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Antidepressivos

Mundo de Todos

Antidepressivos

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João Lobo Camelo, 4.º ano Foi-me sendo lembrado enquanto cresci, perante as preocupações do dia-a-dia, que o mais importante era ter saúde. Tal como não entendia a saudade nos fados de Amália, não levava também muito a sério essas palavras, ouvia-as como uma lengalenga sem substância, a resposta pronta às verbalizações de qualquer preocupação menor, numa tentativa de amenizá-la. Hoje, dou por mim a pensar, evidentemente, que a sociedade está doente. Desapegamo-nos das pequenas coisas da vida à medida que vamos deixando de ser crianças. Entretemonos com futilidades, tiramos muito pouco do nosso tempo para ajudar o próximo, gastamo-nos dia após dia, num ignorante esbanjar de horas, até a altura do nosso partir. Ver-nos assim entristece-me, mas haja esperança - lembro-me das palavras de Bukowski: “Your life is your life / there is a light somewhere / it may not be much light but / it beats the darkness”. Por este nosso funcionamento insalubre, que nos impacta de forma negativa, em menor ou maior medida, é urgente, mais do que nunca, falar de saúde mental, de depressão e, também a propósito, de antidepressivos. No último ano, aprendemos o que a minha mãe me dissera, que a saúde, inclua-se a mental, é de facto o bem mais importante a preservar.

Como não é possível falar de saúde mental sem que se ocupe toda uma edição de revista, foquemonos naquela que é principal causa de anos vividos com incapacidade, uma patologia que nos é familiar de uma forma ou doutra e que afetará uma em cada sete pessoas em determinada fase da sua vida. Muito mais do que um sentimento de tristeza, a qual faz parte da pletora de experiências emocionais normais de todos, esta reflete um transtorno do humor intimamente associado a numerosas alterações fisiológicas, cognitivas e comportamentais, que apresentam elevada cronicidade, redução da qualidade de vida e perda de produtividade brutal para o indivíduo, levando assim a custos económicos diretos e indiretos para a sociedade. Apesar da depressão existir, possivelmente, há tanto tempo quanto a nossa espécie, a farmacologia implicada no seu tratamento, tão fundamental, é ainda um bebé na imensa árvore genealógica da Medicina. Poderse-á dizer, até, que a descoberta dos antidepressivos foi acidental. Em 1951, o doutor e investigador Irving

Selikoff, trabalhando num sanatório – lugar para onde eram enviados os doentes com tuberculose – começou os ensaios clínicos com

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isoniazida (sendo ainda hoje um dos tratamentos de primeira linha contra esta doença contagiosa). Verificou-se, surpreendentemente, que os doentes tratados revelavam um renovado vigor. No ano seguinte, o psiquiatra Max Lurie, tendo lido acerca dos resultados estimulantes da isoniazida, decidiu usá-la nos seus doentes, verificando melhoria da depressão em dois terços destes. No entanto, mesmo depois dos significativos avanços da ciência, o tratamento deste tipo de patologia ainda nos apresenta diversos desafios. Para que possamos falar de um renascer, urge abordá-los nas suas várias frentes: educar a consciência individual e social no que diz respeito à saúde mental, para reduzir os grilhões do estigma; reunir esforços para aumentar o acesso aos cuidados de saúde mental e tratamentos eficazes, e ainda pesquisar novos tratamentos que possam constituir uma melhoria dos atuais. Como se não bastasse, existe ainda o verdadeiro efeito de arrastamento provocado por poderosos interesses individuais e monetários. A título de exemplo, vejamos a questão da publicidade à medicação sujeita a prescrição médica levada a cabo nos Estados Unidos. Como acontece com

qualquer indústria multibilionária, a obrigação lucrativa sobrepõe-se, não raras vezes, à da transparência perante os consumidores, e a publicidade aos medicamentos antidepressivos, frequentemente, não só exagera os benefícios como largamente oculta possíveis

efeitos secundários graves. Este modus operandi acaba por conduzir

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a repercussões sérias na forma como a eficácia destes fármacos é percecionada, como o seu consumo é feito e, consequentemente, na própria terapêutica do doente. Por todas estas variáveis, é necessário que haja um papel educativo junto da população, dando-lhe a conhecer as verdadeiras características dos antidepressivos, para que estes não sejam percecionados como respostas milagrosas no qual o tratamento da depressão se limite à prescrição de um medicamento. Sendo importantíssimo o papel da medicação na depressão, são imensamente indispensáveis a compreensão, a explicação, a motivação, bem como o apoio psicológico individual e familiar. Em suma, a eliminação do estigma,

o maior conhecimento das causas exatas da depressão, a maior transparência da indústria farmacêutica e o conhecimento das limitações deste “filho pródigo da medicina”, permitirão assim um verdadeiro e saudável avanço

terapêutico. Gostaríamos que houvesse menos transtornos no mundo, dos mentais, dos pandémicos, dos de toda a espécie. Acontecimento atrás de acontecimento, revolta e contrarevolta, catástrofe e aprendizagem, cada dia nunca é verdadeiramente igual ao outro, e neste tango imemorial de aprendizagem vamos crescendo coletivamente. Em criança, a minha irmã cantava Amália todas as manhãs, a plenos pulmões. Queixava-me do barulho, considerava-o mesmo um drama da minha curta vida que ainda não conhecera a saudade, e ela brincava comigo, desarmava a situação, dizendo que a saúde a tinha eu. E lá

aguentava, ouvindo algures entre o fado de Amália e a voz da minha irmã, a frase que hoje espelha o que todos temos sentido: “que estranha forma de vida”.

Educação Médica

Entrevista: Violência Doméstica na 1ª Pessoa

Andreia Nossa Ferreira, Erasmus 20/21

“Açucena” é a personagem principal desta história, uma mulher de 44 anos e mãe de 2 filhos maiores de idade. Agradeço em nome de toda a revista a cedência desta entrevista, não apenas pela coragem em desenterrar as suas feridas, mas também pelo altruísmo e determinação em ajudar outras pessoas que possam estar em situações semelhantes. Com esta entrevista, pretendemos mostrar que é possível pedir ajuda, sair desse pesadelo e voltar a ser feliz.

Infelizmente, a violência doméstica marcou a sua vida e da sua família. Essa violência foi por parte de quem? Sofri de violência doméstica pelo pai dos meus filhos. Apaixonámo-nos muito jovens. Foi um namoro assumido, mas não consentido pelos meus pais, já que a família dele era bastante disfuncional. Na idade da rebeldia, tinha eu 18 e ele 21, fiz ouvidos “moucos” aos constantes avisos da família, acabando por casar, apenas ao fim de um ano de namoro. Esta decisão expôs-me, durante 10 anos, a vários tipos de violência.

Houve algum tipo de violência durante o namoro? Consegue explicar-me como tudo começou? Durante a fase de namoro, ele nunca foi violento comigo. Tudo começou numa viagem de carro para Portugal (pois éramos emigrantes), acompanhados dos pais dele. Na altura, ele tinha 22 e eu 19 anos, estando grávida de 8 meses do meu primeiro filho. Os pais dele não sabiam que ele fumava e, tendo ele dito algo que me irritou profundamente, retorqui-lhe desvendando esse segredo. Reagiu dando-me uma estalada, parou o carro e mandou-me sair. Essa foi a primeira vez que me agrediu.

Qual a reação que cada um de vocês teve? Eu disse que não sairia do carro, pois também era meu. Os pais dele não tiveram sequer reação, uma vez que a mãe dele já tinha sido vítima de violência e a situação era normal para eles. Simplesmente continuámos a viagem e nunca mais se falou disso, como se nada tivesse ocorrido.

Porque não saiu do carro? Primeiro, porque ele não podia mandar-me sair daquilo que era meu. Depois, por ter de ir para casa sozinha e dar razão à minha família, que sempre fora contra a relação e ouvir um “eu bem te avisei”.

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O facto de ser jovem e arrojada para a época, permitiu-me saber que aquilo não estava certo, mas o facto de estar a acontecer comigo paralisoume. Acrescento a nossa situação económica, pois deixando-o teria de sustentar os nossos filhos sozinha. Todos os dias me arrependo disto. Se naquela altura tivesse saído do carro, muita coisa na minha vida teria sido diferente.

Depois deste episódio, como evolui a relação? O meu primeiro filho nasceu e a época seguinte foi maravilhosa. Até que o meu pai, na altura também emigrado connosco, voltou para Portugal e ficámos sozinhos com uma criança de um ano. A tortura veio a partir daí. Ele começou a beber descontroladamente, coisa que não fazia antes, pois sempre dissera não querer seguir o exemplo do seu pai. Dizia-me “hás de me pagar”, mas nunca entendi o significado.

Relaciona os períodos de maior agressão com algum acontecimento específico? O pior era quando o álcool começava a fazer efeito. Não se lhe podia dizer nada, partia logo para a violência física e psicológica: batia-me, pontapeava-me, insultava-me… Isto foi sendo cada vez mais frequente, até que passou a ocorrer diariamente. Posteriormente, ele demonstrava arrependimento? Fazia-a pensar merecer tal atrocidade? Ou simplesmente fingia que nada acontecera? Nunca pediu desculpa, mas nos dias/ semanas seguintes, tentava compensarnos fazendo algo que queríamos, fora do nosso dia-adia habitual. Sentia que confrontar o agressor, pioraria a situação?

Perguntei-lhe muitas vezes o motivo de agir assim, mas a própria pergunta ofendia-o. Nunca me respondeu, apenas nos dizia “não valem nada” e ameaçava-me constantemente, caso falasse ou o deixasse. Temeu pela sua vida e dos seus filhos? Pensou na possibilidade de ficarem traumatizados por assistirem a essa violência? Sim, sem dúvida! Tinha muito medo dele, das ameaças contra mim e a minha família. Houve momentos em que maltratava o menino, rebaixando-o, dizendo “não vales nada”, ao nosso filho de 5 anos. Na maior tareia que me deu, estava grávida de 3 meses do

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segundo filho (desconhecendo-o), e fui bater à porta de uma vizinha amiga. Ele preferia que tivesse perdido a criança, pois temia que a gravidez fosse motivo de despedimento e comprometesse as nossas economias. Vendo como eu estava, a vizinha quis chamar a polícia, mas não deixei. Apenas consenti ver um médico da confiança dela.

Algumas vez pensou em terminar com a sua vida? Passoume várias vezes pela cabeça atirarme do sexto andar. Nunca tentei nada contra ele, pois tinha mais força do que eu. Estava sempre a dizer-me: “Se fizeres alguma coisa contra mim, terás de acabar mesmo comigo. Caso contrário, quando me levantar, acabarei eu contigo!”

Ninguém desconfiou do que se passava? Toda a família dele sabia, mas apenas uma irmã sua, me perguntou o porquê de não o deixar. “É fácil falar, difícil é fazer”, retorqui. Quando vínhamos a Portugal, ele subornava a minha família com presentes caros, sempre impecável e altruísta, pelo que não desconfiavam de nada. Nas costas deles, tentava pôr-me contra eles. Queria quebrar qualquer ligação que eu tivesse, mas nunca cedi.

Alguma vez pensou em pedir ajuda a alguém da sua confiança? Tinha o meu primeiro filho 3 anos quando fiz uma carta para a minha melhor amiga, a contar o que se passava. Na carta, pedia que caso algo me acontecesse, o meu filho fosse entregue à minha irmã. Mas não a vi como uma ajuda e até lhe pedi segredo.

Quando houve o click que mudou tudo? Passei por várias situações humilhantes, mas houve uma particularmente cruel. Um dia, ele provocou-me de tal forma, que lhe disse:

“Que mal fiz eu a Deus para merecer um gajo destes?” As crianças normalmente assistiam às agressões, acabando por se esconder debaixo da cama ou num armário. No dia seguinte, fui trabalhar e levei os meninos comigo. Foi nesse mesmo dia que o meu filho mais velho disse: “Mãe, porque é que não vamos embora e deixamos o pai? Pensei que fosses morrer!”

Acredita que o seu filho lhe salvou a vida? Sim, sem dúvida.

Apesar do receio em ser mãe sozinha, foi naquele momento que decidi ligar à minha irmã e contarlhe tudo. Programámos a minha fuga durante um mês, da qual, felizmente, ele nunca suspeitou. Deixei-lhe uma carta a contar tudo o que sentia e preparei-me de forma a nada me fazer voltar.

Quatro dias depois, ele estava em

Portugal, o que resultou em 2 anos de perseguição, 8 processos em

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tribunal, danos materiais, ameaças por intermédio das crianças, como: “vou por fogo à vossa casa, matarvos e a “Açucena” apenas viverá até o nosso filho mais velho fazer 18 anos”. Os processos em nada deram e ignorou os filhos quando viu que me perdera. Mais tarde, separámo-nos judicialmente por bens e pessoas.

Considera que encontrou alguma vez amparo e orientação por parte de médicos, associações de apoio à vítima, polícia? Nunca senti que os médicos ou forças de autoridade contribuíssem para a minha segurança. Acreditava que a polícia não o prenderia, que ele voltaria para casa e tinha medo do que pudesse acontecer. As instituições de apoio podiam retirar-me do local do agressor, mas aconselhar-me-iam a voltar para junto da família, algo que não estava disposta a fazer pois tinha a certeza de que ele me perseguiria. A minha cabeça de jovem desesperada e amedrontada, fazia de tudo para evitar que os médicos de família sinalizassem as autoridades. Apenas quando já tinha o plano de fuga pronto, obtive um relatório das minhas marcas, garantidamente de maus-tratos, com intenção de denunciar o meu ex-marido às autoridades competentes.

Levei à polícia o relatório medico, contei o que planeava fazer e eles abriram processo.

É possível continuar a gostar de alguém que nos trata assim? No princípio, eu acreditava que ele mudaria por, pelas palavras dele, “me amar muito e ser a mulher da vida dele”. Mas, que forma estranha de amar é esta? Mais tarde, eu apenas sentia medo, que nada o faria mudar e que não era aquela a vida que eu queria.

Tendo refeito a sua vida, sente necessitar, ainda hoje, de ajuda profissional por possível trauma? Inicialmente, tinha medo de estar com alguém, não confiando ao ponto de entrar numa relação. Ao mesmo tempo, não me sentia segura sozinha. Felizmente, acabei por encontrar a pessoa que foi um pai para os meus filhos, que me trata como mereço. Cheguei a falar com um psicólogo, mas apenas em tom de amizade e não profissional. Este mesmo psicólogo, acompanhou profissionalmente os meus filhos durante bastante tempo.

Para terminarmos, quer deixar algum conselho a quem possa estar a passar pelo mesmo? Sim, claro. Não tenham medo de falar, de pedir ajuda, do julgamento dos outros e de sair desse ambiente tóxico e isento de amor, porque quem bate, não ama. Eu sei que é difícil, mas é importante não se deixarem dominar pelo medo e vergonha. A minha experiência ensinou-me a pensar mais por mim e, fundamentalmente, a trabalhar mais em mim. Atualmente, o que mais valorizo é a minha felicidade e dos meus filhos, independentemente do que estiver à nossa volta.

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