Goa Cidade Ecuménica - Histórias de Cidades

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HISTÓRIAS DE CIDADES

GOA nrclo o programa aqur, às portas de Goa, apesar de pensar que foi mais longe, no meio das águas do Mandovi, que a Goa cristã nasceu. Sei que pïetender que cidade de Goa nasceu em Maio ou Junho de 1510 no meio do estuário do Mandovi pode soar como uma enormidade, porque Goa é cid4de miÌenária, e por detrás de cada Velha Goa estão sempre as ruínas de outra Velha Goa. Mas o que quero dizer é coisa diferente: esta cidade ecuménica, esta cidade que é indú mas não apenas indú; islâmica mas não apenas islâmica; cristã mas não apenas

vel quem sugeriu a Albuquerque que se apoderasse da cidade: os habitantes receberiam os Portugiueses como libertadores, garantiu. E assim foi. Destruídas as fortificações dos mouros na barra do rio, os portugueses entraram em Goa como amigos. Os princiPais moradores entregaram a Afonso de Albuquerque as chaves de Prata da cidade e ofereceram-lhe um formoso cavalo, montado no qual ele entrou festivamente em Goa, entre a multidão que lançava sobre ele chuvas de flores. Aconteceu isso no primeiro dia de Março, e Albuquerque, radiante, julgava que tinha ganho uma bela

tentaram resistir, com muita perda de gente. Por fim, ern 23 de Maio, AÍonso de AÌbuquerque deu ordem para que, pela calada da noite, tentassem embarcar nos navÍos que estavam diante da praia para abandonar a cidade. Mas tudo parecia estar contra nós. A Íorça da corrente engrossara com as chuvas da monção e fizera surgir bancos de areia à saída da barra. O primeiro navio que tentou passar encalhou e perdeu-se. Os Portugueses estavam encurralados. mandou colocar as Albuquerque naus no meio do estuário, amarráIas umas às outras, e esperar aÍ o Íim da monção.

cristã; esta cidade, que quis ser a cidade do Homem, independentemente da religião, da crença, do sangue e da raça, essa, a Goa de Albuquerque, nasceu no meio do rio, em Maio ou Junho de 1510.

cidade sem preço de sangue. Mas os grandes inimigos não tardaram a chegar: um, o exército do ldalcão, o poderoso rei maometano de Bijapur, ao qual Goa pertencia; o outro, a monção do Ìnverno, mais traiçoeira que o exército inimigo.

Em breve teve uma surpresa: nas cobertas das naus não havia só soldados e marinheiros. Havia também lindas mulheres. Na confusão do embarque, o Timoja, nosso aliado indú, tinha mandado vestir de grumetes as mais notáveis e mais belas mulheres de Goa e metera-a* ,.. a bordo. Não tardou que cada umá -*l' tivesse o seu namorado. Albuquer:lt' que não admite essa infracção aquma antiga lei:do mar, que ainda hoje se mantém: não pode traver mulheres a bordo dos navióéi de guerra. E, zangado; cieu ordem para que lhes preparassem uma câmara fechaàa na popa de uma das nauq, : e mandou trancá-la,e lá. *:'

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AS OFERECERAM.LHE CHAVES DA CIDADE

tinha Afonso de Albuquerque conquistado Goa em Março desse ano. Talvez conquìstar seja palavra Íorte demais para a situação. A pacífica Goa, de população indú, estava então sob o jugo de uma forte ocupação turca. Foi um indú notá-

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CASAMENTOS

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coNvÉs O Idalcão chegou por meados de abril com todo o seu poder: quaren' ta mil homens de pé, oito mil de de tiros cavalo, mil espingardões de fogo, diz Gaspar Correia. Durante quase um mês os Portugrreses

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Albuquerque mãndou colocaÌ as naus no meio do estuáÌlo do rio Mandovi e espeÌar o Íirn da monção

HISTÓRIAS DECIDADES Isto desencadeou um coro de protestos. Os mais atrevidos diziam que não era pecado nenhum, por_ que já tinham casado com elas. Nessa época era possível o casamento sem qualquer formalidade, por palavras de presente. Não sei se foi isso o que fez briÌhar no es_ pÍrito do grande capitão a intuição genial: Já casaram? Então vão casar outra vez. Fez alinhar de um lado os noivos ardentes, do outro as jovens cati_ vas; chamou o capelão, que era um frade dominicano chamado Do_ mrngos de Sousa, e deu ordem para que os casassem ali no convés. O frade, furioso, dizia que não, que não casava: era contra os mandamentos da Santa Madre Igreja casar homens cristãos com mouras não baptizadas. Albuquerque respondeu, com olhos duros: pois não os case$ por mandamento da Santa Madre lgreja, mas por mandamento de Afonso de Albuquerque. O frade obedeceu. A estola atou as mãos de europeus e de asiáticas. Nesse momento comeÇa a história da Goa ecuménica. I

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SEM PRECONCEITOS RAçA

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Depois desses casamentos no meio do Mandovi, Afonso de AIbu_ qurque promoveu muitos outros. A poÌítica de miscigenação era um dos seus objectivos. Jóvens soldados de Portugal casavam com as jovens da terra, com o apadrinha_ mento do governador. Em LÍsboa segura-se essa política com reser_ va: que se podia esperar de uniões entre pessoas tão diferentes? Os indús amigos da tradição censura_ vam aqueles casamentos com estrangeiros nascidos nem se sabia bem onde. Mas com os dotes, os empregos, os amens de Afonso de Albuquerque o feito dos casamen_ tos (era assim que o capitão lhes chamava) progrediu rapidamente. Mais de quinhentos jovens artífices, marinheiros, até fidalgos de alto sangue, casaram com mulheres de Goa. O preconceito da raça aca_ bou. Os missionários aceltaram aquela nova situação. Os filhos dos casais rnistos eram os chamados descendentes. Ainda hoje em Goa esta paiavra tem um ressaibo fidal_ g'o e qìretn a tem usa_a com orguÌho. As far..rílias mais nobres não são indianas. Não são portuguesas. São descendentes. Que grande,. Ìúcida lição, deram os FortugueseÀ do século XVI contra o âparteid!

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O MUNDO FICOU MAIS PRÓXIMO

No pensamento de Afonso de AIbuquerque, Goa devia ser a sede da presença portuguesa na vasta área do Índico. E esse pÌano ambicroso chegou a ser realizado. Goa, capital da Ásia cristã, pode-se dizer sem ampliar a verdade. Capital mais espiritual que política, é certo. Mas em Goa é essa a verdade: é uma cidade espiritual. O portugruês de Lisboa que chegar aqur, como eu cheguei, à espera de encontrar uma cidade portuguesa, como a pode encontrar em Braga, no Funchal ou em ponta Delgada, ou até mesmo em Luanda ou em Rio Preto, sente uma decepção. Como.acontece com os filhos, esta Goa pode aqui ou ali dar mais uns ares aqpai europeu ou à mãe asiática, mas ela tem uma individuaÌida{e própria,:.muito sua, uma inti-

midade goesa que é profundamen. te fascinante. Durante quatro séculos esta cidade foi um activo empório de civilizações onde conviveram, igual para rgual, indús, católicos, muçulmanos; onde negociaram mer"ádore"' e traficantes que chegavam de todas as partes do mundo, da Europa, não só portuguesa, da pérsia, da China, da Arábia, de Malaca. Um facto bem revelador: a oração de sapiência da abertura de um colégio de Goa, em 1b84, foi lida em latim, supostamente iingua universal; mas a seguir foi proclamada em desasseis idiomas, porque os discípulos do curso falavam desas_ seis línguas diferentes. Goa foi, assim, durante quatro séculos, um pólo de contacto entre Oriente e Ocidente. Uma espécie de amarra entre os dois grandes mastros deste navio que é o mundo. E o mundo ficou mais próximo. Os


DECIDADES HISTÓRIAS Dias metem-se nos escalares, sobem ao tombadilho de cada nau e a armada revolta-se contra o governador. Vão os capitães a bordo do navio almirante exigir o Perdão do prisioneiro; mas Albuquerque, com o pretexto de lhes mostrar as leis, mete-os um a um no porão, onde ficam prisioneiros. Os carrascos cumpriram o seu triste dever, o jovem Rui Dias moreu, por ter amado uma mulher de Goa, na foz do Mandovi.

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ficaram mais irmãos. Foi .-romens êsse o sentido da grande peregrÍnação portuguesa na India. I

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É por essa altura que se dá um episódio doloroso que iria ficar célebre, porque Camões o registou nos Lusíadas.' a morte do jovem fidalgo Rui Dias. O que se passou foi isto: nem todos os namorados estiveram pelos ajustes de casar com as belezas prisioneiras. Principalmente os fidalgos, que tinham de prestar contas dos pergaminhos e sonhavam com belos casamentos no reino. Claro que esses não compareceram aos casamentos do convés, e as namoradas foram fechadas na câmara da popa, como se ningruém as quisesse. Há sempre outra maneira de fazer as coisas. E eles.

pela calada da noite, conseguram ir secretamente até à nau das bel' dades, e voltavam aos seus navios antes que amanhecesse. foi PreAfonso de Albuguerque venido, e mandou rondar, alta noite, a nau das prisioneiras. Assim apanharam Rui Dias, um jovem de Alenquer, valente e bem humorado, de quem toda a gente gostava. Afonso de Albuquerque mostrou-se inflexível: a lei é igual para todos. Ele tinha ordenado que aquelas jovens fossem respeitadas como se fossem suas filhas, e as Ordenações condenavam à morte quem dormisse com a filha do senhor a quem se servia. A ordem de enforcar Rui Dias indignou toda a gfente: enforcar um jovem por uma razão daquêlas? Numa esquadra em que já não há que comer, náo há ágnra Para beber, já nem ao menos se pode amar? Os jovens fidalgos innigos de. Rui

OS RTMORSOS CAPITÃO

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Pode dizer-se: é a lei da guerra. A necessidade da disciplina. Mas ficou sempre essa dúvida: Albuquerque fez bem? Fez mal? Luís da Camões pensa que fez mal. Nos rlusíadasr interrompe o elogio que {az do conquistador de Goa por lhe lembrar esta nódoa negra e feia: pecados de amor na giuerra sempre foram perdoados, diz nas estrofes seguintes. É possível que Camões tivesse muitos cadilhos desses, e isso explica o relevo que deu ao 'caso. Mas o certo é que o próPrio Afonso de Albuquerque, durante os anos que ainda viveu, não esqueceu mais aquel.e episódio. Q.uando, pelos trabalhos, mal consumido com os homens por amoÍ de el-reÍ, e mal com el-rei por amor dos homens, sentiu a morte chegar, precisamente aqui, nesta foz do Mandovi, chamou o notário e ditou-Ihe, já com a voz embargada pela agonia, as suas últimas vontades. Entre as últimas lêmbranças do testamento vem esta: E quatro trintairos de missas pela alna de Rui Dias que eu ÍÍz justiçar na foz do Mandoui. Um trintairo são trinta. Ouatro trintairos era'quanto pesavam, na alma do grande capitão, os remorsos pela execução do jovem cavaleiro.

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A CONOUISTA DEFINITIVA

Finalmente a barra abriu, os navios puderam sair, e Albuquerque jurou que voltava. E voÌtou. Juntou ff.das as forças. que os Portugueses tinham no Incïico e caiu de sun)resq sobre Goa, em 25 de Novembro de i510. Era o dia de Santa Catarina. Dessa vez, Goa 1 não estava despreve5rida. O exército do ldalcão esperava o ataqt*Ì*-e .ráqpreparava-se para defender"a cida-f $f,fr 6 S '1 '. - ï .

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HISTÓRIAS DE CIDADES de. Era um exército muito numeroso, bem armado, e a vitória de Atbuquerque só se pode explicar pelo génio militar do capitão portugruês. Este lugar em que lhes falo é o AIto do Rosário, colina onde Afonso de Albuquerque assistiu ao ataque da cidade. Foi depois construída aqui, em comemoração, uma igreja, que conserva o seu perfil manuelino. Lá dentro há muitos sepulcros de portugueses e, entre outros, o de uma mulher goesa que casou com Francisco de Sá, um dos chefes da revolta contra Albuquerque por causa da morte de Rui Dias. Está ali enterrada com solenidade fidalga, com uma lápida que a recordará pelo tempo fora. E todo o templo é um melancóIÍco, abandonado vestígio desse esforço de aproximação entre os povos de continentes diferentes.

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UM

MUNDO

COM

UM

DEUS E Un4 SÓ HOMEM A presença portuguesa durou desde esse dia de Novembro de 15L0 até De ze mbro d e 1961. É um fenómeno de aculturação com aspectos extremamente curiosos. Uma espécie de tentativa de inseminação de uma cultura ocidental nesse fecundo, prodigioso ventre do OrÍente. E, apesar das mudanças

GOA

da História, a presença ocidental em Goa é luz que ainda não se apag:ou. Não Íoi uma mera aventura militar. Foi o ideal ecuménico de uma época em que os Portugueses acreditaram que podia existir gualquer que fosse o lugar onde nasceu. Foi esse o sentido de Goa. Chamaramlhe Roma do Oriente, e isso sublinha bem a sua missão espiritual. Sem Goa <Os Lusíadasr não teriam sido escritos. Nem os rtDiálogosl de Garcia de Orta. Nem as rrl-endas> de Gaspar Correia, ou as <Dé-

cadas da Ásiar, ou a obra de Couto. Goa foi a nossa flecha mais alta, o mais belo dos nossos sonhos. Vim ao acaso, sem data marcada, e encontro-me no meio da muÌtidão comovida que vem orar sobre o túmulo de S. Francisco Xavier. A mÍnha volta ardem luzes, são muitos milhares de luzes. Afundo-me na multidâo, partilho da comoção coIectiva. E quero ver nestas chamas um símboÌo: o tempo passa, mas à chama de esperança de um mundo rneÌhor, a essa nunca o tempo

exrrngue.


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