Páginas Volantes nr. 2- Franz Kafka

30 minutos a ler VII Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 2 Franz Kafka, Contos Escolhidos

Franz Kafka (Praga, 1983-1924) foi um escritor tcheco de língua alemã, autor de diversos romances e contos.

Considerado um dos escritores mais influentes do século XX, obras, como A Metamorfose, O Processo e O Castelo retratam o medo, a ansiedade e a alienação do homem do século XX. "Um livro deve ser o machado que partirá os mares congelados dentro de nossa alma", afirmou ele.

Este conto é retirado do livro Contos Escolhidos (Relógio d’Água, Lisboa: 2018), o qual reúne onze dos mais notáveis contos da produção literária de Kafka.

Adaptado de Biografia de Franz Kafka - eBiografia (acedido a 12/10/2021)

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Palavras-chave: Sereias, Ulisses, Kafka.

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O silêncio das Sereias A prova de que até as medidas inadequadas, infantis mesmo, nos podem salvar: Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e ordenou que o amarrassem ao mastro. Naturalmente todos os viajantes antes dele poderiam ter feito o mesmo (exceto aqueles a quem as sereias já tentavam duma grande distância), mas no mundo inteiro sabia-se que era impossível que isso servisse para alguma coisa. O canto das sereias penetrava tudo, quanto mais a cera, e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais do que correntes e um mastro. Mas Ulisses não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido falar a esse respeito. Confiava plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com uma alegria inocente pelo seu pequeno estratagema, foi ao encontro das sereias.

Ora, as sereias possuem uma arma ainda mais terrível do que o canto: o seu silêncio. E embora isso nunca tenha acontecido, é, no entanto concebível que talvez alguém tenha escapado ao seu canto; mas ao seu silêncio certamente não. Ao sentimento de as ter vencido com as próprias forças e à consequente exaltação que tudo leva à sua frente nada na terra pode resistir.

E de facto, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgaram que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa deste adversário, seja porque a expressão de felicidade no rosto de Ulisses, que não pensava noutra coisa a não ser em cera e correntes, as fez esquecer todo e qualquer canto.

Mas Ulisses, se assim se podia dizer, não ouvia o silêncio das sereias, acreditou que cantavam e que só ele estava protegido e não as ouvia, via fugidiamente as gargantas subir e descer, os peitos baixar e subir, os olhos encherem-se de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso tinha a ver com as árias que soavam inaudíveis a sua volta. Logo, porém, tudo isso se apagou da sua vista fixada na lonjura, as sereias desapareceram literalmente perante a sua determinação, e no preciso Página 2 de 3

momento em que mais próximo delas estava, deixou de saber da existência delas.

Mas elas, mais belas do que nunca, espreguiçavam-se e contorciam-se, deixavam as cabeleiras medonhas esvoaçar ao vento, soltavam as garras sobre os rochedos, já não queriam seduzir, apenas desejavam reter o mais longamente possível o brilho dos grandes olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas nesse momento, mas permaneceram como estavam e só Ulisses escapou delas.

Até nós chegou também um apêndice ao exposto. Diz-se que Ulisses era tão astuto, uma raposa tal que nem a deusa do destino conseguia penetrar no seu íntimo, e que talvez tivesse percebido realmente, embora tal esteja para lá da razão humana, que as sereias eram silenciosas e que lhes fez frente, e também aos deuses, usando como escudo o jogo de aparências acima descrita.

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