Revista Fundição Nº 6

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FUNDiÇÃO

Nº 6 - Abril 2018 - ASSOCIAÇÃO BARREIRO PATRIMÓNIO MEMÓRIA E FUTURO

O Património Histórico do Barreiro que Futuro?

Dossier: Antiga Estação Barreiro - Mar


Índice

REVISTA FUNDiÇÃO Ficha tecnica BARREIRO

Edição Nº6 ABRIL 2018

Património Histórico do Barreiro que futuro? EDITORIAL.........................................................Pag. 3 CLASSIFICAR O PATRIMÓNIO, PRESERVAR A ALMA DA CIDADE .............................................................Pag. 4 CENTRO INTERPRETATIVO DO ESTUÁRIO DO TEJO ESTAÇÃO BARREIRO-MAR..............................Pag. 5 - 8 AS AUTOMOTORAS NOHAB, PATRIMÓNIO TÉCNICO DO BARREIRO.............................. Pag. 16 - 17 PATRIMÓNIO QUÍMICO-OPERÁRIO-INDUSTRIAL: QUE FUTURO?....................................................Pag. 19 - 21 O “MUSEU DA JUTA” NO PARQUE INDUSTRIAL DA QUIMIGAL..........................Pag. 17 -25

Editor ASSOCIAÇÃO BARREIRO PATRIMÓNIO MEMÓRIA E FUTURO

Contactos: Espaço L Rua José Gomes Ferreira Antiga Estação Ferroviaria do Lavradio abpmf.patrimonio@gmail.com http://associacaobarreiropatrimonio. wordpress.com

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A ESTAÇÃO BARREIRO-MAR E O COMPLEXO FERROVIÁRIO DO BARREIRO.......................Pag. 26 -30 CENTRO INTERPRETATIVO DA REAL FÁBRICA DE VIDROS DE COINA..........................................................Pag.31

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“FOZ DA SAUDADE: PROJECTO DE REABILITAÇÃO DA ESTAÇÃO BARREIRO-MAR ”..........................Pag. 9 - 15


Patrimonio Cultural - Barreiro EDITORIAL O Património Histórico do Barreiro que futuro?

No Ano em que se comemora o Ano europeu do património Cultural, o Barreiro e o seu património de génese industrial e cultural está numa situação calamitosa. Por um lado, é evidente o estado de abandono a que foi votado, por outro também é evidente a falta de perspectivas quanto ao seu futuro. O património ferroviário com a maior parte dos edifícios abandonados e em adiantada fase de deterioração, como é o caso da estação Barreiro - Mar, do armazém regional, do antigo edifício da região, do armazém de viveres, etc. Nesta situação inclui-se grande parte do património técnico ferroviário que se encontrava no Barreiro e que foi para a sucata. Também se integram aqui, os moinhos de maré do Barreiro, denominados de moinhos grande e pequeno, o moinho do Braamcamp e toda a quinta que ficou destruída com roubos, vandalismo e incêndios. Deste património restam ruínas. A política da terra queimada deu resultados! As ruínas da Real Fábrica de Vidros e Cristalinos de Coina em estado de absoluto abandono, apesar da Estação Arqueológica do Vidro de Coina ser, ainda hoje, considerada internacionalmente como uma das mais importantes da Europa. O património industrial químico sofreu também recentemente, um revês. Parte dos edifícios históricos, Posto Medico, escritórios, etc, foram derrubados para dar lugar a uma grande avenida, configurando uma perda irreparável da memória, do ambiente e da arquitectura industrial do Barreiro. Felizmente alguns passos foram dados, sobretudo com a intervenção dos cidadãos do Barreiro que se organizaram em movimentos cívicos e a Associações e que conseguiram que os patrimónios de arqueologia industrial Ferroviários e Químicos se encontrem em vias de classificação. Caso se concretize, a classificação vem alterar a capacidade construtiva no local, evitando-se a construção desenfreada e a especulação imobiliária. Nas páginas da revista "Fundição" são dadas ideias, soluções, sugestões e opiniões sobre a importância do nosso Parque Patrimonial de Arqueologia Industrial do Barreiro. Conscientes que nem todos estão de acordo com estas ideias, soluções, sugestões, queremos, no entanto deixar o contributo da Associação Barreiro Património Memória e Futuro para o futuro do concelho e do Povo do Barreiro, em respeito pela seu património e história que configuram a identidade. FUNDiÇÃO 3


Patrimonio Cultural - Barreiro CLASSIFICAR O PATRIMÓNIO, PRESERVAR A ALMA DA CIDADE

Esperámos cinco anos pela boa notícia, o Anúncio nº 22/2018, da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), publicado no Diário da República, 2ª série - N.º 30 -12 de Fevereiro de 2018 - de abertura do Procedimento de Classificação do Complexo Ferroviário do Barreiro.

Oficiais, não excluindo a iniciativa privada em áreas e para fins adequados.

A ABPMF defende as “Memórias Vivas”! O que ainda funciona deve continuar (Viabilidade e postos de trabalho nas Oficinas; Comboios no Barreiro-mar; Instalações indusUm pequeno passo para a preservação do riquíssimo pa- triais e comerciais tradicionais em zonas antigas; Progratrimónio ferroviário, um grande passo para a memória da mas para a fruição e usufruto do Património). vila-cidade operária e industrial, como fundamento da nossa identidade colectiva, inspiração para as perplexi- Para as grandes áreas já identificadas, é necessário a eladades do presente e para a construção de um futuro de boração de projectos integrados e participados, da resequânimidade. ponsabilidade das Autarquias (e a participação de organismos oficiais, associações e privados). Daqui para a frente, na vastíssima área patrimonial ferro-químico-industrial do Barreiro (o Processo de Classifi- Nomeadamente nas áreas ferroviárias da Estação Ferrocação do Património Químico-Industrial foi iniciado em -Fluvial, Oficinas, Bairro e Rotunda; também no conjunto 2017), nada poderá ser feito sem a autorização fundamen- de Moinhos de Vento e de Maré de Alburrica; na Quinta tada da DGPC e sem atender às razões do Movimento As- Braancamp e zona do Mexilhoeiro; nas grandes áreas e sociativo do Património, preocupado com a preservação, elementos em classificação do complexo químico-indusrecuperação, valorização e fruição organizada (incluindo trial da ex-CUF/Quimigal. o turismo vocacionado), naquele que é o maior Parque Patrimonial do País. O futuro do Parque Patrimonial deve integrar-se com as outras formas de desenvolvimento ordenado e harmonioCabe uma saudação a todos aqueles que contribuíram so da cidade, criando riqueza e equidade para os barreipara este sucesso pontual (em boa verdade a primeira renses. “démarche” data do ano 2000!), nomeadamente ao Movimento Cívico de Salvaguarda do Património Ferroviário do Todavia o progresso será contraditório com projectos meBarreiro, aos seus fundadores e activistas, que assim cum- galómanos e/ou unipolares (exemplos: Terminal de Conpriu o seu objectivo histórico e pode descansar em paz. tentores do Porto de Lisboa no Barreiro; Turismo massificado) que agridam a paisagem e o meio ambiente, ou Abre-se um mundo em relação ao Património de Arqueo- descaracterizem o nosso inestimável património material logia Industrial, numa perspectiva de autossustentabilida- e imaterial e arranquem a alma à cidade. de que obrigará sempre a uma gestão institucional, com a Barreiro, 9 de Março de 2018 participação das Autarquias, de Associações, de Entidades Associação Barreiro - Património Memória e Futuro

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Património Ferroviario - Barreiro CENTRO INTERPRETATIVO DO ESTUÁRIO DO TEJO ESTAÇÃO BARREIRO-MAR Carla Marina

A ÁREA METROPOLITANA É O ESTUÁRIO DO TEJO

A vida nos povoados ribeirinhos do estuário do Tejo esteve sempre muito ligada ao rio, quer pela actividade piscaNo Convento da Madre de Deus da Verderena realizou-se, tória, (lembramos que até 1907, segundo Claúdio Torres, em 2009, uma conferência sobre a história e património o estuário era um dos maiores reservatórios piscícolas do do Barreiro, na qual Claúdio Torres, conferencista, dizia mundo), quer ao comércio entre a margem sul e Lisboa, serem indissociáveis da nossa localização geográfica e do que desde muito cedo é a capital do reino, bem como à instalação de muitas indústrias. Estuário do Tejo. Dito de outra forma “...terra e rio vivem aqui em apertada simbiose e essa ligação explica grande parte da evolução histórica da região, florescente sempre que prevaleceram as tendências para uma vida económica pacífica e vocacionada para o comércio e o contacto com outras regiões, mais ou menos distantes.” (Paulo, Eulália e GuiAqui, tinham paragem obrigatória os navios que realiza- note, Paulo,pág.20 - “A Banda D`Além do Tejo Na História”, vam as rotas comerciais entre o norte e o sul da Euro- edição Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para pa, daqui partiram à descoberta de “novos mundos” os as Comemorações do Descobrimento Portugueses”,2000). nossos navegadores e marinheiros na larga Empresa da Expansão e, fruto desta, aqui se comerciavam produtos Esta importante história deveria estar acessível ao conhevindos de todos os continentes e se cruzavam gentes de cimento dos que habitam esta zona e de todos os turístas diversas culturas, com saberes também muito diversos e nacionais e estrangeiros que nos visitam e são cada vez mais, segundo as estatísticas, através de visitas organizaestadios de desenvolvimento muito diferentes. das a partir de um Centro Interpretativo do Estuário do Neste Mar da Palha se caldearam culturas, tecnologias Tejo. e técnicas que foram determinantes no surgimento e desenvolvimento dos vários povoados ribeirinhos e que Este deveria ser um espaço de apresentação glogal da hisderam origem à actual configuração económica, política, tória deste estuário desde a sua formação até aos nossos cultural do espaço que, hoje, se designa por Área Metro- dias, dos seus recursos naturais e ambientais, bem como das marcar deixadas pelo homem ao longo dos séculos politana de Lisboa. nos vários concelhos que formam, hoje, a Área MetropoA este Mar da Palha, que funcionou e funciona como um litana de Lisboa. pequeno Mar Mediterrânico, devemos grande parte da nossa história e identidade, sem ele não seriamos certa- Deste Centro Interpretativo do Estuário do Tejo, em embarcações típicas e outras de uso não só sazonal, saíriam mente os mesmos. passeios com experiências de visitação muito diversificaNesta sessão, a que assisti, afirmou o investigador que o Barreiro e toda a Área Metropolitana de Lisboa deve a sua história e desenvolvimento às sínteses culturais e tecnológicas que se foram operando ao longo dos séculos no estuário do Tejo.

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das, não faltam motivos para essa diversidade, desde pas- profissinal e pontuada por uma diversidade cultural, que seios ambientalistas, a passeios culturais sobre história e até ao século XIX se articula com os sectores primários. património visitável nos diferentes concelhos desta região, passando por degustações, concertos no Tejo.... Deste património de arqueologia industial salientamos: no século XIV o Complexo Oleiro da Mata da Machada, E não nos faltam vestígios para vários roteiros sobre os onde se moldavam as formas do biscoito e as formas do processos e lugares de industrialização manufatureira, pão-de-açucar, estas últimas eram fabricadas em série e proto-industrial e industrial, podemos começar no paleo- destinavam-se à exportação. Muito perto no Complexo lítico e terminar no século XX. Real de Vale de Zebro, era confeccionado o biscoito, alimento base das tripulações durante a Expansão, das arCriaríamos, desta forma, uma nova área de ofertas turís- madas reais e dos fortes de costa; ticas, que daría resposta a uma lacuna cultural na Área os moinhos de maré que, desde o século XIII, transformaMetropolitana, e dinamizaria economicamente a região, ram em farinha os grãos de cereais alimentando Lisboa, projectando-a nacional e internacionalmente. bem como a confecção do biscoito. É de salientar que, no braço do Coina do lado do Barreiro, encontramos a maior BARREIRO CENTRO DE ARQUEOLOGIA INDUSTRIAL- MA- concentração de moinhos de maré do Estuário do Tejo; NUFACTUREIRA, PROTO-INDUTRIAL E INDUSTRIAL a Ribeira das Naus do Coina, na Telha Velha, que, em complementaridade com a Ribeira da Naus, trabalhava O nosso Concelho pode contribuir muito significativa- na construção dos navios que serviram a Expansão Pormente para a instalação deste Centro Interpretativo do tuguesa, ou os vários estaleiros de construção naval que Estuário do Tejo, dado que o Barreiro é herdeiro de um surgiram ao longo da nossa história; precoce destino industrial fomentado pela sua localização a Real Fábrica de Vidros e Cristalinos de Coina, que, sécugeográfica no Estuário do Tejo e servido por importantes lo XVIII, fabricava diversos objectos em vidro, numa tecrecursos naturais: madeira, carvão, azougue, areias sílicas, nologia que nos tornará famosos na Marinha Grande sua sal, barro e os rios Tejo e Coina. herdeira directa, e cujo campo arqueológico, classificado, é hoje considerado um dos mais importantes da Europa Ao longo da história este território, através de unidades no que respeita à tecnologia do vidro; produtivas especializadas, ocupou posição de destaque a construção dos modernos moinhos de vento, na primeinos processos de desenvolvimento do País, com relevo ra metade do século XIX e o surto das moagens industriais para os períodos da Expansão e Industrialização. que representaram uma primeira ruptura com a paisagem rural; Nesta trajectória a organização industrial em complexo a inauguração da linha do Sul e Sueste, em 1859, e a consmerece destaque e reflexão: o Complexo Real de Vale do trução das Oficinas do Caminho-de-ferro dando início ao Zebro, os Complexos Moageiros, o Complexo do Caminho- grande Complexo Ferroviário que fez com que o Barreiro -de-ferro do Barreiro, o Complexo Industrial da CUF. fosse reconhecido internacionalmente. Os caminhos-de-ferro abriram as portas ao Barreiro contemporâneo e ao Os vestígios fabris provam a existência de uma linha dia- processo de industrialização português, no qual ocupou crónica na qual se desenha uma identidade marcada pelo lugar cimeiro. Neste processo destacamos três momento: trabalho, por uma cultura técnica ligada ao gesto diário e abertura da Linha do Sul e Sueste e das Oficinas, instalaFUNDiÇÃO 6


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ção da industria corticeira, destronando o grande centro corticeiro nacional que era Silves e a instalação de um dos maiores impérios industriais da Península Ibérica a Companhia União Fabril. Esta história única, que atravessa séculos e se encontra plasmada no património material existente, afirma-nos como protagonistas fundamentais do desenvolvimento do País e a abertura dos processos de classificação relativos ao património da CUF/Quimigal e dos Caminho-de-ferro confirmam-no.

Foi projectada pelo Engº Miguel Pais e tem uma presença notável do ponto de vista arquitectónico, numa simbiose perfeita entre arte e técnica, onde se destacam influências românticas do neo-manuelino nos elementos decorativos, bem como influências do estilo colonial inglês. A Estação Barreiro-Mar foi a primeira estação multimodal do País e a primeira a ser construída à beira do Estuário do Tejo. Mais tarde, do lado de Lisboa, surge a Estação Sul e Sueste. São as únicas estações com valor patrimonial no estuário e tiveram um destino comum, o de serem terminais da Linha do Sul e Sueste, uma no lado norte, outra no lado sul.

O que nos leva a afirmar ser natural, justo e proveitoso para a requalificação e desenvolvimento futuro do Barreiro e da Área Metropolitana a instalação do Centro In- Tudo o que ficou dito justifica cabalmente a escolha deste terpretativo do Estuário do Tejo na Estação Ferro-Fluvial edifício para instalar o Centro Interpretativo do Estuário Barreiro-Mar. do Tejo, contudo podemos explicitar mais alguns aspectos de relevante importância, tais como: a dimensão da estaESTAÇÃO BARREIRO-MAR CENTRO INTERPRETATIVO DO ção; a sua localização à beira-rio com dois cais de embarESTUÁRIO DO TEJO que, ainda hoje em bom estado de utilização; a existência de espaços que podem albergar valências de lazer e cultuA estação ferro-fluvial do Barreiro foi inaugurada a 4 de ra complementares; uma gare de generosas dimensões, Outubro de 1884 e veio facilitar o acesso entre o trans- hoje sem utilização, a possibilitar um pavilhão multiusos; porte ferrovário e o fluvial com destino a Lisboa. Foi cons- a paisagem sobre Alburrica, uma pérola ambiental e paitruída sobre um grande aterro feito no rio permitindo-lhe sagística no Estuário do Tejo.... ficar “à borda-d`àgua como convinha”, segundo um excerto do Diário de Notícias de Outubro de 1884. Ou, ainda, e não de menor importância porque tem a ver com a estratégia de revalorização da Área Metropolitana E continuando a citar a mesma fonte para melhor descri- de Lisboa, a tão difundida ideia de Lisboa cidade de duas ção, acrescento: “ É vasta, desafogada. Elegante e sólida, margens, como forma de revitalizar o lado norte e o lado assentada à beira-rio, sobre uma farta muralha posta em sul do estuário, o que pensamos que tem de ser um obfundamentos hidráulicos inabalaveis n`um leito de lodos jectivo realizável. profundos. Essa estação, que vai acabar com as antigas baldeações e acaba já com o trajecto incómodo e inse- Neste sentido, alguns passo já foram dados e entre estes guro em feias pontes de madeira, levando passageiros a destaco a decisão de recuperar e reutilizar turisticamente desembarcar directamente nos degraus do seu vasto e a Estação de Sul e Sueste, ao que acrescentaria e, porque extenso cais de cantaria, atraie de longe, pelo seu aspecto não recuperar e reutilizar, à luz desta mesma estratégia, geral e graciosas linhas arquitectónicas, a vista do viajante, as duas únicas estações com valor patrimonial arquitectóe dá um singular tom artístico ao Barreiro, e um aspecto nico e destino comum, contribuindo para a revitalização nobre e pitoresco ao formoso estuário azulado para onde simultânea das duas margens do estuário. olha a sua principal fachada. A vistosa e forte balastra de ferro que guarnece toda a cortina do cais da estação é Por outro lado a abertura do processo de classificação do uma espaçosa varanda sobre oTejo, que lhe rumoreja nos património Ferroviário do Barreiro por parte da Direcção alicerces.” Geral do Património Cultural, onde se integra a presevaFUNDiÇÃO 7


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ção desta estação é também uma afirmação do seu valor e dignidade para albergar um projecto desta natureza.

mitindo-nos o conhecimento de que estavamos desapossados, pondo fim à nossa alienação/afastamento.

REFLEXÕES SOBRE POSSÍVEIS VALÊNCIAS ITERPRETATI- A Estação Barreiro-Mar, pela sua importância patrimonial, VAS NA ESTAÇÃO BARREIRO-MAR arquitétónica e funcional, pela impressividade da sua traça e localização, pode ser esse lugar que, qual “pequena A Estação Barreiro-Mar foi, desde a sua inauguração e máquina do tempo”, nos torna possível ler o passado do por finalidade/localização objectivas, espaço de encontro Estuário do Tejo e nos acolhe e prepara para outras exentre a dois elementos primordiais da vida: a terra e a periências de leitura no Complexo Ferroviário, permintinàgua. Esta simbologia ajuda-nos a perceber o seu papel do-nos entender este passado. Em síntese o edifício devital no nascimento e desenvolvimento do Barreiro Con- veria ter a funcionar um Centro Interpretativo do Tejo e temporâneo, na aproximação entre o Sul e o Norte do País, um Centro de Acolhimento do Complexo Ferroviário e do na explosão de uma multiculturalidade que se constroí na Complexo GUF/Quimigal, ou sala do Parque Patrimonial procura do pão e de uma vida melhor na indústria que os de Arqueologia do Barreiro.” Caminhos-de-ferro atraem. Como Centro Interpretativo e de Conhecimento deve inDe facto a estação sempre foi simultaneamente lugar de teragir com os visitantes, explicar, ou seja oferecer uma chegada e de partida interface, ferro-fluvial, espaço de interpretação, experièncias e visitas, regular fluxos de viacolhimento e parece-me importante que a sua nova uti- sita, dispor de componentes científicas na área da inveslização conserve esta ideia que a define funcionalmente tigação. e historicamente. Segundo Marcelo Martin, arquitecto e gestor cultural, Pode vir a ser um espaço de acolhimento que inicie os responsável pelo Departamento de Comunicação do visitantes na descoberta do Complexo Ferroviário no qual Instituto Andaluz do Património Histórico, o desafio que se integra e com o qual deverá manter uma relação, mas enfrentamos “é o de manter o conhecimento sobre o patambém um espaço de conhecimento do Estuário do Tejo. trimónio em permanente actualização ideológica, na qual prevalecem os valores humanistas, o compromisso com A crescente importância do turismo cultural e dos bens o desenvolvimento que não ponha em perigo a nossa culturais, uma maior consciência de que o património é herança cultural e que as actividades em torno do patrium recurso do desenvolvimento, a necessidade de refor- mónio sejam um factor de mais desenvolvimento social çar as identidades que dão corpo à possibilidade de to- e económico.”Pelo que segundo o mesmo autor é necesdos nos situarmos no espaço e no tempo e desta forma sária uma “divulgação como gestão cultural mediadora estarmos mais aptos a compreender o mundo que nos entre o património e a sociedade. “ e é nesta perspectiva cerca e a melhor contribuir de forma esclarecida e activa que vejo a reutilização do edifício. nos processos de transformação que se desejam sempre humanizadores, implicam novas formas de articulação e Na Estação Barreiro-Mar além destes dois Centros e rescontratualização entre diferentes actores de modo a en- pectivos gabinetes de investigação, deve existir: uma sala contrarmos novas formas de gestão do património. de projecção multimédia; um espaço de exposições temporárias sobre todas as áreas tangíveis e intangíveis do paUma das formas é a criação, segundo Paulo Pereira, de trimónio cultural referidas à especificidade dos Centros; estruturas de acolhimento e interpretação que têm como uma oferta turística de passeios culturais quer sejam no função: conhecer/investigar; proteger/conservar; valori- Complexo Ferroviário, quer sejam no rio ou noutros conzar/divulgar. selhos da Área Metropolitana, apoios de WC, restauração, ponto de acolhimento e vendas; bem como na Gare um A explicação é um processo de integração do património Pavilhão Multiusos e respectivas infraestruturas de funno espaço e no tempo, fazendo-o entrar na ordem con- cionamento. temporânea, passa deste modo a ter uma utilidade, perFUNDiÇÃO 8


Património Ferroviario - Barreiro “FOZ DA SAUDADE: PROJECTO DE REABILITAÇÃO DA ESTAÇÃO BARREIRO-MAR ” Tiago Mealha

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Tendo em conta o elevado valor histórico, social e cultural que os caminhos-de-ferro tiveram no Barreiro e o grande número de edifícios de arquitetura industrial que estão ao abandono, é proposto a criação de um núcleo museológico que celebre a memória desta classe operária. A estratégia vai de encontro ao trabalho já desenvolvido pelas várias associações ferroviárias. Assim é proposto a criação do núcleo museológico “O homem ferroviário” situado nas antigas oficinas do caminho-de-ferro do sul e sueste, e nos edifícios adjacentes onde se encontra o material circulante em desuso. Este núcleo será catalisador da reabilitação do espaço público na envolvente da estação, nomeadamente na avenida de Sapadores do caminho-de-ferro, através da criação de um parque urbano - com ligação à rua Miguel Pais. Atualmente existe um grande vazio urbano entre a linha do comboio e a marginal da Av. de Sapadores – pelo que o projeto tem como objetivo a abertura deste espaço à população, através da criação de um parque urbano público. Integrando no seu desenho um skate parque, hortas comunitárias e espaços verdes de lazer e convivência. De forma a melhorar o acesso a este novo parque urbano é projetado uma ponte que liga o território de Alburrica com a Av. de Sapadores.

te à fachada poente do edifício será restaurado para passeios sobre o rio Coina, que serão complementados com a exposição do centro interpretativo no interior do edifício. O programa apresentado para o edifício, tripartindo-o em: centro interpretativo; sala de concertos; bar e restaurante, consegue de alguma forma corresponder ao sentido do mesmo. O centro interpretativo pretende a preservação da memória e da história que originou o lugar. A forma como é projetado pretende incutir ao visitante a atmosfera da viagem sendo o seu culminar o miradouro situado no terraço central. A sala de concertos e o bar, constituem a função do projeto que faz a ligação com o forte ambiente associativo do Barreiro, sendo que a sua programação cultural ficará a cabo da associação OUT.RA. O restaurante fará a ligação comercial e económica com o resto da proposta, aproveitando os alimentos hortícolas produzidos nas hortas comunitárias. A proposta de reabilitação urbana na envolvente da estação transformando o vazio existente num parque urbano, cria uma maior harmonia do espaço, e relembra a memória dos antigos comboios que aí estacionavam, quer pelos perfis metálicos que desenham o parque, quer pela materialidade utilizada, as antigas sulipas de madeira dos caminhos-de-ferro, envelhecidas e marcadas com os buracos dos rebites metálicos. A estação ferro-fluvial, será o ponto de partida deste nú- A relação com a paisagem de Alburrica é também enaltecleo museológico. No seu interior é integrando um centro cida através da demolição do ruido moderno adicionado interpretativo, que visa transmitir de uma maneira eficaz no topo do aterro dando lugar a um agradável miradouro e interativa a fenomenologia do lugar, através de uma ex- que olha a paisagem sobre um angulo de 270º. posição permanente. Dentro do edifício é proposto uma sala de concertos com um bar e uma zona de restauração. Conclui-se então que a reabilitação da estação através da A antiga gare da estação servirá para a realização de even- articulação destes três programas constitui uma forma de tos culturais, festivais de música e exposições de grandes reavivar o edifício, de forma responsável que vá de encondimensões. O cais de embarque fluvial localizada em fren- tro às necessidades culturais e económicas da cidade.

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Património Ferroviário - Barreiro AS AUTOMOTORAS NOHAB, PATRIMÓNIO TÉCNICO DO BARREIRO João Cunha Em 2018 cumprem-se os 70 anos da introdução no nosso país das primeiras automotoras diesel. Fabricadas na Suécia pela então célebre casa Nohab, os Caminhos de Ferro do Estado adquiriram um total de quinze automotoras de via larga, entre versões curtas e longas, a que se somaram outras seis adquiridas pela CP e ainda onze atrelados. As automotoras começaram a chegar no final de 1947 e foram conduzidas desde logo para as Oficinas Gerais do Barreiro onde, sob a tutela do Eng. Almeida e Castro, foram ensaiadas antes da receção formal. Os ensaios incluíam testes de velocidade na linha Barreiro – Vendas Novas e ainda ensaios em rampa de Vendas Novas para Estremoz e eram acompanhadas ainda por dois técnicos da Nohab, que foram deslocados para o Barreiro durante os primeiros meses. A introdução destas automotoras permitiu uma enorme revolução na rede. Massificou desde logo o uso de automotoras, com óbvias vantagens na redução dos custos de operação. Na estrela de Évora, onde viriam a fazer boa parte da carreira, existiam diversos depósitos, cocheiras, oficinas e outras instalações que davam apoio à tração a vapor e respetivo parque de carruagens, quase tudo substituído pelas simples automotoras diesel. Estas ainda tinham a vantagem de rodarem muito mais ao longo do dia, permitindo realizar o mesmo serviço com muito menos unidades. Desde a primeira hora, as Oficinas Gerais do Barreiro encarregaram-se da manutenção regular e grandes reparações destas automotoras. Para seu resguardo e inspeções ligeiras foi mesmo erguida uma cocheira especialmente adaptada em Barreiro-Terra, mandada construir já pela CP. O desafio tecnológico foi rapidamente superado. As oficinas especializaram-se assim na reparação dos motores Scania e das transmissões hidráulicas Atlas-Diesel, nem sempre muito robustas mas alvo de uma atenção que sempre permitiu às Nohab serem, entre o material motor da CP, das mais fiáveis e disponíveis. À saída do Barreiro, as Nohab inauguraram os serviços rápidos Barreiro – Algarve via linha do FUNDiÇÃO 16


Património Ferroviario - Barreiro Sado, numa época onde esses serviços circulavam ainda todos via Beja. O sucesso foi tão grande que as bonitas automotoras cedo se retiraram desse serviço em proveito de composições convencionais com carruagens, por falta de capacidade. Durante mais de vinte anos serviram em apertadas rotações na linha do Algarve, onde cumpriam percursos mensais muito elevados e contribuindo para uma revolução nessa linha, que viu os passageiros aumentarem exponencialmente ainda no final da década de 1950. Mas foi nas linhas do Alentejo e na ligação à linha do Norte através da linha de Vendas Novas que estas automotoras resistiram mais tempo e permitiram ao pessoal do depósito do Barreiro conviver com elas numa base diária. Dos suburbanos do Sado, aos comboios para a Funcheira, os muitos comboios que existiam na estrela de Évora e a ligação ao Setil, estas automotoras irrigiram territórios com elevada eficiência energética e destacada fiabilidade, permitida por uma especialização evidente das oficinas do Barreiro.

antes da saída do Longo Curso do Barreiro, e concluiu-se no final de 2006, quando a automotora 0106 foi retirada após passar mais de um ano no Alentejo já com a concorrência das automotoras Allan renovadas. Coube ainda ao Barreiro uma última revisão para seis automotoras que rumaram ao outro lado do Atlântico, exportadas para a Argentina e onde a maioria continua operacional e em serviço, setenta anos depois. Em Portugal sobrou a automotora 0111, uma das automotoras originais dos Caminhos de Ferro do Estado e uma das poucas a escapar à renovação total dos seus interiores em 1980. Degradada por anos de abandono, foi recuperada em 2012 pelo Museu Nacional Ferroviário e desde 2017 está a ser reparada pela APAC, que fornece mão de obra e meios financeiros para que esta peça fundamental recupere a sua dignidade. Os trabalhos são de grande monta mas decorrem em bom ritmo. Para o património técnico do Barreiro estas automotoras significaram muito. Foi com estas automotoras que o Barreiro primeiro contactou com a tração diesel, pois na mesma altura os primeiros locotractores e locomotivas diesel-elétricas foram em primeiro lugar atribuídas a Lisboa e ao Entroncamento. Deste modo, foi com as Nohab que se ancorou no Barreiro o saber sobre a tração diesel, que valeu ao depósito e às oficinas renome mundial pelo papel relevantíssimo que viria a desempenhar nas décadas que se lhe seguiram.

Em 1980 a CP encarregou as oficinas do Barreiro de renovar estas automotoras, então já com 32 anos, para poderem servir durante mais vinte anos. Nestas oficinas foram trocados os motores diesel e as transmissões e renovados os interiores, quer das automotoras como dos atrelados. Desapareceram os bancos de madeira na 2ª classe (antiga 3ª classe…), novas bagageiras foram instaladas nos vestíbulos e o equipamento tecnológico devidamente atualizado. Depois da intervenção, continuaram a exibir toda a fiabilidade. É justo, e factualmente certo, dizer que o conhecimento cimentado no Barreiro permitiu aos nossos caminhos de De fora desta renovação ficaram as automotoras curtas, ferro tomar controlo desta tecnologia, a ponto de permiabatidas ao serviço no início dessa década e demolidas tir a estas automotoras excederem largamente os objeanos mais tarde, após serem abandonadas em Barreiro- tivos iniciais da sua aquisição, certamente para espanto -Terra. Infelizmente nenhum exemplar desta interessante de muitos. Sendo certo que as crónicas dificuldades fisérie de pequenos veículos foi preservado. nanceiras portuguesas na priorização de investimentos ferroviários são em grande medida responsáveis pela soOs encerramentos no Alentejo pressionaram a redução brevivência em serviço desta série durante quase 60 anos, dos serviços, compensados pela redução ainda maior dos não é menos certo que apesar da idade estas automotoserviços com recurso a carruagens, o que lhes permitiu ras estiveram sempre em posições cimeiras nos rankings manter um patamar de utilização muito interessante du- de fiabilidade e disponibilidade da rede, mesmo quando rante os anos 90. comparadas ao mais moderno e recente material ao serviço dos principais comboios de longo curso. Na última década e meia, as automotoras passaram a fazer as grandes reparações no Grupo Oficinal do Porto, em A longuíssima carreira das Nohab foi assim um tributo aos Guifões, mas a manutenção corrente continuou a ser feita saberes ferroviários que delas cuidaram. Em preparação no Barreiro, na chamada nave da Manutenção Sul, onde está um livro para assinalar os 70 anos, a publicar no final habitualmente ocupavam as duas linhas de inspeção e re- do ano, e cujos proveitos reverterão para o restauro da paração situadas no lado do poente da nave. Era habitual 0111. Certamente teremos oportunidade de assinalar em resguardarem também na rotunda do Barreiro, cabendo conjunto essa publicação e com a ajuda de todos podeà justa em cima da placa giratória e estando-lhes reserva- remos conseguir a imortalização do legado fundamental das algumas linhas da rotunda, especialmente preparadas das automotoras Nohab, que é um legado fundamental para as automotoras lá caberem. do Barreiro enquanto centro ferroviário de excelência. A retirada de serviço iniciou-se no início de 2004, ainda FUNDiÇÃO 17


Património Industrial Quimico - Barreiro PATRIMÓNIO QUÍMICO-OPERÁRIO-INDUSTRIAL: QUE FUTURO? Armando Teixeira

Em meados de Maio de 2017 foi anunciado pela Direcção Geral do Património Cultural (DGPC), a abertura do Procedimento de Classificação do Património do Complexo Químico Industrial da ex-CUF/Quimigal. Na altura a ABMPF e o grupo de cidadãos em defesa do Posto Médico (que infelizmente foi destruído!), congratularam-se com tão importante passo e a Autarquia e a Baía do Tejo regozijaram-se em público pela decisão, com referência aos seguintes locais ou sítios: Bairro de Santa Bárbara; Casa-Museu de Alfredo da Silva; Quartel-Posto da GNR; Mausoléu de Alfredo da Silva; Edifícios primordiais de Stinville (1907-17); Edifícios da antiga Central a Vapor; Armazéns de Descarga e Moagem de Pirites; Silo de Sulfato de Amónio (1952); Silo de Enxofre do Cais; Museu Industrial (antiga Central Diesel) Quatro questões fundamentais se colocam. 1.A garantia da continuação da actividade das fábricas, estabelecimentos, áreas empresariais, que asseguram a preservação patrimonial de autênticas “memórias vivas”, garantindo os postos de trabalho e a produção de riqueza que consubstanciam parte da economia da região.

nhecemos o andamento, foram referenciadas as áreas/ elementos indicadas acima. Referimos desde então junto da Autarquia e da DGPC, a existência de outras áreas que pela sua importância histórico-patrimonial, deverão ser também consideradas, nomeadamente: O Ramal Ferroviário Interno (o mais antigo do país); O Porto Fluvial com os seus dois pórticos (Atlanport em actividade); Zona Têxtil e os seus edifícios de telhado em “dente de serra”; A Esfera de Amoníaco e o Armazém de construção trapezoidal na Zona Adubos Azotados (Ureia); as três Chaminés icónicas existentes, enquadradas na história integral. 4.Procuramos contribuir para responder à questão fulcral: o que fazer com tantas “memórias vivas” e com tal riqueza patrimonial industrial, única no país? É necessário olhar esta formidável herança de forma global, numa perspectiva estratégica, não casuística ou meramente pragmática (tecnocrática!).

Preservar, recuperar, integrar, organizar em Núcleos, Zonas ou Áreas, com uma gestão institucional, auto-sustentável, programando a sua fruição cultural e turística, 2.Tal não é incompatível com outras formas diversifi- com a sensibilidade de quem está perante um legado cadas de ocupação/desenvolvimento do espaço voca- inestimável do engenho, da inteligência e do trabalho cionado para a produção de base tecnológica, não po- criador de sucessivas gerações de homens e mulheres luente e não monopolista. Como também não é com o barreirenses de nascimento ou opção. aproveitamento e rentabilização de espaços-iniciativas culturais e patrimoniais. É possível preservar o património sem arrancar a alma à cidade. 3.Para o Procedimento de Classificação, de que desco-

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Patrimóno Industrial Quimico - Barreiro

O BAIRRO OPERÁRIO – Uma história

A questão agravou-se quando o pai, também legionário, lhe trouxe um aviso-ameaça do comandante, conhecido por “general Mola”. Foi o bom e o bonito, discutiram de - Chega-lhes Zé! Dá-lhes forte! forma acesa, o pai quis pô-lo fora de casa e por vingança o O ambiente no Bairro Operário e no adjacente Bairro das jovem desvairado queimou, numa grande fogueira à porta Palmeiras, nos meados da década de 30 do século XX, re- de casa, a farda do pai. O acontecimento deu brado no flectia as contradições políticas da época de ascenso da Bairro e a notícia espalhou-se rapidamente pela vila: - O Zé da Guarda está a queimar a farda de legionário ditadura, de crescimento da indústria química monopodo pai! lista e protegida e de aumento da resistência popular à fascização do país. * A vida no Bairro Operário só se voltou a agitar quando o O bairro construído pelo “grande” patrão e habitado ex- senhor Diogo Rosa tomou a iniciativa de organizar uma clusivamente por operários da grande fábrica, concebido marcha popular, por altura dos Santos também por “popara ficar “dentro” do perímetro fabril, vivia entre a lufa- pulares” conhecidos. -lufa diária no triângulo trabalho-casa-trabalho, as diversões populares no tempo de descanso ao Domingo (Sába- Juntaram-se vinte e quatro rapazes e raparigas, constido era dia de trabalho!), a devoção dos que iam à missa tuindo um grupo entusiasta que começou os ensaios no à vila e a actividade política dos sectores extremados em salão da Liga de Instrução e Recreio, depois Grupo Despolos opostos. portivo da CUF. Os situacionistas, vivendo à sombra do sistema, incorporados na Legião Portuguesa, faziam demonstrações de rua, com marchas e exercícios nas imediações das fábricas. Os antifascistas que resistiam na clandestinidade organizada (sobretudo os comunistas), opondo-se às prepotências e à repressão, lutavam contra a exploração crescente. Estas duas minorias antagónicas e irreconciliáveis, não raro pegavam-se em confrontos físicos nas ruas do Bairro das Palmeiras, como o que ocorria naquela altura, na rua 31 de Janeiro. A maioria social no bairro era constituída por aqueles que diziam, “a minha política é o trabalho”, mas muitos, quando o dilema de consciência o exigia, tomavam posições de classe. Por isso aplaudiam o Zé da Guarda, enquanto este despachava uns tantos legionários que tinham montado uma provocação. Eram recorrentes estas cenas, a Legião Portuguesa, criada por Salazar em 1934, andava muito activa e o Zé, ágil e aguerrido, de sangue na guelra, gostava de molhar a sopa naquela “trupe” mal-amanhada.

Reinava a animação entre aquela gente jovem, com poucas oportunidades de diversão, mas devotada às actividades associativas e culturais depois do trabalho. Às melodias populares ao jeito das marchas que o operário Joaquim Simões compunha, juntava-se a inspiração do senhor Abel Rosa, que fazia as letras, realçando aquilo que era socialmente mais relevante na classe laboriosa: o trabalho dedicado e competente na epopeia quotidiana e socializada da “Grande Fábrica” e a dignidade proletária de quem ganhava o salário (insuficiente mas certo), com o seu suor e inteligência. É claro que as letras não podiam ir mais além porque a polícia política andava sempre a farejar e tinham de mandar as cantigas à censura prévia. A primeira apresentação foi feita no Campo de St.ª Bárbara, em Agosto de 1935, no recinto onde se jogava Hóquei em Patins. Estiveram a assistir centenas de pessoas dos Bairros Operário e Palmeiras, mas não só, do Alto do Seixalinho, do Lavradio e do Barreiro também. FUNDiÇÃO 19


Património Industrial Quimico - Barreiro 1937, surgiu o convite para a Academia Almadense, sendo tal o êxito que voltaram a convidar a marcha em 1938. Esta foi uma jornada memorável, cerca de mil pessoas foram num cacilheiro fretado que acostou no cais da CUF, com especial autorização, e, pelo rio fora, todos entoavam as várias canções, oito, nomeadamente aquela que ficou como símbolo, “De manhã ao som do apito”: “O nosso bairro É um bairro operário Morada sagrada Onde a honra habita, No nosso bairro Os marchantes jovens estavam muito nervosos na estreia Vive-se do salário mas correu tudo muito bem, com o aplauso vibrante dos E é farda amada espectadores. Cantaram e dançaram à luz dos archotes, A ganga bendita” precedidos por um balão vermelho representando um grande malho. “As tecedeiras A mais aplaudida foi a Marcha do Bairro Operário: Tecem no tear Hino ao progresso “De manhã ao apitar Honras ao labor, Começam logo a marchar As fiandeiras Os soldados do trabalho, Na luta a fiar Em animada labuta Dão ao Universo Nós travamos rija luta A paz e o amor” Com a lima e o malho” (Refrão) Cantavam primeiro os homens, depois eram as estrofes “E de manhã das mulheres e o estribilho em conjunto: Ao som do apito Que é o grito “Honestas e prazenteiras Universal, Também vão as tecedeiras Vamos com afã Pró constante labutar, Prá oficina Com as batas de zuarte Que nos ensina Símbolo de amor e arte A ter moral” De quem vive a trabalhar” Aumentaram (Estribilho) a p re s e n “O nosso rosto na “Voz Sorri com gosto Alto de Se domina a dura lida, Grupo Nosso labor caveliÉ o calor tara. Que nos aquece a vida” S e m As raparigas, representando as tecedeiras, trajavam bata ê x i t o , de ganga, alpercata branca e uma rosa vermelha ao peito. Os rapazes apresentavam fato de ganga, sapato preto e uma rede branca ao pescoço, simbolizando a rede com que caldeireiros e fogueiros limpam o rosto do suor do trabalho. O acompanhamento musical era assegurado por elementos da Banda de Música da Liga de Instrução e Recreio. Seguiram-se outras exibições nos anos de 1935/36, e, em FUNDiÇÃO 20

os convites para outras tações em Lisboa, do Operário”, no St.ª Catarina e no Desportivo Carnhos, em Alcânpre com grande já então com o arco principal impo-


Patrimóno Industrial Quimico - Barreiro nente, com balões iluminados com pilhas eléctricas e um o Zé cresceu, não resistindo à provocação, caíram-lhe em quadro figurando a entrada dos “Tecidos”. Eram necessá- cima cinco guardas que o deixaram num estado lastimários dois jovens possantes para o transportar! vel, tendo de receber tratamento no posto de socorros da Misericórdia, com o pretexto de que “caíra da escada” no O entusiasmo era tão grande em Alcântara que já se grita- Posto. va: “Viva a Classe Operária!”. Não voltou ao Bairro Operário, não podia nem ver o pai! Começaram os problemas com os “bufos” que faziam de- Pouco a pouco foi-se restabelecendo e alguém o informou núncias à PVDE, e alguns participantes foram intimados do hábito do tenente “vaidoso”, frequentar as sessões de para prestarem declarações à polícia política, a funcionar cinema às sextas à noite, no Teatro Cine. O oficial nascido no Posto da GNR, mas o grupo não se deixou intimidar. em terra distante, vivia só e sozinho voltava para casa, à paisana. Em 1940, foram representar o “Barreiro e as suas marchas operárias”, na Exposição do Mundo Português, em Belém. Onze e tal da noite, ruelas escuras, um Uma iniciativa do Estado Novo de Salazar para glorificar homem de média estatura, mas rijo como as grandes epopeias portuguesas e ao mesmo tempo se- o granito das serranias onde nascera, surge dimentar a ditadura e os seus “feitos”. das sombras. É mais baixo que o interlocutor: Levaram oito letras e músicas diferentes, com distintas co- - Agora és só tu e eu! Vamos lá reografias, uma das quais muito saudada, foi feita a pro- v e r quem é o merdas! pósito: O graduado pensou “Apreciai a doce melodia em gritar na rueDas grandes oficinas do trabalho la que dava para A linda, a inspirada sinfonia as Escadinhas da Da lima, do martelo, serra e malho”. Misericórdia, talvez o guarda de “Apreciai as altas chaminés serviço o ouvisFumegando espirais lá no espaço se. Mas teve verSão símbolos a atestar com altivez gonha, adivinhou O domínio do homem sobre o aço”. que muitos olhos estavam por detrás das corti“Por fim apreciai a ganga azul nas das janelas. A veste dos humildes tão bendita Não há em todo o mundo, de Norte a Sul, Fiou-se no treino militar e Vestimenta mais simples e mais bonita”. subestimou o contendor mais baixo, embora conheces(Estribilho) se a sua genica. O Zé da Guar“Cheiinhos de admiração da era um felino a saltar e um Dizei então mastodonte a bater. Depois dos Ao mundo inteiro primeiros socos equilibrados, deu Que a terra mais portuguesa uma cabeçada no adversário que deixou o oficial zonzo e De mais beleza castigou-o com tanta pancada de socos, pontapés e cabeÉ o Barreiro”. çadas que o mandou para o Hospital de São José. * O pai legionário queixou-se ao comandante da “Lança” e Dos muitos olhos à espreita, ninguém tugiu nem mugiu, o Zé da Guarda foi chamado ao Posto da GNR, para um tal era o desamor pelas forças de ocupação da vila. Alguns interrogatório-correctivo: regozijavam-se em silêncio, no âmago das almas tolhidas pelo medo atávico que o regime fascista inculcava: - Andas a fazer canalhices contra a Legião, até contra o teu pai?! Vais ver como elas te mordem! - Chega-lhe Zé! Dá-lhe com força! - São umas “trampas” que não valem nada! Quando me provocam levam no toutiço! - E tu o que vales, hem!? Mostra lá agora seu merdoso! O tenente jovem e aprumado, preparou a cena e quando

Seguiram-se rusgas, detenções, interrogatórios, mas ninguém sabia do Zé da Guarda que desapareceu do Barreiro para sempre.

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Património Industrial Quimico - Barreiro O “MUSEU DA JUTA” NO PARQUE INDUSTRIAL DA QUIMIGAL António Ferreira

O que resta da grande fiação e tecelagem do Barreiro foi guardado num museu instalado num dos edifícios do complexo. Este museu deve-se apenas à “carolice” de dois funcionários que, em boa hora, decidiram fazer uma recolha tanto de materiais como de maquinaria e assim, de certo modo evitar que a memória de uma indústria de tão grandes tradições não se perdesse no pó do tempo. Rosa Amaral Diário de Noticias- Economia 23 de Fevereiro de 1987 Em 23 de Fevereiro de 2018, comemorar-se-ão 31 anos Em termos de resenha histórica, afirmar que a partir sobre a data de publicação no Diário de Noticias na área de 1967 a Divisão de Têxteis Industriais (DTI) da CUFde economia, a criação do “Museu da Juta”. -Companhia União Fabril, torna mais específica a sua actividade no campo da embalagem industrial, deixando Os criadores de tal iniciativa, pensam ter chegado o mo- de utilizar exclusivamente juta, passando a transformar mento de relatarmos o modo como se deu o apareci- plásticos, nomeadamente o polipropileno e o polietilemento do “Museu da Juta” no Parque Industrial da Qui- no de alta e baixa densidade. Para fazer face às necessimigal, S.A., correspondendo, hoje, a todo o património dades de reconversão e readaptação de trabalhadores têxtil existente no actual Museu Industrial da Baía do às novas tecnologias, surge em 1976, na então Divisão Tejo. Outros materiais, utensílios, dispositivos, quadros de Plásticos e Especialidades Químicas, da Quimigal, e engrenagens continuam no mesmo local onde foram S.A., a Formação, encarada como uma aposta fundaexpostos e cuja deterioração estará directamente ligada mental na política de recursos humanos da Divisão. à sua não salvaguarda e há não realização da necessária manutenção, mas igualmente ao agravado estado de Quando, em 1980, se dá início ao desmantelamento decomposição do edifício, primeiro escritório da Zona paulatino de todo o ciclo produtivo de transformação Têxtil onde a Formação daquela área, ali esteve insta- de juta, que culminaria em 1983, os então formadores lada. da zona têxtil, António Ferreira e Orlando Santos, foram FUNDiÇÃO 22


Patrimóno Industrial Quimico - Barreiro recolhendo equipamentos, materiais, dispositivos, engrenagens e ferramentas relacionados com a transformação da juta, os quais foram colocados num espaço que se encontrava vazio, situado no rés-do-chão do edifício onde o Centro de Formação da Têxtil estava instalado.

é observável, além das máquinas de processo, existiam também alguns equipamentos e apetrechos inerentes ao processo, tais como aviaduras e pentes, um mostruário de vários rolos de tecido, de várias qualidades e gramagens, e sacos contendo canelas. Na parede do fundo, um quadro alusivo aos teares. No centro da sala, uma vitrina contendo mostruários de tecidos. No canto inferior esquerdo uma bancada de ensaios com uma caneleira. No canto inferior direito da sala, existiam uns moldes em madeira correspondentes às rodas dentadas dos teares de braços.

Todos os equipamentos, utensílios e materiais recolhidos foram trabalhados e expostos durante quatro anos, nascendo assim um espaço com interesse histórico e museológico, conhecido como o “Museu da Juta”, onde a maior parte dos equipamentos continuavam a funcionar. A exposição contava também com quadros de planos directores, fotografias representativas das várias unidades produtivas e de vistas aéreas do espaço inicialmente adquirido a Bensaúde por Alfredo da Silva e zonas envolventes, bem como outros apetrechos e peças complementares. Do lado esquerdo da fotografia acima, estava situado um expositor contendo alguma documentação, um saco amostra de algodão, cordas e um saquinho de juta pequeno com o número do operário 14651, o qual transportava o salário do respectivo trabalhador e que hoje se encontra à entrada do lado direito no Museu Industrial, na mesma vitrina construída pelos autores. No seguimento, uma porta dava acesso ao início do processo de transformação da juta. Os fardos de juta davam lugar às meadas e sucessiva transformação, até chegar às bobines instaladas na parte de trás de um drawing. Em todo o processo era exercido controlo para que os fios produzidos tivessem determinadas características físicas como titulo, resistência, tenacidade, torce, etc.. Na sequência do processo de transformação, seguia-se a secção de tecelagem, em espaço contíguo, onde era possível observar um tear de braços a funcionar integralmente, com todas as condições de segurança. Como

Após a tecelagem, entrava-se na área da sacaria e impressão. Na foto da direita ao fundo, a máquina de corte dos tecidos em chapas, que seguiam para as bancadas das costureiras para formação dos sacos. Estes eram, posteriormente, sujeitos a impressão a uma ou duas cores, numa ou nas duas faces. Para tanto, era necessário uma chapa (matriz) em borracha, a qual era fixada no tambor da máquina de impressão e cuja reprodução da chapa era transmitida aos sacos, por tinta.

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Património Industrial Quimico - Barreiro cia que a realização deste projecto foi da exclusiva responsabilidade dos autores. Fizemo-lo na convicção de que alguém tinha que “acordar consciências”. O termos levado quatro anos a construir o “nosso museu” é explicado pela forma como foi sendo desenvolvido, paulatinamente, fora das horas de trabalho e fins-de-semana. No entanto levantava-se uma questão pertinente aos olhos de muitos: como tinha sido possível numa empresa da envergadura da Quimigal, sem apoios institucionais e sem dotação orçamental, que alguém tivesse conseguido concretizar um tal projecto?

Após as bancadas de costura com vários exemplos de máquinas, encontravam-se duas cabeças de máquinas, uma das quais singer, a qual estava referenciada como a 001 pelo departamento do património. Ao fundo, do lado direito, estavam colocados quatro painéis de corticite prensada pintados. em tempos tinham servido na messe dos quadros superiores, para realizarem a separação entre engenheiros e engenheiros técnicos. Na fotografia seguinte pode observar-se vários equipamentos de ensaio para o controlo da qualidade: estufa para determinação da humidade da juta em rama, rolo cilíndrico para ensaiar a mecha, dinamómetro para determinar resistências, vários torcimetros e dobadoras para controlo das características dos fios produzidos como sejam os títulos, o torce, a resistência e o alongamento.

Os trabalhos do Museu continuavam a decorrer segundo a disponibilidade formativa possível. Foi com surpresa que recebemos uma grande comitiva, estando presentes o Administrador da Quimigal Eng.º José Figueiredo Costa, o Director da Divisão da DPEQ, os Directores do Complexo Industrial do Barreiro – Eng.º Sardinha Pereira, Eng.º Severino Pinto e Engº Leal da Silva, o Director da ZPPF Eng.º Pedro Severiano e outros, que após visita guiada e o terem constatado do andamento e da qualidade do empreendimento, nos incentivaram a continuar e a concluir o projecto que tínhamos em mãos: uma exposição apelativa, de interesses multifacetados, contemplando uma mais-valia formativa cuja funcionalidade dos equipamentos seria um ponto-chave e onde cada equipamento, peça ou engrenagem, tinha a sua própria história, aliada à importância de manter viva a linha de transformação da juta e a sua própria evolução tecnológica, cujos equipamentos eram oriundos das primeiras fábricas industriais em Portugal, conjugados com a vertente da formação profissional. Após aquela visita, verificámos que o Conselho de Gerência (C.G.) da Quimigal, emitiu um comunicado com data de 18 de Outubro de 1983, onde apelava a Directores de Divisão, do Complexo, dos Serviços Centrais e Financeiros, da necessidade da salvaguarda do espólio da empresa e da sua importância. O facto é que continuaram a ser os mesmos intervenientes, a pugnar por manter guardado/arquivado/exposto, o espólio da empresa. E são os mesmos que integraram o grupo de trabalho que defendeu a preservação do Posto Médico da CUF e apresentaram na Direcção Geral do Património Cultural o requerimento para procedimento de classificação do vasto património relativo à Obra Social da CUF, o qual foi reconhecido ao receber a classificação de Interesse Nacional. Muito embora não tivéssemos conseguido manter o edifício do Posto Médico em pé.

O circuito da visita terminava com a subida ao primeiro andar onde, numa sala de projecção, era passado o dia- Olhando, com algum sentido crítico, o espólio industrial porama “Evocando a Têxtil”, concebido e editado pelos em exposição no actual Museu Industrial da Baía do Tejo, constatasse que a sua representatividade é ínfima autores. face às múltiplas unidades industriais que estiveram Aqui chegados, interessa afirmar com toda a veemên- sediadas no Barreiro e questionar: onde estão tantos e FUNDiÇÃO 24


Patrimóno Industrial Quimico - Barreiro tantos elementos de todos aqueles processos das actividades transformadoras que produziram centenas de produtos fabricados pela empresa ao longo de quase 70 anos e a elevaram ao topo da industrialização europeia? Infelizmente pouco mais resta que a existência de um certo número de equipamentos e artefactos afectos ao processo de transformação de juta, os quais já apresentam preocupações de manutenção e revitalização em toda a linha. A partir da data de autonomização da DPEQ-Divisão de Plásticos e Especialidades Químicas relativamente à Quimigal, a qual passou a designar-se por Plasquisa-Plásticos Agro-Industriais, S.A. em 2 de Janeiro de 1990, os autores tiveram que integrar o pessoal afecto àquela empresa, sendo obrigados a deixar as instalações e a delegar o museu à CRE-Comunicação e Relações Exteriores. Sempre que tivemos oportunidade de visitar o Museu, recordámos as peripécias vividas em cada utensílio, máquina ou peça exposta. Tínhamos o conhecimento da história que cada ferramenta, aparato ou engenho encerrava. Sentíamos que parte de nós e da nossa identidade podiam ser reconhecidos no projecto realizado, o qual não nasceu espontaneamente, foi algo que foi sendo cimentado e amadurecido à medida que íamos avançando no processo de recolha de materiais e equipamentos, tornando-se mais premente essa necessidade de recolha, preservação e exposição do espólio inerente ao processo de transformação da juta, à medida que observávamos o “abate sem misericórdia” de todo um acervo tecnológico originário da 2ª metade do século XIX e que sem qualquer consideração era integralmente abatido sem apelo. Disso tínhamos consciência. A passagem obrigatória pelo “Museu da Juta” na “rota” das visitas à empresa, foi um ponto de viragem na divulgação do Museu, mas também a oportunidade de podermos observar a admiração e a satisfação de muitos visitantes pela oportunidade de verem as máquinas em funcionamento, o que na nossa óptica, correspondia a uma mais-valia da exposição. Desta forma, era possível explicar os fundamentos e a composição de qualquer equipamento. Situação que veio a sofrer um forte revês, aquando da sua reinstalação no espaço onde se encontra, mais parecendo um armazém de equipamentos industriais, dispostos ao acaso, sem referências técnicas à linha do processo de transformação da actividade de

juta. Estão passados cerca de 35 anos sobre o “arranque” daquela fabulosa aventura que demos por terminada em Dezembro de 1987 e que jamais poderá ser apagada das nossas mentes e dos nossos corações. Aquilo que realizámos, fizemo-lo de corpo inteiro. Mas também não abdicamos do reconhecimento que nos é devido e que outros na sua azáfama de glória efémera, assumem como sendo sua a criação do dito. Temos consciência do trabalho único que desenvolvemos em prol do conhecimento e património conseguido. Por isso, estamos inexoravelmente orgulhosos pelo que realizámos e da nossa contribuição para a preservação do legado arqueológico destinado às actuais e futuras gerações. Isso mesmo foi inscrito na placa situada no hall junto ao balancé, onde pode ler-se: “A RECONSTITUIÇÃO E PRESERVAÇÃO DA TECNOLOGIA E MATERIAIS INTERVENIENTES NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DA JUTA, PRETENDE SER UM CONTRIBUTO NA SALVAGUARDA DE UMA INDÚSTRIA QUE CONCORREU DECISIVAMENTE PARA O DESENVOLVIMENTO DA EMPRESA E ECONOMIA NACIONAL, CONSTITUÍNDO HOJE, PATRIMÓNIO HISTÓRICO DA QUIMIGAL COMO PARTE INTEGRANTE DA SUA IDENTIDADE, REFERENCIADA PELOS VALORES SÓCIO CULTURAIS DAS COMUNIDADES ONDE SE INSERE” BARREIRO, DEZ. 1987 Dizer ainda que o “Museu da Juta” foi uma obra idealizada e concretizada pelos autores mas que teve a colaboração de alguns amigos que connosco partilharam a preservação de tão rico património, caso contrário, pouco ou mesmo nada haveria de representativo do processo de transformação da juta, o que seria lamentável face à importância que a Zona Têxtil teve no contexto da afirmação e do reconhecimento industrial da CUF no plano nacional, internacional e no desenvolvimento do País. Pela sua colaboração gostaríamos de referenciar: o António Claro, o Bruno Chaves, o Eugénio Bento e o Carlos Riacho. Por outro lado, dado o empenho e dedicação com que nos ajudaram a erguer a “obra”, sublinhamos: o António Almeida, o “Alentejano”, o “Toy”, o Baptista, o Castro, a Maria Helena, o “Bacalhau”, o Eduardo Correia e o “Magalhães”. A todos eles o nosso bem-haja.

“Não é por alguém mandar fazer transmutação de equipamentos que se pode arvorar como o “criador” do acto. A História terá a última palavra sobre este e outros assuntos, já que um grupo de pessoas partilhou connosco esta aventura da “criação” do museu da juta, sem nunca termos beneficiado de qualquer contrapartida, como outros”. O autor FUNDiÇÃO 25


Património Cultural - Barreiro A ESTAÇÃO BARREIRO-MAR E O COMPLEXO FERROVIÁRIO DO BARREIRO Melo de Carvalho deais e a estruturação da coesão social.

O Significado do Património Cultural O Parlamento Europeu definiu 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural. Trata-se de uma decisão de importância fundamental para a valorização do património cultural “Os ideiais, os princípios e os valores integrados no património cultural...constituem uma fonte da memória, da compreensão, da identidade, do diálogo, da coesão e da criatividade para a Europa” (Comissão Europeia, COM( 2016)543final). Os objectivos do AEPCpodem sintetizar-se do seguinte modo:

Todavia, se isto constitui o núcleo essencial que justifica a preservação do património cultural , não menos importante é o contributo que este pode fornecer para o desenvolvimento da comunidade em termos económicos. Não se trata, como alguns pretendem fazer crer, de celebrar nostalgicamente o passado de um modo estático e sem real valor cultural. Interessa, isso sim, colocar o património cultural ao serviço do presente, de uma forma viva e humanamente enriquecedora, através de projectos consolidados e sustentáveis, que possibilitem o seu usofruto por aqueles que dele se abeiram com curiosidade e ávidos de um novo conhecimento, mas também com o objectivo de o transmitir intacto e de forma enriquecedora às gerações futuras. A recuperação e preservação do património cultural exige, de acordo com esta concepção, uma atitude responsável assente numa perspectiva de cidadania bem estruturada visando a afirmação de uma via democratizadora plena.

As atitudes oportunistas têm de ser combatidas por aqueles que com“ Deverá contribuir para promover o papel do património cultural en- preendem que nem tudo se pode comprar e vender, que muito daquiquanto elemento central da diversidade cultural e do diálogo intercul- lo que é essencial para a comunidade não pode ser transformado em tural.... “produtos” valorizados em termos da lei da oferta e da procura. Muito para além do seu valor pecuniário, a preservação do património culDeverá potenciar o contributo do património cultural para a economia tural assume um outro valor de carácter essencialmente humanizador. e a sociedade, através do seu potencial económico directo e indirecto , O cuidado com a herança e a memória não é, por isso, compatível com inspirando a inovação e promovendo o turismo sustentável e a criação a exploração do máximo lucro não se trata de recuperar edifícios, com de emprego de longa duração”. a lógica do “pato bravo” à espreita de obter lucros pingues através de exploração do que o passado nos legou. É esta atitude de recusa e sal“O AEPC irá oferecer aos cidadãos europeus oportunidades para melho- vaguarda, que parte de uma visão culturalmente esclarecida em estreirar e compreender o presente através de uma interpretação comum e ta ligação com o dinamísmo do desenvolvimento, que pode fazer com mais enriquecedora do passado. Irá estimular uma melhor avaliação que o partimónio cultural, de facto, sirva o presente da comunidade e dos benefícios sociais e económicos do património cultural e do seu se projecte no futuro, contribuindo para a melhoria das condições de contributo para o crescimento económico e a coesão social. Tal pode vida e para uma existência individual e colectiva mais aberta e inteliser avaliado, por exemplo, em termos de promoção do turismo susten- gentemente civilizada. tável e da regeneração urbana:” A valorização do património cultural assume, desta forma, uma importância múltipla traduzida em termos culturais, ambientais, sociais e económicos. Na verdade, a gestão sustentável do património cultural é considerada como “uma opção estratégica para o século XXI devendo terminar a sua subavaliação em termos de criação de valor, competências, emprego e qualidade de vida” (Proposta do Parlamento Europeu e do Conselho). Importa tomar em consideração que esta decisão de promover o AEPC, parte de um princípio fundamental que consiste em reconhecer “ a necessidade de colocar as pessoas e os valores humanos no centro de um conceito amplo e transdisciplinar de património cultural reforçando a necessidade de promover um acesso mais vasto ao próprio património”. O património cultural é algo mais do que muros e paredes, mais ou menos arruínados, em massa heteróclita de pedras, caliça, madeira apodrecida e edifícios sem telhado. O património cultural pode estar nesta situação devido à incúria dos responsáveis, sendo pouco mais do que simples referência ao passado, mais ou menos esquecido e ignorado no presente. Trata-se da permanência de valores comuns que estruturam a vida da comunidade e se exprimem ao longo do tempo constituindo uma memória que se projecta no futuro, definindo uma identidade referida ao presente, em termos de uma história que diz respeito a todos. O que está em causa quando se fala em património cultural é a sua relação com a diversidade cultural, a aproximação e o diálogo entre seres humanos originários dos diferentes pontos car-

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É certo que o património, sob todos os seus aspectos, só agora começa a ser valorizado pela opinião pública devido, fundamentalmente, ao crescimento turístico. Assim, quando se iniciou o abandono de instalações de vário tipo (fábricas, palácios, estações, etc) devido ao processo de globalização e consequente deslocalização industrial, ou à evolução tecnológica das últimas décadas, em lugar de se ter pensado na requalificação desses espaços para novas funções úteis à comunidade, eles foram abandonados à intempérie e ao vandalismo, votados ao desprezo. Telhados no chão, paredes em completa ruína, travejamento apodrecido - auténticas “feridas” na paisagem das cidades. Esta situação deve terminar quanto antes e o património deve ser olhado de uma nova forma valorizadora daquilo que o passado legou, enriquecedora do presente, pojectando-se no futuro em termos sociais, culturais e económicos.

O Reconhecimento do Património Cultural do Barreiro: o que dizem os pareceres Poder-se-á pensar que a posição de defesa convicta e acérrima que fazemos do património cultural do Barreiro, constitui unicamente uma opinão assente em convicção pessoal. Não é isso que acontece. Evidentemente que possuímos uma opinião, mas esta foi construída não só através da análise da situação no próprio terreno, mas também do estudo e do esforço de compreensão da própria história do Barreiro, no caso concreto, referido ao património ferroviário.


Patrimóno Cutural - Barreiro Todavia a esta observação e ao estudo deve acrescentar-se o conhecimento de inúmeros pareceres elaborados por técnicos, “experts” nesta matéria que foram emitidos especialmente desde o início deste século. Referimo-nos específicamente ao conjunto de pareceres que foram sendo elaborados durante os estudos que justificam o procedimento de classificação do Complexo Ferroviário do Barreiro, iniciados no ano 2000.

do desenvolvimento futuro do Concelho e da Cidade. Somente com este sentido é possível entender o esforço desenvolvido por muitos barreirenses para que esta estrutura seja devidamente reconhecida, classificada e recuperada.

Estes pareceres ultrapassam, no seu significado, a simples emissão de opiniões mais ou menos fundamentadas, na medida em que são elaborados por grupos de especialistas e emitidos por entidades oficiais. Ora, o que é que estes pareceres nos dizem? Começemos pelo último, emitido pela Secção do Património Arquitectónico e Arqueológico do Conselho Nacional de Cultura (20-09-2017) sobre a Proposta de Classificação do Complexo Ferroviário do Barreiro, constituido pelas Oficinas do Caminho-de-Ferro (Estação Primitiva), Estação Ferroviária e Fluvial do Sul e Sueste, Rotunda das Máquinas Locomotivas, Bairro Ferroviário, Palácio do Coimbra e um conjunto de máquinas: “Estamos perante um conjunto de excepcional significado, de uma dimensão rara, a tal ponto que a sua importância ultrapassa o contexto local e regional, assumindo-se como um lugar/sítio/paisagem únicos no território português... O Complexo Ferroviário do Barreiro faz parte integrante de identidade social e cultural nao só do Barreiro, mas de toda a Grande Lisboa e de todo o Sul do País”. O Departamento de Bens Culturais, Divisão do Património Imóvel, Móvel e Material da Direcção Geral do Património Cultural produziu um importante texto de que respigamos as seguintes passagens: “A partir de 1884, data da entrada em funcionamento da nova Gare, o Barreiro assumirá uma importância excepcional como empório ferroviário, pelo seu papel no desenvolvimento e expansão do caminho-de-ferro sul, como nó estratégico de ligação entre as duas margens do Tejo...”Mais à frente:”a construção da estação ferroviária e fluvial do Barreiro, em 1884, testemunha um dos momentos simbólicos do desenvolvimento económico do País resultante da construção e expansão do caminho-de-ferro em Portugal (…) A Gare marítima do Barreiro uma das glórias da engenharia em Portugal (…) constitui um dos exemplos de referência na econografia ferroviária (…) Com a sua funcionalidade torna-se um exemplar único em todo o País, ocupando também por este facto lugar cimeiro entre os edifícios mais simbólicos dos caminhos-de-ferro em Portugal(...) constituindo um dos melhores exemplos da evolução dos transportes em geral e dos caminhos-de-ferro em particular (…) A sua valorização formal, através da classificação como bem cultural representativo de história e da cultura do povo português impõe-se, assim, ao mais alto nível como Monumento Nacional, Imóvel de Interesse Público ou integrada em Conjunto de Interesse Público” (Proposta de Classificação de Vários Edifícios dos Caminhos-de-Ferro do Barreiro). Não parece ser necessário reproduzir mais citações pois fica bem clara a importância e o valor patrimonial, cultural, social e económico que o Complexo Ferroviário e a Estação Barreiro-Mar assumem para o Concelho do Barreiro, para a Área da Grande Lisboa e para o País. Ao contrário daquilo que se manifesta com alguma frequência, não se está na presença de uma estação qualquer de caminho-de-ferro e o Complexo assume um perfil único em Portugal. Não se pode admitir por isso qualquer tipo de leviandade ou ligeireza quando se trata de equacionar o seu processo de recuperação. O Complexo Ferroviário do Barreiro, no qual se integra a Estação, assume uma importância decisiva para o Concelho do Barreiro em termos do seu desenvolvimento actual e futuro. Não se resume a uma qualquer ideia nostálgia mais ou menos afectiva que assalta os antigos trabalhadores que nele viveram décadas de trabalho, nem os antigos passageiros, habitantes no Concelho ou na Margem Sul, que todos os dias se dirigem para a Margem Norte do Tejo. É uma realidade palpável actual, que deve ser entendida a partir da importância histórica que assumiu quando foi construída e que manteve ao longo de mais de um século, evidentemente desempenhando agora novas funções, mas com o engenho suficiente para colocar essa dinâmica ao serviço

O Turismo e a sua moda: mas de que Turismo devemos falar? O turismo é a palavra mais referida quando, na actualidade, se fala na relação do património cultural com a economia. Esta relação é real e o termo justificado na medida em que se pensa e se espera que a recuperação dos antigos espaços carregados de história atraiam pessoas para os visitar oriundos do país ou do estrangeiro. Estas pessoas visitam estes locais desejosas de os conhecer e à sua história e consomem deixando divisas. Desta forma obtêm-se os fundos capazes de enfrentar os custos com a recuperação, gestão e manutenção, com vantagens indirectas em relação à restauração, às dormidas, aos transportes, à aquisição de lembranças,etc. A preocupação central dos decisores políticos é que venha muita gente, especialmente do estrangeiro, visitar os locais recuperados. Desta forma o “turismo de massas” constitui a preocupação dominante nesta situação. Todavia, um pouco por todo o lado, o turismo de massas coloca questões mais ou menos graves, em termos de atentado ao ambiente, de degradação de espaços e estruturas, de invasão excessiva do território, etc. Para além disso, este tipo de turismo frequentemente assume alguma pobreza cultural, e é também frequentemente pouco rentável devido ao facto de a maioria dos visitantes ter um baixo poder de compra. Alguns afirmam que é preciso preparar a Cidade do Barreiro para acolher este tipo de turismo, constituído frequentemente por jovens com reduzida capacidade de aquisição. Será, de facto, este tipo de turismo que mais interessa à Cidade? Ou, num sentido diferente, dever-se-á concentrar a atenção num outro tipo de turísta que visa preferencialmente a qualidade daquilo que vem usufruir, possuindo uma outra capacidade financeira? A definição do tipo de turismo a privilegiar deverá, por isso, ser objecto de uma análise cuidada. Isto é tanto mais importante quanto se pretende evitar os erros que têm sido cometidos entre nós. O exemplo do Algarve é citado frequentemente, e mesmo em Lisboa é bem visível, no presente, o incómodo provocado em certas zonas da Cidade aos seus habitantes. Esta definição assume uma importância marcante, na medida em que a escolha concretizada determinará, em larga medida, o tipo de decisões que vão ser tomadas. Não basta, por isso, afirmar-se que se deseja o turismo. É preciso determinar com clareza que tipo de turismo se prefere. Esta problemática, aqui enunciada em termos genéricos procurando unicamente chamar a atenção para a situação da Estação Barreiro-Mar, assume uma importância específica. Como aqui se defende a Estação faz parte de um Complexo Ferroviário. Ora, a recuperação de locais, materiais antigos e outros que se podem manter em actividade representando formas específicas de tecnologia e de trabalho, constituem elementos de uma procura específica que possui uma clientela própria interessada em conhecer “in loco” a história, as estruturas e as antigas formas técnicas de proceder. Trata-se de uma população bem defini-

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Património Cultural - Barreiro da, com capacidade económica que viaja com frequência pela Europa para conhecer antigos locais utilizados pelo transporte ferroviário. O número de museus ferroviários, parques patrimoniais, estações de caminho-de-ferro, etc é muito significativo e atrai um número notável de turístas em muitos países. Em relação ao Complexo Ferroviário do Barreiro defende-se que esta perspectiva turística é de enorme importância desde que tratada com o indispensável rigor. Naturalmente que bem pouco tem a ver com a utilização da Estação Barreiro-Mar de forma inestruturada e algo aleatória, colocada ao serviço de interesses que nada têm a ver com a preocupação em servir de forma sustentada o desenvolvimento do Concelho do Barreiro. O tipo de turismo, ou seja, o tipo de turístas que interessa conquistar, constitui uma opção que não pode compatililizar-se com o desejo frenético de melhorar a fachada da Estação. Na realidade, estamos perante uma questão essencial que, como tal, deve ser tratada se, como já se afirmou, pensarmos que o objectivo fundamental a alcançar consiste em colocá-la, e ao Complexo Ferroviário, ao serviço da população.

tas se podem então extrair os objectivos a atingir com a decisão. Fora deste simples esquema, ditado em boa parte pelo simples bom senso, estaremos perante a precipitação inconsistente do acto de decidir, caminhando inevitavelmente para o erro. Ora, como se pode observar, em caso algum os responsáveis apresentaram as finalidades daquilo que pretendem realizar, e o único objectivo conhecido de forma meramente implicita, pois também não foi enunciado, refere-se à “necessidade de fazer alguma coisa” (sem se saber o quê, como e para quê). A única coisa que se pode afirmar nesta situação é que decidir só porque é necessário decidir obedece unicamente a objectivos eleiçoeiros que nada têm a ver com uma decisão ponderada solidamente assente em pressupostos claros devidamente participados como é aconselhável numa gestão realmente democrática, tanto mais que a decisão diz respeito a toda a comunidade, ou seja, a todos nós munícipes do Barreiro.

Muitos “palpites” mas falta de ideias claras

“A pior decisão é não decidir”. Será assim? Insistem os decisores políticos que “a pior decisão é não decidir”. Apresentam esta opinião como justificação maior para uma tomada de decisões rápidas em relação à Estação Barreiro-Mar. Esta é uma opinião corrente que a voz popular contrapõe à morosidade típica corrente no País, em que o tempo vai passando provocado pelo adiamento das tomadas de decisão, por incúria, desinteresse ou impasse devido à pressão de interesses contraditórios. Contudo, se este ditado popular tem esta justificação, verifica-se que outros ditados se lhe contrapõem como, aliás, é habitual: “devagar se vai ao longe” ou “devagar que tenho pressa”, são alguns deles que afinal apelam ao puro bom senso, chamando à razão aqueles que desejam avançar depressa demais. Na verdade é bem possível que no meio termo esteja a razão. Ou seja, convém decidir com ponderação. É certo que nada decidir é um erro na maioria dos casos, mas pior do que não decidir é decidir mal. Como se sabe a decisão demasiado rápida e sem fundamentação solidamente esclarecedora, constitui um erro fatal. “A pressa é inimiga do bom”, também se pode afirmar. No caso que aqui nos interessa o problema da decisão manifesta-se com plena clareza quando se verifica que não há uma percepção nítida dos objectivos que se pretendem alcançar. Ou seja, não é possível decidir com acerto se não se possuirem ideias claras sobre os objectivos que as justificam. Todavia, pelo seu lado, é importante que estes objectivos sejam justos, quer dizer, estejam conformes com finalidades que , no caso vertente, deverão ter como preocupação dominante servirem o processo de desenvolvimento da comunidade, colocando no centro das suas preocupações as próprias populações ( se tal não acontecer o processo de desenvolvimento não se verifica e, com muita frequência confunde-se com o simples crescimento, processo que se preocupa unicamente com o seu aspecto quantitativo, pondo em causa o seu carácter qualitativo). Tudo resumido chega-se à seguinte conclusão: só é aconselhável decidir quando se possui uma noção bem clara das finalidades que se pretendem alcançar em termos de desenvolvimento, sendo que des-

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O património cultural do Barreiro é vasto e encontra-se em degradação contínua ao longo dos anos. Basta tomar em consideração que a primeira notícia de pedido de classificação do património ferroviário à DGPC tem já 18 anos, e só agora parece estar a dar frutos com a abertura do procedimento de classificação e a respectiva consulta pública. Sobre as suas diferentes componentes (Património CUF/Quimigal, Complexo Ferroviário, Património existente entre Alburrica e o Braamcamp, só para nomear uma parte muito significativa) todos os interessados têm as mais variadas opiniões, ainda que coincidindo num ponto: é indispensável para o desenvolvimento do Concelho do Barreiro proceder à sua recuperação. Em relação à Estação Barreiro-Mar, que é a questão que por agora nos interessa, as opiniões fecham-se num leque reduzido: bar e restaurante, pavilhão multiusos, hotel, museu, centro cultural, estando as preocupações centradas na captação dos turístas que estão bem perto, do outro lado do rio, no Caís da Colunas e seus arredores. Parece simples trazê-los para a margem sul do Tejo, mas trata-se de uma ilusão. De facto, não se trata de os ir buscar seja de que maneira for e trazê-los para o caís da Estação. A recente atitude do turísta típico, exige a criação, ou a existência de centros de interesse que possam ser fruídos culturalmente desde que suficientemente atractivos. Isto quer dizer que é indispensável convencer os turístas de que existem razões de peso para se deslocarem para um dado local, capazes de despertarem o seu interesse e justificarem a sua deslocação. Estes centro de interesse são habitualmente constituídos por um património intensamenta relacionado com a história dos povos, e que são utilizados culturalmente mediante a animação informativa/formativa capaz de promover o seu usofruto. A simples recuperação elementar de um local mais ou menos bem conseguida, não chega para garantir a deslocação de um número significativo de turístas. Temos muitas dúvidas de que um restaurante por melhor situado que esteja ( e neste local estaria num espaço magnífico) e com um “chefe” de renome, ou um hotel por mais charmoso, sejam suficientes para garantir essa atractividade. A sala multiusos certamente que poderá responder a necessidades culturais da população local, ou, no caso da sua utilização como local de congressos e feiras possibilitaría a adesão de turístas, mas trata-se de eventos ocasionais de carácter sazonal.


Patrimóno Cutural - Barreiro Tudo somado chegamos à conclusão de que é indispensável liquidar os “palpites” para passar a opiniões devidamente consolidadas. É necessário estudar e definir populações alvo, determinar com rigor o que se procura alcançar. Na verdade, a Estação em si mesma, com as suas características estruturais parece ser insuficiente para garantir a criação do tal centro de interesse bem consolidado. Mas, além dessa insuficiência também é uma inconviniência visto que ela pertence a um Complexo que não deve ser desarticulado nas suas partes

Os investidores e a gestão do património cultural

“Daqui a cinco anos o Barreiro é outro”:que quer isto dizer em relação ao património cultural ?

Nas análises e debates a que se tem assistido sobre o futuro do património ferroviário do Barreiro, é sempre referida a questão do financiamento para a recuperação a realizar. Esta questão assumiu uma importância marcante no já referido debate sobre a Estação Barreiro-Mar. Sem se conhecerem ainda os limites e características que o reconhecimento público deste edifício vier a ter, é certo que não é ainda possível definir com suficiente clareza o que pode ser feito e quais os montantes financeiros que devem ser mobilizados. Porém, atingirão certamente vários milhões de euros (alguns dos responsáveis falaram em mais de três milhões).

A propósito do debate sobre o futuro da Estação Barreiro-Mar os responsáveis afirmaram sem qualquer rebuço ou hesitação que dentro de cinco anos a Cidade do Barreiro será diferente. Estaremos perante uma pura tirada eleitoralísta, ou em presença de uma vontade férra de tudo mudar? A questão é esta: como se muda uma cidade num prazo de cinco anos, ou seja, a curto prazo?

Foi referido que a Câmara Municipal não pode dispor desta verba, tanto mais que a esta se deve juntar o custo dos arranjos exteriores, acessos, etc. É certo que esta situação pode indiciar que existiu alguma precipitação e leviandade em aceitar ficar na posse do edifício, especialmente quando não se possui uma noção clara daquilo que deva ser o seu futuro.

Não sabemos como tal é possível, tanto mais que também se desconhece o que se pretende mudar e quais as razões dessa mudança. A verdade é esta : afirmar, com maior ou menor convicção, que se vai mudar é fácil e simples, mas, concretizar a mudança de que aqui se fala é bem complexo e difícil.

Seja como for, o que é claro é que os responsáveis políticos apontam como solução a entrega da Estação a financiadores privados sem condições prévias de forma a responderem totalmente aos seus interesses. Ou seja: quem definirá as funções que a Estação irá desempenhar serão exclusivamente estes últimos.

O que vai mudar no vasto património existente no Concelho do Barreiro? A Estação Barreiro-Mar passou para a dependência da Câmara Municipal. Esta é uma mudança há muito tempo desejada por todos os que, dentro do Concelho, se preocuparam com o seu desenvolvimento. Mas, em relação a esta o que irá mudar, em que sentido e com que significado? O edifício, criminosamente votado ao abandono, está degradado pela desafectação das suas funcões, pela acção da intempérie e pela vandalização. Estes dois últimos aspectos podem ser “mudados” através de uma recuperação física (telhados, paredes, portas e janelas, etc) e pela segurança. Contudo, quais as novas funções que nele se devem concretizar?

Evidentemente que esta solução levanta fortes objecções por parte dos que entendem que a Estação faz parte de um Complexo e que este, em termos globais deve desempenhar um importante serviço público visando contribuir para o desenvolvimento do Concelho. Como de costume, estas críticas são acusadas de partirem de quem “odeia” o privado e recusa activamente que este possa desempenhar um papel correcto. Trata-se de um antigo debate, em relação ao qual não é possível deixar de tomar posição: que parte do princípio de que está em causa uma importante função de serviço público, em que as mais valias produzidas devem reverter inteiramente em benefício do Concelho, não sendo aceitável que estas sejam desviadas para o seu exterior.

A Câmara Municipal, só por si, não parece ter os meios indispensáveis para garantir a recuperação total do edifício. Como proceder então? Tudo indica, e foi já claramente expresso que se está à espera de um investidor que tudo resolva. Sabe-se que se manifestaram recentemente interesses empresariais em torno da Estação, mas nenhum deles avançou em termos concretos. Porém, mesmo que esse investidor surja qual messias salvador, o que prevalecerá como proposta de recuperação, em termos das novas funções a desempenhar? A preocupação com a mudança “naturalmente” privilegiará a vontade de responder ao investidor, ainda por cima quando se sabe que se procura “mudar em cinco anos”. Neste contexto que esperam os responsáveis obter e alcançar? Esta mudança estará ao serviço de quem? Do desenvolvimento do Concelho ou do lucro do investidor? Não me parece que a reposta seja difícil de obter. O sentido da mudança fica esclarecido se efectivamente for este o caminho a seguir. À falta de ideias claras, aliás coisa que não parece preocupar minimamente quem deve decidir, a que se deve juntar a voracidade eleitoralista de tudo mudar sem um conceito orientador, o futuro do património cultural do Barreiro fica posto em causa, se este não for equacionado em termos de serviço à população. Veremos o que nos reserva o futuro.

Como é natural o investidor privado só investe se estiver convencido de que desse investimento retira lucro significativo. E diz-se que é “natural” porque tal é compreensível e razoável. Todavia, para garantir esse lucro o investidor tem de escolher dentro do leque das possibilidades potencialmente oferecidas pela Estação, aquela que maior garantia lhe dá para alcançar as suas finalidades (ou seja obter o máximo lucro). Nestas circunstâncias o leque fecha-se imediatamente, conjugando-se com as limitações características do próprio espaço (por ex: a Estação tem realmente condições para se transformar num hotel? Um centro de congressos permitirá na verdade retirar o lucro almejado? Que tipo de restaurante puderá sobreviver sustentadamente neste espaço? Etc). Afirmam os defensores da privatização, eventualmente em direito de superfície durante x anos, que bastará impor um conjunto de obrigações e/ou regras aos investidores para que se salvaguardem as funções desejadas e consideradas úteis desenvolver na Estação. Contudo, a questão assume uma complexidade inesperada quando se toma realisticamente e em devida conta que é muito difícil impor regras de funcionamento a quem dispõe do dinheiro para resolver o problema. É claro que tal ainda é mais difícil quando não há uma concepção clara da forma como deve ser resolvido. A perspectiva em que se coloca este texto defende abertamente que a Estação Barreiro-Mar deve ser equacionada no interior do Complexo

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Património Cultural - Barreiro Ferroviário do Barreiro, sendo altamente prejudicial para o Concelho tratá-la de forma individual e separada, na medida em que é o Complexo no seu todo que deve constituir o grande centro atractivo para o turismo. Só desta forma a Estação assumirá plenamente o seu valor do ponto de vista do desenvolvimento sustentado do Barreiro. Ora, ficou bem claro que a posição dos responsáveis não parece ser, de modo algum, esta. Tudo indica que o que interessa é recuperar o edifício respondendo aos interesses de quem se prontificar em investir. Neste perspectiva a Estação é considerada como uma unidade independente, interessando entregá-la o mais rapidamente possível a uma gestão empresarial privada que liberte a Câmara Municipal da responsabilidade que acaba de assumir e que se complica com a abertura de procedimento de classificação do Complexo Ferroviário. Como já se referiu, o edifício possui características próprias em termos arquitectónicos e uma história única que, em conjunto com as outras estruturas do Complexo, fazem desta uma autêntica “joia” dentro da Cidade do Barreiro mas assumindo um valor ínegualável à escala do País. Parece ser evidente que se a opção dos responsáveis for aquela que acima se descreveu, nada disto prevalecerá. Pode argumentar-se que a visão da salvaguarda do Complexo Ferroviário é pura utopia. Ou seja, não tendo a Câmara Municipal capacidade para proceder ao financiamento da recuperação e, por outro lado, à gestão do Complexo nos termos daquilo que aqui se defende, que é a perspectiva do “turismo ferroviário”, dificilmente interessará ao investimento privado, cair-se-á num impasse sem solução. Acresce a esta argumentação o facto de as Oficinas dos Caminhos-de-ferro e a Rotunda das Máquinas não estarem sob a responsabilidade da Câmara. Não nos parece que qualquer um destes argumentos valha por si próprio. Este último não colhe pela simples razão de que felizmente estas estruturas de facto ainda não passaram, porque não devem passar na medida em que a responsabilidade do estado de degradação em que se encontram pertencer a outras entidades, não sendo correcto aceitar-se que o custo da sua recuperação seja suportado integralmente pela população do Concelho do Barreiro. Por outro lado, trata-se de um Complexo, integrando todos os elementos referidos e assim foi entendido pelo processo de abertura de procedimento de classificação. A visão pessimista de que uma perspectiva de serviço ao Concelho não é viável por falta de financiamento para a recuperação do Complexo, não só coloca os barreirenses perante uma atitude fatalista da parte dos responsáveis, como também demonstra que há falta de vontade em lutar pela perspectiva que será a mais correcta. De facto, esta atitude constitui um bom alibi para, por um lado evitar o trabalho fundamentador de uma decisão ancorada no estudo e na pesquisa das possíveis soluções alternativas, possibilitando dessa forma a emergência de todos os oportunísmos e, por outro lado permite avançar com a maior rapidez proporcionada pela situação no processo de transformação da Cidade do Barreiro sem fundamentação sólida, assente na simples opinião casuística que parece ser tão do agrado de alguns.

finitiva. Pergunta-se: de quem foi a responsabilidade desta situação? Não será justo exigir às entidades responsáveis por esta que custeiem a sua recuperação? Não foi pela sua incúria, desinteresse e falta de atenção, que se chegou ao estado actual (apesar dos inúmeros apelos e chamadas de atenção que ao longo das últimas décadas lhes foram dirigidas)? A definição dessas entidades e do grau da sua responsabilidade impõe-se por cima de todas as conivências políticas e oportunismos eleitoralistas. É a partir destas responsabilidades que se deve colocar a questão do financiamento da recuperação

O “ouro” do Barreiro pode perder-se Numa das sessões de debate sobre a problemática do património cultural do Barreiro promovida conjuntamente pela Associação BarreiroPatrimónio, Memória e Futuro e a Cooperativa Cultural Popular Barreirense, a presidente desta última classificou este património como o “ouro” de que o Concelho dispunha como factor de revivificação comunitária. A imagem é significativa e ainda que em termos metafóricos, traduz bem a realidade. O Barreiro dispõe de uma “mina de ouro” que está à sua disposição se a souberam utulizar de forma justa e eficaz. Contudo, o “ouro” do Barreiro tem um duplo significado. Por um lado, os edifícios ainda recuperáveis, como é o caso do Complexo Ferroviário, desde que devidamente tratados, constituem um potencial enorme de criação de riqueza local. Por outro, estes mesmos edifícios e os espaços urbanos que ocupam são objecto de cobiça por parte dos potenciais investidores imobiliários. Parece ser fácil adivinhar o que acontecerá no momento em que a “febre” turística de massas chegar à Cidade do Barreiro. É nossa convicção que o Barreiro está seriamente ameaçado por esta situação, e o seu “ouro” pode escapar-lhe para servir interesses que lhe são alheios. Esta situação refere-se directamente ao património cultural se deste não se tomar a devida conta. No passado recente assistiu-se à autêntica vandalização de diverso material ferroviário, precioso como testemunho histórico (desde máquinas a vapor únicas e outra maquinaria) vendido ao desbarato ou pura e simplesmente destruído ( por ex., uma antiga máquina a vapor foi vendida para o estrangeiro por uma “tuta e meia”. Qual seria o interesse de vir comprar a Portugal uma velhíssima máquina dos antigos comboios?). É um facto que esta situação se deveu à incúria e ao desinteresse dos directos responsáveis que, umas vezes por pura estúpida incultura, outras vezes por falta de compreensão do significado das “velharias” que tinham à sua guarda foram condenadas à sucata. Evidentemente que a questão assume uma gravidade muitíssimo maior e é inaceitável quando se desqualifica o espaço patrimonial considerando que se trata de ruínas sem qualquer interesse que devem dar lugar a construções modernas.

Mas então qual é a solução para o magno problema do financiamento da recuperação e da gestão do Complexo e da própria Estação? Defende-se aqui que o Complexo Ferroviário deve constituir uma estrutura museológica viva, cultural e educativamente activa no presente, turisO “ouro” do Barreiro constituído ainda por belos edifícios como a Estaticamente dirigida a um público alvo bem específico, mostrando o que ção Barreiro-Mar, ou então por espaços amplos cheios de maquinaria foi a história do caminho-de-ferro em Portugal, específicamente no Sul que, sendo obsoleta, transporta uma história riquíssima de trabalho do País na sua relação com o todo nacional. Mas também apresentanhumano e progresso tecnológico, pode estar seriamente ameaçado se do a história excepcional da história do Concelho do Barreiro em todas deste não cuidarmos com o devido respeito. Não é difícil compreender as suas componentes, que assume características próprias, mas que que a situação depende do grau de consciência com que a população também são de especial importância na história do desenvolvimento “defender o seu ouro”, poi este é propriedade da comunidade – é um industrial do País. Isto significa que a sua recuperação não interessa bem público e como tal foi concebido quando foi construído. O papel unicamente ao Concelho e à sua população pois diz respeito a toda a daqueles que estão alerta para esta realidade e por ela se têm batido, é Nação. absolutamente crucial e consiste não em se preocuparem com a “pesca” dos investidores, mas sim com a luta contra o oportunismo pronto O estado em que se encontra este riquíssimo património é de desolaa todas as cedências em nome das fachadas pintadas. dora degradação, nalguns aspectos assumindo carácter de perda de-

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Patrimóno Cutural - Barreiro CENTRO INTERPRETATIVO DA REAL FÁBRICA DE VIDROS DE COINA Carla Marina Recordar a História Projectar o Futuro

A Real Fábrica de Vidros e Cristalinos de Coina insere-se na polítida de desenvolvimento industrial do rei D. Jão V, a sua construção integra-se num período de grande actividade manufactureira deste reinado (1714-1742). Foi mandada construir de raiz por este rei, em 1719, no então concelho de Coina, sendo “uma das primeiras experiências modernas da manufactura vidreira na Península Ibérica, anterior à fundação da Fábrica de Santo Ildefonso, em La Granja (Segóvia), inaugurada uns anos depois, em 1727, com o contributo de artífices estrangeiros que trabalharam em Portugal.”( Custódio Jorge, pág.20, “ A Real Fábrica de Vidros de Coina (1719-1747) e o vidro em Portugal nos séculos XVII e XVIII”, ed. Ministério da Cultura,Instituto Português do Património Arquitectónico, Câmara Municipal do Barreiro, jan,2002) De acordo com o mesmo investigador os produtos vidreiros da Real Manufactura foram conhecidos no País, no Brasil, em Espanha e na China, onde chegaram quando D. João V pretendeu renovar as realações com o Império do Oriente. Relativamente à sucessiva utilização do espaço onde se encontra a estação arqueológica do vidro Jorge Custódio refere, na obra já citada “Numa obra manuscrita da autoria de Filipe

Néri da Silva Coutinho, denominada Passeios Divertidos, o autor, que se dedica à apresentação instrutiva dos metais de Lisboa e seu termo, refere-se à mina de azougue de Coina e ao poço que” fora da Fábrica de Vidros de Coina”, manifestando um conhecimento da antiga manufactura, cinquenta anos depois da sua demolição. Aliás o manuscrito é contemporâneo da redescoberta da mina de azougue de Coina, estabelecimento que prometia “abundancia” e cuja mina estava em estado nativo. As crustas tenues de Mercúrio Corneo que envolvem os torrões de area mostrão a extenção em que ele se acha disseminado, tanto no poço do Concelho, como da antiga fábrica de vidros hoje de chitas.” A fábrica de chitas e zuartes foi montada a partir de 1781 e laborou até 1814. Durante a campanha arqueológica realizada com a direcção científica do professor Jorge Custódio, ficou demonstrado que esta fábica de chitas tem os seus alicerces contruidos sobre as estruturas da fábrica de vidro. Sucedeu-lhe a estamparia do algodão que existia em 1822, embora estivesse transitoriamente parada. No arrolamento mandado realizar pelo almoxarife dos Fornos de Vale de Zebro, “Em 1760 os edifícios da Real Fábrica de Vidros encontravam-se em ruína... O abandono, o “rigor do tempo” e o terramoto de 1755 tinham causado aquele estado da fábrica.” O arrolamento também nos permite saber que era constituída por nove edifícios e tinha um muro com três portões e um poço anterior à sua construção, esta descrição bem como a explicação construtiva que a acompanha permite-nos pensar na existência de uma grande fábrica. Em 1746 John Beare, adminis-

trador da fábrica de vidros de Coina, transferiu-a para a Marinha Grande, por falta de madeira combustível e sabemos que os primeiros catálogos da fábrica na Marinha Grande eram o catálogo de Coina, bem como sabemos que a diversidade de experiências realizadas em Coina e as diferentes tipologias de objectos e de vidros permitem que a Estação Arqueológica do Vidro de Coina seja, ainda hoje, considerada internacionalmente como uma das mais importantes da Europa. Em 31 de Dezembro de 1997 esta manufactura foi classificada como Imóvel de Interesse Público, pelo Decreto de Lei 67/97, pertencendo os terrenos, ainda hoje, aos herdeiros da família Xavier de Lima.

ca Municipal do Barreiro, e solicitou o desenvolvimento de um projecto de Centro Interpretativo em Coina. O projecto tinha como objectivo central desenvolver um programa que possibilitasse de forma sistemática e estruturada o conhecimento da real manufactura, integrando acções e materiais de suporte com carácter lúdico,pedagógico e cultural destinados a públicos diferenciados. O progama previa recuperar a ruína do edifício da Fábrica de Estamparia, permitindo a instalação de um centro de interpretação com a história das diferentes manufacturas que existiram no espaço, bem como da Mina de Azougue, mas com especial relevo para a manufactura vidreira. Preservar a estação arqueológica existente de forma a que fosse possível aprofundar o seu estudo e realizar concomitantemente campos de férias para estudantes.

Em 1999, a Câmara Municipal do Barreiro voltou a solicitar o apoio do professor Jorge Custódio para iniciar uma nova fase com duas finalidades:instalação de um Centro Interpretativo e Publicação do Livro “A Real Fábrica de Vidros de Coina(1719-1747) e o vidro em Portugal nos séculos XVII e XVIII”, fruto das escavações realizadas na década de 80, dirigidas cientificamente por Jorge Custódio e do seu aturado estudo de investigação. Com esta finalidade a Câmara apoiou a edição do livro, realizada pelo Instituto Português do Património Arqueológico Ministério da Cultura, lançado em Janeiro de 2002 na Bibliote-

Montar uma oficina de restauro e fabrico de réplicas, mas também de novar tipologias ligadas à evolução do vidro e a novos designs, abrindo a possibilidade de criação de uma pequena empresa criativa. Requalificar o espaço urbano envolvente. O projecto, na altura, contava legalmente com a participação do IPPAR. Seria importante voltar a este tema pela sua importância e pela possibilidade que abre de encontrar formas de dinamização das pequenas economias locais das zonas mais períféricas do Concelho, mas que foram no passado territórios fundamentais e pujantes no desenvolvimento do território que, hoje, configura o Barreiro.

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“MemĂłrias Vivasâ€?: o que ainda funciona deve continuar! Produtividade, postos de trabalho e turismo potenciam-se!


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