Revista Fundição nº 7

Page 1

FUNDiÇÃO

Nº 7 - Setembro 2018 - ASSOCIAÇÃO BARREIRO PATRIMÓNIO MEMÓRIA E FUTURO

Ano Europeu do Património Cultural

Jornadas do Património Cultural do Barreiro

Dossier: Moinho Pequeno


Índice

REVISTA FUNDiÇÃO Ficha técnica

Ano Europeu do Património Cultural Editorial............................................................Pag. 3 Jornadas do Património Cultural do Barreiro...Pag. 4

BARREIRO

Dos

sier

Edição Nº7 Setembro 2018

Moinho de Maré Pequeno Moinho de Maré Pequeno Arrasado pela Câmara do Barreiro.......................................................Pag. 7 - 8 Moinho Pequeno: Ex Libris dos Moinhos de Maré do Barreiro .................................................... Pag. 9 - 10

Editor ASSOCIAÇÃO BARREIRO PATRIMÓNIO MEMÓRIA E FUTURO Edição Composição gráfica e Fotografia José Encarnação Contactos: Espaço L Rua José Gomes Ferreira Antiga Estação Ferroviária do Lavradio abpmf.patrimonio@gmail.com http://associacaobarreiropatrimonio.pt http://associacaobarreiropatrimonio.pt/jornadas

FUNDiÇÃO 2

Crónica de um arrasamento Infeliz - o caso do Moinho de Maré Pequeno..............................Pag. 11 - 15 Fátima Afonso - A indústria corticeira no concelho do Seixal – história de uma das mais fortes comunidades corticeiras do país ........................Pag. 16 - 19 Melo de Carvalho - O Património Cultural e o Turismo .........................................................Pag.. 20 - 23 Natália Nunes - O Legado Árabe e Islâmico no Barreiro: os azulejos Hispano-Mouriscos de Santo António da Charneca .....................................Pag. 24 - 26 Henrique Santos - Ditos, Frases, Filosofias de Vida.... .......................................................................Pag. 27


Patrimonio Cultural - Barreiro

EDITORIAL Ano Europeu do Património Cutural

Águas passadas, não movem moinhos; Águas passadas, não moem moinhos Dois provérbios, ou duas versões do mesmo, que têm suscitado inúmeras dúvidas aos paremiólogos e etnólogos, ao longo do tempo. Tempo indefinido, que em matéria de ditos do povo não se lhes conhece a origem. Metáforas surgidas num dado momento que ficam na memória, transmitindo-se de geração em geração. Um “saber de experiências feito”, exemplo para os vindouros. E o que é a vida, senão contínua aprendizagem? Estamos em 2018, comemora-se o Ano Europeu do Património Cultural, e o Barreiro teria tanto a celebrar se não tivesse deixado ruir grande parte do seu património! Numa era de transformação de valores e costumes, de modernização, de crescimento do mercado turístico, de credenciação de museus, é inadmissível que tanto património de arqueologia industrial seja votado ao esquecimento! E isso está a acontecer nesta cidade que vê esboroar a sua importância na indústria química, ferroviária e moageira. Destrói-se um passado histórico em poucos anos, ou pelas intempéries ou pela mão do homem. Assiste-se ao pouco ou inexistente interesse em preservá-lo, mostrar aos mais novos a História viva, fazê-los imaginar a relevância do Barreiro na época da Expansão, ou na economia do país no início do século XX. Para tal, ao invés do abandono ou da destruição de imóveis de grande interesse público, em termos de arqueologia industrial, como os edifícios da zona fabril da CUF, a estação ferroviária do Barreiro-mar ou os moinhos de maré, seria premente a reconstrução destes espaços, de forma a manter viva a memória de um Barreiro que já foi o coração da economia nacional. Pelo menos, espaços de cariz religioso, com relevante carga histórica e artística, ainda vão tendo restauros, Deo Gratias!, como o magnífico pórtico manuelino da igreja de Palhais. No início do século XX, as máquinas vêm substituir a moagem artesanal, os moinhos de vento e de maré vêem os seus dias contados. Alguns são destruídos, por questões de reestrutução urbanística, como os do Lavradio (na “praia dos moinhos”) ou o moinho de maré da Verderena. Em Alburrica, vão silenciando as mós. Os três moinhos de vento são atracção turística, o encanto de quem cruza o rio e, por isso, regenerados, de quando em vez. Os de maré não têm a mesma sorte, ficam esquecidos no lodo da vazante. Que injustiça, para tão fausto papel no passado! Há referências a moinhos de maré por altura da fundação da nacionalidade, atingindo a maior existência na época dos Descobrimentos, com a concentração da população em Lisboa e zonas ribeirinhas do Tejo. Nos esteiros do rio Coina, constroem-se embarcações para as Viagens e aprovisionam-se de biscoito, feito com os cereais triturados nos moinhos de maré construídos numa extensão compreendida entre Coina e Alburrica. Do Barreiro partem, assim, as naus e caravelas para desbravar “mares nunca dantes navegados”, unir a Europa ao Novo Mundo. O mesmo Barreiro que viu, neste ano de 2018, morrer um dos ícones do seu património industrial, histórico e etnográfico: o moinho de maré Pequeno, em Alburrica, zona classificada como Sítio de Interesse Municipal. É certo que se encontrava num estado de degradação muito avançado, mas as suas janelas ainda olhavam o Tejo, numa ínfima esperança de ver chegar quem o salvasse. A 13 de junho, chegou a Máquina e arrasou o que restava das paredes e cantaria. Ficaram os arcos, submersos. Afinal, águas passadas moem moinhos! "Temos obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, se conservem tão Portugueses como nós e capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na herança social que o passado nos legou." António Jorge Dias (1907- 1973), etnólogo. FUNDiÇÃO 3


Jornadas do Património - Barreiro

Jornadas do Património Cultural do Barreiro

Programa: 1.4. Despertar, nos jovens e noutras franjas da população, o gosto pela História do seu Concelho. 1.5. Contribuir para a coesão social.

2 - Temáticas/Programa das Jornadas

1ª JORNADA – 29 de Setembro de 2018 Temas: Alburrica, Ponta do Mexilhoeiro, Quinta do Braamcamp, Zona Classificada como Sítio de Interesse Municipal: a génese do espaço, a importância paisagística e ambiental, as salinas, os moinhos de vento e a entrada na proto-industrialização, a instalação da Linha do Sul e Sueste.

Duração: dia inteiro, das 11h00 às 13h00, das 15h00 às 17h00. Ano Europeu do Património Cultural – 2O18 Duração Período da Manhã: 2h00 Ponto de Encontro: Largo do Moinho Pequeno, 11h00. Introdução Visita guiada ao interior do Moinho de Vento Nascente A Associação Barreiro – Património, Memória e Futuro, e a todo o espaço do Sítio classificado de Interesse Mucorrespondendo ao convite da DGPC para integrar as nicipal (SIM). Jornadas Europeias do Património 2018, propõe-se Duração Período da Tarde: 3H00 realizar, em parceria com outras instituições, diversas Ponto de Encontro:Espaço L (Antiga Estação de Comboio visitas. Desejamos que estas se desenvolvam de acor- do Lavradio), 15H00 Programa: do com um modelo que concilie uma tripla perspectiva: 15h00 - Visita Guiada Exposição Espaço L (Antiga Estação visitação, divulgação e reflexão sobre a importância pasde Comboio do Lavradio) sada e futura do património cultural do Barreiro. 16h00 - Lançamento da Revista Fundição 17h00 - Apontamento Musical. 1 - Objectivos das Jornadas Gratuita, almoço livre

1.1. Divulgar, através de visitas guiadas, a História e o património cultural do Barreiro, promovendo a sua importância local, nacional e internacional. 1.2. Afirmar a importância do património cultural do Concelho para o desenvolvimento global local. 1.3. Analisar, criticamente, a situação do património cultural do Concelho, motivando a participação da população na sua defesa, salvaguarda e valorização. FUNDiÇÃO 4

2ª JORNADA – 13 DE Outubro de 2018 O Barreiro como “Oficinas Gerais” da Expansão Portuguesa: os Fornos Cerâmicos da Mata da Machada (utensílios encontrados nas escavações arqueológicas – formas do biscoito e do pão-de-açúcar), a Fábrica Real do


Jornadas do Património - Barreiro Biscoito, o moinho de maré D’EL-REI, o moinho de maré de Palhais, os Fornos de Cal, a composição social de Palhais como área cosmopolita no período da Expansão; e ainda os Estaleiros Navais da Ribeira das Naus do Coina, na Telha Velha, e os moinhos de maré do Duque e do Maricote. Inclui-se nesta temática todo o património religioso – Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Palhais, Capela de Santo André, convento da Madre de Deus da Verderena, pórtico manuelino da Igreja de São Francisco, a Capela da Misericórdia e a Igreja de Santa Cruz. mitiva Estação e das Oficinas dos Caminhos-de-ferro, Rotunda das Locomotivas e Bairro Operário. Almoço: das 13h às 14h. Ponto de Encontro Cooperativa Cultural Popular Barreirense – 14,30h Programa: 14h30 - Inauguração de exposição sobre o “Património Cultural do Barreiro” e abertura da Feira de Livros sobre Património Cultural do Barreiro, que decorrerão até dia 27 de Outubro. 15h15 - Conferência sobre “Os Processos de ClassifiDuração: dia inteiro, das 9h30 às 13h00, das 15h00 às cação do Complexo Ferroviário e da CUF: ponto de situação, importância do processo de classificação e con17h00 tributos do património para o desenvolvimento local/ Duração Período da Manhã: 3h3o Ponto de Encontro: Av. Alfredo da Silva, junto ao Mer- turismo” , conferencista Deolinda Folgado 16h45 - Lançamento de livro cado 1º de Maio, 9h00 Visita Guiada: período da manhã - Igreja da Nossa Se- 17h30 - Apontamento Musical nhora da Graça e Fornos de Cal em Palhais, aos Fornos Custo: pagamento de almoço de Cerâmica da Mata da Machada e Museu do Fuzileiro, 4ª JORNADA – 27 de Outubro de 2018 antiga Fábrica Real do Biscoito. Almoço: das 13h00 às 14h00. Duração Período da Tarde: 2h00 Complexo Fabril da Companhia União Fabril no processo Visita Guiada: período da tarde – Capela de Santo An- de industrialização Português: a sua história e procesdré na Telha Velha, Convento da Madre de Deus da Ver- sos de laboração, o património edificado, a composição derena, pórtico manuelino da Igreja de São Francisco, a social dos trabalhadores, os seus quotidianos de trabaCapela da Misericórdia e a Igreja de Santa Cruz. lho, lazer e luta, a tradição oral, e o significado nacional Custo: pagamento de almoço e autocarro e internacional de todo este património, o processo de classificação. Duração: dia inteiro – das 10h00 às 13h00, das 15h00 3ª JORNADA – 20 DE Outubro de 2018 às 17h30 Complexo Ferroviário do Barreiro no Processo de Industrialização de Portugal: a sua história, o património edificado, a cultura ferroviária – os quotidianos de trabalho, lazer e luta, a tradição oral, o significado nacional e internacional de todo este património, o processo de classificação. Duração: dia inteiro das 10h00 13h00 e das 15h00 às 18h00 Duração Período da Manhã: 3h00 Ponto de Encontro: Estação Barreiro-Mar - 9h30h Visita Guiada: Estação Barreiro-Mar, interior da PriFUNDiÇÃO 5


Jornadas do Património - Barreiro Duração Período da Manhã: 3h00 Programa: Ponto de Encontro: Pórtico de entrada nas antigas fábricas, junto ao Largo das Obras, 9h30h. Visita Guiada: Ramal Ferroviário Interno e Porto Fluvial, Maqueta da Casa Alfredo da Silva para conhecimento global do Complexo, Bairro de Santa Bárbara, Mausoléu Alfredo da Silva, Museu industrial, a Zona Têxtil, toda a Área Sul e os elementos de arqueologia restantes e integrados no processo de classificação em curso, Almoço: das 13h30 às 14h30. Duração Período da Tarde: 2h30 Ponto de Encontro: Cooperativa Cultural Popular Barreirense, 15h Programa: 15h00 - Visita à exposição “Património Cultural do Barreiro” e Feira de Livros 15h30 - Sessão Debate com perguntas e respostas sobre “A Importância Passada, Presente e Futura do Património Cultural do Barreiro para o Desenvolvimento Local” convidados Professor Jorge Custódio, Professor Claúdio Torres. 17h00 - Convívio e sessão de autógrafos Custo:pagamento de almoço e autocarro

3. Estrutura das Jornadas

5 - Inscrições 5.1. Será necessária a incrição em cada Jornada, mesmo que gratuíta, de todos os participantes interessados, em ficha própria, que será divulgada durante a segunda semana de Setembro. Na referida ficha, estarão explicitadas as seguintes informações: hora de saída e regresso, programa completo da visita, os nomes dos investigadores e técnicos, uma breve apresentação da temática, meio de transporte, número máximo de participantes. Nas jornadas com a duração de um dia, acresce um pagamento referente ao almoço. No caso de se necessitar de transporte acresce o pagamento do autocarro. 5.2. As fichas deverão ser preenchidas e devolvidas até ao último dia 20 do mês de Setembro para o seguinte e.mail.

Jornadas@associacaobarreiropatrimonio.pt https://associacaobarreiropatrimonio.pt/jornadas 6 -Parcerias Já Confirmadas

6.1 - Parcerias Institucionais: Centro de Formação das Escola dos Concelhos do Barreiro e Moita DGPC Direcção Geral do Património Cultural 6.2 - Parcerias Científicas APAI, Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial 6.3 - Parcerias Associativas Animae Vox Cooperativa Cultural Popular Barreirense Grupo Coral TAB

3.1. Desenrolam-se em quatro dias, correspondendo cada dia a uma visita com temática diferente, sendo a primeira realizada em Setembro e as três seguintes em Outubro. 3.2. Em cada dia, haverá uma visita guiada aos espaços de cada áreatemática orientada por um, ou mais, convi- 7.3. Parcerias Empresariais dados especialistas nos assuntos a tratar. 3.4. Ao longo das visitas, assistiremos a pequenos apon- EMEF, tamentos culturais ligados aos temas ou aos locais. Janelas do Rio - Centro de Escritórios, Palhais 3.5. No caso das condições atmosféricas não permitirem as visitas, propõe-se a realização da 1ª Jornada, no Clube Naval Barreirense ; a 2ª Jornada, no Museu do Fuzileiro, na Escola de Fuzileiros Navais de Vale de Zebro; a 3ª Jornada, nas oficinas da CP; a 4ª Jornada, na Casa Museu Alfredo da Silva, na sala da maqueta. 3.6. A sessão da tarde da primeira Jornada decorrerá no Espaço L as sessões da tarde das duas últimas Jornadas decorrerão na Cooperativa Cultural Popular Barreirense, bem como a exposição e a feira de livros. 3.7. Lançamento de um Ryde Fotográfico sobre o Património Cultural do Barreiro a realizar durante as Jornadas.

4. Público-Alvo 4.1. Cidadãos em geral interessados nestas temáticas, investigadores, professores, e estudantes universitários. FUNDiÇÃO 6


Património Moageiro - Barreiro

Dos

sier

N

Moinho de Maré Pequeno Arrasado pela Câmara do Barreiro Comunicado da Associação

o dia 13 de Junho de 2018 a Câmara Municipal do Barreiro arrasou o Moinho Pequeno.

são pública, tais como:

1- O Moinho Pequeno está integrado numa zona classificada como Sítio de Interesse Municipal, do ponto de vista do Património Moageiro, Paisagístico e Ambiental, integrando Alburrica, a Ponta do Mexilhoeiro e a Quinta do Braamcamp, devendo, por isso mesmo, ter sido equacionada a intervenção no Moinho Pequeno no âmbito de um programa para a totalidade Na sequência deste acontecimento e de acordo com da área, a ser realizado faseadamente. os direitos que são conferidos na Lei de Bases do nº 107/2001, de 8 de Setembro, nomeadamente no Art. Este programa, a existir, deverá ser tornado público e 10º ( nº4 — As estruturas associativas de defesa do colocado à discussão da população. Caso não exista, património cultural gozam do direito de participação, deve iniciar-se a sua elaboração e promover a partiinformação e acção popular, nos termos da presente cipação de associações e da população na discussão lei, da lei que as regular e da lei geral e Nº 5. do mesmo, tal como está expresso na legislação em vigor. A Associação Barreiro – Património,Memória e Futuro considera esta acção um crime, porque apaga a existência daquele que é, para a generalidade dos barreirenses, o exlibris dos moinhos de maré do Barreiro.

— A Administração Pública e as estruturas associativas de defesa do património cultural colaborarão em planos e acções que respeitem à protecção e à valorização do património cultural), esta Associação decidiu solicitar à Câmara Municipal do Barreiro a realização de uma discussão pública sobre a obra que tem a intenção de realizar no espaço ocupado pelo Moinho Pequeno, agora completamente arrasado, bem como sobre todo o programa para a área classificada de Alburrica, Ponta do Mexilhoeiro e Quinta do Braamcamp, para tal já foi endereçado ao Presidente da Câmara Municipal do Barreiro pedido de reunião urgente.

2- Este moinho de maré, depois dos moinhos de vento de Alburrica, era o mais emblemático e por isso o mais representado iconograficamente, e o mais presente na memória dos barreirenses, o que deveria ter merecido especial consideração. Também sempre foi considerado como o mais apto a receber um processo de requalificação correctamente concebido na área museológica moageira por se tratar do mais pequeno e com localização privilegiada na Cidade.

3- Quando se fala, hoje, em preservação, recuperação, reabilitação, novos usos, não se pode pensar que a memória, a história e, no caso, os processos de laboração de uma indústria moageira, tudo se pode Multiplas razões nos levam a reivindicar esta discus- apagar, até a arquitectura do edifício que lhes deu FUNDiÇÃO 7


Património Moageiro - Barreiro

Imagem cedida pelo Jornal “Rostos”

Imagem cedida pelo Jornal “Rostos”

corpo. Nem tudo se pode reduzir a negócio, sobretudo quando o que está em causa é a nossa identidade, a compreensão das nossas diferenças e com elas a nossa afirmação. Sem passado não há futuro, é assim em todas as áreas do conhecimento humano, no património não pode ser diferente. E é no momento presente que tudo isto tem de ser equacionado com respeito democrático e uma valorização ponderada dos caminhos a seguir.

que está em jogo. De facto, a acção já empreendida demonstra não só falta de ponderação e pura precipitação dentro da intenção de mudar o Barreiro em 4 anos, mas, mais gravemente ainda, total desprezo antidemocrático pela opinião da população.

6- Todo o progama para este sítio classificado tem de ser realizado com a sensibilidade necessária para articular sustentadamente as valências túristicas com o património, o ambiente e a paisagem, e com as po4- O Barreiro tem tudo para vir a ser um importan- tenciais mais valias de carácter económico que dele te polo turístico e é no património que encontramos podem resultar, se devidamente respeitados os prinessa possibilidade. Um moinho recuperado, no seu cipios de uma autêntica recuperação. De outra forma, essencial, será sempre um ponto de atracção turís- é evidente que se está a promover a destruição de tica; se o liquidarmos por completo, violando todas uma zona que é única no País na sua configuração, as regras que devem garantir uma correcta recupera- diversidade e riqueza patrimonial. ção como está a acontecer com o Moinho Pequeno, está-se a liquidar uma importante via de desenvol- A Associação Barreiro – Património, Memória e Fuvimento económico e cultural referida ao futuro do turo espera que estas razões sejam compreendidas Concelho do Barreiro, o que deverá ser devidamente e que ainda se possa abrir um processo de discussão, tomado em consideração no presente. ampla, participada e democrática, sobre o assunto, única forma de ajudar a encontrar caminhos mais 5- Não defendemos que todo o património tenha rasgados de visão do património, e do seu contributo de ser recuperado integralmente do ponto de vis- para o desenvolvimento sustentado da nossa terra. ta da arquitectura e do uso. No caso deste Sítio de Interesse Municipal isso seria um absurdo, porque Associação Barreiro – Património, Memória e Futuro temos 4 ruínas de moinhos de maré, mas, pelo me- Barreiro,18/06/2018 nos um terá de ter essa finalidade. Seria mais fácil concretizá-lo no Moinho Pequeno pela sua dimensão, porque é o único com caldeira lajeada, porque é um edifício emblemático e com acesso imediato à cidade. Mais uma vez lamentamos que, antes de avançar com obras de destruição massiva, sem qualquer preocupação recuperadora visível, o Executivo da Câmara Municipal do Barreiro não tenha tentado colher a opinião desta Associação e da população na sua generalidade, tendo em conta a importância do FUNDiÇÃO 8


Património Moageiro - Barreiro

Dos

sier

Moinho Pequeno: Ex Libris dos Moinhos de Maré do Barreiro

Intervenção da Associação na Assembleia Municipal no dia 23 Junho sobre o Moinho de Maré Pequeno.

A

20 de Março de 1652, o Moinho de Maré Pequeno, também conhecido por Moinho de S. Roque, que possuía três engenhos, foi arrendado por D. Antónia de Morais a João Carvalho. Esta é a primeira notícia que se conhece sobre o moinho.

De facto, o Concelho do Barreiro teve a laborar a maior concentração de moinhos de maré do Tejo, a segunda maior do País. Os moinhos de maré do Barreiro foram essenciais no abastecimento de Lisboa e dos Fornos em Vale de Zebro, onde se confeccionava o “biscoito”, alimento base dos navios das “descoberFarinhou cereais e massas alimentícias. Pertenceu a tas”, da Armada Real e dos Fortes de Costa. Estes enJosé Pedro Costa. Em 1992 continuava a ser proprie- genhos tiveram um papel fundamental no desenvoldade da Família Costa , quando a CMB acordou com vimento do País, sobretudo durante o largo período esta a sua compra, depois de realizadas as partilhas, da Expansão Portuguesa. facto que só veio a acontecer em 2002, dada a dificuldade de entendimento entre os mais de 20 herdeiros. Curiosamente, com tantos moinhos de maré, este Em 2008, iniciou-se um processo de classificação en- foi o mais iconografado por fotógrafos e por pintotre CMB, DRC de Lisboa e Vale do Tejo e DGPC que se res, e continua a ser o mais presente na memória dos concluiu em 2017 com a Classificação de SIM, Sítio Barreirenses. Se vos perguntássemos se poderíamos de Interesse Municipal, abrangendo Alburrica, Ponta derrubar um dos moinhos de vento de Alburrica, resdo Mexilhoeiro e Quinta do Braamcamp, classifica- ponderiam, de imediato, que não, pois caros concição por razões ambientais, paisagísticas e moageiras. dadãos, a CMB derrubou, a 13 de Junho de 2018, o Ex libris dos moinhos de maré do Barreiro. FUNDiÇÃO 9


Património Moageiro - Barreiro

A Associação e a população em geral deveriam ter sido consultadas, deveriam ter merecido esse respeito, dado que o nosso património cultural é um bem de todos nós, que nos define identitariamente e que se construiu com o trabalho e os contributos financeiros dos nossos antepassados, em sucessivas gerações.

SIM (dada a sua importância paisagística, ambiental e moageira) terá de haver um moinho com tal valência e tudo o que se edificar não pode colocar em risco as características únicas a nível da paisagem.

O Moinho Pequeno, por tudo o que foi dito, deveria ser o escolhido, e também pela sua localização num sítio a preservar ambientalmente e, ainda, pela sua A sua existência futura passa por todos nós, enquan- dimensão que tornaria menos cara a intervenção. to fiéis depositários desta herança, que nos cabe salvaguardar, reutilizar, divulgar na sua singularidade Temos que contar com a singularidade do nosso pacomo forma de nos afirmarmos no todo nacional, trimónio e seu forte contributo para o desenvolvie passa pelo contributo financeiro que todos damos, mento de uma indústria turística. Um moinho, como através dos impostos que pagamos para que haja or- unidade museológica, é uma fonte de atracção turísçamentos governamentais e municipais. tica. Se for unicamente um café ou um restaurante, não preencherá esse objectivo. Assim, esta Associação, ao abrigo do nº4, do artigo 10º da Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro e dos arti- A Associação Barreiro – Património, Memória e Fugos 65ª, nº1, alínea c), 68º, nº2, alínea b) e 83º, nº3, turo espera que estas razões sejam compreendidas e todos do Código de Procedimento Administrativo, re- que se possa abrir um processo de discussão, ampla, quereu que lhe fosse passada certidão autenticada participada e democrática, sobre o assunto, única de todos os documentos que compõem o processo forma de ajudar a encontrar caminhos mais rasgados administrativo respeitante à obra de demolição do de visão do património, oferecendo o seu contributo Moinho Pequeno. para o desenvolvimento sustentado da nossa terra. Não nos move nenhum pressuposto fundamentalista Associação Barreiro – Património, Memória e Futuro de querer preservar todos os moinhos de maré na sua traça integral, nem nos seus mais autênticos pro- Barreiro, 23 de Junho de 2018 cessos construtivos, nem que tenham todos de ser unidades museológicas moageiras, seria insensato e absurdo! Porém, em toda esta área classificada de FUNDiÇÃO 10


Patrimóno Moageiro - Barreiro

Dos

sier

N

Crónica de um arrasamento Infeliz: o caso do Moinho de Maré Pequeno

o dia 13 de junho de 2018, o que restava do Moinho Pequeno foi arrasado em poucas horas. Só ficaram de pé as três bocas de água e uma pequena parte da muralha de embasamento do antigo edifício. Também o armazém anexo ao moinho foi completamente arrasado, nada restando dele. Muito poucos seriam aqueles que sabiam o que se estava a passar, e mesmo na própria Câmara Municipal vários vereadores de nada sabiam, nem conseguiam explicar o que se passava. Além do facto de a população não ter sido informada, ninguém, mas mesmo ninguém, sabia ao certo o que se iria passar a seguir. Como sempre acontece nestas situações, os boatos corriam rapidamente: “iam edificar uma cafetaria”, diziam uns, “era para fazer um centro cultural”, diziam outros, “era para recuperar o moinho tal como ele era no passado”, afirmavam ainda outros. Ninguém sabia. Uns ficaram consternados e seriamente preocupados por estarem em desacordo com um procedimento que, praticamente, tudo destruira (paredes, cantarias, muralha, etc. que tinham séculos de existência e que ficaram irremediavelmente perdidos). Outros manifestaram a sua satisfação perante aquilo que consideraram ser uma prova do dinamismo exuberante da Câmara, na via do cumprimento de “mudar o Barreiro em 5 anos”, como afirmava um dos vereadores do executivo. Uns consideraram que o que acabava de ser feito era verdadeiramente “criminoso”, pois tratava-se da destruição de uma importante peça do património cultural do Barreiro. Outros mostravam a sua concordância com a erradicação de um “monte de pedras, madeiras podres, cacos e lixo”, afinal os restos

de umas paredes velhas e carcomidas, sem qualquer interesse. Uns clamavam que se estava a destruir uma das “joias” valiosas do património cultural do Concelho, outros acusavam os primeiros de conservadorismo revivalista e “dor de cotovelo”, manifestando a sua satisfação por naquele local ir surgir um novo e moderno edifício.

2 – Mas então porquê estas opiniões tão radicalmente opostas? Para entender a situação, é preciso enquadrá-la devidamente e responsabilizar quem é responsável. O que significa e o que está em causa com a destruição do Moinho Pequeno? O Moinho de Maré Pequeno é assim designado por ter moído cereais ao longo de séculos, utilizando as marés que enchiam a sua caldeira, como força motriz, que movia as suas mós, através de um aparelho adequado, designando-se por “Pequeno” por ser aquele que, entre os moinhos de maré do Barreiro (foram pelo menos 12), teria menor número de moendas. Grande parte destes moinhos terão sido postos a funcionar nos séculos catorze/quinze, na altura da expansão portuguesa, porque era necessária uma enorme quantidade de farinha para fabricar o biscoito na Fábrica Real de Vale de Zebro. Este era o principal alimento dos marinheiros e das armadas reais durante as viagens, bem como dos fortes de costa. Contudo, do Moinho Pequeno só se conhece a primeira notícia em 1652, altura em que a sua proprietária, Dª Antónia de Morais, alugou a João Carvalho. Cerca de 400 anos, já é tempo mais do que suficiente FUNDiÇÃO 11


Património Moageiro - Barreiro

para o considerar uma raridade histórica, mas é bem evidente que já funcionava certamente muito tempo antes (provavelmente desde o século catorze, como o defendem vários conceituados investigadores, o que lhe dará a provecta idade estimada em cerca de 600 anos). É bom que retenhamos a seguinte ideia: aquelas paredes, muito provavelmente reconstruidas ao longo dos tempos com os seus tijolos e alvenarias, assistiram certamente ao trabalho esforçado de muitas gerações de moleiros. Eram, em si mesmas, um testemunho da formação progressiva do Barreiro durante seis séculos. Pois bem: ao que sabemos, os seus restos foram tratados como simples entulho e despejados na entulheira do município, perdendo-se para sempre. Era uma ruína? Claro que era uma ruína. Mas é por ser uma ruína que o Partenon da Acrópole de Atenas deve ser arrasado?Ou as ruínas dos palácios dos faraós do Antigo Egipto? Ou, aqui mais perto, as ruínas do Templo de Diana, em Évora? Pode dizer-se:Ah! Mas essas ruínas têm um alto valor artístico e uma grande importância histórica, enquanto que os restos do Moinho Pequeno para ali estavam, sem préstimo e valor, sob o olhar indiferente dos habitantes do Concelho do Barreiro. Sendo assim, é indispensável esclarecer 2 ou 3 pontos.

3-O que é o património cultural? O primeiro ponto é este: o que é um bem patrimonial cultural? A Declaração de Caracas(1992) definiu, deste modo, a questão:”...o património cultural de uma comunidade é composto de todas as manifestações materiais e imateriais que contam a história de um povo e a sua relação com o meio ambiente. É o legado que herdámos do passado e que transmitimos às gerações futuras”. Do património cultural fazem parte bens imóveis que tenham desempenhado um importante papel na vida dos nossos antepassados e/ ou que representem testemunhos históricos da sua forma quotidiana de viver, de trabalhar, de viver espiritualmente, de conviver, etc. Estão neste caso casteFUNDiÇÃO 12

los e igrejas, mas também casas, conjuntos urbanos e ainda locais de expressivo valor para se entenderem os costumes, as formas de trabalho e tudo aquilo que possa fornecer informações significativas sobre a existência dos nossos antepassados e sobre os quais se estruturou a comunidade em que hoje vivemos. Podem ser testemunhos muito antigos (da pré-história, por exemplo), ou mais recentes, desde que significativos, ou seja, que possuam um valor testemunhal específico, como hospitais, mercados públicos, sítios ferroviários e industriais, bibliotecas, praças e, naturalmente, moinhos de vento ou de maré- isto só para citar alguns exemplos, de uma longa lista possível.

4-Qual o valor e a importância do património cultural do Barreiro? Pode parecer, pelo que acaba de ser dito, que o valor do património cultural reside unicamente na memória histórica e na sua contribuição para a estruturação da identidade da comunidade. Isto é certo, mas não esgota todas as potencialidades que transporta em si. O que está em causa é a contribuição que pode fornecer como importante factor de desenvolvimento global do Concelho. Pensar que ele se limita a representar as “pedras mortas” do passado, está tão errado como conceber o Moinho Pequeno exclusivamente como um amontoado de tijolos e pedras, que devem ser removidos para dar lugar a um edifício moderno, com um valor arquitectónico mais do que duvidoso e historicamente sem qualquer interesse. O que está em causa é a utilização turística do património cultural dentro e a favor da comunidade, em termos actuais e futuros, desde que devidamente concebido. Para se compreender o que se pretende afirmar, é preciso saber que o turismo actual já não é idêntico exclusivamente ao turismo de massa dos três S’s (sun, sand, sex) de há 30 ou 40 anos. No presente, o turista caracteriza-se por assumir várias motivações e procurar diferentes fontes de fruição. O que se verifica no presente, é uma extraordinária afluência de turistas a locais de valor patrimonial, numa atitude de exploração activa de carácter cul-


Patrimóno Moageiro - Barreiro tural. O Barreiro não poderá aspirar a uma presença massiva de visitantes, como está a acontecer em certos locais. Contudo, o seu rico património cultural, se correctamente concebido, pode assumir um forte carácter atractivo para vários grupos bem individualizados de turistas internos e externos, desejosos de conhecerem o significado histórico e cultural das diferentes valências (complexo ferroviário, complexo industrial da ex-CUF, núcleos moageiros e os outros núcleos com potencialidades turísticas disseminadas pelo Concelho). Assim seria, a Câmara Municipal em colaboração activa com outras entidades e pessoas interessadas, entenda-se que o desenvolvimento turístico não é algo de espontâneo, nem cai do céu, precisando de ser devidamente concebido e organizado. Evidentemente que tal nunca se conseguirá com atitudes e formas de actuar como as que foram agora utilizadas para o Moinho Pequeno.

5- Afinal que valor tem para o Concelho do Barreiro o Moinho de Maré Pequeno? O Moinho Pequeno é parte importante de todo este processo, assumindo até um papel especial devido ao facto de se encontrar muito próximo do centro da Cidade. Isso torna-o uma espécie de ex-libris de todos os moinhos de maré do Concelho. O objectivo principal da sua recuperação deverá ser o de constituir um local capaz de explicar aos alunos das escolas, aos cidadãos e a todos os que nos visitarem, como era constituído um moinho de maré, como funcionava e como nele se trabalhava e vivia. É isto que justifica a importância do rigor da sua recuperação como testemunho histórico do passado. O irreparável já aconteceu? Veremos no futuro próximo, mas tudo indica que quem determinou a destruição daquilo que existia, da forma como o fez, sem tomar o mínimo de precauções e sem aplicar as regras técnicas do processo de recuperação, não percebeu que estava a deitar para o lixo pedras de alve-

naria, tijolos e pedras afeiçoadas que ali tinham sido colocadas ao longo dos séculos. Seria precisamente esse material que garantiria a genuinidade da recuperação, desde que devidamente utilizados arquitectonicamente. Sabemos que alguém terá defendido que essa recuperação assumiria um carácter artificial e, por isso, deveria ser construído um edifício moderno de raiz. Assim se “matou” o valor patrimonial do Moinho, ao conceber um local sem “alma” e sem identidade própria, com características arquitectónicas mais do que discutíveis.

6-Qual a justificação da Câmara para a forma como actuou? A Associação Barreiro Património Memória e Futuro solicitou ao Presidente da Câmara uma reunião com o objectivo de ficar a conhecer o que o executivo pensava fazer em relação ao património cultural do Concelho. Fê-lo com cerca de 4 meses de antecedência do arrasamento do Moinho, sem nunca ter recebido qualquer resposta. Somente 10 dias depois deste nefasto acontecimento é que nos foi concedida uma reunião, depois de se ter insistido com firmeza na necessidade de uma troca de opiniões, tal como determina a Lei de Bases do Património Cultural. Triste reunião esta, que ficou marcada pela sua inoperância. Os elementos da ABPMF iam à procura de um esclarecimento sobre o que se acabara de passar com o Moinho de forma tão insólita, e daquilo que a Câmara pensava concretizar no futuro. Sobre este último ponto, assim como se entrou, assim se saiu. Quanto ao primeiro, foi possível ficar a saber que a iniciativa tomada assentava no facto de o Moinho Pequeno não estar classificado, e em dar continuidade “ao que vinha detrás”: ou seja, ao projecto que a anterior Câmara mandara elaborar mas que nunca concretizara. Quanto à questão da classificação, já lá iremos. Porque este ponto ainda nos merece mais atenção, devido aos seguintes factos:

FUNDiÇÃO 13


Patrimonio Moageiro - Barreiro .à constante tentativa de partidarização da decisão, afirmando-se sistematicamente que a responsabilidade daquilo que se passara era do anterior Executivo, porque tinha sido dele a iniciativa da elaboração do projecto; .à não tomada na devida consideração das razões que tinham determinado a anterior suspensão do concurso pela falta da indispensável consulta pública, e à vontade sôfrega de fazer obra a todo o custo, sem olhar a razões e meios. A partidarização vale o que vale, e sabe-se bem que se trata de uma manobra de pura diversão para desviar a atenção do essencial. Quanto à recusa em tomar na devida conta as razões da interrupção do processo, só demonstra o afogadilho em que se está, a falta de perspectivas próprias para a acção e a enorme dificuldade em compreender a gravidade daquilo que se concretizou em relação ao Moinho.

seu perímetro, todos os moinhos e demais património. O Moinho Pequeno ficou, assim, automaticamente classificado porque não só integra esse perímetro, como a designação de “moageiro” se refere inelutavelmente a todos os moinhos que se verifica existirem no dito perímetro. Mas então, se a classificação do Moinho Pequeno não deixa dúvidas, porque é que a Câmara o nega? Pela razão simples de que assim fica completamente à vontade para fazer aquilo que lhe interessa. Por exemplo, desta forma não fica obrigada a fazer a consulta pública a que a classificação obriga por lei.

8- Mas, em lugar do moinho o que é que a Câmara decidiu construir?

7- O moinho de Maré Pequeno está ou não classificado como património cultural? O mais importante argumento da Câmara para justificar a acção de destruição da ruína consiste em afirmar que o Moinho não está classificado como património cultural. É claro que para se entender bem a questão é preciso perceber o que isto significa. Em termos muito resumidos, se o Moinho estiver classificado, cai imediatamente sob a alçada de uma legislação específica que impõe regras precisas e cuidados bem definidos, na sua recuperação. Compreende-se, assim, que a Câmara negue a existência dessa classificação, interessada como está em fazer obra com a maior celeridade, sem complicações. O Moinho tinha um processo financiado e um projecto, ainda que anulado. Por isso estava à mão de semear. Estamos, assim, perante uma questão crucial, que de uma forma sintética, se configura do seguinte modo: .o Moinho Pequeno, fazendo parte de todo o património moageiro do Barreiro, integrou um pedido de classificação apresentado, em tempo, à Direcção Geral do Património Cultural. Esta entidade aconselhou que essa classificação deveria ser concretizada pela própria Câmara Municipal do Barreiro como SIM (Sitio de Interesse Municipal) . recebido este conselho, a Câmara imediatamente organizou o processo de classificação e aprovou-o por unamidade, tendo sido publicado em Diário da Republica,de 20 de Julho de 2017. . o Sítio referia a necessidade de preservar o valor ambiental, paisagístico e moageiro, integrando, no FUNDiÇÃO 14

Ora aí está um problema bicudo. Da reunião já referida, a única informação obtida consistiu em que não seria construída uma cafetaria. Quanto ao resto foram feitas vagas afirmações, sem qualquer sustentação documental, de que no lugar do Moinho ficaria instalada a “porta de entrada” (de quê?) e que nele poderia ser instalado um centro interpretativo, ainda que, pela sua área, seria mais indicado que viesse a ser instalado no Moinho do Braamcamp. De facto, de tudo isto não foi mostrado qualquer projecto, pela simples razão de que, apesar do arrasamento, ele ainda não existia. A única coisa que se logrou entender, é que no local se virá a erguer um pequeno edifício moderno, referindo a sua estrutura arquitectónica a uma imagem daquilo que se presume ter sido a primeira forma do edifício, hipoteticamente como teria sido no século dezassete, completado com uma pequena praceta no local do armazém, também arrasado. Trata-se objectivamente de um conjunto de erros, expressamente condenados pelas recomendações internacionais mais relevantes em relação ao processo de recuperação de sítios patrimoniais culturais. De facto, até ao presente não se encontrou qualquer


Patrimóno Moageiro - Barreiro

registo ou imagem do referido moinho que possa ser considerada como a original e, por isso, ninguém sabe como era na realidade - trata-se de uma mera conjectura que não deve sobrepôr-se à última estrutura bem conhecida da população, e que datará do século dezanove. Além disso, o armazém também não pode dar lugar a uma praceta porque está colocado ao abrigo da Lei da Servidão (nenhum edifício pode ser eliminado num raio de 50 metros do edifício classificado).

9- Último acto da comédia: a brincadeira com a documentação Perante esta situação, e à procura de uma informação com um mínimo de consistência, a Associação solicitou a consulta do processo do Moinho Pequeno ao abrigo da legislação em vigor (Código do Procedimento Administrativo, nº1 do artigo 61º-”Os particulares têm direito a serem informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos procedimentos...bem como o direito de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas”, nº1 do artigo 62º - ”Os interessados têm o direito de consultar o processo que não contenha documentos classificados...” e nº 1 do artigo 65º- ”Todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos”. É importante não esquecer que a ABPMF é uma associação sem fins lucrativos e que, como é natural, não dispõe de verbas vultosas. Ora, perante o solicitado, o que respondeu a Câmara já depois de ter terminado o prazo legalmente definido: a Associação teria de pagar uma verba de 4260 euros para receber a cópia do processo. Classificaremos esta atitude de uma “brincadeira” sem mais adjectivos, para não se ir mais longe e chamar-lhe outra coisa. É por demais evidente que se procura por este meio impedir o conhecimento em pormenor do próprio processo.

10- Conclusão A ABPMF, sendo uma associação com plena personalidade jurídica, procurou desempenhar a função de defesa do património cultural do Concelho do Barreiro, que está expressa nos seus estatutos, mas encontrou sérias dificuldades em obter a informação cabal daquilo que se passa em relação ao Moinho Pequeno, assim como em desempenhar o papel que a Lei de Bases do Património Cultural lhe atribui. A forma como o Moinho de Maré Pequeno foi arrasado, a ausência de consulta pública e de uma simples informação à população, a que se junta a falta evidente de perspectivas sólidas para a evolução futura, mostra claramente que o património cultural riquíssimo do Concelho está em risco de delapidação. O seu importante papel como um dos factores para o desenvolvimento cultural e económico através do turismo, estará seriamente posto em causa se o processo, agora seguido, se mantiver. De facto, o que esta situação mostra é que o Concelho não é defendido mas atacado, visto que aqueles que deveriam defender o património cultural, afinal são aqueles que mais rapidamente o destróiem. Apesar de tudo, esta Associação faz um apelo para que não se repitam situações como esta que se está a viver, alterando atitudes e procedimentos, e promovendo o respeito integral daquilo que está legalmente estatuido. A Lei de Bases do Património Cultural, assim como a demais legislação, deve ser rigorosamente respeitada, com a finalidade de promover uma participação e colaboração intensas entre a Administração e os interessados civis, dando cabal cumprimento àquilo que está estabelecido no ponto 4, do artigo 10º desta Lei:”As estruturas associativas de defesa do património cultural gozam do direito de participação, informação e acção popular, nos termos da Lei...” Associação Barreiro – Património, Memória e Futuro FUNDiÇÃO 15


Património Corticeiro - Seixal

A indústria corticeira no concelho do Seixal – história de uma das mais fortes comunidades corticeiras do país

A

indústria corticeira – principalmente no que se refere à indústria de transformação de cortiça – desenvolveu-se em Portugal, em regiões próximas das áreas de produção de matéria-prima, sobretudo no sul do país, mas também junto do seu principal porto de exportação: Lisboa e zona de estuário do rio Tejo. A partir de finais do século XIX, assinala-se a presença de um importante polo da indústria corticeira no distrito de Lisboa2 que, à época, integrava também os concelhos ribeirinhos da margem sul do estuário do rio Tejo. Com grande disponibilidade de mão-de-obra e numa posição de fácil acesso às zonas de produção de cortiça e de relativa proximidade às instalações portuárias da capital, os concelhos da margem sul do Tejo, nomeadamente Almada, Seixal, Barreiro e Montijo, foram territórios de atração de uma indústria corticeira emergente. No município do Seixal, a indústria corticeira remonta a 1897, surgindo pela mão da empresa Serrão, Street & C.ª, que instala uma pequena fábrica na Quinta da Barroca, freguesia de Amora, a uns escassos três quilómetros por via fluvial da Estação do Caminho de Ferro Sul e Sueste, no Barreiro. De vida efémera, esta unidade fabril de preparação de cortiça foi totalmente destruída por um incêndio no ano seguinte. Em 1904, encontrava-se instalada na Barroca, a fábrica de Salvador Antão3. Durante este breve período, a classe corticeira fez-se representar entre os elementos fundadores da Sociedade Cooperativa de Consumo Operária Amorense, Lda., constituída a 16 de julho de 1897. A partir do início do séc. XX, grandes unidades industriais corticeiras fundadas com capitais estrangeiros – as empresas L. Mundet & Sons, Inc. em 19054 , a C.G. Wicander por volta de 1912 e Produtos Corticeiros Portugueses, Lda. em 1935 – marcaram forte presença no tecido industrial do concelho, empregando largas centenas de operários. Da emergência da indústria corticeira no concelho do Seixal à fundação da Associação de Classe dos Operá-

Fátima Afonso1 rios Corticeiros do Seixal (1921) Podemos considerar que o período de instalação da indústria corticeira no concelho do Seixal teve como marco principal o estabelecimento da L. Mundet & Sons, Inc. na Quinta dos Franceses, no Seixal, em 1905.

Durante o período que vai da instalação da Mundet até à constituição da associação de classe no concelho, em 1921, estabeleceram-se no município empresas de preparação e de transformação de cortiça, cujas instalações fabris ocuparam antigas quintas junto às principais povoações e em plena articulação fluvial com o porto de Lisboa, aspeto que constituía uma mais-valia numa indústria que se encontrava bastante dependente do mercado externo para o escoamento da sua produção: a L. Mundet & Sons, Inc. com fábricas no Seixal (1905) e em Amora (1917); a Arps & Cª; Lda. com sede em Odessa (que, à época, fazia parte do império russo); a E. Jeremias & Cª, Lda.5 ; e a C.G. Wicander (1912) – esta última acabou por assimilar as duas anteriores – na Quinta de D. Maria, no Seixal. Nesta fase de instalação, foi da maior importância a intervenção de grandes empresas estrangeiras (especialmente de origem alemã, sueca e espanhola6) detentoras de capitais e conhecimentos tecnológicos na área da transformação da cortiça. Em 1906, o jornal O Mundo caracterizava a fábrica da Mundet como um estabelecimento de produção de rolhas e preparação de cortiça em bruto para exportação, empregando um elevado número de mulheres

Técnica Superior de História da Câmara Municipal do Seixal, na Divisão de Cultura e Património / Ecomuseu Municipal do Seixal. Esta concentração de operariado corticeiro terá estado na origem da primeira associação de classe em 1886, a Associação dos Operários da Indústria Rolheira do Poço do Bispo, com sede na Rua Direita de Marvila, n.º 798, em Lisboa. 3 A partir do último decénio do séc. XIX, Salvador Antão fora proprietário de uma unidade industrial corticeira, sita na Rua Direita do Caramujo, em Almada, a qual sofrera um devastador incêndio em 1902, resultando na perda total da fábrica. Cf. O Puritano. Almada: [s.n.], Ano 14, n.º 1284, 23.03.1902, p.2. 4 A partir de 1922, a empresa adquire jurisdição portuguesa, passando a designar-se Mundet & C.ª, Lda. 5 Com a entrada de Portugal na Grande Guerra, em 1916, Ernest Jeremias, súbdito alemão e proprietário de fábrica de cortiça instalada na Quinta de D. Maria – Seixal, empregando cerca de 50 operários e chegando a atingir uma certa importância a nível concelhio, viu-se obrigado a sair do país e a encerrar a fábrica. 6 No âmbito da instalação da fábrica da Mundet, no Seixal, é de salientar a importância dos mestres catalães – conhecedores dos processos de fabrico mais aperfeiçoados – na transmissão ao operariado corticeiro recém-constituído do saber-fazer inerente à laboração e à transformação industrial da cortiça. 1

2

FUNDiÇÃO 16


Património Corticeiro - Seixal e menores, praticando extensos horários de trabalho e baixos salários, situação que, de acordo com este periódico, requeria a criação de uma secção local de associação de classe que defendesse os interesses dos trabalhadores7 . No ano seguinte, os corticeiros do Seixal organizam-se numa secção, que integrou a Associação de Classe dos Operários Corticeiros do Barreiro (fundada em 1898)8. Em 1908, os corticeiros do Seixal e de Almada, solidarizaram-se com o movimento de protesto da fábrica de cortiça da firma Cardenas & Peix, sita no Poço do Bispo, em Lisboa, protestando contra a “prisão de cinco operários, há cerca de oitenta dias, sem culpa formada”9. A greve dos corticeiros de 1908, enquadrada num movimento geral daquela classe profissional, constituiu a primeira movimentação operária corticeira na antiga vila do Seixal. No ano seguinte, reclamando o aumento de salários e a legalização da entrada de menores na fábrica, cerca de 200 trabalhadores da Mundet entram pela primeira vez em greve10. Na sequência da greve, a fábrica interrompeu a sua laboração, só reiniciada após o despedimento dos três trabalhadores que terão liderado a organização do movimento associativo desta classe no concelho. Vivia-se então uma situação angustiosa na indústria rolheira. Anualmente eram exportadas grandes quantidades de cortiça em bruto ou em prancha, o que levava ao encerramento de estabelecimentos fabris, por falta de matéria-prima suficiente para a produção de rolhas de qualidade. Por outro lado, a introdução de máquinas corticeiras na indústria, deu origem ao despedimento do operariado masculino e à sua substituição por mão-de-obra feminina auferindo salários inferiores. Por outro lado ainda, os sucessivos governos tardavam a implementar medidas de proteção, que contribuíssem para o desenvolvimento da indústria corticeira nacional. Esta situação deu origem a diversos movimentos de protesto e greves que, em 1908 e 1909, abrangeram Lisboa e margem sul do estuário do Tejo, vindo a agudizar-se nas vésperas da implantação da República com a paralisação da indústria em setembro de 1910. Na sequência da organização do movimento operário, a classe corticeira local reorganiza-se e, nesse mesmo ano, constitui-se a Associação de Classe dos Operários Corticeiros do Seixal (filiada na Federação

Nacional Corticeira, fundada em 1909).

Durante a primeira guerra mundial e uma vez cessadas as relações comerciais com Alemanha e com a Rússia, as indústrias corticeiras rolheiras que tinham orientado a sua produção para o mercado europeu sofreram uma vertiginosa descida da exportação. Pelo contrário, as empresas corticeiras que conseguiram diversificar a sua produção e canalizá-la para os mercados dos Estados Unidos da América (país que apenas intervém no conflito mundial a partir de 1917), estavam a ser melhor sucedidas nos seus negócios.11 Tal foi o caso da Mundet que continuou a garantir o sucesso da comercialização de quantidades significativas quer de matéria-prima preparada (assegurando o fornecimento de cortiça em quantidade bastante para satisfazer as necessidades de laboração das fábricas transformadoras que o início do séc. XX, detinha nos Estados Unidos da América e no México), quer de produtos manufaturados, conseguindo assim manter a sua rede de agentes e de clientes. Com o conflito mundial a decorrer, a empresa introduz uma nova secção na fábrica do Seixal – a oficina do papel de cortiça para revestimento de filtros de cigarros (1915) – e instala-se uma segunda unidade industrial na freguesia de Amora, concelho do Seixal (1917), para produção de discos e rolhas. O número total de trabalhadores da empresa aumenta progressivamente: em 1913 a empresa contava com cerca de 430 operários, em 1916 o seu número ascende a 600 e em 1924 contabiliza já 669 trabalhadores 12. A organização da classe corticeira do concelho experimentou durante todo este período um funciona-

Cf. O Mundo. Lisboa: Manuel Gonçalves, Ano 7, n.º 2169, 27.09.1906, p. 2. Cf. Vanguarda. Lisboa: Elydio Analide da Costa, Ano 10, n.º 3647, 2.01.1907, p. 3. 9 Cf. A Lucta. Lisboa: [s.n.], Ano 3, n.º 952, 17.08.1908, p.2. 10 Cf. O Corticeiro. Lisboa: J. Tavares, Ano 1, n.º 6, 12.06.1909, p. 1. 11 Cf. Francisco de Noronha - “Indústria corticeira”. O trabalho. Setúbal: J. S. Nunes, Ano 2, n.º 683, 4.07.1915, p. 1. 12 A este respeito, vd. Fernanda Ferreira – “Trabalhadores da Mundet: fontes de estudo sobre o universo do trabalho e do saber corticeiros”. In Cortiça, património industrial e museologia [Documento electrónico]. Seixal : Câmara Municipal do Seixal, Ecomuseu Municipal, 2003. ISBN 972-8740-10-7. 7

8

FUNDiÇÃO 17


Património Corticeiro- Seixal mento errático, manifestando-se em fases de protesto operário, para esmorecer de seguida. Em 1921 é refundada a Associação de Classe dos Operários Corticeiros do Seixal. Marco fundamental na construção de identidade profissional, a associação irá desenvolver um trabalho continuado em prol da defesa dos interesses dos trabalhadores corticeiros do concelho.

Uma das empresas mais consideradas no meio industrial e exportador, a firma Produtos Corticeiros Portugueses, Lda., encontrava-se associada à Crown Cork and Seal Corporation, de Baltimore – Estados Unidos da América, empresa pioneira no fabrico de cápsulas coroa. Mercê de uma alteração de estratégia empresarial que levou à deslocalização daquela unidade indusDe 1930 a 1950: os anos do desenvolvimento e da trial para a capital em 1947, seis anos mais tarde a consolidação da indústria corticeira no concelho do firma Queimado & Pampolim, Lda.13, por permuta de Seixal quota que possuía na referida sociedade, adquiriu a fábrica da Amora e suas dependências. Fundada pelo sueco Karl Gustaf Wicander, a empresa C. G. Wicander instala-se na antiga vila do Seixal em 1912. Os anos 20 do século XX foram de grande prosperidade e expansão da firma, com fábricas no Seixal, Sines, Ourique (com fábrica em Garvão), Vendas Novas e Algeciras (Espanha). Em 1941, esta empresa constituiu sociedade com a Aktiebolaget Wicanders Korkfabriker de Estocolmo (Suécia), alterando a razão social para C.G. Wicander, Lda. Durante os anos 40, a Wicander orienta a sua produção para a transformação industrial de cortiça aglomerada. Na década seguinte, viu as suas fábricas confinadas ao Seixal e Vendas Novas.

Nas décadas de 30 e 40, do século XX, assistiu-se à afirmação do concelho do Seixal no âmbito da industrialização transformadora corticeira no distrito de Setúbal. Em 1935 é fundada pelo industrial corticeiro Aureliano Solas Fonte, de nacionalidade espanhola, e por Melchior Marsá Borrás, de nacionalidade norte-americana, a sociedade Produtos Corticeiros Portugueses, Lda. A empresa adquiriu as instalações fabris da antiga Companhia das Fábricas de Garrafas na Quinta das Lobatas, Amora (encerrada apenas alguns anos antes), reconvertendo-as para a indústria corticeira Em 1938 a fábrica empregava apenas 63 trabalhadores, mas em 1940 o número subia para 229 e na década seguinte contava já com 396 operários.

Empresa de concentração vertical, com várias fábricas em Portugal e no estrangeiro, exportando quantidades significativas de uma gama variada de produtos em cortiça natural e aglomerada14 para todos os continentes, a Mundet & Cª, Lda. foi reconhecidamente uma das maiores empresas do sector corticeiro na margem sul e, durante muitos anos, no país e a nível mundial. De acordo com informações da secção de embarques da empresa, em 1944 a participação da empresa foi de 22,3% no total da exportação nacional de rolhas. Por esta altura, a Mundet empre-

Fundada em 1941 por José Ferreira Queimado e Romérito Rodrigues Pampolim, a sociedade foi alargada em 1948 com a entrada do sócio Manuel da Luz Afonso, constituindo ao mesmo tempo sociedade com a firma M.F. Afonso, Lda. com fábrica no Montijo. 14 Os sectores de produção da indústria de cortiça aglomerada (trituração, granulados e produção de aglomerados para isolamentos, pavimentos e decorativos) foram centralizados na fábrica Mundet, no Montijo, instalada em 1921. 13

FUNDiÇÃO 18


Património Corticeiro - Seixal gava 2269 trabalhadores nas suas fábricas instaladas no concelho do Seixal, representando um elevado número de famílias residentes no município cuja subsistência dependia da exploração da cortiça. A publicação do decreto-lei n.º 23 050, de setembro de 1933, impôs os sindicatos nacionais, sob tutela do Estado, despoletando várias manifestações contra a deterioração das condições de vida, de trabalho e por descontentamento com o regime fascista. Este movimento envolveu, na margem sul do Tejo a ocorrência de várias greves, com maior expressão nos concelhos de Almada, Barreiro e Setúbal. Recusando integrar-se no quadro corporativo, em 1934 a sede da Associação de Classe dos Operários Corticeiros do Seixal, sita na Rua Miguel Bombarda, em Seixal, foi ocupada pela polícia e os seus haveres apreendidos. Suprimida a associação local da classe corticeira, só decorridos cinco anos o regime conseguirá impor uma nova estrutura de organização profissional corporativa – o Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros do Distrito de Setúbal, com sede no Seixal15. Durante a II Guerra Mundial, em 1943, inserido num movimento de protesto laboral e de resistência operária mais amplo e na sequência de greve de braços caídos, foi ordenado o encerramento das fábricas corticeiras do concelho por tempo indeterminado. Este protesto mobilizou cerca de 3455 trabalhadores da indústria corticeira do concelho, coletivamente despedidos devido à paralisação do trabalho. Nesse mesmo ano, o distrito de Setúbal acolhia 36% das fábricas de cortiça do país e empregava 48,8% dos operários do sector16. Apesar de existir uma população operária heterogénea em termos socioprofissio-

maior expressão no município. No período entre 1940 e 1960, sobretudo devido ao desenvolvimento dos meios de transporte, alguns dos fatores de localização industrial corticeira foram perdendo lentamente a relevância que tinham assumido nas primeiras décadas de instalação da indústria no concelho, assistindo-se a uma fase marcada pela instalação de unidades de pequena dimensão que, dissociadas do rio, se instalaram junto aos novos troços rodoviários, no interior do território concelhio. O contexto de crise corticeira e a consequente desindustrialização

Ao longo da última centúria, laboraram 38 unidades industriais corticeiras no concelho do Seixal17, integrando os sectores de preparação e transformação da indústria corticeira, incluindo aglomerados e decorativos, e abrangendo desde o trabalho domiciliário e familiar à grande indústria corticeira. Nas décadas de 50 e 60 do século XX, a indústria corticeira nacional debateu-se com dificuldades de vária ordem, às quais não terão sido alheias a redução do volume de exportação de rolhas e discos de cortiça natural quer pela gradual substituição desses produtos por vedantes plásticos e outros sucedâneos, quer pelo acondicionamento de bebidas em latas. A partir dos anos 60, verificou-se um acentuado decréscimo quer no que respeita ao estabelecimento de fábricas de cortiça no Seixal, quer no que se reporta ao número de trabalhadores empregados naquela indústria. Apesar de ainda na década de 70 se constatar uma forte presença industrial corticeira na antiga vila do Seixal e na Amora de Baixo, a partir do final do decénio seguinte a desindustrialização tornou-se irremediável. Com a desindustrialização e a diminuição acentuada de trabalhadores da indústria corticeira no concelho, deu-se o encerramento da secção do Seixal do Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros do Distrito de Setúbal. A importância que a indústria corticeira assumiu no desenvolvimento económico, político e sociocultural do concelho do Seixal ao longo do século XX, e as repercussões que teve nos quotidianos das famílias locais durante esse período, estiveram na origem de uma das mais fortes comunidades corticeiras do país, nais no concelho do Seixal, os corticeiros constituíam, constituindo atualmente importantes referências no início dos anos 40, o grupo socioprofissional com culturais e identitárias para o município.

Cf. Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência. Ano 6, n.º 4, 28.02.1939, p. 99. Síntese de dados recolhidos em Hernâni de Barros Bernardo – “Localização da Indústria Corticeira em Portugal – questões geográficas I”. Separata da Revista Indústria Portuguesa. Ano 18, n.º 213, nov. 1945 e em Boletins da Junta Nacional de Cortiça. 17 A este respeito, vd. Fátima Afonso – “Levantamento e identificação de unidades industriais da cortiça no concelho do Seixal - dados para a história da indústria corticeira na margem sul do estuário do Tejo”. In Cortiça, património industrial e museologia [Documento electrónico]. Seixal : Câmara Municipal do Seixal, Ecomuseu Municipal, 2003. ISBN 972-8740-10-7. 15

16

FUNDiÇÃO 19


Património Cultural - Barreiro

O Património Cultural e o Turismo A. Melo de Carvalho

1- A incompreensão do valor do património cultural

o seu valor cultural, identitário e turístico, são acusados de estarem voltados para o passado e de se oporem à diA consciência do valor ímpar do património cultural do nâmica renovadora da cidade em termos da sua moderBarreiro tem crescido lentamente entre a população. Con- nização. tudo, para muitos habitantes do Concelho, as várias ruinas dos moinhos de vento e de maré, assim como os dois Alguns destes sítios foram adquiridos nos últimos anos Complexos Industriais, o ferroviário e o da CUF são olha- pela Câmara Municipal, que teve de vencer fortes obstádos, no primeiro caso, como um amontoado de tijolos e culos. Contudo, na sua maioria, continuam na posse de pedras que deviam ser limpos rapidamente para dar lugar entidades públicas e privadas. Ora, os seus interesses esa novas construções de traça moderna; no segundo caso, tão essencialmente voltados para a sua rentabilização a as estações de comboio ainda existentes que consegui- prazo, em termos urbanísticos, ou então promovendo-se ram escapar à destruição consumada há anos, são olha- a sua destruição por serem estruturas obsoletas que dedas como locais obsoletos que deveriam ser eliminados, vem desaparecer. Nenhuma destas entidades manifestou ou serem utilizadas como hotéis ou similares. As antigas qualquer preocupação com a manutenção destas estrutuoficinas deveriam ter um destino idêntico ao das estações, ras, deixando-as praticamente ao abandono durante anos devendo ser substituídas por espaços verdes e novas ur- e anos, o que demonstra claramente qual o futuro que banizações. Quanto à Quinta do Braamcamp, o que corre lhes estava reservado. com insistência, é que dará lugar a uma espécie de feira popular. Coisa que parece ser do agrado de muitos bar- Esta situação, não sendo essencialmente diferente da do reirenses. É claro que existem ainda outros importantes resto do país, assume, contudo, uma enorme gravidade exemplares patrimoniais, como por ex. a Real Fábrica do no Barreiro, devido ao facto verdadeiramente excepcional Vidro, os Fornos de Cal, os Fornos Cerâmicos da Mata da de o Concelho possuir uma história de singular riqueza, com um património arqueológico único no País, que pode Machada, algumas igrejas, etc. ser colocado ao serviço do desenvolvimento local, se a Seja qual for o edifício, o sítio ou o complexo, a visão do- sua recuperação for correctamente concebida e concretiminante considera-os como coisas antigas, sem interesse zada. Porém, as diferentes entidades públicas e privadas no presente e que, por isso, deveriam dar lugar a um vasto têm recusado sistematicamente reconhecer esta situação processo de modernização do Concelho. De acordo com que, a não ser profundamente revista no sentido de alteesta perspectiva, a modernização passa, antes de tudo, rarem a sua atitude, constituirá um enorme prejuízo para pela destruição dos velhos edifícios ou, no melhor dos o desenvolvimento da comunidade barreirense. casos, pela reconversão de alguns deles com novas funções, em que predomina o exemplo daquilo que se tem Tentemos lançar algumas pistas que tornem mais claro o estado a passar em Lisboa com o aparecimento de novos que se afirma. hotéis e apartamentos de luxo, para venda a estrangeiros 2-O valor do património cultural como testemunho endinheirados. Por outro lado, aqueles que defendem a perspectiva da recuperação de, pelo menos, alguns des- de vida tes locais com as suas funções originais, visando manter O que está em causa é, simultaneamente o valor e a imFUNDiÇÃO 20


Património Cutural - Barreiro portância deste vasto conjunto patrimonial. O seu valor está, antes de tudo, pelo facto de que todos estes elementos transportam em si mesmos o testemunho de uma vida expressa ao longo mais de cinco séculos. Um valor carregado de significado histórico-social e cultural, referido a diferentes momentos da história de Portugal, todos eles marcados por uma enorme relevância. O momento da expansão portuguesa, a partir do século quinze, o da proto-indústria e o da primeira revolução industrial, são testemunhados pelo Complexo Real de Vale de Zebro, pelos complexos formados por cada moinho de maré no Barreiro, de que houve aqui a maior concentração do Estuário do Tejo, deste tipo de engenhos; pelos moinhos de vento de nova tecnologia como o moinho Gigante de Alburrica, único no País; pela Real Fábrica de Vidro e Cristalinos de Coina, por onde passaram todas as mais importantes experiências vidreiras da Europa; pela história da cortiça e pelos Complexos Industriais dos Caminhos-de-ferro e da CUF.

que esta última perspectiva promete, pondo em causa os valores mais profundos da história do Concelho e consequentemente da sua identidade, é indispensável tomar plena consciência dos perigos que encerra este “novo riquismo”, autenticamente predador. Podemos ver, com plena clareza, o resultado deste último tipo de actuação, quando se toma em consideração aquilo que se passa com a chamada “recuperação” do Moinho de Maré Pequeno. Conhece-se bem a estrutura do antigo edifício que deveria ser, realmente recuperada, por ser a única que é, de facto, reconhecida. Todavia, em seu lugar deseja-se construir um outro edifício com uma estrutura arquitectónica completamente diferente, argumentando que são os novos tempos que impõem uma modernização do antigo moinho. Para além disso, e não menos grave, a função do moinho não é respeitada de modo algum. Em termos de património cultural estamos na presença de algo absolutamente inaceitável, na medida em que o seu valor como testemunho de vida e de trabalho dos nossos antepassados é completamente desrespeitado. Em seu lugar Este valor tem passado despercebido quer aos detento- projecta-se a construção de um edifício completamente res públicos e privados, quer à própria população que, na descaracterizado e sem qualquer expressão arquitectónigeneralidade, desconhece a história do seu concelho. Os ca significativa. que criticam os ditos “ saudosistas” do passado, acusados de se oporem à modernização, e as críticas daqueles que, 3- A importância cultural e turística do património de facto, “passam por cima de toda a folha” em nome dos novos tempos, preocupados exclusivamente em transfor- O património cultural é constituído por aquilo que é marem rapidamente a cidade para se afirmarem politica- transmitido a uma comunidade pelos antepassados e as mente, muito pouco sabem desta história, mas também gerações precedentes, constituindo uma herança comum, nada estão interessados em conhecê-la. Para eles, esse que define uma identidade própria em termos históricos, reconhecimento representa unicamente uma complica- sociais e culturais. É um conjunto de bens, riquezas mação, porque exige estudo e reflexão, ponderação nas deci- teriais e imateriais, que pertencem a uma comunidade e sões e cuidado com os pormenores. De facto, na sôfrega constituem um legado que deve ser usufruído por todos. procura de um modernismo sem qualquer significado ou Trata-se de património arqueológico, artístico, religioso, valor arquitectónico, dão lugar à acção dos “patos bra- ambiental, industrial, etc., enfim, de tudo aquilo que tenvos” e a uma desqualificação que “manda para as urtigas” do origem no passado, de facto, determina em larga mediqualquer preocupação cultural. da a existência dos seres humanos no presente. Estamos perante aquilo que se pode nomear de um falso modernismo, cego pela mesquinha disputa partidarizada, que constituirá um tremendo erro de cálculo e atingirá no futuro a vida de toda a população e condenará o Barreiro a uma mediocridade sem redenção. Para salvar o Barreiro do autêntico vendaval destruidor

Na realidade, essa influência passa, normalmente, despercebida, pois raros são aqueles que procuram a origem e a razão de ser, dos hábitos estabelecidos dentro da comunidade, das crenças e das lendas, que tanto determinam a existência actual dos habitantes, das formas de proceder, de emitir opiniões e de avaliar comportamentos e formas

FUNDiÇÃO 21


Património Cultural - Barreiro

de sentir o que os rodeia. Evidentemente que tudo isto é directamente influenciado, no presente, pelas relações estabelecidas entre os seres humanos e pela acção muito incisiva dos modernos meios de comunicação. Mas essa acção exerce-se sobre aquilo que cada um de nós recebeu do passado. Está-se perante um processo verdadeiramente dialético, em que os dois aspectos exercem um efeito permanente de interacção mútua, dando origem a uma nova forma de sentir, compreender e actuar sobre a realidade. É esta característica que lhe fornece o seu valor cultural e determina a evolução permanente da humanidade, como no caso da língua pátria.

do turismo que, especialmente a partir da década de noventa do século passado, se foi diversificando em termos de interesses e motivações devido às novas facilidades de deslocação, criadas pelos modernos meios de locomoção. Uma delas, que está em afirmação crescente, diz respeito à fruição do património cultural.

É certo que o turismo, em termos estritos, começou a expressar-se muito antes, pois já no início do século dezanove surgiu a tradição entre os jovens aristocratas e da burguesia endinheirada, de realizarem uma viagem continental, em especial pela Itália, com o objectivo de conhecerem a arte, os monumentos históricos e as paisagens Os aspectos essenciais deste processo escapam à gran- deste país. Todavia, tratava-se de um número reduzido de maioria dos munícipes, preocupados de forma absor- de privilegiados que possuíam meios materiais para tal. vente com os problemas da sua existência e não possuin- É durante o século vinte, em especial depois da segunda do os instrumentos conceptuais indispensáveis para a Grande Guerra, que se estruturou uma indústria à escala compreensão exaustiva deste processo. Como se viu, os mundial, que respondia às necessidades de um vasto gruvestígios materiais que nos chegaram do passado, são po da população que procurava descobrir novos horizonfrequentemente desprezados, considerados como coisas tes, conhecer outros costumes e usufruir culturalmente sem préstimo. Mas, ao proceder-se deste modo, está a do património histórico de outras paragens. liquidar-se uma parte essencial daquele processo dialético, que fica singularmente empobrecido. Mas o turismo é um fenómeno dinâmico, que sofreu transformações marcantes ao longo do tempo. É assim A verdade é que em Portugal tem sido isto que tem acon- que, especialmente a partir da década de setenta, ele altecido, com uma frequência lamentável na sua história terou significativamente o seu significado, na medida em recente. Desta forma, esses vestígios, antigas estruturas que foi abandonando progressivamente o seu interesse materiais, espaços significativos em termos ambientais e meramente passivo da fruição dos locais, em especial das históricos, mas também as formas imateriais da existência praias ensoalheiradas e mares cálidos, para assumir um dos humanos, todos eles constituindo testemunhos que, carácter eminentemente activo de experiência cultural, pela sua presença real, marcam indelevelmente as gran- de conhecimento de outros povos e suas culturas, e mades fases da evolução dos povos, dos processos de traba- nifestações materiais, visando o enriquecimento cultural lho e da existência, têm sido destruídos, ou, na melhor individual. das hipóteses, abandonados e entregues à acção implacavelmente destruidora do tempo. Essa evolução autenticamente “explodiu” a partir do final da década de oitenta, devido às facilidades de mobilidade, Todavia, enquanto isto se passava entre nós, durante estes em especial com o avião, mas também com o automóvel últimos cerca de quarenta anos, emergiu um novo fenó- e o comboio, e à melhoria dos níveis de vida. No presente meno à escala mundial, assumindo progressivamente um calcula-se que mais de quinhentos milhões de humanos carácter marcadamente massivo: trata-se do fenómeno se deslocam todos os anos, do seu local de vida, para viFUNDiÇÃO 22


Património Cutural - Barreiro sitarem um sítio pelo menos durante dois dias. Contudo, convém referir que esta “explosão” não possui só aspectos positivos, pois durante os últimos quarenta anos não deixou de provocar prejuízos no património local de vários sítios, através do “turismo de massa”, ou seja, pela afluência de um número verdadeiramente extraordinário de pessoas a certos locais, ainda por cima possuindo um fraco valor de aquisição. Isto mostra que não é qualquer forma de turismo que interessa promover, especialmente quando se refere às suas características meramente recreativas e vazias de significado cultural. O que deve preocupar os promotores, é um turismo de cariz vincadamente cultural, capaz de fornecer um contributo económico sustentado, cujo benefício reverta a favor da população local e que não seja externalizado. Para além destas precauções, que constituem já, em si próprias, condições essenciais, é preciso compreender que o que é importante é manter a identidade própria dos sítios de uma forma extremamente rigorosa, pois, de outro modo, o património descaracteriza-se e deixa de possuir interesse para ser usufruído como manifestação de uma antiga forma de viver e trabalhar, ou de espiritualmente conceber a existência, ou folgar ludicamente durante o tempo livre. Qualquer acção que desnature, altere ou degrade, constitui uma perda irreparável, porque uma das coisas importantes que o turista procura é a autenticidade do local e a sua apresentação como modo de vida passada, processo de produção genuínos e credivelmente comprovados.

população tem tendência em não atribuir qualquer valor patrimonial a estas diferentes estruturas. Em segundo lugar, é indispensável defender, custe o que custar, estes locais da fúria destruidora dos interesses imobiliários e outros, que espreitam avidamente a mais pequena oportunidade de destruírem, sem qualquer hesitação ou prurido, tudo o que resta de um passado extremamente importante para o futuro do Concelho do Barreiro. Basta ver o que se passou com os dois antiquíssimos moinhos da Verderena e suas caldeiras, coisa a que ninguém hoje presta atenção em relação à sua completa destruição e substituição por uma moderna urbanização, para se entenderem os perigos que corre o vasto conjunto do património cultural do Concelho, se deixado sem vigilância e defesa activa.

O que é mais sério e importante no processo de requalificação deste património, e que representa uma importante responsabilização para quem decide politicamente, é a fundamentação histórica daquilo que se fará, e que só os especialistas estão em condições de esclarecer. Mas, um outro aspecto, verdadeiramente fundamental, consiste na definição do projecto global que deve orientar todo o processo de forma a definir objectivos genéricos e formas concretas de actuação, capazes de salvaguardar o que deve ser concretizado em relação a cada sítio de forma integrada. De facto, um dos possíveis erros, aliás cometidos com enorme frequência, consiste em pensar a requalificação de cada estrutura sem se possuir uma visão global daquilo que deve ser concretizado. A defesa dos possíveis benefícios turístico-económicos e culturais, impõem este 4- A riqueza patrimonial do Concelho do Barreiro processo de integração globalizante, pois um projecto de O Barreiro tem todas as condições para, num futuro pró- promoção turística realmente estruturado, exige uma viximo, estruturar um sítio capaz de obedecer a todas estas são totalizante a que deve estar submetida qualquer uma condições. Todavia, é de extrema importância tomar em das requalificações a empreender. consideração os seguintes aspectos: em primeiro lugar, o facto de a generalidade da população não identificar as Evidentemente que a Câmara Municipal não possui a cavárias ruínas existentes como valores históricos patrimo- pacidade financeira para a concretização de um tão vasto niais, potencialmente possuindo importância para o de- projecto, pelo que terá de recorrer a fundos estatais e cosenvolvimento do Concelho. O facto de todas as entida- munitários. Todavia, é indispensável que o faça com uma des públicas e privadas, que ainda são seus donos, ou o noção clara daquilo que está verdadeiramente em causa, foram até a uma data recente, nunca terem tomado em que não consiste unicamente em alindar a Cidade, mas consideração as suas obrigações de manutenção dos dife- em garantir uma séria melhoria da qualidade de vida da rentes sítios, como fiéis depositários de um vasto conjun- população, através dos benefícios económicos fornecidos to de bens, levou à sua degradação e, nalguns casos à sua por uma acção de promoção turística eficaz,e a fruição perda intencional. Habituada como está a esta situação, a cultural dos bens patrimoniais do Concelho por todos.

FUNDiÇÃO 23


Património Cultural - Barreiro

O Legado Árabe e Islâmico no Barreiro: os azulejos hispano-mouriscos de Santo António da Charneca Natália Maria Lopes Nunes

Como membro da Associação Barreiro – Património,

Memória e Futuro, e colaboradora da revista Fundição, irei apresentar, ao longo de alguns números da revista, o que sobreviveu do património de influência árabe e islâmica, no Barreiro. Contudo, devemos enquadrar este legado como uma “extensão” da cidade de Lisboa. Esta foi (e ainda é) uma cidade cosmopolita. Todavia, para esse cosmopolitismo contribuiu também a sua posição geográfica entre o rio Tejo e o mar, razão pela qual vários povos passaram por Lisboa (uma das cidades mais antigas da Europa), de entre eles, fenícios, celtas, gregos, cartagineses, romanos, vândalos e muçulmanos. Depois, com os Descobrimentos, a cidade continuou em expansão, sendo um local estratégico nas comunicações entre os restantes países da Europa, mas também com os de África, Ásia e América.

por exemplo, os ladrilhos vidrados na ilha de Creta. Os primeiros ladrilhos esmaltados foram fabricados na Síria, no vale do Tigre e do Eufrates e na Pérsia. O exemplar mais antigo de cerâmica aplicada à arquitectura foi encontrado no Antigo Próximo Oriente, no templo da deusa Inanna, em Uruk, em 1413 a.C. Os Assírios também trouxeram inovações, como por exemplo, o efeito esmaltado, mas o período neobabilónico trouxe ainda uma maior exuberância, sendo a famosa porta de Ishtar um exemplo (604-562 a.C.) dessa beleza arquitectónica.

A indústria cerâmica tornou-se bastante activa na Pérsia, sobretudo até ao século XIII, sendo esse produto também exportado para o al-Andalus e usado em paredes, cúpulas, pavimentos, exteriores e interiores dos templos e palácios, etc. Através das rotas caravaneiras, a técnica do barro vidrado chegara da Síria até ao Norte de África. Por exemplo, os ladrilhos Ora, é neste contexto que devemos enquadrar a ci- vieram de Bagdad, em 894, para o revestimento da dade do Barreiro e, para este número, seleccionámos mesquita de Kairouan, na Tunísia 2. É de salientar que, os azulejos do século XV-XVI que foram encontrados a partir do período Abássida em Bagdad, no século IX, em Santo António da Charneca, uma das freguesias surgem as cerâmicas coloridas e esmaltadas, embodo Barreiro. O vocábulo azulejo terá uma origem per- ra ainda não utilizassem o vidrado, pois esta técnica sa, com raiz na Mesopotâmia (região de muita argila apenas foi introduzida pelos mouros, a partir do sétrazida pelas cheias do Tigre e do Eufrates), derivado culo XIII-XIV, na Península Ibérica, sobretudo em Grado adjectivo azul, relacionado com o vocábulo lápis- nada. A técnica usada era a do alicatado. Mais tarde, -lazúli, usado pelos gregos e romanos, mas também a partir do século XV e XVI, surge o azulejo de corda pelos árabes, nomeadamente durante o califado de seca e de aresta, conhecidos por azulejos mudéjares Bagdad. Depois, a palavra evoluiu para zul, zulej que ou hispano-mouriscos. corresponde já ao objecto brilhante e luzídio e que, no Norte de África, evoluiu para zulij. Deste último, Quando Abderraman I chegou à Península Ibérica formou-se a palavra azzelij, pronunciada az´lij e que (desembarcou em 755 e no ano 756 tornou-se emir foi usada no al-Andalus, ou seja, durante a presença de Córdova), o azulejo era uma das mais importantes árabe e islâmica na Península Ibérica. No século XIII, representações da arte e da expansão muçulmanas. aparece o vocábulo definitivo, azulejo, uma placa de O gosto pela arte do azulejo tornou-se uma constancerâmica pintada e vidrada para revestir paredes. te e Sevilha foi um dos grandes centros de produção Historicamente, as peças mais antigas de cerâmica de construção são os revestimentos da pirâmide de Neter-Khet, em Abusir (Egipto)1 . Depois, a técnica passou a difundir-se para outras civilizações, como

desde o século XII3. Em 1491, um ano antes da conquista de Granada, os reis de Espanha permitiam a permanência de artífices de origem moura em Sevilha, onde se desenvolveu a arte azulejar em grande escala. Depois da conquista de Granada, os artífices

1 Cf. Encyclopedia Britannica, 14th Edition, S.V.“TILE“ in Santo Simões, João Miguel, Estudos de Azulejaria, Impresa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2001. 2 Cf. Encyclopedia Britannica, loc. Cit. , in Santos Simões, João Miguel, Estudos de Azulejaria, Impresa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2001. 3 Cf. Santos Simões, João Miguel, Estudos de Azulejaria, Impresa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2001.

FUNDiÇÃO 24


Património Cultural - Barreiro de origem moura continuaram a expandir a sua arte, tendo ainda recebido a influência da técnica gótica. Da técnica cerâmica gótica4 adoptaram os artífices mudéjares o processo da “corda seca” que consistia em separar os óxitonos metálicos por meio de incisões no barro ainda fresco as quais, após uma primeira cozedura, se enchiam com um induto oleoso de forma a isolar as áreas onde se aplicaram os vernizes das várias cores5.

uma nova urbanização, na zona a oeste dos muros da escola primária, estendendo-se um pouco mais até às proximidades da via rápida, foram encontrados vestígios de dois fornos de olaria e entulheiras. Estes fornos, tais como os da Mata da Machada, foram datados dos séculos XV-XVI. As argilas da região, que deram nome ao Barreiro, toponímia que deriva dos barreiros aí existentes e conhecidos desde o Período Neolítico, na Ponta da Passadeira, foram bastante utilizados no fabrico de cerâmicas. Neste caso conA primeira referência ao revestimento de alguns mo- creto, a maior parte das peças aí encontradas foram numentos com azulejos hispano-mouriscos em Por- produzidas a partir de um barreiro de amassadura tugal, data de 1503, oriundos de Sevilha. Até meados composto por arenitos. Relativamente às pastas e do século XVI, esta cidade foi a grande produtora de como nos refere Luís Barros, Luísa Batalha e outros azulejos com as antigas técnicas de corda seca e de arqueólogos: aresta. Mas as belas e exóticas construções árabes foram apreciadas também pelos cristãos os quais, São pastas bem compactas, sujeitas a boa cozedura, mesmo após a presença muçulmana, embelezaram daí a sua elevada dureza, ou nalguns casos de dureas suas construções com esse mundo artístico, como za média. Foliáceas, de grão médio, apresentam uma se pode comprovar com as intervenções artísticas paleta cromática na sua maioria de tons claros que introduzidas por D. Manuel no Palácio da Vila e no vão desde os rosados aos bege muito claro nas loiPalácio da Pena em Sintra. Para isso, contribuiu tam- ças de cerâmica vidrada, ou vermelhos e laranjas, no bém a viagem de D. Manuel (e de alguns nobres), em caso da cerâmica fosca7. 1498, a Espanha, sobretudo a Granada, Toledo e Saragoça, tendo visitado a monumental Alhambra. A Quanto às entulheiras, as cerâmicas eram de refugo, permanência de alguns nobres e artistas em Espanha, devido a alguns defeitos. No entanto, verificou-se onde contactaram com a arte azulejar, foi igualmen- que, para além de cerâmicas (tigelas, pratos, panelas, te importante para a arte azulejar portuguesa. Todos tachos, cântaros, bilhas, púcaros, testos, candeias, estes aspectos foram importantes para o mudejaris- formas de pão de açucar, placas de biscoito, etc.), os mo em Portugal, principalmente durante o período fornos produziam também materiais de construção tardo-gótico em Portugal. (telhas, tijolos e azulejos). É ainda de salientar que algumas das cerâmicas eram vidradas, técnica inicialO uso dos azulejos desenvolveu-se no al-Andalus so- mente desenvolvida na Península Ibérica pelos mubretudo nos séculos XIII e XIV, com grande intensida- çulmanos e que teve continuidade após a presença de de produção no século XV. No entanto, as primei- árabe e islâmica em Portugal. Como refere Cláudio ras referências escritas sobre os azulejos em Portugal Torres: datam do século XVI, nos forais manuelinos. Assim, a arte mudéjar esteve presente na corte portuguesa, É nos volumes, nas técnicas construtivas, nos comsendo o próprio rei D. Manuel um grande aprecia- plementos funcionais ou decorativos da arquitetura dor6. popular que mais profundamente ficou a memória da simbiose Andaluza. Sem ela, ficaria por explicar a É neste contexto que se inserem os azulejos encon- explosão quinhentista da decoração Mudéjar, da arte trados em Santo António da Charneca, no Barreiro. Manuelina e do criativo Gótico Alentejano, onde se Em 1997, aquando da preparação das estruturas para combinam harmoniosamente, arrojadas técnicas de Cf. Celestino L. Martinez, “Mudéjares y Moiriscos Sevillanos”, Sevilha, 1935 in Santos Simões, João Miguel, Estudos de Azulejaria, Impresa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2001. 5 Santos Simões, João Miguel, op. cit., p. 20. 6 Cf. Pedro Dias, “A Viagem de D. Manuel a Espanha e o surto mudéjar na arquitectura portuguesa” in Relaciones Artisticas entre Portugal e España, Junta de Castilla y Leon, Consejeria de Educación e Cultura, 1986. 7 Luís Barros, Luísa Batalha et alii, “A olaria renascentista de Santo António da Charneca, Barreiro: a louça doméstica”, in André Teixeira, José António Bettencour (coord.), Velhos e Novos Mundos. Estudos de Arqueologia Moderna Old and New Worlds. Studies on Early Modern Archaeology, vol. 2, col. «ArqueoArte, n. 1», Centro de História de Além-Mar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, Universidade dos Açores, 2012, p. 699-710 ou 361-372, p. 364. 4

FUNDiÇÃO 25


Património Cultural - Barreiro abobadagem e delicado molduramento com o sábio revestimento policromo do azulejo8. As técnicas islâmicas influenciaram as técnicas cristãs, daí a denominação de azulejos hispano-mouriscos. Segundo o estudo realizado por Ana Sofia Leal, Luís C. Alves e outros investigadores, estes referem o seguinte:

nífero opaco do século X ao século XIV, cuja composição em SnO2 varia entre 5 e 15 %, consoante a época e região [34]9.

Em conclusão, os azulejos encontrados em Santo António da Charneca demonstram a importância da actividade oleira no Barreiro com a introdução de novas técnicas oriundas de Sevilha. Neste sentido, todo este pequeno espólio e vestígios contribuíram para No estudo de dois azulejos de Santo António da a sobrevivência de um saber ancestral muito desenCharneca (SAC), verificou-se que o vidrado estanífero volvido pelos árabes, mais tarde pelos mouriscos e, branco apresenta teores de 8 % num azulejo e 18 % posteriormente, pelos cristãos herdeiros das técninoutro [31]. Os valores encontrados estão também cas azulejares desenvolvidas no al-Andalus. Assim, o de acordo com os teores de SnO2 observados em ce- azulejo tornou-se uma das mais importantes expresrâmicas islâmicas e hispano-mouriscas das regiões de sões da arte e da cultura em Portugal, tendo contriMúrcia e Paterna (Espanha) [32-33]. Outros autores buído para a universalidade da cultura portuguesa, estabelecem uma comparação entre vários centros com destaque para o Barreiro como grande centro de produção de Espanha, com peças de vidrado esta- oleiro próximo de Lisboa.

Cf. Cláudio Torres, “O Islão do Ocidente: Fenómenos de permanência e descontinuidade” in Portugal Islâmico - Os últimos sinais do Mediterrâneo, Cláudio Torres e Santiago Macias, Ministério da Cultura, 1998. 9 “Caracterização química, física e mineralógica da colecção de azulejos hispano-mouriscos do Museu de Lisboa - Teatro Romano”, Ana Sofia Leal, Luís C. Alves et alii., Conservar Património xx (xxxx) 1-15 |https://doi.org/10.14568/cp2017011 ARP - Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal http://revista.arp.org.pt, p. 7. 8

Foto: Azulejos e outras peças de cerâmica provenientes dos fornos escavados em 1997, em Santo António da Charneca, Barreiro FUNDiÇÃO 26


Património Cultural - Barreiro

Ditos, Frases, Filosofias de Vida Henrique Correia dos Santos • À beira de um precipício só há uma maneira de andar para a frente … é dar um passo atrás. • Eu cavo, tu cavas, ele cava, nós cavamos, vós cavais, eles cavam … não é bonito mas é profundo. • Errar é humano … colocar a culpa em alguém, então nem se fala. • Nunca desista de um sonho … se não encontrar numa pastelaria, procure na próxima. • O mais nobre de todos os cachorros é o cachorro quente … alimenta quem o morde. • Roubar as ideias de uma pessoa é plágio … roubar de várias é pesquisa. • Na vida tudo é relativo … um fio de cabelo na cabeça é pouco, mas na sopa é muito. • Se tiver de casar, case com uma mulher baixa … dos males, o menor. • Às vezes é melhor ficar calado e deixar que pensem que você é um idiota … do que abrir a boca e não deixar dúvida nenhuma. • O trabalho em equipa é fundamental … permite-lhe colocar as culpas nos outros. • Quem cedo madruga … encontra tudo fechado. • Mais vale prevenir … que amamentar. • A vida não é justa … mas é boa mesmo assim. • A vida é demasiado curta para perderes o teu tempo a detestar quem quer que seja • Chora com alguém … é melhor que chorar sozinho. • Faz as pazes com o teu passado … de modo a não complicares o teu presente. • Não compares a tua vida com a dos outros … não fazes ideia de qual é o caminho deles. • Ninguém é responsável pela tua felicidade senão tu. • O que conta verdadeiramente no fim é que tenhas amado. • A vida não está decorada com uma fita … ainda assim é um presente. • O silêncio é a única coisa de ouro que as mulheres detestam. • O primeiro erro em política é entrar nela. • Mais vale ir com a cabeça baixa … do que com os pés para a frente. • Querer modificar o homem … é como endireitar a sombra de uma vara torta. • O dever é aquilo que se espera dos outros. • Antes de falares uma vez … pensa duas. • Na literatura corrigem-se as provas … na vida são as provas que nos corrigem. • As palavras são como as flechas … uma vez lançadas não voltam atrás. • Evita falar de ti próprio … quando virares as costas os outros encarregar-se-ão de o fazer. • Três pessoas podem guardar um segredo … se duas delas morrerem. • As pessoas dão pouca importância à vida … a prova é que quando a perdem não a reclamam. • Se não tens nada a esconder não o digas a ninguém … esse será o teu segredo. • Não devemos dizer que a revolução criou a igualdade … fez sim desaparecer o princípio monstruoso da desigualdade. • A Assembleia da República compreende os deputados eleitos pelo povo … que por sua vez se esforçam por compreender o que lhes dizemos. • Há tantas coisas na vida mais importantes que o dinheiro … mas custam um dinheirão. • Nenhum homem é suficientemente rico para comprar o seu passado. • O único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário. • Decidi ser feliz porque faz bem à saúde. FUNDiÇÃO 27


O DRAMA DO MOINHO DO BRAAMCAMP 1º Acto - o Moinho do Braamcamp trabalhou mais de quatrocentos anos. É um protagonista muito antigo da História do Barreiro. 2º Acto - o Moinho do Braamcamp é desactivado e passa para a posse de um banco. É completamente abandonado e cai em ruína. Responsável? Ninguém. 3º Acto - o Moinho do Braamcamp pega fogo e arde por completo. Culpado? Ninguém! 4º Acto - o Moinho do Braamcamp passa para a posse da CMB. É classificado como Património de Interesse Municipal. Epílogo: "consta" que vão "mexer" no Moinho do Braamcamp. O que se vai passar? Alguém sabe? Ninguém! Mas o Moinho é de todos. Todos deviam saber!


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.