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OPINIÃO
O segundo espécime é o das pessoas invulgares ou extraordinárias. Os seres invulgares são os “que violam a lei, que são destruidores ou têm propensão para o serem, consoante as suas capacidades”. Estas pessoas são extremamente raras e é-lhes permitido serem criminosas pela sua própria natureza. Por um lado, como são promotores de uma qualquer ideia ou prática nova, vão necessariamente violar a lei velha. Aqui deixem-me introduzir uma citação que é particularmente esclarecedora. “[O]s legisladores e os inovadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando com Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão, etc., eram criminosos, visto que, ao proporem uma nova lei, violavam por esse facto uma lei antiga, venerada religiosamente pela sociedade e herdada dos antepassados, e visto também que, evidentemente, não recuavam perante o sangue, caso esse sangue (às vezes inocente e derramado heroicamente em defesa da lei antiga) os pudesse ajudar. É mesmo notável o facto de a maioria desses inovadores e benfeitores da humanidade terem sido uns derramadores de sangue particularmente terríveis. Numa palavra, deduzo que todos os homens, e não só os grandes, que saem, um pouco que seja, dos limites normais, isto é, capazes de dizer algo um pouco mais novo, têm de ser, pela sua natureza, obrigatoriamente criminosos – mais ou menos criminosos, evidentemente. De outro modo, ser-lhes-á difícil sair dos limites, quando eles não podem aceitar ficar dentro dos limites, por força também da sua natureza, e, na minha opinião, eles têm mesmo a obrigação de não aceitar tais limites.”. Por outro lado, as consciências das pessoas extraordinárias são de um tipo diferente e não serão afectadas pela transposição dessas mesmas barreiras. “Os crimes destas pessoas, evidentemente, são relativos e muito variados; na maioria dos casos exigem de diferentes maneiras a destruição do presente em nome da ideia do melhor. Se um desses indivíduos precisar, para concretizar a sua ideia, de passar por cima de um cadáver, do sangue, então poderá, a meu ver, no seu íntimo e em consciência autorizar-se a si mesmo a fazê-lo – isso, aliás, depende da ideia e da envergadura da ideia, há que notá-lo.” Como são extraordinários e os ganhos que oferecem ao Mundo são de tão elevada dimensão, não só conseguem transpor todas as barreiras e obstáculos que se impõe no seu caminho, como também são louvados na dimensão dos seus feitos. A “elevada dimensão” não deverá ser interpretada num sentido moral, obviamente, mas tão só de magnitude; e quando escrevo “todas as barreiras”, quero dizer que, na prática, não há limites para a eventual crueldade dessas pessoas, se se aperceberem de que são invulgares e de que propõem algo novo, de uma dimensão notável. Portanto, “[a] primeira categoria é sempre senhora do presente, e a segunda é senhora do futuro. Os primeiros conservam o mundo e multiplicam-no numericamente; os segundos movimentam o mundo e levam-no até um objectivo. Ambas as categorias têm o direito absolutamente igual de existir. Numa palavra, na minha ideia todos têm direito igual, e – vive la guerre éternelle – até à Nova Jerusalém, como é evidente!”. A mundivisão apresentada é uma de natureza essencialmente conflitual. Vivemos numa guerra eterna (“guerre éternelle”) até voltarmos para junto de Deus, para a Nova Jerusalém. Essa oposição é marcada pela existência de duas classes, uma que reproduz o Mundo e outra que movimenta o Mundo, sendo que a segunda é necessariamente criminosa e derramará sangue, se necessário. Desta forma, não são as massas ordinárias que conduzem ao conflito, mas antes um número deveras limitado de seres invulgares. Os líderes políticos parecem pertencer a esta segunda categoria, uma vez que têm o poder de declarar a Guerra e de dispor das vidas das pessoas ordinárias. Historicamente, são incontáveis os anos que são passados em Guerra [4]: Roma viveu cerca de metade da sua existência em conflito; os EUA, desde 1776, estiveram 100 anos em combate; no último século, a Europa foi o epicentro de duas Guerras Mundiais. De facto, é das Guerras que surge a configuração dos países e, portanto, do Mundo. “Don’t you know the world is built with blood!”, dizia Socko [5]. Na mesma linha, Virgílio já havia escrito que “[o] mundo é como um carro à desfilada” [6]. Infelizmente, a Guerra comanda os destinos da Humanidade e dos seres humanos, colectiva e individualmente. O Mundo move-se com as Guerras. Daqui se depreende que o tempo e o aperfeiçoamento moral não andam necessariamente de mãos dadas. Frequentemente, esquecemo-nos disso mesmo. Por cá, apesar da Guerra Colonial (1961-1974), a população vai perdendo a memória do conflito. A nossa geração só conhecerá os seus episódios pelos livros ou pelos avós. Em Portugal, vivemos em Paz há 48 anos: sensivelmente ao mesmo tempo em que vivemos em Democracia. Para o bem e para o mal, o ser humano tem uma capacidade de adaptação tremenda. Assim, quando a Paz se torna regra, habituamo-nos a ela. Inversamente, se for a Guerra a realidade, a violência é o dia-a-dia. Ingenuamente, quando vivemos em Paz, tendemos a negligenciar o conflito. Desta feita, as teorias que melhor NOVA EM FOLHA