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Champs–Elysées brasiliense

Edifício de 18 condomínios com administrações independentes, Conic foi inaugurado em 1967

por: Matheus Costa

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Ali bem ao lado da Rodoviária de Brasília, local pelo qual circulam diaria mente 700 mil pessoas, segundo dados do Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans), está o Conic. O edifício de 18 condomínios com administrações independentes é uma verdadeira torre de babel na forma de centro comercial. A pluralidade de serviços inclui todas as tribos e tipos, de lojas de camisetas a consultórios médicos, de estúdios de tatuagem a igrejas e faculdade. O novo e o antigo convivem democraticamente. “É um lugar histórico e por isso deve ser respeitado. Ali eu lembro de conhecer José Saramago, e Oscar Niemeyer lançou um livro e deu autógrafos”, comenta o professor emérito da faculdade de arquitetura da UnB José Carlos Coutinho, 83 anos, também ex-diretor de Gestão do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal.

O Setor de Diversões Sul, nome oficial do espaço, foi inaugurado em 1967, menos de uma década após Brasília. A forma como é conhecido, no entanto, Conic, é referência a uma das empresas responsáveis pela construção de parte dos prédios, a Companhia Nacional de Industria e Comércio. A empreitada foi liderada pelo cearense Antônio Venâncio da Silva, empresário conhecido por construir diversos prédios comerciais na capital. “O grande empreendedor imobiliário ali era o Venâncio, o mesmo que fez o Venâncio 2000 e o 3000”, lembra Coutinho. O Conic foi o Venâncio IV. Cada um dos blocos construídos ganhou uma estética própria, mas com uma fundação

Cinemas, teatros, galerias, amplas calçadas e cafés deveriam predominar na plataforma superior da rodoviária em um “espaço adequado ao convívio e à expansão”. “Ele imaginava que chegariam as pessoas pela rodoviária, subiriam para a parte superior da plataforma e ali encontrariam todo o tipo de diversão e ocupação noturna“, revela Coutinho.

Parte da diretriz foi cumprida inicialmente. O local já foi marcado pela sofisticação e a importância histórica é reconhecida ainda hoje. Os primeiros cinemas da capital do país foram construídos lá. “Havia uns cinco cinemas em Brasília, entre os quais o maior deles na época era o Cine-Atlântida“, recorda-se o professor de arquitetura. O Atlântida tinha capacidade para 1.200 pessoas. Hoje, abriga uma igreja. Já a extinta Casa do Livro era ponto de encontro e oferecia os melhores títulos. “Por ser a melhor livra ria, ali se encontravam pessoas da mais alta estatura intelectual”, completa.

A partir da década de 80, as coisas mudaram e o Conic reorientou sua vocação. Com a inauguração de outros pontos de diversão na capital, passou a ser um lugar de luta política, mas também de prostituição. Proprietário da loja Berlim Discos e há 30 anos no local, o comerciante Reinaldo Antonio Ribeiro, 63, lembra que o Conic chegou a ser chamado de boca do lixo. “Era um lugar estigmatizado, um local de boates, de prostituição e mais uma série de coisas. Hoje em dia é um centro de compras frequentado por todas as tribos jovens do DF’’, conta.

A necessidade de revitalização é destacada pela vendedora de uma das óticas, Ieda Braga, 52. No Relatório do Plano Piloto,

Lúcio Costa apresentou o Setor de Diversões Sul como uma espécie de Champs–Elysées e Times Square em comum. Até mesmo o compositor Billy Blanco, que era formado em arquitetura, chegou a ser responsável pela construção de um dos blocos. Para alguns, o complexo é um verdadeiro “frankenstein arquitetônico”. Em artigo sobre o espaço, o sociólogo Brasilmar Nunes, que foi professor de sociologia da UnB, opina que a plura lidade de públicos e a diversidade de espaços estão diretamente relacionadas. Na avaliação dele, sociabilidades heterogêneas se articulam com espaços construídos desta forma.

Originalmente, porém, a pretensão era outra. No Relatório do Plano Piloto, Lúcio Costa apresentou o Setor de Diversões Sul como uma espécie de Champs–Elysées e Times Square. Diversidade arquitetônica dos 18 condomínios caracteriza fachada

Coutinho observa as mudanças do Conic ao longo de 50 anos

“São mais de dez edifícios, mas talvez uns oito cuidem bem dos prédios, os outros não”, comenta. A artista plástica Amanda Soares, 20, concorda. “Infelizmente, a atenção para esse lugar é pouca. Mesmo tendo atividades de teatro, de artes plásticas no fim de semana, as pessoas não vêm porque acham o Conic um lugar marginalizado”, lamenta.

Também nos anos 80, o sindicalista Gilson Josias de Aguiar, 61, passou a trabalhar no Conic, no Sindicato dos Trabalhadores de Escolas Públicas. ‘’Aqui sempre teve gente trabalhando de tudo. Tem escritório de tudo, por exemplo, sindicatos, a maioria dos sindicatos hoje está no Conic... escritórios de advocacia, contabilidades, clínicas…’’, enumera Gilson. Para o sindicalista, a preferência está ligada à localização conveniente, ao lado da rodoviária, que torna fácil o acesso.

Assim como as representações sindicais, fundações e ONGs também buscaram maior proximidade com o público. A bibliotecária e biblioteconomista Thalyta Jubé, 29, coordenadora da biblioteca Salomão Malina, que é ligada à Fundação Astrojildo Pereira, diz que a biblioteca surgiu a partir do falecimento do militante do Partido Popular Socialista Salvador Malina, que doou o acervo dele para a fundação. “Surgiu a ideia de fazer uma biblioteca especializada em Ciências Sociais, voltada para a esquerda, marxismo, leninismo, e é essa a linha que a gente segue. Mas o espaço é público, porque é aberto ao público. Qualquer um pode vir aqui ”, conta Thalyta.

A realidade cultural do Conic está presente também em um dos teatros mais antigos de Brasília. O Dulcina de Moraes, que fica na faculdade homônima. O professor Carlos Ferreira da Silva trabalha na faculdade há 30 anos. Ele declara que a diversidade é fundamental para a formação dos alunos. “Acho que é por isso mesmo que a Dulcina de Moraes escolheu este lugar para instituir a faculdade, exatamente neste lugar múltiplo que se chama Setor de Diversões Sul”.

A história do músico Wilson Andrade, 47, também passa pela Dulcina. “Eu lembro na década de 90, era muito ativo. Eu cheguei a fazer dois cursos lá que eram abertos para o público”,

“É um lugar histórico e por isso deve ser respeitado. Ali eu lembro de conhecer José Saramago”

José Carlos Coutinho, arquiteto

Plataforma que liga a Rodoviária do Plano Piloto ao Conic

Vista superior e interna do prédio permite observar galerias e blocos em suas diversidades

lembra. Fora os cursos, o músico participou e organizou uma série de espetáculos no teatro e hoje lamenta o descaso e a falta de investimentos em um espaço que lhe traz tantas memórias. “‘O sistema de áudio praticamente não existe mais. É o velho problema de Brasília: falta de manutenção”, declara.

Para artistas dos mais variados tipos, como artesãos, grafiteiros, músicos e poetas, o Conic é um ponto de encontro. Amanda expõe a importância do lugar. “Acho que aqui é um ponto que resiste, um lugar de solidariedade e que pessoas que querem viver de arte se encontram para fazer”, opina. Mas a artista se aflige pelo Conic já ter tido tantos teatros e cinemas fechados. Ela teme que o teatro Dulcina siga o mesmo caminho.

A diversidade do comércio também se apresenta na variedade de lojas de camisas, sapatos e brechós que se concentram no edifício. Vendedor de uma das lojas, Leonardo Martins Ribeiro, 24, diz que o comércio local dá espaço para todos. “Tem espaço para todos os lojistas, a gente conversa bastante, a gente reclama da obra em conjunto e os vendedores todos se conhecem e somos bem amigos”, diz Leandro.

Outra tribo que se destaca no Setor de Diversões Sul é a dos skatistas. Gerente há sete anos de uma das lojas mais antigas do ramo, Célio José da Silva, 39, destaca que frequenta o Conic como skatista desde 1995. “Além de ficar próximo do lugar onde todo mundo anda, que é o Setor Bancário Norte, é também o lugar que é mais acessível para todos os públicos, para a galera de menor renda e até a galera de alta renda”, esclarece.

A movimentação de diversas tribos fazem do Conic um ambiente relevante para a contra-cultura, segundo o tatuador e piercer Gabriel Brito, 27. “O Conic é o Setor de Diversões né, o

Amanda é artista plástica e tem no Conic um de seus espaços de expressão

Célio trabalha em uma loja de skate há dez anos

nome já diz tudo. Ele agrega muito nessa questão cultural de Brasília da tatuagem, piercing e modificação corporal”, avalia.

Outros ambientes que mantêm as portas abertas são as igrejas. Evangélicas e católicas convivem no espaço que reúne mais de dez templos de vertentes variadas. Danilo Souza, 26, é pastor da Igreja Mundial e afirma receber nos cultos muitos fiéis que trabalham por perto, almoçam nas proximidades ou que desembarcam na rodoviária por qualquer outro motivo. “A gente respeita os outros e os outros nos respeitam. Aqui é bom, dá certo”, afirma Danilo.

Perto dali está um dos sex shops do Conic. O comerciante Luís Fernando Gonçalves, 42, assumiu há 15 anos uma das lojas, herdada do pai. ‘’Eu acho excelente esse ambiente democrático do Conic. A gente tem um nicho aí para pegar todas as tribos e de todas as formas’’, opina. Para o lojista, os clientes da sex shop a consideram discreta por estar em um lugar tão diverso. “O Conic é o tipo do lugar que é democrá tico, então qualquer um some no meio da multidão”, explica.

O ANTIGO CENTRO DOS CINEMAS

O Cine Atlântida, o Cine Ritz e Cine Venâncio Jr. são alguns dos exemplos de espaços que hoje só existem na memória de candangos mais velhos. Muito antes dos serviços de streaming de videos e antes mesmo de cada shopping ter o seu cinema, o Conic era o ambiente de Brasilia para assistir um bom filme ou uma peça. Ao todo, houve seis estabelecimentos diferente de cinemas, segundo registro da Faculdade de Arquitetura da UnB. “Era um local de frequência de bom nível, diversificado, mas com uma frequência de pessoas que exigiam um bom livro, um bom café e um bom cinema”, recorda-se José Coutinho. O sindicalista Gilson de Aguiar guarda memórias similares. “Hoje, a parte cultural, realmente está devagar, até porque a principal parte eram os cinemas, e acabou”, revela Gilson. Em 1995, o Cine Atlântida, que tinha a maior sala de Brasilia, com 1.500 lugares, foi vendido para a Igreja Universal. O professor Brasilmar Nunes registrou essa mudança do espaço em seu artigo sobre o Conic. O que aconteceu foi que esses cinemas deixaram de ter frequentadores quando os shoppings abriram suas salas. E, apesar dessas salas serem tombadas pelo Iphan, as igrejas conseguiram comprar os espaços com o argumento legal de que templos também são espaços de divertimento, o que não altera o propósito original das construções.

Fotografia aérea do centro de Brasilia em 1970, com alguns dos edifícios do Conic já construídos

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