Porto, Semental da Liberdade (História de Cidades)

Page 1


f'1

Ic H@*ïiSï9,S"' 114

ì'

í


HISTÓRIASDE CIDADES

PORTO

ffiW tuK#

âlcunha de tripeÍÍo tem o valor de um brazâo. O que costuma dizer-se é que isso veio com a expedição a Ceuta, porque foi o Porto quem fez o abastecimento dos navios. Penso que isso é uma fantasia. A verdade é bem mais simples e mais vlgorosa. O Douro Litoral é rico de gado bovino, e era aqui no rio Douro que se abasteciam, desde o sécuÌo XIII, os navÍos que partiam nas viagens de comércio para os portos do norte da Europa. E, como toda a gente sabe, as vÍsceras têm um tempo de conservação muito inferior ao do resto 'a carne, e não se metem por isso --as barricas com a carne das reses e grande quantidade de vísceras ficavam em terra. Assim nasceu esse prato típico a que se chama rTripas à moda do Portor, e com eie a alcunha de tripeiro. A alcunha quer, portanto, dizer isso: um povo a trabalhar, a armar os navios e a abastecer mareantes, a cidade portuária, a beber no mar a força de raíz em terra. Essa povoação é um estreito burgo no séc. XIII, mas no séc. XV já dá provas de vitalidade surpreendente. r

OUE SIGNIFICA EPISÓDIO?

ESTE

Recordo aqui um episódio da história do Porto que é ainda hoje 'r.m enigma. Em 1355 o rei D. Afonso IV man-áou matar D. Inês de Castro. O Infante D. Pedro, marido dela como depois jurou, ou só amante, como João das Regras garantiu, ficou de cabeça perdida e pôs o País a ferro e fogo para guerrear o Rei. Depois de assaltar e queimar várias povoações chegou em frente do Porto com um exército de fidalgos ansiosos por saquear a cidade. O Rei incumbiu o Prior do Hospital, D. ÁIvaro GonÇaÌves Pereira (o pai de Nuno Alvares), de defender a povoação. Tarefa difícil, porque a vila só em poucos pontos era cercada de muralhas já velhas. Oue fez ele? Exactamente o que vou ler: Fez muro dos pendões das naus que estavam, chantando as hastes deÌas peÌo campo arredor as gentes da wila e percebendo como as defendessem. Por outras palavras: Fez muralha com os pendões das naus que estavam no Douro, cravando os respectivos mastros

no chão, à volta da Povoação, e dispondo os moradores de Íorma a deÍender a posição. Já houve quem juÌgasse que o que ele Íez f.oí pintar umas muraIhas no pano; também se disse que, com os mastros, Íez barricadas ou construiu um paÌanque. Prefiro tomar o texto à letra: cravou na terra os mastros e deixou os Pendões ao vento. Porque os pendões tinham um valor de símboÌo, cada qual com os seus embÌemas. Muitos eram de nobres, que também traziam fazendas no mar. E o artiÍício resultou. Ao fim de L6 dias estabeIeceu-se a paz e o Pdrto foi PouPado ao saque dos Íidalgos.

TME TH U E N E A C E E Se isto fosse um livro, eu escrevla: II capítulo - o Porto do Vinho. (E aqui entre nós, pedia-Ìhes que reparassem que não disse: O Vinho do Porto; disse o Porto do Vìnho. Foi intencionaÌ porque realmente, o vinho não nasce no Porto nem nesta região. Vem de mais longe: cria-se nas ladeiras da Régua, do Pinhão, nas grandes encostas que descem em socalcos até ao rio. As uvas crescem aí, Ievam-se para as adegas, o vinho carregava-se em pipas nos barcos rabelos que vinham rio abaixo, e o que se fazia I l5


HISTÓRIASDE CIDADES no Porto era e é a comercialização. E a comercialização estava nas mãos dos ingleses. E aqui estamos perante um problema com muito interesse, que é o do Tratado de METHUEN. O tratado foi isto: o ministro inglês em Lisboa, o sr. John de Methuen, em 1703, fez este acordo com um governo português: os vinhos generosos de Portugal pagam em Inglaterra um terço a menos que os vinhos importados da França; em compensação os lanifícios vindos de Inglaterra não pagam direitos em PortugaÌ. Recordo isto porque este tratado mostra as consequências que podem resultar da integração da economia portuguesa num espaço económico mais amplo. Neste caso ainda hoje se discute muito: o tratado foi um bem? Foi um mal? A maioria dos comentadores diz que foi desastroso, porque nós exportámos vinho, mas o resultado foi a decadência da nossa indústria. Confesso a minha perplexidade: a indústria não decaiu porque mal existia. E em compensação nasceu uma riqueza nova. Foi nessa altura que o cultivo do vinho avançou por esses vales, progrediu até Trás-osMontes e gerou uma fonte de riqueza que ainda hoje existe. Se houve algum erro, foi o de não termos sido capazes de Íicar com essa fonte de riqueza nas mãos. Depressa vieram de Inglaterra agentes que se instalaram aqui na Foz do Douro, as grandes marcas do vinho Íoram de nomes ingleses e, realmente, os ingÌeses arrecadaram para si o melhor do negócio.

r REVOT.UçÃO, UXÍLIO r REGRESSO Chegamos assim ao terceiro Porto - o Porto da Liberdade. Foi nesta cidade que, em Agosto de 1820, eclodiu a revolução que veio a introduzir o regime liberaÌ em Portugaì. Uma revolução complexa, mas sem dúvida nenhuma, uma revolução libertadora. Revolução que visava libertar o País de uma série de atrasos. Em primeiro Iugar, de um certo tradicionalismo serôdio e fora de moda; depois, de uma tutela inglesa que nos estrangulava; por fim, de um regime poIítico que estava instalado com a capital no Rio de Janeiro, e que ia colocando o reino de Portugal numa situação de colónia. E tudo isso é denunciado no Porto. Lisboa não tardou a aderir à revolução do Porto e é assim que o liberalismo e as 116

formas novas da estrutura do Estado, são impÌantadas no nosso país. Devo-Ihes dizer que foi sol de pouca dura. Não tardou muito que o anterior regime, que apesar de tudo tinha muita força, não voltasse a impor-se, após a Vilafrancada. D. Miguel volta mais tarde do seu exílio, o País abraça outra vez a monarquia absoluta, mas há uma cidade que não se conforma. Essa cÍdade é o Porto, que quer ficar fiel à Carta, com a revolta de 1828. Também essa revolta acaba num mar de sangue. A gente do Porto diz não sei se com razão se sem ela. mas acho emocionante essa re-

minescência - diz que foi naquela árvore moribunda que foram enforcados os últimos conspiradores de 1828. Coitados - parece que estavam todos inocentes porque os culpados fugiram a tempo. Foram para a emigração. Estiveram em Inglaterra, daí passaram para os Açores, mas regressaram.

t

TAOIIELAS PRAIAST...

MALFADADAS

Eis os lugares do regresso. O primeiro liberal desembarcou nesta praia. A esguadra vinda dos Açores


PORTO

HISTÓRIAS DE CIDADES do PampeÌido, areal deserto, duas Ìéguas abaixo do Mindelo. O obelisco que está atrás de nós recorda exactamente esse facto: o desembarque da expedição liberal, no dia I de Julho de 1832. Gravada no obelisco está a proclamação de D. Pedro aos seus soldados: rSoldados: aqueLas praìas são as do malfadado Portugal.l Como vêem, a proclamação diz na última linha apenas: D. Pedro, Duque de Bragança. Só Duque de Bragança, porque D. Pedro já então tínha abdicado a favor da filha a Coroa de Portugal, tinha sido depois forçado a abdicar a coroa do Império brasileiro, voltava agora à Europa como defensor dos direitos de sua filha, a rainha D. Maria ïI. Mas tudo isto são tricas políticas porque o que realmente é importante é que D. Pedro representava a monarquia novai o Estado de acordo com as ideias do seu tempo. D. Pedro era a contemporaneidade. Foi exactamente isto o que lhe deu a vitória. Isso, e o apoio decidido da cidade do Porto. Porque ele marchou para o Porto, onde esteve cercado, com dificuldades terríveis. Em Julho do ano seguinte os liberais, num golpe de sorte, entraram em Lisboa, em 1834, em Évora Monte, marca-se definitivamente o tempo do Liberalismo em Portugal. Vai começar a construção do Estado moderno, sobre os escombros da monarquia absoluta tradicional.

r PATULEIA E GRAMIDO

pairava ao largo e veio num escaler com um emissário: o capitão de engenharia Bernardo Sá Nogueira. Dirigiu-se à Fortaleza e mandou dizer ao comandante, o brigadeiro Cardoso de Meneses, miguelista ferrenho, que devia reconhecer os régios direitos da Senhora D. Maria. O brigadeiro mandou a resposta: o capitão que saÍsse daÌi quanto antes, para não ser vítima da justa ira dos seus soldados. O capitão, com sobranceira dignidade, deu a missão por cumprida, voltou ao navio e a esquadra navegiou algiumas milhas para o Sul e foi desembarcar a expedição na praia do Arnoso

Um dos momentos mais dramáticos tem lugar nesta casa mais ou menos arruinada em que nos encontramos. É a Casa Branca, no Ìugar do Gramido. Foi aqui que, no dia 29 de Junho de 1847, foi assinada a Convenção de Gramido, que pôs termo a uma guerra civil. Chamou-se a Guerra da Patuleia. Já se tem dito que a estranha paIavra vem de pata ao léu, isto é, de pé descalço. Mas nesta altura o pé descalço em Portugal era tão frequente que não impressionava ninguém. Patuleia é uma palavra quer dizer chaldraespanhoÌa baldra, uma tropa fandanga sem discipÌina nem aprumo. Era a alcunha depreciativa que o governo de Lisboa dava às tropas da junta do Porto. Eram as tropa:s poquJalgp, era a causa mais progressiva ê que exigia reformas mais estruturais, contra o ponto de vista do g.overno em Lisboa, gue era conservador, moderado, muito respéitador da letra da Carta e da Rainha Senhora 117


HISTÓRIASDE CIDADES D. Maria IL O governo da Patuleia tinha sede no Porto, e durante a Guerra Civil impôs a sua lei e esteve a ponto de se apoderar de todo o País. Isso só não aconteceu porque as potências,intervieram. Veio a esquadra inglesa, veio o exército espanhol - quando a vitória da Patuleia estava eminente - obrigam ambos os partidos a assinar aqui uma convenção vexatória para ambas as partes. Uma convençáo nos termos que os estrangeiros ditaram. Esse facto veio introduzir na história nacionaÌ um período de desânimo e de desfalecimento.

r O 31 DE JANEIRO O último grande acontecimento polítÍco do século passado aqui no Porto foi o 31 de Janeiro. Falo-lhes disso num lugar que está extremamente ligado a esses factos. E Ìigado de uma maneira trágica. Estamos no adro da lgreja de Santo lldefonso, e a rua que está atrás de mim chamava-se nessa altura, Rua de Santo António; agora é a Rua de 31 de Janeiro, precisamente em recordação da tragédia que se passou nessa data. A tragédia veio do facto de um dos organismos da conspiração, para aliciar as pessoas e estabeÌe-

q

ï

PORTO cer um clima de confiança, fez constar que o major Graça estava no grupo dos implicados. O major Gra: ça era homem que infundia muito respeito aqui no Porto. Era o comandante do Batalhão da Guarda Municipal e essa força era um dos .grandes obstáculos a temer. Os conspiradores foram convencidos de que o oficial era um dos seus. Ora, após a proclamação da República, em frente da Câmara, os revolucionários subiram a Rua de Santo António. Aqui em cima, precisamente neste lugar, estava o Batalhão da Municipal em atitude ameaçadora. Os revolucionários viram que quem comandava a força era o major Graça, e avançaram sem medo. O major mandou-os parar, mas não foi obedecido. Julgavam que não era uma ordem a sério. O oficial mandou preparar e apontar, convencido de que intimidava o grupo. Mas ningruém acredita. E por fim deu a ordem de fogo. Partiu uma descarga serrada de fuzilaria. Entre os republicanos houve muitos mortos e feridos. O sangue correu pela rua. A revolução não terminou logo ali, porque os mais valentes não aceitaram a derrota. Fecharam-se na Câmara Municipal e resistiram algrrmas horas, e, com o 31 de Janeiro do Porto, a República tem os.feus primeüos mártires. A lembrança do 31 de Janeiro

é hoje um dos mais ilustres pergaminhos do Porto.

r SEMENTAL DA T.IBERDADE Estes episódios políticos Íoram um confuso caos, mas reparem como o sumário é impressionante: 7820 - Primeira revolução liberal portuguesa. 1828 - Resistência à restauração do absolutismo. 1832/3 - Toda a cidade apoia o exército libertador e concorre para o triunfo da liberdade em Portugal. 7847 - A cidade serve de capital ao movimento liberal da Patuleia. 1891 - Primeira revolução republicana em Portugal. O Porto mereceu, portanto, bem o seu título de berço da liberdade. E eu, que não aciedito nem em fadas, nem em varas de condão, nem em predestinações, não posso deixar de ligar isto com a forma como comeqei: Porto, terra do povo, cidade tripeira, povoação sem açaimo nem cabresto. Porque liberdade quer dizer exactamente isso: Iiberdade não é cartaz de eleições, nem palavra de demagogos. Liberdade é o direito de não depender, é obrigação de traçarmos, com os nossos próprios punhos, no grande mapa r do futuro. a rota do nosso navio.


...E

o G o ort.



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.