Páginas Volantes nr. 16- Isto é Matemática

30 minutos a ler VII Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes -- 16 Rogério Martins e Tiago DaCunha Caetano, Isto é Matemática

Isto é Matemática é um programa de sucesso da SIC, que ficou recentemente disponível em versão livro (Alfragide: Texto Editores: 2018).

Os autores tentam divulgar a matemática de uma forma acessível, rigorosa e divertida.

Partem de situações reais, desvendando conceitos matemáticos que nos ajudam a perceber melhor o mundo e o universo em que vivemos.

Rogério Martins é professor e investigador da Universidade Nova de Lisboa.

Foi eleito, em 2012, pelo jornal Expresso, um dos 100 portugueses mais influentes, pelo seu trabalho em comunicação de ciência.

Tiago DaCunha Caetano é guionista e humorista, tendo colaborado em vários programas de televisão.

Palavras-chave: matemática; arte; ponto de Bauhütte.

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A geometria do Almada Matemática e Arte.

Haverá alguma ligação entre estes dois mundos aparentemente desavindos?

A matemática é a mais exata das ciências exatas, e - pelo menos à primeira vista - orientada exclusivamente pela racionalidade. Já a arte é guiada por valores de estética, e trata de sentimentos, ideias e perceções subjetivas.

Ou seja, incautamente analisadas, a arte e a matemática são dois mundos aparentemente antagónicos. Pois, mas não é bem assim.

Na verdade, existem inúmeras ligações entre a matemática e a arte, sendo que uma delas - e talvez a mais bela - até tem um nome extraordinariamente famoso: José de Almada Negreiros.

Almada Negreiros integrou o chamado movimento modernista, que, a partir do início do século XX, trouxe um estilo mais anárquico e irreverente à criação artística.

Anarquia. Irreverência. Matemática? E porque não?

Neste capítulo vamos conhecer um pouco da obra plástica deste valoroso vanguardista português.

Mas antes disso: maçonaria. Sossegue, há aqui uma ligação.

Na tão distante quão sombria Idade Média, havia um grupo de arquitetos e construtores que se deslocavam por toda a Europa para desenhar e construir catedrais e outros edifícios notáveis. Os arquitetos detinham importantes conhecimentos de geometria, que lhes permitia desenhar abóbadas e outras complexas construções. Esses especialistas estavam distribuídos por várias federações, que estão na origem da atual maçonaria. É essa a razão do compasso e do esquadro como símbolos maçónicos- o próprio nome deriva da palavra inglesa mason, que significa pedreiro.

As federações tinham como finalidade certificar os especialistas (exercendo um pouco o papel que as ordens profissionais têm hoje em dia)

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e, sempre que um destes técnicos se deslocava para uma obra, usava uma credencial para provar a sua identidade junto do poder local.

Mas, ao mesmo tempo que existia um lado prático para estas federações, também existia um lado mais… oculto: todo este enorme saber geométrico era transmitido por boca e mantido secreto.

Assim sendo, uma das formas encontradas por estes pedreiros para provarem a sua identidade era mostrar que conheciam certas construções geométricas. Uma dessas construções secretas era o mítico ponto de Bauhütte.

Um ponto que está no círculo.

E que se põe no quadrado e no triângulo.

Conheces o ponto? Tudo vai bem.

Não o conheces? Tudo está perdido.

Isto é tudo quanto se sabe sobre o ponto de Bauhütte, um ponto que está na origem da maçonaria e que se tornou - provavelmente para sempreum mistério.

Esta é a única descrição que se conhece hoje desse ponto: trata-se de um ponto acima de um círculo, de um quadrado e de um triângulo. Quem o conhecer faz parte do clube e será recebido de braços abertos. Quem não o conhecer tratar-se-á provavelmente de um impostor e estará em muitos maus lençóis.

Ora, esta era uma das obsessões de Almada Negreiros, que acreditava ter encontrado o enigmático ponto de Bauhütte.

Nesta imagem podemos ver um rascunho de Almada Negreiros com a construção que leva ao misterioso ponto.

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Primeiro, ele desenha um quadrado numa folha quadriculada, inscrevendo-lhe um círculo. Em seguida, considera um quadrado inscrito no círculo que tem os vértices em quatro dos pontos da quadrícula, por onde passa a circunferência. Finalmente, desenha o triângulo com dois dos lados coincidentes com a quadrícula, e com lados de comprimento 3,4 e 5. Almada acreditava que tinha encontrado aqui o ponto de Bauhütte.

Conseguimos claramente reconhecer este rascunho como a base de um dos quadros que fazem parte da coleção da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se do segundo quadro preto e branco, a contar de cima, naturalmente intitulado Ponto de Bauhütte. Se Almada encontrou de facto o famoso ponto de Bauhütte, provavelmente nunca saberemos. O poema não permite determinar o ponto de forma exata.

Mas há outras interpretações deste poema que levam a pontos diferentes. Em particular, o pintor e escritor português Lima de Freitascuriosamente também um ilustre maçom- tinha uma outra construção geométrica que acreditava estar na base do tal ponto.

A verdade é que esta construção de Almada envolve um triângulo do tipo 3, 4, 5, usado ainda hoje pelos mestres-de-obras para marcar um ângulo de 90º no terreno, pelo que é razoável pensar que ele estaria no caminho certo.

Almada Negreiros deixou uma obra notável, quase toda ela envolvendo a matemática. Desde a mais simples simetria, encontrada nestes dois retratos de Fernando Pessoa… até ao seu projeto mais ambicioso: a busca de um enquadramento para toda a arte produzida até então!

O que haverá de comum entre um vaso da Babilónia, um desenho de Leonardo da Vinci e um quadro de Picasso?

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Naturalmente, se existir algo de comum em tão variadas expressões artísticas, esses princípios devem poder ser descritos pela mais universal e intemporal das linguagens: a matemática.

E foi assim que Almada Negreiros começou a sua busca de um conjunto de proporções, constantes e construções geométricas subjacentes a toda a arte. Algo a que ele chamou de “cânone”.

Já agora, embora seja essencialmente um folheto satírico, este pequeno livro intitulado K4 O Quadrado Azul revela um pouco da obsessão do artista pela geometria.

Segundo Almada Negreiros, numa entrevista que deu ao Diário de Notícias em 1960, “a divisão simultânea do quadrado e do círculo em partes iguais e partes proporcionais é a origem simultânea das constantes da relação nove/dez, grau, medida e extrema razão e prova dos nove”.

Ainda não é muito claro o que o mestre quis dizer com cada um destes pontos, mas, analisando os seus cadernos de notas e esboços, tem sido possível entender algumas das suas ideias. É isso que o matemático Pedro Freitas e o artista plástico Simão Palmeirim Costa têm tentado entender ao longo dos últimos anos. Cá está: matemática e arte.

Parte destes estudos foram sendo registados numa série de 52 desenhos a que Almada chama Linguagem do Quadrado.

Mais tarde, muitas destas construções foram apresentadas naquela que é talvez a principal e mais conhecida obra desta sua fase: o painel em pedra gravada intitulado Começar, que está no átrio de entrada do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta foi uma das suas últimas obras.

Embora algumas destas construções ainda não estejam completamente entendidas, é muito clara uma quase obsessão pela divisão da

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circunferência em partes iguais, e pela construção de constantes notáveis com régua e compasso.

Em particular, da Razão de Ouro.

Por exemplo, na parte esquerda do painel Começar está uma construção que começa com uma circunferência a vermelho.

De seguida, Almada divide a circunferência em cinco arcos iguais, e desenha um pentagrama a negro.

Depois, coloca a ponta do compasso no ponto que ele chamou O, e traça um arco de circunferência até ao ponto onde ele colocou um 9, para indicar que encontrou uma nona parte da circunferência.

Depois, a ponta do compasso em M, para traçar metade de uma circunferência, a sugerir que a distância entre O e M é igual à de M a N. E finalmente traça mais um pedaço de circunferência com centro em P, e coloca um 10 para indicar que encontrou uma décima parte da circunferência.

De facto, podemos fazer os cálculos e confirmar que a construção da décima parte da circunferência é exata. Também é verdade que o segmento OM é igual ao segmento NP. Contudo, a construção sugerida por Almada para a nona parte da circunferência não é exata.

O matemático Pedro Freitas explica que, na verdade, existe um resultado matemático que determina quais as divisões da circunferência em n partes iguais que podem ser feitas recorrendo unicamente à régua e ao compasso. E 9 não é uma delas.

Ainda assim, se calcularmos as medidas sugeridas por Almada para a nona parte da circunferência, chegamos à conclusão de que o erro é da ordem das seis milésimas, o que representa uma aproximação absolutamente notável.

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E por falar em notável, vamos ver uma última obra do mestre: o conjunto de painéis da Gare Marítima de Alcântara.

Alguém dizia que a ciência é uma construção na vertical, onde cada novo resultado se apoia nos anteriores. O próprio Newton dizia que se tinha apoiado nos ombros de outros para chegar mais alto.

Por outro lado, a arte é uma construção horizontal, onde há um constante reinventar do processo aqui e ali.

José de Almada Negreiros mostrou, e continua a mostrar, que também é possível fazer ciência horizontalmente… e arte verticalmente.

E Isto é Matemática!

Este capítulo corresponde ao episódio 7 da temporada 8, exibido na SIC Notícias a 20 de fevereiro de 2016.

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