Revista usina da cultura Fevereiro 2014

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Bonecas em caixas Texto : Rosana Martins

Guardadas, dentro do guarda-roupa, no

quarto dos pais. Como se já não bastasse estarem nas caixas. Intocáveis. Definitivamente fora de alcance. Fora do brincar. Longe das mãozinhas de Ana. Ainda assim, eram suas, as bonecas. Havia ganhado do pai que fez uma viagem para Europa. Coisa chique e para poucos na época. Trouxe mimos para todos. Para a filha caçula, bonecas. Lindas. Uma de cada país visitado. A da Itália dava-se corda, e ela ninava seu bebê ao som parecido com caixinhas de música. Um encanto! A da França, uma noivinha, vestidinho todo rendado, um luxo. O soldadinho da guarda real britânica então, um amor. A boneca portuguesa tinha sete saias. A espanhola, uma bailarina de flamenco. Guardadas, enclausuradas dentro de caixas. “Se tu pegar toda hora vai estragar. Não vê que suja assim? Deixa aí... pra mostrar o que tu ganhou do teu pai”. Era o que ouvia quando ficava sentada ali, em frente ao guarda-roupa com as portas abertas. Só olhando. Olhando e dando nomes a elas, imaginando como seria bom levá-las para o pátio e brincar. Simples, brincar. É para isso que servem bonecas, não? Brincar. Abraçar, tirar e colocar as roupinhas. Posicioná -las em diversas situações imaginárias. Enfim... o vínculo normal entre uma menina e suas bonecas. Quando chegavam visitas, Ana vibrava. Sabia que a mãe diria: “Vai lá no quarto. Busca as bonecas que teu pai te trouxe da Europa”, enchia a boca quando falava “Europa”. Para isso que serviam. Exposição. Para brincar Ana tinha a Pedrita, sua boneca de estimação. Personagem dos Flinstons. Já toda esgualepada. Sem o ossinho na cabeça. Os cabelinhos cortados,

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unhas e bocas pintadas com esmalte. Não tinha mais sua roupinha original. Ficava peladinha mesmo. Pra cima e pra baixo nos braços da moleca. Ahhh! O que Ana não faria com aquelas, quase contos de fada, guardadas no armário, dentro das caixas, no quarto dos pais. É claro que faria misérias. Pois efetivamente brincaria. Brincaria. As bonecas sairiam das caixas. A menina tomaria posse daqueles presentes de exposição. Daria vida a elas. Ana trocaria os trajinhos, passaria a tesoura naqueles cabelinhos, quem sabe maquiagens definitivas, com esmaltes coloridos naqueles rostinhos. Novos looks conforme as situações imaginadas no brincar. Poderiam ser mães ou filhinhas, donas de casa ou artistas de TV. Poderiam ser o que Ana quisesse. Até mesmo daminhas de companhia como Pedrita. A boneca que não ficou em caixa, longe de ficar guardada. Pedrita estava sempre por perto. Brincando. Nas suas mãos.

Foto: Jader Klein


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