, boa parte, da prática poética se trata de escrever e reescrever. Considero fundamental a leitura de poesia, assim como para os músicos é essencial o aprendizado através do exercício de outras músicas. Entrar em contato com a obra de autores de diferentes estilos, diferentes períodos históricos, amplia nossa visão do que é a poesia e de como ela pode ser. Sem medo da influência que possam exercer em nós, no sentido de nos impregnarmos em excesso, cercamo-nos da companhia de poetas de todos os lugares do mundo, do passado distante e nossos contemporâneos. Escrever os primeiros impulsos e vestígios do poema é uma das partes mais prazerosas do processo, espécie de inquietação, tremor no alto da cabeça, geralmente é uma imagem ou palavra que surge, motivada pela observação de algo que se move no fundo de nós mesmos, como um peixe em um lago. Às vezes fecho os olhos para vê-lo melhor. Há algo que ocorre muito quando iniciamos a escrever é estabelecer uma espécie de censura ou compulsão a já corrigir o que está sendo feito, cortando assim o fluxo criativo. Escreva o tanto que puder, o quanto quiser - esse ainda não é o momento de montar o quebra-cabeça poético, de aparar versos e pensar na sonoridade. É o momento do jorro das palavras e imagens.

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A poesia é um atentado celeste Eu estou ausente porém no fundo desta ausência Existe a espera de mim mesmo E esta espera é outro modo de presença À espera de meu retorno Eu estou em outros objetos Ando em viagem dando um pouco de minha vida A certas árvores e a certas pedras Que me esperaram muitos anos Cansaram-se de esperar-me e sentaram-se Eu não estou e estou Estou ausente e estou presente em estado de espera Eles queriam minha linguagem para expressar-se E eu queria a deles para expressá-los Eis aqui o equívoco o atroz equívoco Angustioso lamentável Vou-me adentrando nestas plantas Vou deixando minhas roupas Vou perdendo as carnes E meu esqueleto vai-se revestindo de cascas Estou-me fazendo árvore Quantas vezes me converti em outras coisas… É doloroso e cheio de ternura Podia dar um grito porém a transubstanciação se espantaria Há que guardar silêncio. Esperar em silêncio [Vicente Huidobro. Tradução: Waly Salomão. Do livro: Pescados Vivos]

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Natural de Porto Alegre (RS) Marcelo Martins Silva é poeta e professor de Língua Portuguesa e Literatura da EJA. Publicou poesia e contos em Revistas como Rusga, Subversa, Mallarmargens e outras. Criou a oficina "A poesia é um atentado celeste" que fez parte da programação da Festipoa Literária 2019, foi um dos idealizadores e apresentadores do podcast de poesia Cafuné com Mandinga, junto com a artista Genifer Gerhardt, transmitido pela Mínima FM. Em 2015 participou da coletânea de poesia Cantos Seletos, publicado pela Editora Literacidade, já em 2019 lançou o livro de poesia O que carrego no ventre, editado pela Figura de Linguagem, finalista do Prêmio AGES Livro do Ano – Edição 2020, categoria Poesia, promovido pela Associação Gaúcha de Escritores. Em 2020, lançou o livro de poesia A Matéria Inacabada das Coisas, pela Editora Diadorim. Em 2021 publicou a novela Mil Manhãs Semelhantes, na Revista Parêntese.

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SOARES, Angélica. Gêneros Literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007.

TREVISAN, Armindo. Ler por Dentro. Porto Alegre: Pradense, 2010.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 2013

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia . ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SALOMÃO, Waly. Ler por Dentro – 1ª ed - São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SZYMBORSKA, Wislawa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

LORCA, Federico Garcia. Antologia Poética. – 1ª ed - São Paulo: Editora WMf Martins Fontes, 2010.

HUIDOBRO, Vicente. Altazor e outros poemas - São Paulo: Art Editora: 1991

MARQUES, Ana Martins. – 1ª ed - São Paulo: Companhia das Letras, 2015

SILVA, Marcelo Martins. – 1ª ed – Porto Alegre: Diadorim Editora, 2020

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Pequeno texto sobre financiamento do projeto, equipe envolvida...


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