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De drag a queen

Busca por visibilidade e a defesa da profissão como arte fazem parte da rotina dos que seguem a carreira no DF

por: Maína Chaffin

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Com chinelos, jeans rasgado, camiseta e mochila nas costas, Felipe Ottero, 22 anos, chega à portaria da boate e se identifica. Diferente de outros jovens que estão na fila, esperando para entrar no local, Ottero vai a trabalho. Duas horas depois, vestido com body preto, botas de salto, peruca loira e muita maquiagem, o rapaz já não atende mais pelo nome de batismo. Pelas próximas horas, ele é Nancy Hallow, dragqueen.

A rotina de trabalho das drags é de glamour. Fotos com fãs e amigos no camarim antecedem a subida ao palco. Após dois anos de carreira, ainda se ressente da falta de reconhecimento do público do retorno financeiro. Para ele, no entanto, esta é uma etapa para a visibilidade. “Antes de ser dragqueen, eu sou artista e, antes de ser artista, sou um ser humano. Quero mostrar para quem tem o mesmo sonho que não há nada de errado em ser estra nho, em ser diferente do padrão que a sociedade cobra”, diz Nancy.

Fã número um e namorado da Nancy Hallow, o comissário Pedro Paulo Deluque, 23, conta que desde que descobriu esse mundo drag sentia vontade de se montar. “Há uns quatro anos comecei a acompanhar o reality show RuPaul’s drag race e ali eu me peguei apaixonado por essa profissão”, lembra o comissário. Assim surgiu a dragqueen Licorina.

Licorina ainda não subiu aos palcos para uma primeira performance, porém sempre participa de eventos e paradas LGBTS que ocorrem na cidade. Outra drag que também está no início

da carreira é a Piper Callazans, criada pelo maquiador Felipe Alves, 21. Piper surgiu devido à admiração do maquia dor pelas dragqueens que estão fazendo grande sucesso atualmente. “Esse boom de cantoras drags foi o que me motivou a começar a trabalhar com a arte de ser drag”, conta o maquiador.

O fato de a mídia abrir espaço para as cantoras dragqueens, como Pabllo Vittar, é o que estimula tantos rapazes a investirem na carreira, avalia o professor de antropologia Claudio Ferreira. “O menino gay que acompanha a carreira dessas cantoras vê segmentação de mercado que oferece uma oportunidade de emprego e até mesmo de fazer sucesso”, explica o professor.

Ferreira também considera que as drags sempre tiveram oportunidade no mercado do entretenimento, pois não é de hoje que boates e eventos contratam os serviços delas inclusive para recepcionar os convidados. “Era mais comum ver as drags como hostess, hoje elas são a principal atração do evento”. A mudança ocorreu frente à própria adaptação das drags.

O atual cenário das cantoras brasileiras drags conta também com representantes do DF. Aretuza Lovi, interpretada por Bruno Nascimento, 28, é goiano, porém iniciou a carreira em Brasília como hostess e drag residente da boate Victoria Haus. O espaço é conside rado o principal do gênero em Brasília e o terceiro no Brasil. Hoje, Lovi tem mais de 23 milhões de views no Youtube e uma carreira nacionalmente conhecida.

A mais renomada das drags do DF, no entanto, é Pikineia, interpretada por Edenilson Bernardo de Melo (Dennys), 33. Com os hits “Rainha da colmeia”, “Néctar bom” e o último lançamento, “Caipiroska”, ela já soma mais de 140 mil views no Youtube. Apresentadora titular da boate Victoria Haus, Pikineia lançou o próprio selo de festas, Baile da Piki, e também apresenta as entrevistas com celebridades convidadas pela boate no canal do Youtube. A drag brasiliense também é idealizadora do aplicativo clube da piki, que oferece vantagens e benefícios em festas para os usuários do app.

Começar a carreira é sempre um momento difícil para elas. Mas a persistência é considerada fundamental. “Eu agarrei minha oportunidade com unhas e dentes e não desisti”, afirma ela. A mudança veio em uma fase de luto, após a perda da mãe. Para ela, o trabalho foi uma passaporte superar o momento, realizar

CRIADOR E CRIATURA

QUEM É RUPAUL? O norte-americano RuPaul Andre Charles, mais conhecido como RuPaul, é ator, modelo, cantor, autor e, claro, drag queen. Nos anos 90, tornou-se conhecido por diversos filmes, programas de TV e músicas. Desde 2009, RuPaul produz e apresenta o reality show RuPaul’s Drag Race, pela qual recebeu dois Primetime Emmy Awards, em 2016 e 2017. Em 2017, RuPaul foi incluído na lista anual da revista Time, das cem pessoas mais influentes do mundo.

O QUE É A DRAG RACE? Criado em 2009 e com dez temporadas no currículo, o programa tem como anfitrião, mentor e musa inspiradora a drag queen RuPaul, que comanda uma série de desafios que exigem desempenho artístico, figurinos exuberantes e muita maquiagem. A cada temporada, as participantes disputam o título de maior drag queen dos Estados Unidos e um prêmio em dinheiro. Além do entretenimento, o reality também apresenta lições de respeito à identidade de gênero. Alguns episódios convidam veteranos do Exército, mulheres, pai de família, gays da terceira idade e até mesmo as mães das participantes para brincar com as expressões de gênero. O programa também busca apresentar a beleza do universo drag, para aquelas pessoas que não compreendem e condenam esta expressão artistica.

O polivalente RuPaul Andre Charles apresenta o reality show de sucesso

sonhos e garantir conquistas. “Havia mais de um ano que tinha ficado sem minha mãe e minha vida estava sem brilho e sem cor. Foi quando descobri que ser drag me devolveria esse brilho”, acrescenta.

Devido à visibilidade alcançada por Aretuza e Pikineia, muitos jovens transformistas de Brasília e cidades proximas veem as casas de show e eventos LGBT da Capital como oportunidade para início de uma carreira de sucesso. A boate Velvet Pub, referência em festas gay friendly há sete anos, oferece opor tunidade para as iniciantes. Sempre às quarta-feiras, na festa WoW, voltada para o público LGBT, um novo rosto está por lá. “As drags iniciantes precisam de um espaço para fazer portfólio, se mostrarem para o público”, explica o produtor da festa Daniel Martins, 26. Atributos como maquiagem extravagante bem finalizada, figurino que condiga com a música, coreografia elaborada e dublagem impecável são atributos exigidos.

Foi na Velvet pub que o estudante de moda Igor Alessandro, 20, fez o primeiro show como Ayobambi Voorthes. O rapaz que sempre gostou desse mundo de cabelo, maquiagem e moda, encontrou inspiração em RuPaul ‘s drag race uma oportunidade de fazer tudo o que queria. “Descobri que não precisava mudar meu gênero e ser julgado por isso”, explica Igor.

Ele esperou até completar 18 anos para começar a se montar em festas gays. Igor conta que um dos maiores desafios em seguir a carreira é o dinheiro gasto com figurino, cabelo e maquiagem, pois os baixos cachês oferecidos para quem está começando não cobrem as despesas. Em média, eles recebem de R$ 100 a R$ 150 por noite. “Eu gasto muito para receber somente o que gastei de volta, ou até

Lushonda procura fazer da arte drag queen uma ferramenta para combater o preconceito

menos. É muito raro ter lucro em cima disso”, reconhece. Até para quem já faz sucesso, o valor investido não é pequeno. “O investimento é a maior dificuldade”, completa Pikineia.

Ainda assim, alguns optam por trabalhar exclusivamente na profissão. Luiz Guilherme da Costa, 24, a drag Lushonda, diz que não é fácil, mas é possível se sustentar. “Consigo fazer com que seja meu ganha pão”. Para ele, tudo na carreira é desafio. “As pessoas na rua, principalmente heteros, ainda julgam e pensam que sou travesti. Não sabem reconhecer que é trabalho. Ser drag é arte e arte é profissão”, argumenta.

Lushonda reconhece que algumas pessoas são drags por hobbie. No entanto, afirma que só consegue destaque na carreia quem se dedica 24 horas. “Da hora que eu acordo, até a que eu vou dormir tenho que me dedicar aos figurinos, ensaios, shows e presenças”, diz a drag.

DICAS DE MAQUIAGEM QUE TODA DRAG PRECISA SABER:

Preparar a pele é MUITO importante;

Fazer a “quebrância” (é o contorno que as drags fazem para suavizar e destacar partes do rosto);

Batom vermelho: para os lábios e para neutralizar o cinza da barba. (Um jeito fácil e barato de neutralizar a sombra que fica na pele após fazer a barba);

Lápis marrom (melhor amigo de toda drag. Com o lápis, é possivel marcar o formato das sobrancelhas, o contorno do nariz e da boca;

Sombra preta ou marrom (ideal para marcar o côncavo);

Para finalizar, o pó translúcido faz toda a diferença.

No entanto, dedicar-se à carreira 24 horas é diferente de interpretar uma drag o dia todo. “Se eu vivesse 24 horas por dia como uma figura feminina, eu seria uma transexual, o que no caso não sou. Drag é uma personagem, eu me monto para trabalho”, explica Lushonda.

Presidente da parada LGBT da cidade de Samambaia e residente da Victoria Haus, Lushonda afirma que é muito caro ser drag devido aos gastos com o figurino e, principalmente, perucas. “Uma peruca custa R$ 300, R$ 400. Fazer um figurino não sai por menos de R$ 300”. Ativista do movimento LGBT, Lushonda busca fazer da arte drag queen uma ferramenta para combater o preconceito. “Quero tentar deixar o mundo que tantas pessoas deixam preto e branco, mais colorido”, deseja a drag.

Para a drag Piper Callazans, o preconceito e a discriminação da profissão são os principais desafios da carreira. “A homofobia é um desafio para quem busca essa profissão. Todo esse ódio tenta fazer você desistir, mas é tudo questão de continuar lutando”, considera Piper.

A doutora em antropologia pela Universidade de Brasília Silvia Guimarães afirma que a profissão dragqueen vai além da simples força de trabalho e refere-se a um movimento social, político e artístico que questiona categorias de gênero hegemônicas, especialmente por meio da arte. Aliar a identidade com a profissão revela uma busca por algo que não significa somente obter renda, mas também uma expressão artística”, declara.

Silvia também destaca que atualmente o Brasil está mais aberto para as formas de expressão ligadas ao movimento LGBT. No entanto, a antropóloga considera a mídia ultraconservadora. “A abertura se dá dentro de um limite permitido, e ocorre por força do movimento social e também da curiosidade por outras formas de viver, avalia ela.

Além da representatividade que as drags iniciantes tem na música e programas de TV. Há também sites, blogs e cursos que oferecem oficinas e consultorias sobre a arte drag queen. O Pop up Drag, conta do Instagram sem fins lucrativos, foi criado em 2017 para oferecer cursos e treinamentos de maquiagem, cabelo e performances.

Fundador do portal, André Gagliardo diz que grande parte dos rapazes que procuram a página são drags ou aspirantes que têm em comum o grande sonho de fazer parte daquele mundo. “São jovens entre 18 e 25 anos, que vêm principalmente de Ceilândia e Samambaia”. Muitos, sem recursos. Outro suporte que as drags, iniciantes e veteranas, de Brasília possuem é o site Distrito Drag, projeto que tem como uma das fundadoras Ruth Venceremos, o pedagogo Erivan Hilário, 33. O site nasceu com cunho cultural, político e social, devido ao fato de a cultura drag ser parte fundamental da comunidade LGBT. “Acredito na arte drag como dimensão humanizadora e transformadora do mundo”, declara.  “As pessoas julgam e pensam que sou travesti.

Não sabem que é trabalho. Ser drag é arte e arte é profissão” Luiz Guilherme, a drag Lushonda

GLOSSÁRIO DO MUNDO LGBT+

Transexual: Segundo a OMS, o transexualismo é “um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto”. É a pessoa que, por se sentir pertencente ao outro gênero, pode manifestar o desejo de fazer uma intervenção cirúrgica no corpo para mudar de sexo.

Travesti: É uma pessoa que não se identifica com o gênero biológico que nasceu e se veste e comporta-se como o sexo oposto. Ainda que modifique o corpo com ajuda de hormônios, implantes de silicone e cirurgia plásticas, não sente desconforto com a genitália que nasceu e, de maneira geral, não tem a necessidade de fazer a cirurgia de redesignação sexual.

Crossdresser: Significa vestir-se cruzado, ou seja, com roupas do gênero oposto. É alguém que gosta de usar ocasionalmente roupas características do gênero oposto, geralmente em ocasiões específicas.

Drag queen: São homens, não necessariamente gays, que se vestem como mulher com roupas e maquiagem extravagantes para realizar performances artísticas, geralmente em festas e casas noturnas. Atualmente, existem algumas mulheres se arriscando na carreira drag queen também.

Drag king: São mulheres, não necessariamente gays, que se vestem com estereótipos de gênero masculino para realizar performances artísticas, geralmente em festas e casas noturnas. A cantora Lady Gaga já realizou performances como o drag king, Jo Calderone.

Pedro Paulo sempre admirou a carreira, mas só sentiu vontade de se montar depois que assistiu o reality RuPaul’s drag race

DICIONÁRIO DRAG

Acuendar: O ato de esconder o pênis de forma que não fique aparente nas roupas. Bate cabelo: Dança criada por drags brasileiras em que movimentos rápidos são feitos com a cabeça. Babado: Fofoca Boy magia: Homem bonito Diva: Musas inspiradoras. Na grande maioria das vezes é a Beyoncé Death Drop: Movimento performático que consiste em se jogar no chão, de costas com uma das pernas dobrada e a outra esticada. Muito usado no final das apresentações. Fishy: drag que visa ficar o mais parecida possível com o estereótipo feminino. Gongar: Criticar. Hino: Música com grande significado emocional para a drag. Lacre e tombamento: Atitude poderosa ou quando alguém vai muito bem em alguma atividade. Lace: Tipo de peruca com rede para dar ilusão de que o cabelo falso realmente sai da cabeça. Picumã: peruca. Pirelli: pedaços de espuma colocados para imitar o formato do corpo feminino.

Polida: Adjetivo usado para descrever uma performance bem executada ou figurino e maquiagem impecáveis. Mãe drag: É comum que as drags que estão começando escolham alguém mais experiente como mentora. Montação: Processo que consiste em maquiagem, peruca e figurino para assumir a persona drag. Neca: pênis. Shade: Comentário negativo sobre alguém de forma discreta e/ou sarcástica. Queen: abreviação de drag queen.

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