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A efervescência cultural do Vale

Por: Larissa Brito

Quando falamos em berço da colonização germânica no país, precisamos entender todo o pioneirismo e vanguardismo que esse povo carrega. Não à toa, a região tem em sua história muitas primeiras vezes. Introduzir o trabalho e a cultura já consolidada em um outro lugar, onde as coisas ainda estão se estruturando, tem como consequência a inovação.

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Ao longo dos anos, com o desenvolvimento do trabalho e da educação, as expressões culturais se tornaram cada vez mais comuns por aqui. Se engana quem pensa que a cultura local se resume às famosas bandinhas alemãs, que são sim importantíssimas, mas que nem de longe representam toda a efervescência cultural da região.

Causaria estranheza ao leitor saber que na região está um artista que compôs — e ainda compõe — para grandes nomes da música brasileira como Paula Toller e Frejat? Ou que estas terras abrigam um museu cujo prédio e acervo são tombados pelo Instituto do Patri- mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)? Estes são apenas dois exemplos de toda a riqueza e diversidade cultural destes vales.

Aqui se destacam vários segmentos culturais: teatro, música, artes plásticas e audiovisual. Quando falamos em teatro é impossível não lembrar da Curto Arte, a companhia de teatro de Dois Irmãos, e da sua mais emblemática personagem: a Herta, vivida por Betinho Klein. Há anos, com muito bom humor, ele dá voz e vez às características de uma pessoa do interior. Afinal, arte é isso. É a possibilidade de se ver, de ampliar a voz e de reverberar.

Para o produtor cultural Ralfe Cardoso, a cultura deve ser estruturante. “Ela é bem recebida e bem-vinda. Foi a cultura que tornou possível a travessia e permitiu que saíssemos da pandemia com esperança e força para superação de algo que nossa geração nunca havia vivido. Não há desenvolvimento social ou econômico sem o fortalecimento da atividade que somente a cultura proporciona. Não há alternativa em relação à violência e barbárie que não seja a cultura”, avalia.

A arte tem o poder de unir o velho e o novo, a tradição e a vanguarda. É o caso do Centro de Tradições Gaúchas M’Bororé, localizado em Campo Bom, que há quase 40 anos propaga as tradições gaúchas através de invernadas de todas as idades e realiza, anualmente, um dos maiores rodeios artísticos do Estado, o Sarau de Arte Gaúcha.

Mas não para por aí: a região também é palco de grandes espaços culturais como o Teatro Feevale, em Novo Hamburgo, que se tornou a casa dos grandes espetáculos nacionais e internacionais aqui no Vale, recebendo mais de 1,5 mil pessoas por sessão.

E, claro, é impossível falar da nossa terra sem citar a grandeza dos criadores e curadores de arte. Muito se fala sobre a economia criativa que é pujante na região graças ao impulsionamento do setor coureiro-calçadista, fomentando a criação de agências de publicidade e escritórios de design de moda. Mas é necessário destacar a força da cultura voltada aos movimentos artísticos, que ainda representa uma forte fatia da economia.

Para Ralfe, secretário de Cultura de Novo Hamburgo, inclusive, há um amadurecimento do setor. “Cada vez mais se caminha para a profissionalização e aproximação entre governos, setor privado, sociedade civil e população em geral”, acredita. Sim, a cultura também movimenta a economia local e, ao longo desta reportagem, vamos te mostrar os principais desafios enfrentados por aqueles que dedicam a vida à arte nas mais diferentes manifestações.

Fundação Scheffel: arte, história e preservação em um só lugar

Impossível falar sobre arte na região sem citar a Fundação Ernesto Frederico Scheffel. Inaugurada em 5 de novembro de 1978 e tendo como sede o casarão de características neoclássicas construído em 1890 por Adão Adolfo Schmitt, a Fundação Scheffel comemora 45 anos como guardiã do acervo artístico de Ernesto Frederico Scheffel. São mais de 350 obras, expostas em ordem cronológica, nos três andares do prédio. A entidade é responsável pela gestão do Museu Comunitário Casa Schmitt-Presser e atua na defesa do patrimônio histórico e cultural da cidade de Novo Hamburgo.

Para o curador Angelo Reinheimer, a fundação foi quem lançou as bases para a preservação do patrimônio histórico na região. “Ela foi criada no contexto dos festejos dos 150 anos da imigração alemã. Foi o primeiro prédio restaurado e também o primeiro museu de arte da região. Esse patrimônio é a matéria-prima do desenvolvimento turístico e cultural aqui do Vale”, salienta.

Localizada entre a Capital e a Serra, a região é geograficamente privilegiada, fazendo parte da rota de turistas em todas as épocas do ano. Para Reinheimer, no entanto, todo esse potencial ainda não é aproveitado. “Faltam investimentos básicos para que as pessoas possam ter uma experiência mais satisfatória. Precisamos olhar para a estrutura, pavimentação e segurança pública. Temos um grande patrimônio arquitetônico, por exemplo, mas temos problemas estruturais que afastam os turistas e, com eles, emprego, renda e valorização. O patrimônio cultural não pode ser mostrado apenas nas festas, mas também no dia a dia da comunidade local”, defende.

Para ele, entre os principais desafios de se manter uma instituição como a Fundação Scheffel de pé é, justamente, a escassez de recursos. Arcar com um prédio do porte do casarão com as portas abertas é desafiador. Conservar as obras, também. Existem muitas pessoas habilitadas a realizar estes trabalhos na região, mas é uma mão de obra especializada e não é barata, pontua Reinheimer. “Infelizmente, não se tem planejamento na área a curto, médio e longo prazo. As coisas sempre são feitas de forma muito pontual. Isso atrapalha muito esse desenvolvimento, é um freio. Todo aquele que faz cultura precisa ter um espaço disponível: teatros, exposições e as cidades não oferecem isso. Temos artistas de todas as áreas de excelente qualidade, mas falta esse espaço de fomento”, avalia.

Nenung: poesia, contestação e música que ultrapassam barreiras

e alcançaram projeção nacional. Talvez uma das figuras mais emblemáticas, que há quase 40 anos está no cenário musical e passeia por diversos estilos musicais, seja o compositor Luís Nenung.

Evangélica, o artista começou a escrever. “Ali foi meu primeiro ambiente de transgressão, ali que eu aprendi a escrever. Eu escrevia tudo que eu não queria ser”, lembra.

Inspiração para novas gerações de artistas

Natural de Campo Bom mas com o coração hamburguense, Ernesto Frederico Scheffel nasceu em 8 de outubro de 1927 e se tornou um artista notável. Das primeiras lições de pintura a óleo que recebeu da sua tia Irene Jacobus, ainda na infância, passando por importantes escolas europeias, Scheffel conquistou uma carreira distinta e respeitada no mundo das artes, tendo como inspirações as tradições culturais e históricas de sua origem.

Dos pincéis aos instrumentos musicais. O vale respira cultura. Além das tradicionais bandinhas alemãs, a região se destaca em vários estilos musicais como rock, pop e sertanejo. São vários nomes que saíram da região

Sua trajetória na música começou como a de boa parte dos jovens dos anos 1980: através da contestação e do Rock and Roll que vivia um momento de grande efervescência. À frente da clássica banda A Barata Oriental, Nenung viu ali a possibilidade de extravasar toda a inquietude da adolescência.

Ainda durante o ensino médio, cursado na Fundação

A banda, que emplacou sucessos como Mares de Cerveja e Dançar Direito, foi um dos grandes nomes do rock gaúcho da década de 1980 e início dos anos 1990. Com o tempo, esse ambiente de desobediência e revolta não fazia mais sentido. “Ali pelos meus 20 e poucos anos, fiquei meio perdido, não sabia o que fazer. Então, comecei a compôr e tive a sorte de conhecer pessoas muito legais com quem fiz muitas parcerias. Me tornei o parceiro mais constante da carreira do Dado Villa-Lobos, Paula Toller, Frejat, entre outros”.

Com o tempo, Nenung viu a necessidade de criar um projeto que tivesse mais relação com o momento em que vivia e, assim, nasceu a The Darma Lóvers, banda de rock com influência budista. “Eu fui para o caminho mais suave até porque o rock me irritava, no sentido de que as pessoas iam lá mais para bater cabeça e jogar cerveja do que prestar atenção naquilo que eu queria conversar”, confessa.

Mesmo depois de sua morte, em 2015, Scheffel segue inspirando novas levas de artistas. Em 2022, o coletivo de artistas Jazzenhando realizou uma exposição com releituras de obras, em sua maioria, inacabadas do artista. Umas das obras, nomeada O que ele pensaria? foi feita pelo artista plástico Lenko e foi baseada num auto retrato de Scheffel. “Minha ideia era fugir completamente do modelo de arte dele e causar um certo desconforto. Usei cores que nem uso habitualmente, mas é uma das obras que mais chama atenção no meu atelier”, conta.

Lenko, que tem 32 anos e começou sua carreira em 2019, considera a região rica em agentes culturais, mas que acaba perdendo essas pessoas por não ter uma estrutura e investimento adequado em arte. “Acredito que isso não passe só pelo poder público, mas enquanto artistas também precisamos nos perguntar: o que é arte? E precisamos nos mobilizar em busca de melhorias”, alerta.

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