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Violência com cliques

Pelo celular ou na internet, agressão virtual contra mulheres, o chamado cyberbullying, tem efeito devastador com propagação de conteúdo instantânea e viral

por: Mariana Figueiredo

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Um insulto que chega por mensagem no celular. A exposição de conversas pessoais pela internet. A divulgação de fotos íntimas em redes sociais e comunicadores instantâneos. A violência virtual contra a mulher tem muitas formas, todas, no entanto, com alto poder de multiplicação e devastação. O efeito cascata, o alcance, a instantaneidade e a dificuldade de controle e reversão são importantes agravantes. Foi assim com a fotógrafa Larissa*, 25 anos. Ela foi surpreendida com imagens íntimas, enviadas anteriormente ao ex-parceiro, publicadas em um perfil no Facebook, no qual ela e alguns amigos foram adicionados. “Não conse guia comer, não conseguia falar com ninguém. Eu só sabia chorar”, lembra.

A violência sofrida por ela, porém, tinha começado muito antes. Apenas mudou de local. As ameaças e agressões físicas cometidas cara a cara passaram a ser repetidas e potencializadas no ambiente virtual. Trata-se, da mesma forma, de violência sexual, como explica a psicóloga Marília Lobão, que trabalhou no Tribunal de Justiça por 30 anos. “É uma violência contra a liberdade sexual de uma pessoa. É uma violência de gênero, porque você está atacando justamente a questão dos valores de gênero da nossa sociedade, a visão de ser mulher ou ser homem, mas o que está acontecendo na verdade é a expo sição de fotos à revelia”.

Além da sexual e da física, a Lei Maria da Penha também prevê a violência psicológica, patrimonial e moral. Nos últimos anos, a legislação foi ficando mais dura no sentido de garantir a proteção. Assim surgiram a Lei Carolina Dieckman, que trata dos

crimes cibernéticos; a Lei Lola, sobre a investigação de crimes de ódio contra mulheres pela internet; a punição para a importunação sexual; e o Artigo 218C do Código Penal, que criminaliza e prevê até cinco anos de cadeia para quem divulgar imagens íntimas sem prévia autorização. É a chamada vingança pornográfica. A norma é considerada um grande avanço. A defensora pública e integrante do grupo de trabalho de Monitoramento de Política para as Mulheres da Defensoria Pública do Distrito Federal, Rita Lima, diz que agora é possível responsabilizar criminalmente o agressor, o que antes era mais difícil. “A gente tem essa nova possibilidade que vai trazer um pouco mais de segurança e proteção às vítimas desse tipo de conduta”, comenta.

O titular da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes Cibernéticos, Giancarlos Zuliani, observa que antes havia

O efeito cascata, o alcance, a instantaneidade e a dificuldade de controle e reversão são importantes agravantes no cyberbullying

brechas que deixavam o agressor impune. “Estava se dando um jeitinho para tentar criminalizar a conduta de quem publicava um vídeo”, afirma. Tanto o delegado quanto a defensora pública explicam que os crimes online mais comuns são feitos contra a honra da mulher, como ofensa, difamação, ameaça e publicação de imagens íntimas. Os insultos em forma de texto, por exemplo, continuam

Delegado Giancarlos Zuliani lembra importância das provas para criminalização

atendendo a uma lei geral de difamação ou injúria, sem tipificação específica. Em geral, quando a polícia recebe a denúncia deste tipo de crime, o primeiro procedimento é verificar o material e contatar os administradores da rede social ou provedor da internet onde está publicado e, em seguida, pedir a exclusão do conteúdo. “Eles têm dados de IP que a gente usa para localizar e identificar o verdadeiro administrador do perfil”, afirma.

No momento da denúncia, o dele gado lembra que é importante a vítima comparecer com provas. Ele sugere que seja feita, ainda, uma ata notarial, um documento no cartório que demonstra que naquele dia foi constatado que determinado conteúdo estava publicado na internet. “Se você tem a ata notarial, o conteúdo pode ser apagado, mas se você não tem a ata e apagou, a nossa prova foi embora”, explica.

De acordo com a ONG Safernet Brasil, que é uma organização com foco na promoção e defesa dos direitos humanos na internet, no ano de 2016 as violações de direitos humanos mais registradas no portal foram, respectivamente, cyberbullying/ofensa, sexting/exposição íntima, problemas com dados pessoais, conteúdos de ódio/violentos e fraudes/ golpes/e-mails falsos.

Os desafios da criminalização da violência online, porém, têm a ver com a banalização desse tipo de agressão sob a crença de que elas começam e terminam no meio digital, e que, portanto, são passageiras. Além disso, a questão da culpabilização da vítima é uma das reações à violência online, como se a responsável fosse a mulher que enviou as fotos, deixou o perfil público ou mandou as mensagens.

Crimes online mais comuns são contra a honra da mulher e crença de impunidade é agravante

Pode acontecer, ainda, um processo de naturalização da violência, em que homens e mulheres enxergam essas atitudes como normais e passíveis de serem esquecidas. Por isso, para combater a violência contra a mulher, é necessário, primeiramente, reconhece-la como tal. A internet ocupa um papel fundamental neste processo porque abriga, ao mesmo tempo, possíveis agressores que buscam impunidade e anonimato e associações e grupos de mulheres em busca de justiça, além de informações sobre políticas públicas e leis que auxiliem as vítimas.

Whatsapp Cada vez mais o whatsapp vem sendo usado em casos de violência contra a mulher. Embora não existam estatísticas, é comum o relato delas sobre a mesma fonte de disseminação. Foi assim com a orientadora educacional Nilda*, 52, e com a estudante Kedna, 24. Após muitas agressões dentro de casa, a universitá ria decidiu pela separação do marido. A violência, no entanto, permaneceu, desta vez por mensagens instantâneas. Dali passou para a difamação em grupos de amigos em comum nas redes

AFINAL, QUAL A DIFERENÇA?

Sexting: União dos termos “sex” (sexo) e “texting” (envio de SMS). É o ato de enviar textos, fotos ou vídeos de cunho erótico por mensagens, geralmente, em redes sociais.

Vingança pornográfica: É o ato de tornar público vídeos e fotos íntimos sem consentimento. Geralmente ocorre após o término de relacionamentos, por isso o termo “vingança”, já que o agressor usa imagens recebidas durante a relação para afetar o ex-parceiro.

Cyberbullying ou assédio virtual: É a violência que acontece no meio online. Pode se caracterizar por ameaças, perseguição, humilhação e até mesmo envio de malwares.

Importunação sexual: Ato libidinoso sem o consentimento da outra pessoa. Por ato libidinoso pode-se entender todo ato de satisfação do desejo sexual, como as ações de apalpar, masturbar, tocar, desnudar, entre outros.

sociais. À época, ela ignorava que os comentários eram a prova do crime. Até que foi alertada e tirou uma cópia das telas para mostrar à polícia. “Se eu tivesse tido uma boa orientação naquele momento, eu teria registrado muito mais ocorrências e o desfecho teria sido diferente”, ressalta.

Segundo ela, a exposição afeta a pessoa em todos os tipos de relacionamentos e emoções. Outro ponto que a estudante destaca é a questão dos preconceitos e estereótipos. Para Kedna, as mulheres não são levadas a sério no ato da denúncia. “Quando a gente faz uma denúncia, a gente é louca”, lamenta.

Com Nilda*, as mensagens no Whatsapp com insultos, difamações e imagens comprometedoras foram enviadas por um número desconhecido a colegas e alunos do local onde trabalha. A orientadora educacional mantinha um relacionamento aberto e acredita que o conteúdo foi vazado pela ex-parceira do namorado. Ela registrou boletim de ocorrência, mas afirma que não obteve resultados. “Tenho a sensação de que esse tipo de atitude não tem punição, a polícia não me deu nenhum suporte e tratou como algo sem grande importância”, alega.

Larissa* também denunciou, mas ficou sem o amparo que gostaria. Tirou “print” das telas e procurou a Delegacia da Mulher para registrar a ocorrência. O agressor alegou inocência e disse que o computador dele havia sido inva dido. Não houve punição. “Os governantes deveriam ter uma lei que realmente punisse, porque é uma marca que é eterna”, lamenta. A fotógrafa ainda defende a necessidade de ampliar o número de mulheres que trabalham nas delegacias especializadas. “A última coisa que ela quer na vida, naquele momento, é ser julgada. A mulher busca ser compreendida. Quer ser abraçada e pensar que tudo vai ficar bem”, opina.

De acordo com Marília, muitas vezes a mulher enca minha confidencialmente as imagens ao parceiro por necessidade da aprovação dele. Neste caso, é ele quem determina o valor que ela tem. “Elas acreditam que o seu valor está no corpo, está na capacidade do seu corpo de atender e agradar o imaginário deste homem.” Marília diz que as imagens vêm à tona quando o relacionamento acaba, porque o homem tem um desejo de ter poder sobre

ESCOLA DE APP: AÇÕES DE ENFRENTAMENTO PARA MENINAS

feminino. “A principal vítima dessa violação é a menina e por isso a gente decidiu focar o projeto no empoderamento dessas meninas”, explica.

O projeto Escola de App é uma das iniciativas existentes para enfrentar a violência online contra a mulher e, mais especificamente, contra a menina. A ideia é um projeto de pesquisa que integra o Laboratório de Políticas de Comunicação (Lapcom) da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

O objetivo é entender a violência online de gênero na totalidade e propor ações de enfrentamento para meninas estudantes de escolas públicas de ensino médio. A idealizadora e coordenadora do projeto, Janara Kalline de Sousa, conta que a ideia surgiu a partir da percepção da violação de direitos humanos que acontece na internet, principalmente no que tange ao gênero As ações nas escolas têm o foco de mostrar para as meninas que a internet é um cenário de riscos e oportunidades, alertando para a violência contra a mulher que acontece nesse meio. Além disso, as estudantes são convidadas a aprender a programar aplicativos como forma de empoderamento tecnológico. “A gente fala de gênero e fala sobre violência contra a mulher e ensina a programar”, afirma Janara.

A Escola de App está rodando o Brasil e já passou pelo Distrito Federal, Rio de Janeiro, Ceará e Amapá. O formato é um workshop de vinte horas em grupos formados apenas por meninas estudantes do ensino médio. Para saber mais sobre o projeto acesse: https://www. internetedireitoshumanos.com.br/

a mulher. Segundo a psicóloga, muitos fazem o estupro real, mas outros, pela naturalização que a sociedade dá à violência psicológica, realizam o ato pela internet. “Ele não se sente um estuprador quando joga a foto da mulher na rede social”. A psicóloga defende que a pornografia de vingança é uma violência sexual como um estupro, apenas realizado de uma maneira diferente e vista como banal.

Quanto às consequências psicológicas para as vítimas, Marília aponta que são inúmeras. As mais comuns são o estresse pós traumático, a ansiedade, a depressão, os pensamentos suicidas, a falta de auto confiança e a dificuldade de concentração e de continuar a vida de uma forma normal. A psicóloga distingue duas maneiras que a vítima tem para lidar com a situação, os enfrentamentos negativos e os positivos. Os negativos abrangem principalmente o comportamento de evitação. “Ela nega que isso aconteceu e é muito ruim, porque quando ela nega, não pode lidar com os sintomas que vêm dessa dor e pode adoecer”, explica. Além disso, a vítima pode recorrer ao uso de substâncias químicas lícitas ou ilícitas e ficar obcecada com a história, se culpando pelo o que aconteceu.

Já as respostas positivas, que podem vir após os enfrentamentos negativos, vão desde procurar ajuda, seja na psicoterapia ou na religião, até participar ou fundar organizações de apoio à mulher vítima de violência. “Isso são maneiras de enfrentar aquela dor de uma forma que traz saúde mental às mulheres, enquanto que os enfrentamentos negativos são aqueles que fazem com que a mulher adoeça cada vez mais”, afirma.

Marília Lobão: homem não se sente estuprador ao jogar foto de uma mulher nas redes sociais

Trabalhos de conscientização e educação da sociedade para as questões e igualdade de gênero são as soluções que Marília vislumbra para o avanço nas formas de lidar com atos de violência contra as mulheres. A ampliação de grupos de apoio e de discussão das masculinidades e das feminilidades em centros de saúde também são, segundo ela, uma questão de saúde mental. “O governo precisa enfrentar isso não só pelo bem-estar da sociedade, por uma questão de justiça e direitos humanos, mas também de saúde mental”, conclui.

Segundo a defensora pública, as provas em casos de crimes cibernéticos são elementos complicados de se obter. Por isso, ela afirma que o conhecimento técnico da polícia é um elemento fundamental para o processo. “Eu acredito que as delegacias vão ter que, cada vez mais, capacitar os seus agentes e peritos”, afirma. Rita recomenda ainda que as mulheres que sofreram violência online tirem o máximo de prints possíveis para que seja possível a comprovação do ato.

A defensora conclui que não acredita que seja possível inibir o comportamento da sociedade de compartilhar esse tipo de conteúdo online. “Não vejo como nós voltarmos a um tempo em que as pessoas não pratiquem isso, isso faz parte dos relacionamentos pós modernos e é um fato”, diz. Para ela, o problema é a culpabilização da vítima e é preciso trabalhar para que a responsabilidade seja reconhecida como inteiramente do agressor.

Vingança pornográfica é a divulgação de imagens íntimas sem prévia autorização e pode levar a até cinco anos de cadeia

A violência online contra as mulheres também é objeto de discussão do Estado. A secretária de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Andreza Colatto, reconhece com preocupação esse tipo de violência e aponta os recentes avanços legais como indispensáveis para a sociedade. Segundo ela, o papel da secretaria é articular com os governantes a discussão de pautas referentes às mulheres. Porém, Andreza afirma que não basta trabalhar apenas no âmbito das leis, é necessário implementar políticas de educação. A secretaria tem um trabalho em parceria com a Universidade de Brasília de conscientização de meninas quanto à violência online, o projeto piloto Escola de App. “A educação é a ferramenta mais importante, por isso estamos desenvolvendo esse trabalho nas escolas”, conta.

Organizações de mulheres também exercem papéis importantes no combate à violência. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) é uma instituição que trabalha pela cidadania das mulheres e pela igualdade. A assessora técnica do Cfemea, Milena Argenta, conta que relatos sobre violência e pedidos de ajuda são recebidos com frequência pela instituição, mas que as denúncias de agressões feitas na internet não surgem com a mesma regularidade. Para ela, isso se dá pela banalização dos fatos que acontecem no meio online. “Fato é que as mulheres, e a sociedade brasileira de modo geral, não reconhecem as agressões no espaço virtual como violência passível de ser denunciada e combatida”, afirma.

A defensora pública Rita Lima orienta que as vítimas tirem prints das telas

COMO A LEGISLAÇÃO PROTEGE?

- Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06)Destinada a casos de violência doméstica, mas pode ser aplicada a quaisquer casos de violência contra a mulher. Divide a violência em cinco grupos: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral;

- Lei Carolina Dieckman (Lei 12.737/2012) é uma alteração do Código Penal que tipifica os crimes informáticos. Ela abrange invasão de dispo sitivos informáticos e falsificação de documentos e cartões;

- Lei Lola (Lei 13.642/2018) atribui à Polícia Federal a investigação de crimes praticados no meio online que disseminem conteúdos misóginos, como a propagação de ódio ou a aversão às mulheres;

- Lei nº 13.718/18 traz o acréscimo do artigo 218C ao Código Penal e determina como crime a publicação, em qualquer meio de comunicação, de fotos e vídeos que contenham cena de estupro ou de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima;

- Marco Civil da Internet (Lei N° 12.965/14) é uma disposição legal que visa também proteger a privacidade dos usuários. O artigo 21 da lei faz com que os provedores sejam responsabilizados pelo conteúdo publicado, de forma que apenas uma notificação destinada ao site torna possível a exclusão do material e a identificação do agressor.

O Cfemea investe no desenvolvimento de metodologias de autocuidado e cuidado no espaço virtual como estratégia de defesa dos direitos humanos. Por isso, a entidade lançou, em 2017, uma campanha em parceria com outras organizações feministas e elaborou um guia com métodos de segurança digital para mulheres, a Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista.

Milena reitera que a violência, em geral, não é enxergada pela própria vítima e que no espaço virtual é ainda pior. “Existe uma falsa ideia de que o ambiente virtual é uma realidade para- lela, que o que acontece lá não tem impacto na vida real”, lembra. Além disso, ela afirma que a propagação do ódio e da violência online é estimulada pela aposta no anonimato e na impunidade.

Especialista afirma que aposta no anonimato e na impunidade estimulam propagação do ódio e da violência online

Apesar do recente avanço em termos legais, Milena afirma que ainda há muito a se discutir sobre como prevenir ações violentas, reconhecer o machismo e incluir nas escolas o debate sobre igualdade de gênero. “Até que as leis se efetivem na prática temos um caminho longo”, diz. Para a assessora técnica, as discussões sobre temas que afetem o gênero devem ser sugeridas por mulheres. “Qualquer proposta de alteração na lei Maria da Penha, tão importante para as mulheres brasileiras, deve partir das próprias mulheres, ser construída por elas e refletir as reais necessidade e demandas das mulheres para ser levada ao diálogo com o Congresso”, afirma.

A organização tem o papel de promover o debate público sobre o tema e de divulgar e fomentar ferramentas de prevenção, atendimento e denúncia. Porém, Milena também aponta outras atitudes que o governo e a sociedade precisam tomar em relação aos casos de violência no ambiente online. Políticas públicas para igualdade de gênero e enfrentamento da violência contra a mulher, criação de grupos de apoio e atendimento terapêutico em postos de saúde, capacitação de agentes públicos e respeito à vítima são os pontos essenciais apontados pela assessora técnica. “Temos um árduo e longo caminho pela frente que também depende da mobilização da sociedade, do engajamento de todas e todos na visibilização e denúncia das violências”, conclui. 

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