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SUÉCIA E FINLÂNDIA NA NATO

O segundo espécime é o das pessoas invulgares ou extraordinárias. Os seres invulgares são os “ que violam a lei,

que são destruidores ou têm propensão para o serem, consoante as suas capacidades

” . Estas pessoas são extremamente raras e é-lhes permitido serem criminosas pela sua própria natureza. Por um lado, como são promotores de uma qualquer ideia ou prática nova, vão necessariamente violar a lei velha. Aqui deixem-me introduzir uma citação que é particularmente esclarecedora. “[O]s legisladores e os inovadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando com Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão, etc., eram criminosos, visto que, ao proporem uma nova lei, violavam por esse facto uma lei antiga, venerada religiosamente pela sociedade e herdada dos antepassados, e visto também que, evidentemente, não recuavam perante o sangue, caso esse sangue (às vezes inocente e derramado heroicamente em defesa da lei antiga) os pudesse ajudar. É mesmo notável o facto de a maioria desses inovadores e benfeitores da humanidade terem sido uns derramadores de sangue particularmente terríveis. Numa palavra, deduzo que todos os homens, e não só os grandes, que saem, um pouco que seja, dos limites normais, isto é, capazes de dizer algo um pouco mais novo, têm de ser, pela sua natureza, obrigatoriamente criminosos – mais ou menos criminosos, evidentemente. De outro modo, ser-lhes-á difícil sair dos limites, quando eles não podem aceitar ficar dentro dos limites, por força também da sua natureza, e, na minha opinião, eles têm mesmo a obrigação de não aceitar tais limites. ” .

Por outro lado, as consciências das pessoas extraordinárias são de um tipo diferente e não serão afectadas pela transposição dessas mesmas barreiras. “Os crimes destas pessoas, evidentemente, são relativos e muito variados; na maioria dos casos exigem de diferentes maneiras a destruição do presente em nome da ideia do melhor. Se um desses indivíduos precisar, para concretizar a sua ideia, de passar por cima de um cadáver, do sangue, então poderá, a meu ver, no seu íntimo e em consciência autorizar-se a si mesmo a fazê-lo – isso, aliás, depende da ideia e da envergadura da ideia, há que notá-lo. ” Como são extraordinários e os ganhos que oferecem ao Mundo são de tão elevada dimensão, não só conseguem transpor todas as barreiras e obstáculos que se impõe no seu caminho, como também são louvados na dimensão dos seus feitos. A “ elevada dimensão ” não deverá ser interpretada num sentido moral, obviamente, mas tão só de magnitude; e quando escrevo “todas as barreiras ” , quero dizer que, na prática, não há limites para a eventual crueldade dessas pessoas, se se aperceberem de que são invulgares e de que propõem algo novo, de uma dimensão notável.

Portanto, “[a] primeira categoria é sempre senhora do presente, e a segunda é senhora do futuro. Os primeiros conservam o mundo e multiplicam-no numericamente; os segundos movimentam o mundo e levam-no até um objectivo. Ambas as categorias têm o direito absolutamente igual de existir. Numa palavra, na minha ideia todos têm direito igual, e – vive la guerre éternelle – até à Nova Jerusalém, como é evidente!” .

A mundivisão apresentada é uma de natureza essencialmente conflitual. Vivemos numa guerra eterna (“ guerre éternelle ”) até voltarmos para junto de Deus, para a Nova Jerusalém. Essa oposição é marcada pela existência de duas classes, uma que reproduz o Mundo e outra que movimenta o Mundo, sendo que a segunda é necessariamente criminosa e derramará sangue, se necessário. Desta forma, não são as massas ordinárias que conduzem ao conflito, mas antes um número deveras limitado de seres invulgares. Os líderes políticos parecem pertencer a esta segunda categoria, uma vez que têm o poder de declarar a Guerra e de dispor das vidas das pessoas ordinárias.

Historicamente, são incontáveis os anos que são passados em Guerra [4]: Roma viveu cerca de metade da sua existência em conflito; os EUA, desde 1776, estiveram 100 anos em combate; no último século, a Europa foi o epicentro de duas Guerras Mundiais. De facto, é das Guerras que surge a configuração dos países e, portanto, do Mundo.

“Don ’t you know the world is built with blood!” , dizia Socko [5]. Na mesma linha, Virgílio já havia escrito que “[o] mundo é como um carro à desfilada ” [6]. Infelizmente, a Guerra comanda os destinos da Humanidade e dos seres humanos, colectiva e individualmente. O Mundo move-se com as Guerras. Daqui se depreende que o tempo e o aperfeiçoamento moral não andam necessariamente de mãos dadas.

Frequentemente, esquecemo-nos disso mesmo. Por cá, apesar da Guerra Colonial (1961-1974), a população vai perdendo a memória do conflito. A nossa geração só conhecerá os seus episódios pelos livros ou pelos avós. Em Portugal, vivemos em Paz há 48 anos: sensivelmente ao mesmo tempo em que vivemos em Democracia. Para o bem e para o mal, o ser humano tem uma capacidade de adaptação tremenda. Assim, quando a Paz se torna regra, habituamo-nos a ela. Inversamente, se for a Guerra a realidade, a violência é o dia-a-dia.

Ingenuamente, quando vivemos em Paz, tendemos a negligenciar o conflito. Desta feita, as teorias que melhor

enquadram e explicam o conflito nas Relações Internacionais (e que costumam cheirar a bolor) ficam esquecidas. Se vivêssemos num Mundo completamente uniformizado, com as mesmas concepções sociais, culturais, históricas, económicas, políticas, geopolíticas, geoestratégicas e de relações internacionais, isso não seria um problema. Na verdade, isso não acontece e, como tal, nem todos valorizam a democracia liberal nem a ordem internacional liberal.

As preocupações com a segurança e sobrevivência dos Estados, a par do interesse nacional definido em termos de poder, são ideias realistas que, sempre que uma nova guerra surge, voltam a estar na vanguarda da explicação das Relações Internacionais. Ao mesmo tempo, com o advento da Guerra, os actores estatais e os próprios indivíduos dirigem os seus interesses e preferências no sentido da securitização: o Estado volta ao lugar de destaque e o indivíduo aceita ser protegido pelo mesmo. Desta feita, Finlândia e Suécia já se preparam para aderir à NATO, numa viragem histórica dos cidadãos no sentido da preferência pela adesão [7]. Do mesmo modo, a Alemanha reforçou o seu orçamento militar para “ proteger a liberdade e a democracia ” [8], uma decisão com um impacto geopolítico e geoestratégico tremendo. Na mesma linha, o anterior Ministro da Defesa português, João Gomes Cravinho, anunciava a hipótese bem próxima de um aumento do orçamento militar [9]. Certamente outras teorias terão enorme potencial explicativo. Todavia, enquanto nos debruçamos sobre elas, há um Mundo real que continua à desfilada: e esse segue os caminhos da única constante da História – a natureza humana.

Quando falamos da invasão da Ucrânia, todos os caminhos vão dar ao indivíduo que lidera a Rússia. Vladimir Putin está no centro dos holofotes desde Fevereiro, após ter anunciado, pasme-se, uma “ operação militar especial” na Ucrânia [10]. Recentemente, têm vindo a público os crimes de guerra cometidos em Bucha [11]. Em Mariupol, a situação não é menos dramática [12].

De facto, parece-me que Putin é um ser invulgar e as pessoas extraordinárias serão sempre criminosas. Seja quando atropelam uma lei antiga, seja quando violam a lei internacional. Cometerão crimes, com certeza, para levar avante as suas ideias novas. Putin, aparentemente, não está satisfeito com a ordem internacional: como tal, avançará implacavelmente, como todo o seu poder, sobre o sangue e os cadáveres. É claro que não sabemos as verdadeiras intenções do Kremlim, mas, pegando em Raskólnikov, o potencial destrutivo de Putin é do tamanho da envergadura das suas ideias: e não lhe interessa minimamente que, para o Mundo conhecer as suas ideias, seja necessário passar por um, dez ou cem cadáveres (ao dia de hoje, já são vários milhares… [3]).

Putin é um derramador de sangue particularmente terrível e, por força da natureza, não aceitará manter-se nos limites da ordem internacional actual. A questão é que enfrentamos três problemas que impossibilitam o julgamento dos crimes: o sistema internacional é anárquico, não havendo uma entidade superior aos Estados; a Rússia faz parte do Conselho de Segurança da ONU; a Rússia recusa a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Infelizmente, a realidade do Mundo é muito mais dura do que gostaríamos que fosse. Nada podemos esperar da justiça terrena. Assim, resta-nos a justiça divina. Desta forma, podemos ter a certeza de dois factos. Por um lado, Raskólnikov, uma pessoa vulgar (embora acreditasse ser extraordinário), conseguiu a misericórdia divina. Por isso, como Lázaro, terá direito à redenção e viverá na Nova Jerusalém. Por outro, o destino de Putin não poderia ser mais distinto: nunca passará no purgatório.

Em consequência dessas acções e ideias novas de Putin e em sentido inverso, a classe inferior (dos vulgares e ordinários) ucraniana tem fins absolutamente desagradáveis [14]. Os homens adultos, dos 18 aos 60 anos, são obrigados a manter-se no país e, eventualmente, serão colocados nas fileiras para lutarem contra o invasor. As mulheres, as crianças e os idosos fogem como podem, refugiando-se noutras partes da Ucrânia ou fugindo para a Europa, nomeadamente os países fronteiriços que pertencem à NATO. Desta forma, temos os seres humanos vulgares e ordinários com as suas vidas destrutivamente reformuladas. Obedientes ao seu destino, morrem na (ou pela) sua pátria ou fogem dela – e nada há de humilhante nisso.

As únicas constantes do Mundo são, por isso, a obediência aos nossos destinos e o sofrimento: aos vulgares, atinge-os em vida, mas têm possibilidade de redenção; aos invulgares, atinge-os após a morte, e não há lugar para a redenção. Continuando a seguir Crime e Castigo, apercebemo-nos da proximidade amorosa, talvez transcendental, de Raskólnikov e de Sónia, que aceita sofrer com o protagonista. Num dos diálogos entre os dois, Raskólnikov diz:

“ – Não é a ti que reverencio, mas todo o sofrimento humano. ”

Resta-nos, pois, reverenciar o sofrimento humano.

[7] [8] [9] [10] [11] [12] [13] [14] https://www.publico.pt/2022/03/09/culturaipsilon/noticia/cancelamento-curso-dostoievski-causa-indignacao-italia 1998240 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60859247 Nome carinhoso de Raskólnikov Holslag, Jonathan. 2018. A Political History of the World – Three Thousand Years of War and Peace. Londres: Penguin Books. // Holslag, Jonathan. 2019. Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo. Alfragide: Dom Quixote, p.512-513 https://www.netflix.com/title/81289483; https://www.youtube.com/watch?v=KiiebNenB0k Holslag, Jonathan. 2018. A Political History of the World – Three Thousand Years of War and Peace. Londres: Penguin Books. // Holslag, Jonathan. 2019. Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo. Alfragide: Dom Quixote, p.194 // Virgílio. Smith Palmer Bovie, trad. para inglês, 1956. Virgil’ s Georgics: A Modern English Verse Translation. Chicago, IL: University of Chicago Press, p.102 https://www.tsf.pt/mundo/finlandia-e-suecia-na-nato-eventual-adesao-pode-ser-bastante-rapida-14748129.html https://eco.sapo.pt/2022/02/27/alemanha-reforca-orcamento-militar-para-proteger-liberdade-e-democracia/ https://www.publico.pt/2022/03/10/politica/entrevista/gomes-cravinho-aumento-despesa-defesa-ja-proximo-programa governo-cimeira-nato-1998188 https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/putin-anuncia-operacao-militar-especial-na-ucrania-combates-entre-forcas ucranianas-e-russas-sao-uma-questao-de-tempo https://pt.euronews.com/2022/04/05/imagens-confirmam-massacre-em-bucha https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/2022-04-06-Ao-minuto-Mais-de-cinco-mil-mortos-civis-em-Mariupol-40-das infraestruturas-sao-irrecuperaveis-1be18afe Com o caos que ainda se vive em território ucraniano, é impossível fazer um balanço credível das vítimas. No entanto, sabe-se que, infelizmente, já há milhares de vítimas. https://www.publico.pt/2022/02/28/mundo/video/fugir-criancas-salvar-vida-20220228-082954

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