8 minute read

O caos como um jogo de armar

O conceito de poesia, pensado a partir dos próprios poetas que a produzem, assume os mais variados significados, e achamos importante olhar o que nos disseram esses fazedores e fazedoras. Todavia, mais do que encontrar uma definição precisa, é interessante olhar alguns aspectos que os poemas e o fazer poético pode apresentar. O poeta Jorge Tufic (2009, p.74), nascido no Acre, sobre a poesia afirmou:

Nesta bela resposta, o poeta nos traz muito mais do que uma definição, oferece-nos algo que é essencial ao labor da poesia: a observação do mundo, a percepção do ambiente, as emoções e sentimentos que suscita, o efeito de deslumbramento ou espanto. A relação entre o mundo objetivo e subjetivo, o mundo concreto e os sentimentos do poeta proporciona imagens literárias inusitadas, renovadas pela associação das palavras. Escrever é, em boa medida, também descrever aquilo que se vê, e para isso aprender a olhar é um exercício fundamental; ver detalhes, cores, as nuances pequenas do dia, a semelhança entre imagens, como encontrar, e imaginar, formas diversas no mundo. A observação alimentará o imaginário. Podemos fazer uma conexão entre o esforço imaginativo e ao que o poeta cubano José Kozer (2009, p.76) chamará como pertencente “à zona do inconsciente, intuitivo.” Ele afirma que a poesia é uma junção entre o ofício, a parte manual do processo – escrever, corrigir, limpar o poema, e outra que é a surpresa, portanto sempre uma incógnita, da ordem da intuição. A imaginação é o componente que movimenta e conecta essas partes.

Advertisement

Deve ser o substrato da primeira manhã do universo, algo que teria se fixado em minha retina nos albores de minha infância em Sena Madureira, AC, lá pelos idos de 1935. Um cenário bucólico onde o rio, a mata, os igapés, violões à distância e o desafio dos cantadores nordestinos, soldados da borracha, tanto me deslumbravam quanto acenavam desafios que somente anos depois eu viria a aceitar, compondo o meu primeiro soneto.

Pensando ainda naquilo que alimenta o imaginário, não podemos esquecer de ressaltar a importância da leitura e apreciação da própria poesia, alargando o horizonte, incluindo aqui a literatura de um modo geral. A leitura de poemas nos coloca em contato com diferentes poetas, estilos, escolas literárias e, sobretudo, possibilidades que poderemos testar e incorporar ao nosso próprio repertório poético. Isso faz com que dialoguemos com uma longa e riquíssima tradição literária, a qual nos pertencem também, ao mesmo tempo em que dialogamos e inventamos a contemporaneidade. Uma espécie de leitura situada entre o prazer, a curiosidade e a atenção. Sobre a leitura, sugerimos entrar no poema como quem entra no Mar, sem rigidez, água clara e morna aos joelhos. Em geral, entramos em um texto disposto a dissecá-lo como uma equação – já ouvir falar nos catetos? A leitura da poesia nos convida a abordá-lo de uma forma mais ampla, tomado não apenas pela razão, mas também pelo sentindo, pela sonoridade, imagens criadas, até pela sua própria intangibilidade. Entrar no poema como quem entra no rio, aos poucos, deixando o corpo se acostumar com a temperatura da água e o movimento e o som das pedras.

De maneira geral, o poema é bastante caracterizado e reconhecido pela forma mais tradicional em que se apresenta no papel: organizado em estrofes e versos.

Mandinga Desejo escrever um poema de dez minutos e alguns segundos um grande poema dos séculos um grande poema preto um homem poema de unhas grandes e negras

Um poema pra limpar da boca a era da técnica pra sujar a boca com o gosto do barro cutucar o dente até sair sangue uma mandinga filha da pressa e da preguiça Negativa de Angola contra o capital

O poema não tem solução cresce dos murros que recebe transforma a raiva em ferro arremessa versos contra os muros do mundo

[do livro A Matéria Inacabada das Coisas. Marcelo Martins Silva]

O verso é cada linha do poema e as estrofes são os conjuntos de versos até o espaço em branco. No entanto, dentro dessa relação há uma variedade de conformações, de formas como sonetos, tercetos, rondós, entre outros. Essas formas também se relacionam com a métrica dos versos, ou seja, seu número de sílabas poéticas. Há um belo e intricado jogo entre versos, estrofes, métrica, todavia, nossa proposta não é disseca-los, acreditamos que o estudo minucioso desses aspectos por si só daria outro livro.

As formas livres proporcionam uma composição que permite desde o poema em prosa até a construção de imagens com as linhas e palavras do próprio texto, engendrando assim outras possibilidades de significação. O movimento concretista, que despontou no Brasil em meados dos anos 50 com Décio Pignatari e os irmãos Campos – Haroldo e Augusto, é um dos maiores expoentes do trabalho poético valorizando a forma. Com seus poemas-objetos incorporaram formas geométricas, eliminaram versos, enfatizando o conteúdo visual e sonoro das palavras, sem abrir mão da carga semântica do poema.

No poema Poema Jet-Lagged, do fantástico Waly Salomão, há o seguinte verso: “o caos como um jogo de armar ”. Penso que ele diz muito sobre o fazer poético – um infinito jogo de armar. Longe de ser apenas intuição ou pura técnica, um poema é como armar uma teia, montar uma imagem a partir de vários elementos sonoros, visuais, semânticos, verbais, e ainda que não possui uma fórmula.

A cada novo poema, uma tentativa, o encontro com o inusitado, nunca se resolve dá mesma forma e nem se pretende algo a ser resolvido. O poema é um ser da linguagem, portanto concreto, porém, parafraseando Décio Pignatari, parece o mais abstrato dos seres.

A desconstrução do verso, de Haroldo de Campos

NA ESFERA DA PRODUÇÃO DE SI MESMO

XIII em diante

Tenho fome de me tornar em tudo que não sou tenho fome de fiction ficciones fictionários tenho fome das fricções de ser contra ser tudo que não sou ser de encontro a outro ser tenho fome do abraço de me tornar o outro em tudo que não sou me tornar o outro em tudo me tornar o outro a outra douto doutra em tudo em tudo que não sou me tornar o outro de me me tornar o nome distinto o outro distinguido por um nome distinto do meu nome distinto tenho fome de me tornar no que se esconde sob o meu nome embaixo do nome no subsolo do nome o sob nome o sobnome e por uma fresta num abraço contíguo penetra passa habitar o fictionário que me tornei em tudo que feixe de não fixas ficciones sou em tudo por tudo por uma fresta de tudo por uma fresta tudo se fixa por uma toda por uma toda fresta as fixações penetram passam a habitar o ficcionário que me habituei em ME me ME tornar em tudo todo o TUDO personas personagens bailes de máscaras reais que pessoas que penetram que pessoas penetram pelas frestas e num abraço contínuo se casam fazem casa e se inscrevem e se incrustam máscaras moluscas no meu rosto me tornar uma escala crescente milesimal centesimal decimal inteira a face dum baile de máscaras reais vir a ser este fictionário que não sou me casar que ainda AINDA que não sou e que sou sempre sempre quando quando sempre tenho fome qual a escala crescente ou decrescente pra saber se um milésimo centésimo décimo inteiro todo ou fração todo meu fictionário ser se revelou no abraço contínuo contíguo em que se desvelou tornar tudo tenho fome de me tenho fome de de de tornar EM tudo que não sou EU esta pessoa que está aqui falando na primeira pessoa eu do singular esta pessoa singular que sou eu pronome pessoal irredutível enquanto pronome mas que mas que se esconde se expande se estende sob o embaixo do no sub solo do pronome eu pessoal irredutível e é qualquer coisa além aquém qualquer alter outrem outra coisa além aquém alter outrem que mora no subsolo do pronome pessoal eu um sob pronome qualquer dia destes passo pra te ver gosto de te como você nem imagina nem fictiona nem funciona sem teu fictionário pra imaginar e é uma alegria muito grande não tenho de que me queixar é uma alegria muito grande estar aqui entre pessoas boníssimas é uma alegria muito grande conviver com vocês todos neste dado neste dia dado em que uso da palavra pra me dirigir em agradecimento a todas as pessoas boníssimas bonissíssimas que me acolhem sempre na maior alegria me acolhem me aquecem é uma grande alegria é uma alegria muito grande não tenho do que me queixar é uma alegria muito estar fruindo entre pessoas boníssimas melhor dizendo bonissíssimas neste dado neste dia dado em que uso tenho o que não sou para meu uso e com o mesmo fuso fundo de fundar fundo de fundar fundo de fundir e com o mesmo fuso fundo a fome e a saciez num mesmo uso eu fundo e não sou tudo que uso tenho fome de me tornar tenho fome de me tenho fome de tenho fome tenho um funditionário fundicionário fruicionário confitionário friccionário e das fricções de fiction que sou com a fiction que não sou me aqueço me aquece me dá calor me acalece mas que fiction sou e que fiction não sou se me componho do que fundo do que se funde do fundido do confundido se o que não sou é uma composição que compunge o que não sou e é uma grande alegria quando quando me tornar o que não sou e o NÃO e o negro e o negativo e a noite e o vir a ser e o me tornar e o me tornar e o futuro e o passado e o fundido fundido no presente deste dia dado que toco deste dia dado que me toca tenho de me tornar em tudo que toco e o que me toca deste dia dado e nada nada nada – pode deixar passar de leve o vento por entre as frestas dos meus dedos que posso deixar passar de leve o vento por entre as frestas dos seus dedos que nada se esconde sob o nome da palavra NADA nada nada – os passos os passos leves do vento os passos leves do vento por entre nos interstícios

Waly Salomão – Poesia Total. Companhia das Letras