Santarém, Memória Quebrada (Histórias de Cidades)

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HISTÓRIASDE CIDADES

JNNiAREM

OUEBRADA TfrETTORIA Nos iardins das Portas do Sol escavações em cuÌso trazem à luz os vestígios da feitoria Íenícla que depois foi cidade romana e hoie é Santarém. Capìtal do Gótico, residência privilegiada

dos reis nos séculos

XIV

e XV, a cidade

Íol vandalizada

passado e quase todos os aeus tesouroa aÉísticos Íoram Apesar

a visita à capital de todas as depredações na auentura a aeÌ uma empolgante

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HISTÓRIASDE CIDADES

SANTARÉM ala o autor para um grupo de estudantes de Santarém: - Eu sou de Leiria, solo leiriense,' ele é de Lisboa, é lisboeta; vocês são de Santarém, são... - Escalabitanos, responde, espontânea, uma jovem. E eis o primeiro problema: porçfue se dizem escalabitanos os naturais de Santarém? Porque, diz-nos, no tempo dos romanos o nome da terra era Scalabis. O que aliás também se discute, porque há quem pense que Scalabis, importahte cidade romana, não era aqui, mas umas léguas mais a montante. Dicussões que suponho que vão agora acabar porle essa é uma das surezas Yeste programa - as muralhas da antiga Scalabis acabam de surgir à luz do sol. Pedi à arqueóloga dra. Ana Margarida Arruda para vir hoje aqui porgue foi ela a autora da descoberta. Está junto de nós. É a.pessoa a quem se fica a dever esse enorme serviço prestado à história de Santarém, e vamos escutá-la.

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DEPOIMENTO CIENTISTA

DE I'MA

É ela quem nos fala: As pessoas que negavam a identiÍicação de Santarém com a cidade romana de Scalabis justiÍicam a negativa com a ausência de dados. arqueológicos romanos em Santa-ém. Ora, quatro anos depois do . ,tício do trabalho arqueológico em que Santarém podemos afìrmar neste locaL durante a ldade do Ferro, existiu uma importante povoação, verdadeira teitoria dos povos fenícios no Ocidente. Foi sobre os ' vestígìos desse povoamento por povos uindos do Mediterrâneo oriental que surgiu um povoamento romano que inicialmente teve características miütares e depois se transtormou na cidade de ScaLabis, a actual Santarém. Diante de nós está um troço. de muralha que as escavações fizeram surgir nas Portas do SoI: Muro claramente datado dos Íinais do 7.o século a. C., inícios do 1.o d: C. Mas não são só paredes o que se tem descobetto, mas muito mateüal comprovativo de uma uida económica e social extremamente impoftante. Aqui chegavam, logo nos inícios da era cristã, vinhos italianos. azeite da Bética. variadíssi-

mos produtos alimentares do Norte de África. Aqui chegavam cerâmi' cas e outros produtos de uso comum de ofìcinas italianas e gaule' sas. Isto compÍova um potencial social e económico só possíveJ numa cidade impofiante. PeLos dados re' colhidos, deixou de haver motivos de dúvidas: Scalabis Íoi aqui.

r POROT'EMUDOU O NOME? Ora essa cidade aparece-nos, no período árabe, com o nome de Xantarin, ou algo semelhante. E daí vem o moderno Santarém. Como se explica esta mudança? Não sabemos. E para esconder a ignorância nasceu uma lenda.

U.ma lenda curiosa, que talvez diga mais do que parece. Vivia em Tomar uma jovem chamada lrene, Eirene, Iria (é tudo o mesmo) pela qual se apaixonou um cavaleiro chamado Britaldo. Mas a jovem prometera consagÍrar a vida a Deus e só por isso não correspondeu ao amor do cavaleiro. Ora a jovem tinha um confessor: o monge Remígio. E era tão bgla gue*o confessor também Êe afi:ixon'ou. Ela resistiu, mas bebbu uma poção mr1 lagrosa que ele lhe preparou. (Reparem como isto faz lembrar o Romeu e Juüeta, mas num sentido oposto: Iá o monge é Frei Lourenço, que dá a beberagem a Julieta para' a aproximar de Romeu, aqui Frei. Remígio faz o contrário). 99


HISTÓRIASDE CIDADES A jovem engoliu a tisana e o resultado foi que o ventre começou a crescer como se estivesse grávida. Britaldo sentiu-se ludibriado. Compreendia a vocação religiosa da mulher amada, mas não podia aceitar que ela engrraüdesse do confessor. Mandou, portaritq matá-Ia e atirá-Ia ao rio. As águasì{o Nabão levaram-na ao Zèzere, as do Zèzere ao Tejo, e o Tejo veio depô-la aqui diante de Santarém. Num alvo sepulcro de mármore, que hoje está sepulto nas águas, apareceu o corpo de Irene. E em memória disso Scalabis passou a chamar-se Santa Irene, donde vem Santarém. Ainda hoje se continua a dar esta explicação. É um disparate sem pés e sem cabeça, mas as tradições têm muita força. Esta Santa lrene nasceu apenas para explicar o miste'rioso topónimo. E por isso não deixou nenhum vestígio em Santarém, corno não poderia deixar de ser se -tivesse existido um culto primitivo e uma devoção na raiz da palavra. r

COMO NASCEM LENDAS

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Uma lenda muito poética de Santarém é a da pastorinha do Mont'Irás. O Mont'Irás é hoje uma das colinas em que assenta a cidade. precisamente aquela em que estivemos com os estudantes. O que a Ienda conta é que a pastora guardava por ali o seu rebanho quando passou o cavaleiro. EIa era bonita, o cavaleiro agiadou-se, muita jura, muita promessa, mas o cavaleiro nada conseguiu sem casar primeiro. Casamento secreto, por palavras de presente, como então era costume. Passados meses, a pastora pariu um filho e o cavaleiro negou tudo: nem sequer se lembrava de ter visto alguma vez aquela moça. EIa, desesperada, ajoelhou-se junto do Senhor crucificado: Um de nós dois mente. Senhor, tu, que sabes tudo, diz quem é o verdadeirol E todos viram o braço de Cristo desprenderse da cruz e descer sobre a cabeça da angustiada pastora. E aqui sabemos bem como a lenda nasceu. A imagem que vêem é do primeiro quartel do século XIil, e suponho àté que é o mais antigfo sç.íisto gótico existente em Portugal. E tem.uma estrlrnha particularidade: um dos bra{os está pregado à cruz, mas o outro desce, num gesto cuja significação hoje se ignora. Eoi dessa ignorânciã que nascep a Ieú; da: a posição do. braço n# foi es100

colha do escultor, foi milagre. É Cristo a dar razão à pastora, é a justiça suprema que exalta os humildes e confunde os poderosos. É imagem única em Portugal. Em Espanha outras e onde quer que existam originaram lendas semelhantes. A estranha imagem fez nascer a lenda, e a seguir a lenda protegeu a imagem. Durante seis séculos manteve-se o culto, e a isso deve que esta obra-prima, hoje semiesquecida até na sua terra, tenha chegado aos nossos dias. Está na Igréja de Santa Iria da Ribeira, para onde veio depois de ter sido expuÌsa do Convento dos Beneditinos, demolido depois de 1834. Assim se Íazem as lendas.

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UMA LENDA EM HISTÓRIA

TRADUZIDA

Para quê esta autópsia da lenda do Mont'Irás? Porque, por detrás de uma lenda, está sempre alguma coisa. Na lenda de Santa Irene está, suspeito eu, a conquista de Santarém. D. Afonso Henriques conquistou

a povoação aos mouros em 11,47. Foi ajudado na conquista pelos cavaleiros templários, e por isso deu o espÍritual da terra (isto é, as rendas eclesiásticas) à ordem do Templo. Ora nesse mesmo ano o Rei conquistou Lisboa, e escoÌheu par bispo da cidade um monge estran geiro, um tal Gilberto, de nação inglesa. E Gilberto anulou a dádiva já Íeita: o monarca não podia dar Santarém aos Templários porque Santarém não pertencia ao rei mas à diocese de Lisboa. D. Afonso Henriques teimou, o bispo protestou em Roma e o pleito aÍrastou-se doze anos. O Papa acabou por dar razão ao bispo,.e Santarém foi tirada aos Templários, que receberam em troca, o Castelo de Ceras, onde depois veio a ser a cidade de Tomar. Coincidência ou reminescência, as situações sobrepõem-se. O cavaleiro Britaldo, o gue ficou sem lrene, é um bom cavaleiro de Tomar, isto é, é um templário. O monge Remígio (aportuguesamento de Remy) é um estrangeiro, como Gilberto (aportuguesamento de Gilbert). Do mesmo modo que Gilberto intriga junto do Papa e tira Santarém aos


HISTÓRIASDE CIDADES Templários, Remigio cria a intriga junto de Britaldo, e tira Irene ao cavaleiro do Templo. Mas lrene, símbolo da justiça, sabe que o seu verdadeiro lugar não é em Tomar, mas em Santarém, que ela ajudou a ganhar aos mouros. Por isso, depois de morta, vem rio abaixo até ancorar em Santarém para todo o sempre. Só uma nota mais: esta lenda, apesar de narrar a vida de uma santa, não foi inventada no púIpito. E uma lenda anticlerical. O bom papei é o do cavaleiro, o mau é o do frade. É, portanto, provavelmente, uma lenda nascida em Tomar e inventada pelos Templários. Se não me engano nesta leitura, estamos perante uma ìenda relacionada com a própria conquista da cidade. r

NOSTITIì,IULOSDAGRAçA

Mas Santarém não tem só lendas. Tem filões inexgotáveis de história. Podíamos ir a Santa Clara, para lá recordar o drama dorido que foi a renúncia da Beltraneja. Ou a S. Francisco, prescrutar alguma pista para desvendar o mistério obscuro .por que está detrás da primeira aclamação de D. João II. Mas é cÌaro que não se pode ir a toda a par[e. Estamos na Igreja da Graça, diante da pedra tumular de Pedro ÁIvares Cabral, o navegador que na Páscoa do ano de 1500 lançou ferro pela primeira vez em terra do Brasil. É um lugar de visita obrigatória na romagem também já quase obrigatória dos PresÍdentes do Brasil a Portugal. EIes olham para esta Iousa sepulcral e surpreendem-se. Mesmo quando diplomaticamente se calam, pensam de si para si: como é possível que, na inscrição desta pedra, se omita um facto tão importante como o de Cabral ter descoberto o Brasil, e se mencrone uma situação tão banal e corriqueira como a de sua esposa, D. Isabel de Castro, ter sido camareira-mor de uma infanta, depois da morte do marido? A explicação está em que, dentro desta lgreja, Isabel de Castro con-

r sErs cERAçÕEs Neste outro túmulo estão os restos do Íamoso conde João Afonso Telo, tio da rainha Leonor Teles. Foi filho de um Afonso Martins Telo, alcaide-mor de Marvão durante aquela guerra de Portalegre de que já aqui falámos, ainda no século XIII. Vencido, refugiou-se em Espanha e o filho voltou a Portugal já no reinado de D. Afonso IV, para ser feito conde por D. Pedro I. E um caPítulo que Fernão Lopes conta saborosamente; cinco mil homens a iluminar com archotes as ruas de Lisboa, e o Rocio cheio de grandes montes de pão cozido, tinas de vinho e vacas inteiras a assar em espetos, para todo o povo poder comer. Foi de facto este João Afonso o maquinador da política portuguesâ durante os reinados de D. Pedro e D. Fernando. Ouando morreu deixou um filho, João Afonso como ele, que morreu às mãos dos camponeses de Penela, por se opor ao partido do Mestre. A viúva, com um filho pequeno, iefugiou-se em Castela. Esse filho voltou a Portugal e tomou parte na conquista de Ceuta, em 1415. Era D. Pedro de Meneses, cujo túmulo está junto de nós. Foi ele o primeiro governador de Ceuta: lá passou vinte e dois anos e diz-se que rompeu com o uso uma cota de malha de ferro como se fora feita de pano, tanto foi o desgaste que lhe deu. Morreu em Ceuta, no seu posto. O único filho varão foi D" Duarte de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer. Esse morreu em 1464 quando tentava dar tempo ao rei para se salvar. Do cadávér nada ficou, e o túmulo monumental que hoje se pode ver em Santarém ficou sempre vazio. A viúva guardava lá um.dente, piedosa lembrança do marido, mas até essa relíquia saiu do mausoléu. D. Duarte deixou um filho que veio a ser capitão de Arzüa. Mas seguiu a tradição farniliar: morreu de armas na mão numa cilada que os mouros lhe armaram. São seis gerações que preenchem duzentos anos de história. Nenhum morreu em casa.

tava mais que seu marido:1::-si dor. A lgreja e o grande panteão

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da Íamília Meneses e ela estava ligada a essa família. O pai, D. Fernando de Noronha, era sobrinho de outro D. Fernando de Noronha que casou com Brites de Meneses e se tornou, por esse casamento, o chefe da casa.

Em Julho de 1843 esteve aqüii exactamente no lfu;ar em que me encontto agora, uiía visita muito ilpstre: nem mais ilbm menos que Almeida èarrett. V.iirha visitar o velho chefè setembrista Passos Manuel, qQp, decepciorrado com a po-

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HISTÓRIASDE CIDADES

SANTAREM lítica, estava a viver em Santarém. A casa era esta. Está incrustada na muralha medieval. Era aqui a alcaçova real, e aqui moraram vários reis de Portugal. E Garrett não deixa de chamar a atenção para essa simbóIica situação: o chefe do Setembrismo, que então representava a esquerda política portuguesa, o homem que viria a ser o mentor da Patuleia, morava nos régios paços que tinham pertencido ao fundador da nacionalidade. . A visita está descrita em termos de grande encanto ÌÍterário nas Vrãgens na Minha Terra. Ê um capítulo para reler, depois desta visita a Santarém. Mas como sabem é também nesse livro que Garrett tem expressões de profunda mágoa perante o vandalismo que, no seu. tempo, devastava Santarém. Na realidade a revolução liberal trouxe destruições terrÍveis ao património monumental de Santarém. Todos os conventos foram profanados; houve velhas sepulturas que serviram de mangedouras para os cavalos dos esquadrões. Os palácios foram saqueados. Um cataclismo de violência e de ódio passou sobre a cidade. E do que era uma memória de pedra da história portuguesa, ficaram apenas farrapos dilacerados, pedaços incompletos. Os moradores de Santarém cha-

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mam a este museu, que é o Museu Argueológico, o museu dos cacos. E com alguma razão. Porque a capital do Gótico transformou-se, no século XIX, na capital dos cacos.

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A ENCRUZILHADA

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TUTURO O rio, que fez nascer Santarém, foi também o factor da sua decadência. Era nestes campos fertéis que nascia o azeite, o pão, o vinho. Mas tudo isso ia rio abaixo, carregado em barcas, e a comercialização fazia-se em Lisboa. Os lucros dos olivais de Santarém iam coalhar todos na Íoz do Tejo. E foi isso o que provocou a estagnação da cidade. E o futuro? É um futuro numa encruzilhada. São os escalabitanos que têm de escolher: escolher entre uma cidade com vida própria, actividades económicas e pólos comerciais bem seus, ou uma hospedaria de Lisboa, um grande dormitório onde se chega a correr para dormir à noite, e donde se sai na madrugada do dia seguinte para ir trabalhar em terra alheia. Um destino em encruzilhada. E só os escalabitanos podem r escolher.


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ciom uma tupet{ície Capital do distrito de 5064 kmz para 21 concelhos. A população residente é calculada em 454 lOO habitantes com uma densldade de 67 hab./kmz. O rio Teio é Írontelra de zonas ecologlcamente distintas de aquém e além-Teio. As guas ágruas são cestigo e bênção para as povoaçõer ribeirinhas. Ora devastam campoa dos agricultores, ora fertilizam esaas mesrnas têras. Gapital de festivais, eongÍÌesaos e feirae, tornare um centro de passagem paÌa quem tenha intenção de pernoitar e visitar alguns dog seus monumentos, muitos deleg desmantelados e crrias pedras estão amontoadas no Mugeu Arqueológico. Mae, na verdade, o seu grande monumento, é a grandiosidade que o rio tern, visto do interior do cemitério ou das Pottag do Sol.


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