Páginas Volantes - Bibliotecas e palavras

30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares

Páginas volantes

Infografia sobre o Nautilus, submarino do Capitão Nemo de Vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne.

(Disponível em https://super.abril.com.br/wp-content/uploads/2018/07/nautilus_face.jpg)

Château de Montaigne. Biblioteca é a torre circular à esquerda.

Professor Carlos M Severino e Professora Paula Quadros

30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares 21 de outubro, 13h25

Páginas volantes Atendendo à situação de pandemia e à impossibilidade de disponibilizar as usuais caixas de livros nos pisos, disponibilizam-se excertos de livros e poemas para serem lidos nas salas de aula, que têm em comum a Biblioteca, mas que abordam muitos outros temas e, por isso, se adequam às diferentes disciplinas.

Insistimos na importância de ler com e para os alunos, para podermos receber os frutos desse investimento no sucesso dos nossos alunos a ler e a interpretar … o mundo!

Sugestões de outros textos são sempre bem-vindas!

Agradecemos a colaboração da Professora Paula Quadros.

Páginas volantes

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Autor e título

Jules Verne, Vinte mil léguas submarinas Clarice Lispector, Todas as crónicas Quatro poemas Montaigne, Ensaios Eça de Queirós, A cidade e as serras

Assuntos

biblioteca; galeria de arte; “história natural”; instrumentos de navegação livros da vida; escrever palavra; livro; biblioteca biblioteca como espaço físico tecnologia do séc. XIX em Paris (telégrafo, telefone, elevador, etc.); biblioteca

30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 1 Jules Verne, Vinte mil léguas submarinas

Jules Verne (1828-1905) Em 1866, o Professor Aronnax, do Museu de História Natural de Paris, tenta descobrir o que está a acontecer no fundo do mar e encontra o enigmático Capitão Nemo, que viaja 20 mil léguas no submarino Nautilus pelos oceanos do mundo!

Mas quem é este capitão e por que motivo se refugiou num submarino e odeia os homens?

(A partir de Guia de Leitura Geração Público, pp. 315-18)

Jules Verne foi um visionário, já que surgem nas suas obras o submarino, o helicóptero, o ar condicionado ou os mísseis teleguiados…

Neste excerto, visita-se a biblioteca, a galeria de arte e os aparelhos de navegação do Nautilus.

Tradução de Elsa Patrício de Barros

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Parte I – Cap. XI – O Nautilus O capitão Nemo levantou-se. Segui-o. Uma porta dupla, situada no fundo da sala, abriu-se, e entrei numa divisão de dimensão igual à daquela que acabava de abandonar.

Era uma biblioteca. Altas estantes de pau-preto com embutidos de cobre albergavam nas suas largas prateleiras uma grande quantidade de livros uniformemente encadernados. Seguiam o contorno da sala e terminavam na sua parte inferior por enormes divãs, de couro castanho, que ofereciam o mais confortável aconchego. Práticas mesinhas móveis, que se podiam aproximar ou afastar conforme a necessidade, proporcionavam um apoio para o livro que se estivesse a ler. No centro, estava uma vasta mesa, carregada de brochuras, entre as quais apareciam alguns jornais já antigos. A luz elétrica inundava todo aquele harmonioso conjunto, e provinha de quatro globos semiescondidos nas volutas do teto. Olhei com genuína admiração aquela sala tão engenhosamente agenciada e não podia acreditar no que os meus olhos viam.

«Capitão Nemo – disse ao meu anfitrião, que acabava de se reclinar num divã – aqui está uma biblioteca que faria inveja a muitos palácios em terra, e estou verdadeiramente maravilhado, quando penso que ela pode acompanhá-lo nas profundezas dos mares.

– Onde encontraria mais solidão, mais silêncio, senhor professor? – perguntou o capitão Nemo – Pode o seu gabinete do Museu de Paris oferecer-lhe um descanso tão completo?

– Não, senhor, e devo confessar que é bem pobre, se comparado com o seu.

Deve ter aqui seis ou sete mil volumes…

– Doze mil, senhor Aronnax. São estes os únicos laços que ainda me ligam a terra. Mas o mundo acabou para mim no dia em que o meu Nautilus mergulhou pela primeira vez nas águas. Nesse dia comprei os meus últimos volumes, as minhas últimas brochuras, os meus últimos jornais e, desde então, quero crer que a humanidade deixou de pensar e de escrever. Estes livros, senhor professor, estão aliás à sua disposição, e poderá usufruir deles livremente.»

Agradeci ao capitão Nemo e aproximei-me das estantes. Abundavam livros de ciência, de moral e de literatura, escritos em todas as línguas; pareciam estar severamente proscritos de bordo. Pormenor curioso, todos aqueles livros, estavam indistintamente classificados, qualquer que fosse a língua em que

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estavam escritos, e essa desarrumação comprovava que o capitão do Nautilus devia ler habitualmente o primeiro volume que lhe viesse à mão.

Por entre os volumes, notei as obras-primas dos grandes mestres antigos e modernos, isto é, tudo o que humanidade produziu de mais belo no campo da história, poesia, romance e ciência, de Homero a Victor Hugo, de Xenofonte a Michelet, de Rabelais a Madame Sand. Mas a ciência ocupava sem sombra de dúvidas o lugar de maior destaque naquela biblioteca; os livros de mecânica, de balística, de hidrografia, de meteorologia, de geologia, etc., tinham um lugar não menos do que as obras de história natural, que deduzi tratar-se da área de maior interesse para o capitão. Vi ali todos os livros de Humboldt, todos os de Arago, os trabalhos de Foucault, de Henri Sainte-Claire Deville, de Chasles, de Mine-Edwards, de Quatrefages, de Tyndall, de Faraday, de Berthelot, do abade Secchi, de Petermann, do comandante Maury, de Agassiz, etc., os anais da Academia das ciências, os boletins de diversas Sociedades de Geografia, etc., e, em destaque, os dois volumes que talvez me tenham valido aquele acolhimento relativamente caridoso do capitão Nemo. Entre as obras de Joseph Bertrand, o livro intitulado Os Fundadores da Astronomia fornecia-me inclusive uma data precisa; como sabia que esta obra tinha sido publicada durante o ano de 1865, pude concluir que a existência do Nautilus não lhe seria anterior. Portanto, havia três anos, quanto muito, que o capitão Nemo iniciara esta sua existência submarina. Esperava, aliás, que obras ainda mais recentes me permitissem estabelecer exatamente aquela data; mas tinha muito tempo para proceder a essa investigação, e não quis retardar mais a nossa visita pelas maravilhas do Nautilus.

«Senhor capitão – disse – agradeço-lhe ter posto esta biblioteca ao meu dispor. Existem aqui tesouros de ciência que não deixarei de aproveitar.

– Esta sala não é só uma biblioteca – respondeu o capitão Nemo – também é uma sala de fumo.

– Uma sala de fumo? – exclamei – então fuma-se a bordo?

– Claro.

– Então, senhor capitão, sou forçado a acreditar que mantém contactos com Havana.

– Nenhuns – respondeu o capitão. – Aceite este charuto, senhor Aronnax, e muito embora não tenha vindo de Havana, verá que lhe agrada, se for amador.»

Aceitei o charuto que me era oferecido, e cuja forma lembrava a do Londres; mas este parecia fabricado como folhas de ouro. Acendi-o num pequeno isqueiro Página 3 de 8

suportado por um elegante pé de bronze, e inspirei as primeiras fumaças com a voluptuosidade de um amador que não fuma há dois dias.

«Excelente – disse – mas não é tabaco.

– Não – respondeu o capitão – este tabaco não provém de Havana nem do Oriente. É uma espécie de alga, rica em nicotina, que o mar me fornece embora com alguma parcimónia. Ficou com saudades dos Londres, senhor professor?

– Capitão, a partir de hoje, desprezo-os.

– Fume então o que quiser, e sem discutir a origem destes charutos. Não passaram pelo crivo de nenhuma companhia e não são por isso inferiores, imagine.

– Antes pelo contrário.»

Naquele momento, o capitão Nemo abriu uma porta situada em frente daquela por onde eu tinha entrado na biblioteca, e penetrei num salão imenso e esplendidamente iluminado.

Tratava-se de um vasto quadrilátero, com os ângulos truncados, de dez metros de comprimento, seis de largura, cinco de altura. Um teto luminoso decorado com graciosos arabescos, distribuindo uma luz clara e suave sobre todas as maravilhas amontoadas naquele museu. Pois era realmente um museu no qual uma mão inteligente e pródiga tinha reunido todos os elementos da natureza e da arte, com aquela confusão artística que caracteriza o atelier do pintor.

Cerca de trinta quadros de mestres famosos, em molduras uniformes, separados por resplandecentes panóplias, ornamentavam as paredes cobertas de tapeçarias de um estilo austero. Vi ali telas do mais alto valor e que, na sua maioria, tinha admirado em coleções particulares da Europa e em exposições de pinturas. As diversas escolas dos mestres antigos estavam representadas por uma Madona de Rafael, uma virgem de Leonardo da Vinci, uma ninfa de Corregio, uma mulher de Ticiano, uma adoração de Veronese, uma assunção de Murillo, um retrato de Holbein, um frade de Velasquez, um mártir de Ribera, uma quermesse de Rubens, duas paisagens flamengas de Teniers, três pequenas telas de Gérad Dow, de Metsu, de Paul Potter, duas telas de Géricault e de Proudhon, algumas aguarelas de Backhuysen e de Vernet. Entre as obras de pintura moderna contavam-se quadros assinados por Delacroix, Ingres, Decamps, Troyon, Meissonier, Daubigny, etc. e algumas admiráveis miniaturas de estátuas da Antiguidade erguiam-se nos seus pedestais nos cantos daquele magnífico museu. O estado de estupefação que me fora augurado pelo comandante do Nautilus começava já a tomar conta do meu espírito.

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«Senhor professor – disse então aquele homem estranho –, desculpará certamente o à-vontade com que o recebo e a desordem que reina neste salão.

– Senhor capitão – respondi – sem pretender indagar a sua identidade, seria abusivo da minha parte reconhecer em si um artista?

– Um amador, no melhor dos casos, senhor professor. Entretinha-me, outrora, a colecionar estas magníficas obras criadas pela mão do homem. Era um colecionador ávido, um pesquisador infatigável, e consegui reunir alguns objetos de elevado valor. São estas as últimas lembranças que me restam daquela terra que morreu para mim. Aos meus olhos, vossos artistas modernos já são antigos; Têm dois ou três mil anos de existência, e confundo-os no meu espírito. Os mestres não têm idade.

– E estes músicos? – perguntei, apontando para partituras de Weber, Rossini, Mozart, Beethoven, Haydn, Meyerbeer, Herold, Wagner, Auber, Gounod, e de muitos outros, dispersas sobre um piano de grandes proporções que ocupavam uma das paredes da sala – Estes músicos – respondeu-me o capitão Nemo – são contemporâneos de Orfeu, porque as diferenças cronológicas desvanecem-se na memória dos mortos – e eu estou morto, senhor professor, tão morto como aqueles seus amigos que repousam sob sete palmos de terra!»

O capitão Nemo calou-se e pareceu perdido num profundo devaneio.

Observei-o com viva emoção, analisando em silêncio as estranhas particularidades da sua fisionomia. Encostado a uma preciosa mesa de mosaicos, já não me via, tinha esquecido completamente a minha presença.

Respeitei aquele recolhimento, e continuei a passar em revista as curiosidades que enriqueciam aquela sala.

Ao lado das obras de arte, as raridades naturais tinham um lugar de destaque. Consistiam principalmente em plantas, em conchas e noutros produtos do oceano, que deviam ser achados naturais do capitão Nemo. A meio da sala, a água de um repuxo, iluminado por uma luz elétrica, corria numa vasilha feita de uma só tridacna. Aquela concha, fornecida pelo maior dos moluscos acéfalos, media nas extremidades, delicadamente recortadas, uma circunferência de cerca de seis metros; ultrapassava assim e esplendor as belas tridacnes oferecidas a Francisco I pela República de Veneza, das quais a igreja de Saint Sulplice, em Paris, e duas gigantescas pias de água benta. À volta desse recipiente, protegidos por elegantes vitrinas com caixilhos de cobre, estavam classificados e etiquetados os mais preciosos espécimes Página 5 de 8

marinhos jamais oferecidos aos olhos de um naturalista. Imagine-se a minha alegria de professor.

O ramo dos zoófitos apresentava curiosos exemplares dos seus dois grupos dos pólipos e dos equinodermes. No primeiro grupo, havia tubíporas, gorgónias expostas em leque, esponjas macias da Síria, ísis das Molucas, penátulos, uma virgulária dos mares da Noruega, umbelárias diversas, alcionárias, toda uma série de madréporas que o meu mestre Milne-Ewards tão sabiamente classificou em secções, entres as quais vi adoráveis flabelinas , oculinas da ilha Bourbon, o «carro de Neptuno» das Antilhas, soberbas variedades de corais, enfim todas as espécies desses curiosos polipeiros cuja aglomeração forma autênticas ilhas que um dia serão continentes. Nos equinodermes, notáveis pelo seu invólucro espinhoso, as astérias, as estrelas-do-mar, as pantacrínias, as comátulas, as astérias, os ouriços, as holotúrias, etc., representavam uma coleção completa dos indivíduos desse grupo.

Um conquiliologista um pouco nervoso teria certamente desfalecido diante de outras vitrinas mais numerosas onde estavam classificadas as amostras do ramo dos moluscos. Havia ali uma coleção de valor incalculável, tão extensa que me faltaria tempo para descrevê-la por completo. Entre aqueles espécimes citarei, apenas para exemplificar: o elegante martelo real de oceano Índico, cujas manchas brancas irregulares sobressaíam vivamente num fundo vermelho e castanho; um espóndilo imperial de cores vivas, todo eriçado de espinhos, espécime raro nos museus europeus e cujo o valor estimava em vinte mil francos; um martelo comum dos mares da Nova Holanda, muito difícil de encontrar; pectúnculos exóticos do Senegal, frágeis conchas brancas bivalves que se teriam dissipado com num sopro de uma bola de sabão; diversas variedades de regadores de Java, uma espécie de tubos calcários ladeados por pregas foliáceas, e muito disputados pelos amadores; toda uma série de tróquios, uns amarelo-esverdeados, capturados nos mares da América, os outros de um roxo acastanhado, habitantes das águas da Nova Holanda, estes, vindos do golfo do México, notável pelas suas conchas labirínticas, aqueles estelares encontrados nos mares Austrais e, finalmente, o mais raro de todos, o magnífico esporão da Nova Zelândia; depois, admiráveis telínidas sulfuradas, preciosas espécies de citereias e de amêijoas, o quadrante ripado das costas de Tranque Bar, a concha zebrada de nácar resplandecente, os papagaios verdes dos mares da China, o cone quase desconhecido do género Coenodulli, todas as variedades de porcelana que servem de moeda na Índia e na África, a «Glória do Mar», as mais preciosas Página 6 de 8

conchas das Índias Orientais, e finalmente litorinas, daufínulos, turritelas, jantinas, óvulos, volutas, olivas, mitras, capacetes, púrpuras, harpas-trompas, rochas, tritões, ceritas, fusos, estrombos, pterocenas, lapas, híalas, cleódoros, conchas, delicadas e frágeis que a ciência batizou com os mais adoráveis nomes. À parte, e em compartimentos especiais, estavam dispostas fiadas de pérolas da maior beleza, que a luz elétrica fazia brilhar em esplêndidas faíscas alaranjadas, pérolas cor-de-rosa extraídas de pinhas marinhas do Mar Vermelho, pérolas verdes de haliote íris, pérolas amarelas, azuis, negras, curiosos produtos de diversos moluscos de todos os oceanos, e de certos mexilhões das águas do Norte e, por fim, vários exemplares de preço incalculável que tinham sido destilados das mais raras ostras perlíferas. Algumas destas pérolas eram maiores do que um ovo de pomba; valiam muito mais do que aquela que o viajante Tavernier vendeu por três milhões ao Xá da Pérsia e ultrapassavam aquela outra pérola do imã de Mascate, que eu julgava sem rival.

Por tudo isso, avaliar aquela coleção era, por assim dizer, impossível. O capitão Nemo devia ter gasto milhões para adquirir aqueles espécimes, e eu interrogava-me sobre qual seria a fonte de que dispunha para satisfazer assim as suas fantasias de colecionador quando fui interrompido pelas seguintes palavras: «Está a observar as minhas conchas, senhor professor. De facto, podem interessar um naturalista, mas, para mim, têm outro encanto, pois fui eu quem as colheu, das minhas próprias mãos, e nenhum mar do globo escapou às minhas buscas.

– Compreendo, capitão, compreendo a alegria de passear entre tantas preciosidades. O senhor é daqueles que construiu o seu próprio tesouro. Nenhum museu da Europa possui tão fabulosa coleção de espécimes marinhos. Mas, se esgoto toda a minha admiração na sua contemplação, que me restará para o navio que a encerra! Não quero penetrar segredos que lhe pertencem! No entanto, confesso que este Nautilus, a força motriz que detém, as maquinarias que permitem manobrá-lo, o poderoso combustível que o propulsiona, tudo isto excita ao mais alto nível a minha curiosidade. Vejo suspensos nas paredes desta sala instrumento cuja utilização me é desconhecida. Posso perguntar-lhe…?

– Senhor Aronnax – respondeu o capitão Nemo – disse-lhe que seria livre a bordo do meu navio e, por consequência, nenhuma parte do Nautilus está vedada.

Pode assim visitá-lo pormenorizadamente e eu terei todo o gosto em servir-lhe de guia.

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– Não sei como lhe agradecer, senhor capitão, mas não quero abusar da sua benevolência. Gostava apenas de saber para que servem estes instrumentos de física…

– Senhor professor, tenho instrumentos idênticos a estes no meu quarto, e é lá que terei todo o gosto em explicar-lhe a sua utilização. (…)

«Queira sentar-se», disse-me ele.

Sentei-me, e ele tomou a palavra nos seguintes termos: Capítulo XII – Tudo graças à eletricidade [pág. 115] «Senhor professor – disse o capitão Nemo, apontando para os instrumentos suspensos nas paredes do quarto – aqui estão os aparelhos necessários à navegação do Nautilus. Tanto aqui como no salão, tenho-os sempre diante dos olhos e indicam-me a minha situação e aminha direção exata no meio do oceano.

Uns são-lhe familiares, tais como o termómetro, que dá a temperatura interior do Nautilus; o barómetro, que mede a pressão atmosférica e prevê as mudanças de tempo; o higrómetro, que marca o grau de humidade da atmosfera; o stormglass, cuja mistura, quando se decompõe, anuncia tempestade; a bússola que dirige a minha rota; o sextante, que, pela altura do sol, me indica a latitude; os cronómetros, que me permitem calcular a longitude; e, finalmente, estes óculos de alcance para dia e noite, que me servem para perscrutar todo o horizonte quando o Nautilus está na superfície das águas.

– São os instrumentos habituais do navegador – respondi – e estou familiarizado com o seu uso. Mas estes aqui respondem sem dúvidas às exigências específicas do Nautilus. Este quadrante além com um ponteiro móvel não é um manómetro?

– É um manómetro sim. Posto em contacto com a água de que indica a pressão exterior fornece-me ao mesmo tempo a profundidade a que está o submarino.

– E estas sondas estranhas?

– São sondas termométricas que indicam a temperatura das diversas camadas da água. (…)

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30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 2 Clarice Lispector, Todas as crónicas

Estas crónicas de Clarice Lispector (1920-1977) foram publicadas no Jornal do Brasil e revelam o que a autora pensa do “livro da sua vida” e de escrever.

Lê-las é uma forma de comemorar o centenário do nascimento desta fabulosa escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira, que decorre a 10 de dezembro de 2020.

Clarice Lispector, Todas as crónicas (org. Pedro Karp Vasques).

Seleção do Professor Carlos Severino.

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O primeiro livro de cada uma de minhas vidas (1973) Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era um cisne?

Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do génio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: «Pede de mim o que quiseres.» Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.

Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria Página 2 de 4

para mim ler aquele livro, fez um jogo de «amanhã venha em casa que eu empresto». Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: «Hoje não posso emprestar, venha amanhã.»

Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.

Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Hermann Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Hermann Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva, porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo.

Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.

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Escrever (1968) Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.

Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação.

Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.

Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a “coisa” vem. Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se passar anos.

Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros.

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30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 3 Quatro poemas com livros e bibliotecas dentro

Porque não há bibliotecas sem livros, quatro poemas com palavras e livros e bibliotecas, selecionados pela Professora Paula Quadros.

As palavras que digo Os sinais que faço Preservam o tempo O eco e a memória Por isso a ti recorro E à terra peço folhas e raízes

António Dacosta (Terceira, 1914 – Paris, 1990) A Cal dos Muros (1994)

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Biblioteca (e as quatro dimensões de Einstein)

Passaram trinta e oito anos sobre o maciço de árvores que continua ali, no escuro desta noite de inverno, com os seus pássaros encharcados, e as estantes à minha volta que se encheram de séculos e seres que regressam só com palavras escritas.

Amanhã, à primeira luz da aurora, irá surgir a massa do arvoredo, e os pássaros terão saído já em busca de alimento, e voltarão, enquanto, num momento incerto, o sol vai extinguir este lugar com estantes e seres, convertendo em folhas de inventário livros que são caixas de tempo, o tempo deles no meu, contínuo interrompido

Nuno Dempster (Ponta Delgada, 1944-) Na luz inclinada (2014)

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A Queima dos Livros

Quando o Regime ordenou que queimassem em público Os livros de saber nocivo, e por toda a parte Os bois foram forçados a puxar carroças Carregadas de livros para a fogueira, um poeta Expulso, um dos melhores, ao estudar a lista Dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus Livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária Alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.

Queimai-me! Escreveu com pena veloz, queimai-me!

Não me façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu Sempre a verdade nos meus livros? E agora Tratais-me como um mentiroso! Ordeno-vos: Queimai-me!

Bertolt Brecht (Alemanha, 1898-1956) Tradução de Paulo Quintela (1915-1987)

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The House Was Quiet And The World Was Calm A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão Era como a essência consciente do livro.

A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro, A não ser o leitor inclinado sobre a página, A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.

A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito: Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo, No qual não há outro sentido, a própria verdade The house was quiet and the world was calm.

The reader became the book; and summer night Was like the conscious being of the book.

The house was quiet and the world was calm.

The words were spoken as if there was no book, Except that the reader leaned above the page, Wanted to lean, wanted much most to be The scholar to whom his book is true, to whom The summer night is like a perfection of thought.

The house was quiet because it had to be.

The quiet was part of the meaning, part of the mind: The access of perfection to the page.

And the world was calm. The truth in a calm world, In which there is no other meaning, itself Is calm, itself is summer and night, itself Is the reader leaning late and reading there.

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Wallace Stevens (EUA, 1879-1955) tradução de David Mourão-Ferreira (1927-1996)

30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 4 Michel de Montaigne, Ensaios

Michel de Montaigne (1533-1592) foi um filósofo francês de grande importância.

Apesar de bem-nascido, foi educado por gente humilde para poder apreender essa qualidade.

Estudou Direito e pertenceu à corte de Carlos IX. Após a morte de amigos e familiares, retira-se no château da família, onde escreve os seus Essais, reflexões e memórias da sua vida quotidiana.

Adaptado de https://www.infopedia.pt/$michel-de-montaigne

Este excerto é retirado do livro III, 3 dos seus Ensaios, a sua obra principal.

A tradução é de Rui Bertrand Romão, pp. 73ss, e está publicado na Biblioteca independente, 061.

Seleção da Professora Paula Quadros.

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«Em minha casa, retiro-me, um pouco mais assiduamente que em viagem, para os meus livros, que estão numa biblioteca de onde comodamente dirijo as minhas propriedades. ….

Acha-se essa livraria no terceiro piso de uma torre. No primeiro está a minha capela, no segundo, um quarto e uma antecâmara, onde me deito frequentes vezes, para estar sozinho. Em cima, há um grande guarda-roupa. Era no passado o lugar mais inútil da casa. Aí passo a maior parte dos dias da minha vida e a maior parte das horas do dia. Nunca vou para lá de noite. (…)

A biblioteca é de forma circular e só tem de muro direito um lanço adequado para a minha mesa e a minha cadeira, a partir de onde se me oferecem à vista, de um só relance, todos os meus livros, arrumados em cinco prateleiras que se curvam à minha volta. Tem três janelas, que abrem sobre uma esplêndida e desimpedida perspetiva, e dezasseis passos de diâmetro. De inverno estou lá por períodos menos longos, pois a minha casa está empoleirada num outeiro, como o seu nome diz, e não tem nenhuma parte tão exposta ao vento como esta, a qual me agrada que seja de acesso algo difícil e que esteja um pouco apartada, tanto por causa do proveito que me dá o exercício como pela de assim afastar o grosso da gente. É o meu pouso. Ensaio por exercer o meu domínio sobre ele de modo exclusivo e por subtrair esse único recanto à comunidade conjugal, filial e civil.»

Château de Montaigne. Biblioteca é a torre circular à esquerda.

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30 minutos a ler VI Comemorar as Bibliotecas Escolares Páginas volantes – 5 Eça de Queirós, A Cidade e as Serras

Exemplo maior do romance português, A Cidade e as Serras de José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) foi publicado em 1901.

Neste livro, surge a figura de Jacinto, um aristocrata de grande fortuna que vive em Paris, e recebe a visita do amigo Zé Fernandes, no n.º 202 da Avenida dos Champs-Élysées, em Paris.

A casa está cheia de nova tecnologia da época (telégrafo, telefone, teatrofone, conferençofone e elevadores) e tem uma extraordinária e ampla biblioteca.

Mais informação em https://www.infopedia.pt/$eca-de-queiros e http://dp.uc.pt/conteudos/entradas-do-dicionario/item/274-jacinto

Este excerto é do capítulo 2.

Seleção dos Professores Paula Quadros e Carlos Severino.

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« – Oh, Jacinto!

– Oh, Zé Fernandes!

O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade: – Há sete anos!...

– Há sete anos!...

E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202!

Ainda entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a lã de um tapete. No meio o vaso coríntico esperava abril para resplandecer com tulipas e depois junho para transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava, as duas magras deusas de pedra, do tempo de D. Galeão, sustentavam as antigas lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.

Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado por Jacinto – apesar de o 202 ter somente dois andares, e ligados por uma escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Sra. D. Angelina! (…)

Um criado, mais atento ao termómetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino.

Eu murmurei nas profundidades do meu assombrado ser: – Eis a Civilização!

Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. (…)

Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone. E enquanto o meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente “Está lá? – Está lá?”, examinei curiosamente, sobre a sua imensa mesa de trabalho, uma estranha e miúda legião de instrumentozinhos de níquel, de aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes, expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei manejar – e logo uma ponta malévola me picou um dedo. Nesse instante

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rompeu de outro canto um tique-tique-tique açodado, quase ansioso.

Jacinto acudiu, com a face no telefone: – Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr.

E, com efeito, de uma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!

Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff.

– Da Azoff?... A avaria? A mim?... Não! É uma notícia.

Depois, consultando um relógio monumental que, ao fundo da Biblioteca, marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas: – Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé Fernandes? Tens aí os jornais de Paris, da noite; e os de Londres, desta manhã. As ilustrações além, naquela pasta de couro com ferragens. Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade serrana todos os gostos de uma iniciação.

Aos lados da cadeira de Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, por onde ele decerto soprava as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles, coleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra à maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e retida no seu verniz como na água de um poço, pousava uma Máquina de Escrever; e adiante era uma imensa Máquina de Calcular, com leiras de buracos donde espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro.

Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira de uma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das Ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! Sobre prateleiras admirei aparelhos que não compreendia: um composto de Página 3 de 4

lâminas de gelatina, onde desmaiavam, meio chupadas, as linhas de uma carta, talvez amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o decepar, um cutelo funesto; outro avançando a boca de uma tuba, toda aberta para as vozes do invisível. Cingidos aos umbrais, liados às cimalhas, luziam arames, que fugiam através do teto, para o espaço.

Todos mergulhavam em forças universais, todos transmitiam forças universais. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e entrava na sua domesticidade!...

Jacinto atirou uma exclamação impaciente: – Oh, estas penas elétricas!... Que seca!

Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação!

Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era, pois, a região dos Economistas.

Avancei – e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas Pré-Socráticas até às escolas Neopessimistas.

Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas – e que todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Esta estante rematava junto de uma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo – e por trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor.»

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