Boletim da UISG 180/2023

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CAMINHAR JUNTOS EM DIREÇÃO A UMA HUMANIDADE REGENERADA

Número 180 - 2023

CAMINHAR JUNTOS, EM DIREÇÃO

Boletim UISG Número 180, 2023 Apresentação 3 ...É o Teu rosto que eu procuro, Senhor! 5 Memória do Papa Emérito Bento XVI Ir. Nadia Coppa, ASC Por uma gramática do humano na vida consagrada 10 P. Carlos del Valle, SVD Onde nos situamos? Religiosos nas periferias – físicas, espirituais e existenciais 22 Ir. Juliet Mousseau, RSCJ Encarnação Profunda como Chamado Radical: Ecologia, Vida Consagrada e Amor 29 Ir. Ann-Maree O’Beirne, RSM O Sentido do Existir. Cultivar a esperança de regenerar a humanidade 37 Marcella Serafini Ministério da Palabra da mulher e sinodalidade na obra lucana 40 María Concepción Tzintzún Cruz, FMVD Irmãs pelo Meio Ambiente: Integrando as Vozes das Margens 51 Declaração A Vida na UISG 54 Conselho Directivo da UISG (2022-2025) 58 Staff da UISG 59
A UMA HUMANIDADE REGENERADA

APRESENTAÇÃO

Nós, com as reflexões contidas nesta edição do Boletim, procuramos vislumbrar um novo caminho compartilhado em direção a uma humanidade regenerada. Um caminho para o qual a Vida Consagrada pode oferecer uma contribuição profética relevante.

A Vida Consagrada é de fato chamada a levar ao mundo a missão do Espírito, que é a de construir a unidade, reconciliando as diversidades, através da busca paciente daquela harmonia que abraça todas as dimensões da vida humana.

Ser missão nesta terra habitada por irmãos e irmãs e regenerar a humanidade significa cultivar o sentimento de pertencer à família humana, de crescer na solidariedade e na responsabilidade ética, despertando a consciência de ser parte de uma natureza que deve ser cuidada, preservada e protegida.

A afirmação de que, como seres humanos, somos todos irmãos e irmãs, se não for apenas uma abstração, mas se tornar carne e se concretizar, nos coloca uma série de desafios que nos movem, obrigando-nos a assumir novas perspectivas e a desenvolver novas respostas.

(Fratelli Tutti, 4.128)

...É o Teu rosto que eu procuro, Senhor! Memória do Papa Emérito Bento XVI

Ir. Nadia Coppa, ASC

Como mulheres consagradas, amámos e apoiámos o Humilde trabalhador na Vinha do Senhor, acolhendo as intuições proféticas do seu magistério e deixando-nos questionar pelas suas linhas programáticas. Recordá-lo-emos pela humildade e sabedoria com que acompanhou a Igreja e a vida religiosa.

Por uma gramática do humano na vida consagrada

P. Carlos del Valle, SVD

Deus encarnado, Deus humanizado. Nosso Deus é Jesus, um homem pobre e fraco, que conhece o medo, a tentação, a dor, a rejeição, a alegria, a amizade. É difícil reconhecer o Filho de Deus num pobre ser humano. Se dizemos que Deus é humanizado, estamos dizendo que encontramos Deus no humano. A fé não é possível se ela não produz humanidade. Nossa vida seria sem sentido de qualquer outra forma. Ser consumidores de espiritualidade, espectadores da vida, nos leva a viver uma história embalada pelo vazio, fora da história de outras pessoas. Pelo contrário, estar consciente de tudo o que acontece nos conecta com a profundidade da vida cotidiana. Pedimos grandes sinais a um Deus ilusório, e não vemos os pobres sinais que nos são oferecidos pelo Deus real, que é sempre o fermento da humanização.

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Caminhar juntos, em direção a uma humanidade regenerada

Onde nos situamos? Religiosos nas periferias – físicas, espirituais e existenciais

Ir. Juliet Mousseau, RSCJ

Além daqueles marginalizados pela necessidade física, qualquer um que seja visto como menos que humano porque ele é “outro” precisa da luz de Cristo. Criar uma “cultura do encontro” significa ampliar nossos círculos para incluir aqueles que pensam e adoram de maneira diferente, aqueles que discordam de nós e até aqueles que parecem antipáticos. Uma cultura do encontro não é lugar de proselitismo, mas de busca de maior compreensão e reconhecimento da humanidade no outro que parece tão diferente.

Encarnação Profunda como Chamado Radical: Ecologia, Vida Consagrada e Amor

Ir. Ann-Maree O’Beirne, RSM

Nós, como religiosas, se aspiramos estar em comunhão com Deus, como podemos acolher e promover a comunhão com toda a criação? Francisco reconhece que quando nosso abraço é bastante amplo e profundo, começamos a sentir a dor e o sofrimento de toda a criação – toda a comunidade da Terra – dentro de nós mesmos. O apelo é o de expandir nossa compreensão da comunhão com Deus, a Encarnação de Cristo e nossos relacionamentos como mulheres com votos, para abraçar essa comunhão abrangente e nos permitir sentir com compaixão a dor e o sofrimento da Terra e dos pobres da Terra e buscar respostas apropriadas e eficazes. Contemplar uma teologia da encarnação profunda pode ajudar nossa reflexão como religiosas e o apelo radical que ela nos convida a engajar.

O Sentido do Existir. Cultivar a esperança de regenerar a humanidade Marcella Serafini

A natureza humana foi concebida, na mente eterna de Deus, como a mais nobre para cumprir o propósito supremo da criação. O Filho de Deus assumiu-o em sua totalidade, sem modificações ou melhorias; ao fazê-lo, Deus demonstrou que ama e aprova plenamente sua obra. Desde que foi assumido pelo Filho de Deus, a natureza humana será glorificada em cada indivíduo.

Ministério da Palabra da mulher e sinodalidade na obra lucana María Concepción Tzintzún Cruz, FMVD

A palavra profética de Jesus interpreta constantemente os acontecimentos da história, mesmo os sofrimentos mais cruéis de homens e mulheres que se assemelham aos de sua paixão, reconhecendo-os como parte do plano do Pai que prevalece para além das vicissitudes da história. A capacidade propriamente feminina de gestação e criação de filhos é sublimemente reconhecida como necessária para os discípulos de Jesus que estão envolvidos com todo seu ser na escuta e no cuidado da Palavra de Deus que eles proclamam até os confins da terra. A eficácia salvadora da Palavra pregada por Jesus também tem um impacto nos homens e mulheres restaurados por ele à sua dignidade humana, tornando-os suas testemunhas e, para muitos deles, transformando-os em ministros que proclamam esta mesma Palavra.

Irmãs pelo Meio Ambiente: Integrando as Vozes das Margens

Declaração

A publicação desta declaração visa criar uma plataforma para delinear princípios e orientações para um futuro mais sustentável, com base nos ensinamentos que as Irmãs Católicas adquiriram através de seu excepcional engajamento com as comunidades de base. Como um pilar da advocacia (defesa) do Meio Ambiente da UISG, esta declaração estimulará uma ação descentralizada e diversificada através do envolvimento de grupos religiosos e não religiosos, homens e mulheres, jovens e idosos, agências governamentais e organismos intergovernamentais, organizações internacionais e empresas privadas. Pedimos à comunidade de desenvolvimento global a se engajar com as Irmãs Católicas na promoção e realização de soluções ambientais integrais, para garantir um futuro seguro e promissor para todas as pessoas e para nosso planeta.

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Apresentação

... É O TEU ROSTO QUE EU PROCURO, SENHOR! MEMÓRIA DO PAPA EMÉRITO BENTO XVI

A Irmã Nadia Coppa é Superiora Geral das Adoradoras do Sangue de Cristo desde 2017.

É licenciada em Psicopedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de Florença, e tem dois mestrados: em Psicomotricidade e em Dependências Patológicas, bem como uma outra licenciatura em Ciências Religiosas.

Trabalhou como educadora no sector da reabilitação de toxicodependentes e alcoólicos em Pisa, como psicopedagoga e no campo da ajuda às mulheres maltratadas em Livorno. Tem sido também formadora humana e espiritual de leigos e tem praticado aconselhamento para mulheres em dificuldades.

Foi eleita Presidente da UISG a 10 de Maio de 2022.

A

XVI tocou-nos e envolveu-nos profundamente. Foi um momento importante na vida da Igreja que despertou sentimentos de sincera emoção e profunda gratidão. Prestámos homenagem ao Papa Emérito e sentimo-nos maravilhadas com a sua estatura moral e com o reconhecimento que surgiu espontaneamente naqueles que foram alimentados pela sua palavra. Do coração da Igreja brotou um obrigado em coro.

Em várias ocasiões, o Santo Padre tinha dito que a vida não é um círculo que se fecha, mas um caminho que avança para um encontro, uma linha que se orienta para a sua plenitude.

Agradecemos ao Senhor pela clareza da sua fé, pelo dom do seu pensamento, pela simplicidade com que sempre viveu e com que comunicou as profundezas do mistério de Deus.

Como mulheres consagradas, amámos e apoiámos o Humilde trabalhador na Vinha do Senhor, acolhendo as intuições proféticas do seu magistério e deixando-nos questionar pelas suas linhas programáticas. Recordá-lo-emos pela humildade e sabedoria com que acompanhou a Igreja e a vida religiosa.

Olhando para os anos do seu pontificado, é evidente que o Papa Bento XVI procurou levar a vida consagrada de volta ao seu núcleo original, que é a forma de vida assumida de

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passagem pascal do Papa Emérito Bento Ir. Nadia Coppa, ASC, Presidente da UISG

Cristo. “Pertencer ao Senhor – disse ele às Superioras Gerais reunidas em audiência a 22 de Maio de 2006 – significa ser queimadas pelo seu amor incandescente, ser transformadas pelo esplendor da sua beleza; a nossa pequenez é-lhe oferecida como um sacrifício de doce aroma, para que se torne testemunho da grandeza da sua presença para o nosso tempo, que tanto precisa de ser embriagado pela riqueza da sua graça”.

Não faltaram palavras claras e incisivas, no seu magistério sobre a vida consagrada, como testemunha e expressão da forma ‘forte’ como Deus e a pessoa humana se procuram mutuamente na atração do Amor. “A pessoa consagrada – partilhou Bento XVI – pelo próprio facto de lá estar, representa uma ‘ponte’ para Deus para todos aqueles que a encontram, um chamamento, uma referência. E tudo isto em virtude da mediação de Jesus Cristo, o Consagrado do Pai. O fundamento é Ele! Ele, que partilhou a nossa fragilidade, para que pudéssemos participar na Sua natureza divina”. (Papa Bento XVI, Homilia 2 de Fevereiro de 2010). Palavras fortes, que aceitámos, reconhecendo que construir a própria morada na

rocha, em Cristo e com Cristo, significa construir sobre uma fundação chamada Amor Crucificado.

Recordamo-lo pelo seu pedido firme e vigoroso de colocar a Palavra de Deus no centro da vida espiritual de modo a redescobrir a luz que a Sagrada Escritura, especialmente o Evangelho, dá aos nossos dias, ao nosso coração e à renovação da vida consagrada. “A Palavra de Deus é o próprio Cristo, que está e deve estar no centro da Igreja e da sua vida religiosa”. O que é impressionante é o seu testemunho cristocêntrico expresso na sua proclamação simples e direta e no seu trabalho claro e coerente. O discipulado é, para Bento XVI, uma resposta amorosa a Jesus Cristo, vivendo uma amizade pessoal com Ele e renovando interiormente a vontade de convergir para Ele, voltando constantemente o coração para a Páscoa, pela qual a vida adquire plenitude.

Ao ouvir Bento XVI, foi natural redescobrir uma paixão pela escuta orante da Palavra

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Ir. Nadia Coppa, ASC É o Teu rosto que eu procuro, Senhor!

que fala ao e no nosso presente, e que molda os nossos corações tornando a nossa vida diária num espaço sagrado de encarnação do Mistério. Apenas a aceitação incondicional da Palavra gera novidade e transforma. O caminho traçado por Bento XVI consiste em ser ouvintes assíduos da Palavra, porque toda a sabedoria da vida provém da Palavra do Senhor, de poder examiná-la com amor sábio. Dentro deste fecundo dinamismo do Espírito somos levadas a um encontro autêntico com a humanidade porque “vendo com os olhos de Cristo, posso dar ao outro mais do que as coisas necessárias no exterior: posso dar-lhe o olhar de amor de que ele precisa” (Papa Bento XVI, Deus Caritas Est).

A vida consagrada é uma planta rica de ramos que está enraizada no Evangelho vivido diariamente como o elemento que dá beleza e apresenta cada pessoa perante o mundo como uma alternativa fiável. É disto que a sociedade atual precisa, é isto que a Igreja espera: que seja um Evangelho vivo. O legado espiritual de Bento é o apelo a ser de Cristo, a manter uma chama viva de amor ardente no coração, alimentada pela riqueza da fé,

não só quando traz alegria interior, mas também quando está unida com dificuldades, aridez e sofrimento.

Como teólogo e amante da verdade, Bento abriu uma reflexão muito profunda sobre dois temas tão importantes: a verdade e o amor, que não são termos contraditórios, mas exigem e alimentam-se mutuamente, uma vez que “Sem verdade, a caridade escorrega para o sentimentalismo. O amor torna-se uma concha vazia, a ser preenchida arbitrariamente” (Papa Bento XVI, Caritas in Veritate).

Ele viveu e concebeu o seu pontificado como um serviço de amor, como uma “presidência do amor” consciente de que a doutrina da Igreja só chega ao coração de cada pessoa se levar ao amor. Este modelo de governo, humilde e simples, também nos encorajou a conceber a autoridade como um serviço generativo, procurando “fazer do amor unificador a nossa medida; do amor duradouro o nosso desafio; do amor que se dá a si próprio a

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“As mulheres experimentaram um vínculo especial com o Senhor que é fundamental para a vida concreta da comunidade cristã, e isto sempre, em cada época, não só no início da viagem da Igreja”

nossa missão!” (cf. Papa Bento XVI, Discurso, 19 de julho de 2008).

Somos conscientes do apreço de Bento XVI pelas pessoas consagradas, e o seu encorajamento a “ser testemunhas da presença transfiguradora de Deus num mundo desorientado e confuso” chega-nos ainda hoje como um apelo profético. Convidou-nos “a olhar para este tempo com o olhar da fé, a fim de podermos olhar para a humanidade, o mundo e a história à luz de Cristo crucificado e ressuscitado, a única estrela capaz de guiar os povos”. (Papa Bento XVI, Discurso, 22 de maio de 2006).

“A vida consagrada” – prossegue – “é importante precisamente por ser um sinal de gratuidade e de amor, e isto ainda mais numa sociedade que corre o risco de ser sufocada no vórtice do efémero e do útil (cf. Vita consecrata, 105). Testemunha a superabundância do amor que nos impele a “perder” a vida, como resposta à superabundância do amor do Senhor, que primeiro “perdeu” a sua vida por nós”.

Com sentimentos de cuidado e atenção, reservou palavras de esperança e profundo respeito pelas pessoas consagradas, especialmente pelas que vivem em situações de maior fragilidade, recordando que “Ninguém é inútil, porque o Senhor associa todos ao ‘trono da graça’”. Cada pessoa é um dom precioso para a Igreja e para o mundo, sedenta de Deus e da sua Palavra, mesmo e especialmente nos momentos de maior fragilidade” (Papa Bento XVI, Homilia, 2 de Fevereiro de 2010).

Com clareza, desafiou-nos a lutar contra a cultura secularizada que penetrou nas mentes e corações de não poucas pessoas consagradas, convidando-nos a superar o relativismo que empobrece a fé e a busca de Deus, empurrando-nos a viver na mediocridade.

“O Senhor” – disse ele – “quer homens e mulheres livres, não vinculados, capazes de abandonar tudo para O seguir e de encontrar tudo só n’Ele. Há necessidade de escolhas corajosas, a nível pessoal e comunitário, que imprimam uma nova disciplina à vida das pessoas consagradas e as leve a redescobrir a dimensão integral da sequela Christi”. (Papa Bento XVI, Discurso, 22 de maio de 2006).

Ele encorajou-nos a ser um sinal credível e luminoso no mundo: ser um fogo do Evangelho e dos seus paradoxos, sem nos conformarmos com a mentalidade do mundo, mas transformando-nos e renovando continuamente o nosso compromisso, para podermos discernir a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito para Ele (cf. Rm 12,2).

O Papa Bento XVI sempre reconheceu o papel especial das mulheres na vida da Igreja, atribuindo-lhes uma influência particular. “As mulheres desempenham um papel crucial na sociedade, devem ser encorajadas a abraçar oportunidades de crescer em dignidade de vida através do seu envolvimento na educação e da sua participação na vida política e cívica. O génio feminino pode organizar ações com o objetivo e a motivação de desenvolver redes mais amplas para partilhar experiências e gerar novas ideias.” (cfr. Papa Bento XVI, Discurso, 20 de Março de 2009). “As mulheres experimentaram um vínculo especial com o Senhor que é fundamental para a vida concreta da comunidade cristã, e isto sempre, em cada época, não só no início da viagem da Igreja” (Papa Bento XVI, Regina Coeli, 9 de abril de 2012).

Era de facto uma exigência do coração de Bento XVI cultivar o diálogo com a arte, como mundo da beleza. Esforçou-se, acima de tudo, para trazer à luz a beleza da própria fé, para assegurar que a fé não fosse apenas falada, mas acima de tudo celebrada. Trabalhou para que a liturgia fosse harmoniosa, porque é uma celebração da presença e obra do Deus vivo e porque se destina a conduzir-nos ao e para o mistério divino.

O caminho de Bento XVI, repleto de reflexões profundas que representam um imenso

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procuro, Senhor!

legado de sabedoria e fé, permanecerá no coração e na história da Igreja. O seu pensamento continuará a iluminar o caminho de todos aqueles que encontraram nele uma luz que ilumina a escuridão do mundo. O seu magistério, as suas três encíclicas – Deus caritas est, Spe salvi, Caritas in veritate –, a beleza e profundidade das suas reflexões e catequeses durante as audiências gerais irão certamente permanecer. Deixa-nos uma maravilhosa paternidade espiritual e eclesial, uma herança que marcou o século XX e os primeiros passos do novo milénio.

O Santo Padre deixa no coração um profundo desejo de oração como respiração e alimento para a alma e um oásis de paz no qual extrair a água que alimenta a vida espiritual e transforma a existência. Ele desperta em nós o anseio de Deus, o anseio de O procurar, de sair ao Seu encontro, enquanto se comunica dá-se a conhecer e inflama-nos com o Seu Espírito, fazendo-nos regozijar.

O seu testemunho como homem apaixonado por Deus e buscador do seu Senhor, é um convite a cultivar o desejo da busca constante de um Rosto, “Faciem tuam, Domine, requiram” (Sl 26,8), e a orientar o nosso caminho, tanto nos nossos pequenos passos diários como nas nossas decisões mais importantes, para a realização desta peregrinação do coração.

Caro Papa Emérito, a vós, a nossa profunda e eterna gratidão.

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POR UMA GRAMÁTICA DO HUMANO NA

VIDA CONSAGRADA

1. Aprender a viver

Ao longo dos anos, o vinho tornou-se azedo. O vinho azedo produz caras azedas, atitudes intolerantes, professores em vez de discípulos, senhores em vez de pastores, príncipes em vez de servos, juízes em vez de fascinados, estrutura hierárquica em vez do povo de Deus. É por isso que o salão de banquetes foi esvaziado de comensais, que apenas desejam viver felizes e desfrutar da vida que Deus lhes dá.

Há muitos juízes e faltam amigos da alma. Há muitos professores e flatam discípulos. Há muitos Religiosos que no coração têm ideias, instituições, medos, não pessoas. Religiosos que estão centrados no papel, não na missão, que transformam a tarefa num escritório, tornando-se funcionários do sagrado, e até pragmáticos, situados na vida de acordo com o sol que mais aquece. Pessoas sentadas na cadeira de Moisés, enferrujadas pelo sistema que já não responde aos pedidos humanizadores de mudança. Há comunidades onde a consagração é vivida como estatuto, como separação da vida em geral, dos leigos e dos pobres em particular. A vida religiosa é vista como cansada, despreocupada em ser vida, por muito religiosa que pareça ser. Deslocada face às profundas transformações da história. Tocada pela lepra da desumanização, precisa sentir a mão do Curador da

Não há sombra sem luz, não há luz que não produza sombra. O testemunho de muitos está perdido devido à incoerência de alguns. Hoje não há tempo para o desnecessário.

“Não é tempo de tratar de asuntos de pouca importancia com Deus”, diz Teresa de

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ternura. Padre Carlos del Valle é um Missionário do Verbo Divino. É doutor em Teologia Moral e de 1983 a 2013 trabalhou no Chile e foi Diretor da Revista Testimonio. Em Junho de 2013, foi nomeado Reitor do Colégio San Pietro, em Roma. P. Carlos del Valle, SVD

Ávila. O que é fundamental é a relação entre a Igreja e o Evangelho. O Evangelho não é teoria, doutrina, religião; é um modo de vida. É a razão de ser da consagração, homens e mulheres de fé, orientados para o Mistério, chamados a transformar a vida de acordo com o coração de Deus, estando de todo o coração em tudo e em todas as coisas. Na juventude aprendemos e na velhice compreendemos. Envelhecer é como escalar uma montanha: à medida que se sobe, as forças diminuem, mas a visão é mais ampla e mais serena. As pessoas estão interessadas em aprender a viver. Também as pessoas religiosas. Não nos concentramos em aprofundar o que é a Vida Consagrada. Estamos interessados em aprender como ser uma pessoa consagrada aqui e agora. A desvalorização da nossa vida não está nos grandes princípios, mas na encarnação destes princípios. Estamos interessados em conhecer não só os ideais que inspiram, mas também o nível de encarnação destes ideais na nossa vida. Conhecer uma flor, uma ferida, uma pessoa pobre, Deus... de joelhos, olhando de perto. O que é útil para viver é pouco: sabedoria evangélica. Não é fácil compreender a vida, as pessoas, o poder, as aspirações, a dor e os valores. Não precisamos de mais ideias, teorias, coisas novas. Se nestas páginas o leitor encontrar algo novo, espero que seja apenas energia em palavras, com vitalidade e o selo da vida real. Palavras que ajudam a orientar a nossa vida por experiências humanas e fé em Jesus Cristo, sendo pessoas com identidade bem definida e motivação bem alimentada. Precisamos de professores de vida humana, com linguagem simples, o que torna tudo transparente. O que é simples penetra mais fundo do que o que é complicado. Na reflexão sobre a Vida Consagrada sentimos falta de palavras capazes de unir a autenticidade daqueles que as pronunciam com as necessidades profundas daqueles que as recebem. Palavras frutuosas que, brotando do coração, se tornam energia que abre corações e os orienta para horizontes mais amplos. Palavras que abrem os poros da pele, janelas da alma. Tocar os corações é a melhor forma de mudar as mentes.

Na Vida Consagrada há boas pessoas que fazem o bem. Vidas simples que moldam outros corações para o humano. Estar com elas faz-nos sentir que a nossa vida pode ser melhor. Nestas pessoas vemos como Jesus aparece por outras palavras que refletem a deles, noutras vidas que tocam a nossa, noutros abraços que nos elevam. Experiência com o Verbo encarnado, que sempre humaniza. Estas pessoas, com o seu estilo de vida, situam-nos no que é a Vida Consagrada. Onde há vida vivida a partir do dom de si, aparece a encarnação do Verbo.

A fraqueza não é assustadora; a mediocridade sim. Essa espiritualidade leve que alimenta uma fé no bem-estar e conforto. Um conformismo corrosivo que obscurece o olhar e entorpece o coração face à realidade humana. A superficialidade é a grande doença dos religiosos. Aqueles que carecem de valores sólidos acabam em hedonismo. Na Vida Consagrada não é uma questão de fazer algo de bom, mas de alcançar o melhor. Estamos ameaçados pela tragédia de não querermos encontrar o melhor para ultrapassar as crises. Certamente que os melhores ainda se encontram na brecha. Não há um bom médico, um bom professor, um bom pedreiro que esteja em crise no seu sector. O Papa Francisco provoca para dar forma e visibilidade a uma Vida Consagrada que sai, a uma espiritualidade de encontro, a uma diakonia de misericórdia e ternura. Uma chamada para encontrar na religião uma resposta orgânica, não apenas emocional, passageira e estéril. Podemos acolher as palavras do Papa como exortações piedosas, não como um fermento de mudança na vida e na missão.

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2. Dedicados a vender superficialidades?

Um pássaro ferido não pode voar, e um pássaro que está preso a um galho de árvore também não pode. Os ramos de apego são nossas superficialidades que nos enchem de arbítrio e nos privam da preocupação com o que é verdadeiramente importante. Com o risco de que o sentido da vida seja sacrificado em esmolas que apaziguem as consciências. Mesmo entre os consagrados, há uma abundância de práticas de oração que se tornaram um espaço para o que é útil, e não simplesmente um lugar de amizade. As orações viviam na impaciência de merecer a Deus, não na paciência de acolhê-Lo. Os ramos não dirigem sua atenção para os frutos, mas para a união com a videira. Não são eles que produzem frutos, mas a videira os produzem através dos ramos. Um sentido vital mais orientado para a união com a videira do que para o amadurecimento dos frutos. É a videira que faz a fruta amadurecer. Os brotos da videira, são o veículo que permite que a força da videira flua.

Todos os dias escolhemos entre viver ou sobreviver, autonomia ou dependência, realização ou mediocridade. A santidade é uma paixão. Algo que nos dá força no início do dia e motivação quando a estrada se amplia. A paixão é o combustível que move o potencial que temos; é o fogo que arde em nós. Será um projeto, um nome no coração, uma ferida de outros que assumimos como nossa, desejos de futuro, trabalho vivido como uma vocação, uma vida digna para os pobres.

Há religiosos que dão espaço em suas vidas para Deus, e quanto maior o espaço, melhor. Envolve esforços para dar-se espaço e tempo da vida social, das relações humanas, da preocupação em aliviar as necessidades, a fim de dedicá-lo a Deus, recolhido no espaço sagrado. Procura-se tempo de oração para encontrar Deus, em vez de tempo de oração para saborear e celebrar o encontro com Deus na missão humanitária. Como se Deus não se desse bem com o humano. Um estilo de vida distante da encarnação, do Deus que se faz humano. Deus vive onde nós deixamos que Ele entre. Somos chamados a experienciar Deus, que passa por nossa agenda diária. Chegamos a Deus através do humano. Nós nos relacionamos com Ele quando encontramos pessoas e seus problemas: “O que você fez a um destes meus irmãos menores, foi a mim que o fez”. A santidade não é o sublime, mas o profundamente humano. Se Deus se torna humano para salvar este mundo, existe outro caminho para nós nos salvarmos? A primeira coisa não é a oração, mas a vida: a alegria, a celebração da amizade, a dor, a fome de pão e de sentido. Daí nasce a súplica, a admiração, o louvor.

O destino dos lírios do campo é transformar a terra em beleza. O destino de um ser humano é tornar-se mais humano, crescer em sensibilidade e ternura. Isso desperta o melhor do ser humano. Tornamo-nos mais humanos, nutrindo o que há de divino em nós. Aí encontramos a mais autêntica afirmação de nós mesmos. Não podemos nos separar do amor, nem Deus pode. Amar e receber amor humaniza a vida. Somos humanos quando sentimos nossos corações transbordando em ternura. Ser humano é aceitar e celebrar a humanidade dos outros.

Consagrado, em busca de Deus. Por quais caminhos? Destinado a reproduzir a imagem de seu Filho (Rm 8,29). Tornamo-nos mais divinos ao nos tornarmos mais humanos. Existem pessoas profundamente religiosas e profundamente desumanas. O importante não é ser um bom religioso, mas uma boa pessoa. Uma boa pessoa, não porque tudo em sua vida vai bem, mas porque ele pode lidar com tudo e com todas as as coisas bem. É mais fácil ser um herói do que uma boa pessoa. Você é um herói uma vez, no

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extraordinário; uma pessoa boa será sempre boa no cotidiano. Vivemos cercados pelo comum, pelo normal, não pelo heróico. Uma pessoa consagrada faz coisas comuns de uma maneira extraordinária. Esta é a diferença entre as pessoas grandes e as pessoas medíocres. Regressamos à vida cotidiana, refugiando-nos na normalidade de nossas modestas experiências pessoais.

Você vale seu pelo conhecimento, sua habilidade, sua experiência, seu modo de ser. A diferença entre o grande e o medíocre está no maneira de ser. Gostamos de uma pessoa pela maneira como ela é, gentil, humilde, sensível, se preocupa comigo, se interessa por mim, me acolhe, me ajuda... por ser uma pessoa boa. Eu amo uma pessoa boa. Eu admiro alguém que sabe muito ou tem muita experiência. Quando ficamos desanimados, perdemos o melhor que temos: nossa maneira de ser, nosso espírito. Passamos de brilhantes a medíocres. Quando perdemos o ânimo, colocamos menos amor no que

vivemos, menos entusiasmo, menos interesse, menos desejo. Tornamo-nos medíocres. Perdemos a vida de Deus, a presença do Espírito em nós. A vida é um estado de espírito. É nossa tarefa ajudar os outros a não perder a coragem. Assumamos a responsabilidade pelo nosso estado de espírito. A diferença entre uma pessoa positiva e uma negativa é seu estado de espírito. Pense em cada dia, se você consegue se levantar com objetivos e ir para a cama com esperança.

O Papa Francisco desafia ao colocar o centro da religião no humano, não no sagrado, porque o humano é a encarnação do sagrado. O centro é a bondade, o sofrimento dos fracos. O Papa segue Jesus, que vive outra religião, outro tipo de coexistência, o Reinado de Deus. Jesus coloca o centro do religioso na vida, nas relações humanas, na bondade, na misericórdia (bem-aventuranças). Para isso, ele precisa de uma profunda experiência de Deus na força da oração.

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SVDPor uma gramática do humano
P. Carlos del Valle,

Falar do Reino é falar de uma sociedade humanizada. Onde há humanidade plena (bondade), há beleza, alegria, felicidade. Talvez quando falamos do Reino pensemos num bom projeto de atividade pastoral, sem nos preocuparmos em humanizar as pessoas, as estruturas, as instituições. Jesus gostava de levantar cedo e ficar sozinho com o Pai; preferia comer em companhia; seu coração saía para os perdidos; era impaciente com os fariseus e sua rigidez; preocupava-se com as pessoas (D. Aleixandre). Ele é a imagem do ser humano sonhado pelo coração de Deus.

Para ser credível, a palavra de Deus precisa de corpos, testemunhas, mártires, um lugar de encarnação. É preciso que nossas comunidades respirem o Evangelho vivido na oração e no encontro fraterno. A oração é encontro, com Deus, consigo mesmo, com a vida. Da oração extraímos um espírito profético, a alma da missão. Não podemos viver apenas de ações e resultados. Nós nos tornaríamos possessivos e menos capazes de receber e

compartilhar. Seríamos como bombeiros que vão ansiosos para apagar um incêndio e, quando chegam, percebem que seus tanques estão vazios.

Para colocar em sintonia o que pensamos, sentimos e fazemos precisamos de uma oração reflexiva. Uma forma de estar presente aqui e agora, atento, concentrado. O tempo de oração é tempo concentrado, para vivê-lo intensamente, de todo o coração. Nossa vida sem tempo concentrado é uma vida sem sentido. Podemos descobrir o significado do que fazemos quando é vivido em profundidade. A consciência de cada momento nos conecta com a realidade, nos faz viver o presente com presença. Entrar em seu eu interior implica crescer em humanidade, em sensibilidade a valores profundos. A oração é um trampolim para o profundamente humano. Para não cair em superficialidades, não nos contentamos em abrir portas e ir para fora; também abrimos janelas e deixamos o ar de Deus entrar de fora para dentro de nossas casas e de nós mesmos.

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Os gestos autenticamente religiosos não são os de adoração, mas os de cuidado. Isto é demonstrado pela vida consagrada inserida em espaços humanos: hospitais, escolas, orfanatos, lugares de acolhida, inserção entre os pobres.

Caímos em superficialidades quando a vida de oração é reduzida a orações vocais, o que nos transforma em homens/mulheres que rezam, ao invés de pessoas orantes. Alimentar práticas de piedade é dedicar-se a regar flores de plástico no jardim de sua própria existência. Não confundir fé com piedade, sentimento religioso, perfeição moral. Não se trata de ser mais piedoso, mais fervoroso, mais perfeito, mas de acreditar mais. Encontrar na fé a fonte do sentido, o fundamento da vida e da missão. Ser homem ou mulher de Deus, não apenas porque reza, mas porque pensa, fala e age a partir do coração de Deus.

Se as práticas de piedade não vêm de uma oração pessoal profunda, elas podem permanecer um corpo sem alma. Daí um vazio afetivo que deve ser preenchido com outros amores de pessoas ou coisas. Um vazio afetivo que nos leva a precisar de outros para nos valorizar, para aprovar o que fazemos, para ouvir nossas reclamações, para nos lembrar o quanto valemos e o quanto somos grandes. Na reflexão orante Jesus testa nossos desejos, nossos sentimentos e afetos, até chegarmos a sentir e desejar de acordo com os desejos de seu coração. “Tenha os mesmos sentimentos de Jesus” (Fil 2,5), sua sensibilidade e desejo de estar em sintonia com o Pai. Quanto mais nos sintonizamos com Deus, mais nosso coração se amplia para abraçar tudo o que é humano.

Rezar não é buscar um estado de espírito; é um ato de fé. Rezamos não apenas para pensar em Deus, ou sentir Deus (emoções), mas para querer Deus, o Deus humano mostrado por Jesus. Para nutrir o espírito precisamos de vitaminas, não apenas de condimentos para satisfazer o paladar. A oração é o Tabor na vida, a montanha de nossa transfiguração. Viver é mudar. A santidade é o resultado de muitas transformações. Contemplar a Palavra muda pensamentos, atitudes, motivações, emoções, em sentimentos de Jesus, desejos de Deus. A oração muda o coração. O hábito da oração leva a viver não de e para nós mesmos, mas de Deus e de nossos irmãos e irmãs, com eles e para eles. Sintonizase com o olhar de Deus: “E Deus viu que todas as coisas eram boas”. Olhar e ver os outros como bons é ser puro de coração.

Quando Teresa de Calcutá via uma pessoa pobre, ela sentia um impulso de bondade que a levava a ajudá-lo. O resultado de um hábito, que se torna um modo de vida. Motivada pela oração, o que a levava a ver Jesus nos pobres. Se não vivermos com os pobres, é difícil mudar. Madre Teresa teve que deixar para trás a segurança do convento. Somos mulheres ou homens de Deus não só porque rezamos, mas porque pensamos, falamos, agimos a partir da humanidade de Deus. Entraremos, desta forma, em sintonia com o Reino. No Evangelho, vemos que para onde Jesus foi, o Reino veio. É nossa tarefa: multiplicar as experiências humanas que encarnam a vinda do Reino nos lugares onde formos enviados, onde chegarmos.

3. O batimento do coração de Deus no coração do mundo

Encontrar o tesouro, todavía, não é possuí-lo. Se o descobrimos, não caiamos na ingenuidade de acreditar que o possuímos. Nosso tesouro é estar em sintonia com o coração de Deus enquanto o descobrimos no coração do mundo. Os tesouros que valem a pena ter são muitas vezes escondidos no coração dos outros. Vamos para o mundo com os olhos abertos. Em cada ser ou evento humano podemos descobrir sementes de vida humanizada, e repetir com Jacó: “O Senhor estava lá, e eu não o sabia” (Gn 28,16). não vivemos por grandes ideias, mas de experiências concretas.

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Não é que o mundo nos mostre Deus; é a sensibilidade de nossa fé que descobre Deus no mundo. Olhando a vida, os acontecimentos, as pessoas com olhos que creem nos leva a desenterrar o Evangelho oculto. Não nos preocupemos tanto em evangelizar, mas em captar o que é humano, o que é evangélico, e desvendá-lo. Mesmo o mais pobre - especialmente os pobres - têm seu tesouro escondido. Nossa missão é preencher a sociedade com o Evangelho, revelando-o onde ele está escondido. As parábolas do Evangelho não apenas comunicam coisas misteriosas em linguagem simples; elas também nos levam a reconhecer em coisas simples o mistério, a profundidade que é revelada. As parábolas são a atenção ao cotidiano; elas sublinham a normalidade da presença do Pai. Se estivéssemos atentos às coisas cotidianas, seríamos tocados pela presença cotidiana de Deus.

Sentir a própria fragilidade é um caminho seguro para a santificação e o crescimento humano. Uma ostra sem feridas não produz pérolas. A dor nos conecta com a vida; ela também pode nos tornar o centro de nosso pequeno mundo. A doença é uma escola de humanização. Aprendemos a ser mais tolerantes, mais compreensivos, mais compassivos. Quando paramos para olhar para uma pessoa que sofre, sentimos admiração; nossa sensibilidade é despertada; nossa paixão pela vida é acesa. Essa paixão desperta nossa capacidade de amar... de olhar, admirar, de nos sensibilizar, de sentir compaixão pela vida, de amar. Deus não nos traz verdades, mas a paixão pelo ser humano. Se eu passar uma hora diante da ferida de outra pessoa, posso conhecer melhor o coração de Deus do que quando leio livros e descubro o significado das palavras. Com a experiência o viver se traduz em vida.

A realidade em primeiro lugar não é para ser transformada, mas para ser reconhecida, para ser desfrutada, para ser agradecida. Agora vivo com 180 jovens padres, num ambiente de estudo. Para mim, esta casa não é apenas um lugar de trabalho e formação, mas também um lugar de sensibilidade, emoção e desejo, de experiências de alegria, afeto e fé. Um olhar de fé leva a encontros com pessoas, eventos, rotinas... uma vida cheia de encanto. Somos convidados a descobrir e saborear o encanto nos pequenos detalhes da vida cotidiana. Tudo o que é humano carrega dentro de si aquele fermento da humanidade que fermenta tudo o que existe.

Aqueles que, como José, sabem sonhar, ouvir, proteger e cuidar, fecundam o mundo. Aqueles que são capazes de olhar para o passado apenas para perdoar ou agradecer; de olhar para o presente, com alegria e entusiasmo, e para o futuro, com esperança e otimismo. Pessoas que escolheram viver a partir do essencial: fé que confia, amor que acolhe, esperança que constrói. Seres humanos que carregam a vida dos outros, a dor e as feridas dos outros, que amam sem contar sua fadiga e seus medos. Seres humanos que vivem com seus corações na terra e seus sonhos no céu. Nossa vida é mais ou menos valiosa, na medida em que damos aos outros o que eles não têm. Nós somos humanos quando nos preocupamos com vidas. Se não vemos a pessoa, suas necessidades e lágrimas, é por causa da doença de Sklerokardia, da dureza de coração, a pior doença para Jesus. Produz funcionários, burocratas de regras, analfabetos do coração.

O cuidado é uma preocupação ativa, um modo prático do amor cristão. Uma mãe constrói o Reino de Deus quando se preocupa consigo mesma, com os outros, com o mundo. Os gestos autenticamente religiosos não são os de adoração, mas os de cuidado. Isto é demonstrado pela VIDA CONSAGRADA inserida em espaços humanos: hospitais, escolas, orfanatos, lugares de acolhida, inserção entre os pobres. Na parábola do samaritano,

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o amor como cuidado está ligado ao ser enviado em missão: “Vá e faça o mesmo”. Esta parábola nos convida a nos relacionarmos com otras realidades; a reconhecer o cuidado como uma semente no coração, a inclusão e a gratuidade do amor que cuida.

Jesus mostra o modo de viver mais humano. Nele Deus aponta um modo de ser humano. Para Jesus, feliz é o pobre não o rico, o doador não aquele que acumula, o perseguido não o perseguidor, o pacífico não o mais forte. Ele nos convida a descobrir num pouco de pão e vinho, abençoado e compartilhado, o sinal do que a vida deve ser: o evangelho, que é contagioso com a doação e o serviço. A religião é a realização da outra vida; o Evangelho é a humanização desta vida. Eu vim para que eles possam ter vida. Jesus nos apresenta três preocupações: saúde, alimentação compartilhada e relações humanas que nos fazem bem.

Deus encarnado, Deus humanizado. Nosso Deus é Jesus, um homem pobre e fraco, que conhece o medo, a tentação, a dor, a rejeição, a alegria, a amizade. É difícil reconhecer o Filho de Deus num pobre ser humano. Se dizemos que Deus é humanizado, estamos dizendo que encontramos Deus no humano. A fé não é possível se ela não produz humanidade. Nossa vida seria sem sentido de qualquer outra forma.

Ser consumidores de espiritualidade, espectadores da vida, nos leva a viver uma história embalada pelo vazio, fora da história de outras pessoas. Pelo contrário, estar consciente de tudo o que acontece nos conecta com a profundidade da vida cotidiana. Pedimos grandes sinais a um Deus ilusório, e não vemos os pobres sinais que nos são oferecidos pelo Deus real, que é sempre o fermento da humanização.

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4. Os simples contagiam a humanidade

A experiência do encontro humaniza. É uma lâmpada que sempre brilha quando tudo se apaga. Nós somos a imagem do Deus dos encontros. Nas refeições, Jesus denuncia o classismo que sempre separa e marginaliza, sem permitir o encontro. O Evangelho nos lembra que Jesus se colocou “no meio deles”. Não no alto, como superior. Não de lado, como se estivesse julgando-os. No meio, no mesmo nível, em fraternidade, em paridade de relacionamento. Acreditar estar perto de Deus e olhar para os outros de cima para baixo é negar que Cristo se encarnou. Cristo não é o que eu digo dele, mas o que eu vivo dele.

“E o Verbo se fez carne”... prova que detecta índices de espiritualismo que carregamos em nosso sangue. Na vida há três verbos amaldiçoados: subir, ter, comandar. Jesus contrapõe com três abençoados: descer, dar, servir. Ele liga serviço e poder. Há um contraste entre

Deus Todo-Poderoso e Jesus ao lavar os pés dos discípulos. O Mestre elimina o contraste: o poder é exercido no amor que serve. Prostrado, com a toalha ele diz: “Façam o mesmo que eu lhes fiz”. Somos seguidores de Jesus, ou parecemos ser seus seguidores?

Jesus continua a seduzir hoje porque ele rejeita a lógica do poder. As hierarquias se contagiam facilmente com um espírito mundano, passando do serviço de irmão para irmão para o poder de um sobre o outro. A preocupação com o prestígio substitui o serviço. Revestidos de uma auréola divina, evitam assim que o poder seja questionado e podem continuar a desfrutar do cheiro do privilégio. O próprio material do clericalismo, com um espírito mundano. O Evangelho nos lembra: “Estar no mundo sem ser do mundo”. Passar de uma autoridade que se reforça servindo as pessoas, para uma autoridade de serviço às pessoas. Implica a passagem de ter, para dar poder, sem disfarçar defeitos na linguagem das virtudes. O mensageiro tem autoridade quando ele se identifica com a mensagem.

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A experiência do encontro humaniza. É uma lâmpada que sempre brilha quando tudo se apaga. Nós somos a imagem do Deus dos encontros.

Não é necessário ser um clérigo para ser clerical, com uma atitude segregada, acima dos outros. O clericalismo vive nesta aristocracia. Leva a um estilo de vida aristocrático: estar acima do povo de Deus. O povo nos coloca em nossa verdadeira identidade como seres humanos e cristãos. Pois o núcleo de nossa identidade está no que nos aproxima dos outros, no que é humano, cristão, não no que nos diferencia deles. O povo de Deus nos situa na Igreja. O religioso clerical não está inserido. Jesus se esvaziou, se rebaixou, para se inserir no povo. O clericalismo endossa uma elite que não se reconhece no povo. Daí o manuseio perverso do poder.

Para Jesus, servir é a única maneira de nos relacionarmos uns com os outros em igualdade e respeito. “E todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). Descer do pedestal para se tornar um povo. Seguir Jesus é mudar a pirâmide para o círculo. Consagrados, especialistas em comunhão. Nós nos reunimos para fazer fraternidade; não somos um grupo piedoso ou um grupo de ação apostólica. Nossa vida tem sentido na medida em que somos seres de comunhão, de encontro, de mãos juntas, de projetos compartilhados. A primeira coisa é ser irmãos. O dom que compartilhamos em comunidade e damos em missão. Tudo em nossa vida faz sentido desde a encarnação; a missão de e para a fraternidade. Fraternidade a serviço dos pobres. Há mais dignidade humana no amor e no serviço do que no poder e na distância. Se é difícil viver isto, é porque o coração ainda não está evangelizado.

A cena da unção em Betânia (Lc 7, 36-50): O centro deveria ser Simão, anfitrião, piedoso, com poder, mas é ocupada pela mulher. Jesus faz dos últimos os protagonistas (Entre as mulheres, Jesus não tinha inimigas). Simão pensa que é um credor diante de Deus, não um devedor. Ele não mostra gratidão. A mulher precisa ser acolhida por este homem de Deus. A alegria faz com que ela mostre ternura. O erro de Simão está em seu olhar de julgamento. Numa frase (v. 39) ele faz dois julgamentos: Jesus, falso profeta; a mulher, uma repudiada, nomeada por seu pecado. O fariseu olha para o pecado; um olhar de rejeição, violento. Jesus olha para a fraqueza, o sofrimento, as necessidades; um olhar acolhedor e amoroso. Para Simão, olhar e julgar é a mesma coisa. Para Jesus, olhar e amar são a mesma coisa. Ele está do lado da mulher que muito ama. O amor humaniza a pessoa.

Jesus está do lado dos últimos por amor à vida. Para Deus, vale o que é autêntico, colocando seu coração no que você faz, como a viúva que dá o que ela tem para viver. Um ato realizado de todo o coração aproxima Deus. Não é o dinheiro que decide o valor das coisas, mas a humanidade que se coloca nelas. O dinheiro, como as drogas, não traz felicidade, mas cria vício. O Evangelho não me leva apenas a me perguntar: O que faço com meu dinheiro? Mais que isso, qyuestiona-me: O que meu dinheiro faz comigo? Torna-me mais humano?

Os pobres são protagonistas sem rosto em tragédias quase sempre evitáveis. E aqueles de nós que são consagrados tendem a ser espectadores e não atores. Se os ricos buscam mais riqueza, os pobres preferem um pouco de amor, uma casa, uma companhia, um estar mais próximo. A aproximação com os pobres permite-nos descobrir a humanidade de Deus. Eles são sua imagem. Antes de resolver os problemas, podemos desfrutar do Deus humanizado que caminha com eles. Para Jesus, revelar é desvendar a vida diária. Habituado a ver Deus na generosidade daqueles que dão, é difícil revelá-lo na dignidade daqueles que pedem. Entre os fracos, com o desejo de aprender com eles, descobrimos tesouros, maravilhas escondidas da humanidade.

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Há aqueles que fazem coisas boas não por amor ao bem, mas porque são escravos de sua imagem e precisam se sentir superiores aos outros. Nossas críticas aos outros também encobrem o desejo de nos apresentarmos como superiores a eles. Não podemos nos sentir mais como salvadores do que servos. Passemos de uma Vida Consagrada revestida de poder e cheia de vaidade para uma vida de serviço e cheia de amor pelas vítimas da história. Posso dizer que fui à América Latina como professor e voltei como aluno, com a experiência de sentar aos pés do “mestre”, que são os simples. Sem simplicidade e humildade, perdemos o desejo de ir ao encontro dos pobres. Procuramos acconchego. Se ainda houver algum desejo de ir até eles, - por remorso pela incoerência da vida - será “de cima”, como aqueles que dão esmola, não da solidariedade daqueles que compartilham a vida e se permitem ser convertidos por eles. Desta forma, eles não nos reconhecerão como mensageiros do Reino.

A vida vale a pena quando é dada. Nosso objetivo é dar vida servindo. Quanto mais vazios estivermos de nós mesmos, mais a vida dos outros caberá em nós. Com e em nome do simples, nos tornamos mais humanos. Damos pão tornando-nos pão para os outros. Os Religiosos, servem e cuidam das pessoas. O cuidado é uma pérola que expressa a qualidade do amor encarnado. O Senhor chega e encontra os servos acordados, e Jesus diz: “Em verdade vos digo que ele colocará seu avental e os fará sentar à mesa e os servirá” (Lc. 12, 37). É difícil ver Jesus com uma toalha, podemos imaginá-lo de avental? Nele vemos a disponibilidade e o serviço cordialmente abraçados. Precisamos aprender a ser pessoas consagradas de avental, que não exigem, mas apoiam; que não reclamam, mas se importam; que não pedem direitos, mas respondem às necessidades. Podemos dizer algo quando vivemos servindo, porque só o amor tem algo a dizer. Os fariseus colocam o pecado no centro do relacionamento com Deus. O primeiro olhar de Jesus é dirigido não ao pecado, mas ao sofrimento e às necessidades da pessoa. No Evangelho, aparece “pobre, enfermo” em vez de “pecador”. Somos prisioneiros de limites em vez de culpados. Os arquivos de Deus estão cheios de lágrimas, não de pecados. O pecado perdoado deixa de existir. E diante de Deus existe o perdão, não a absolvição condicionada.

Para concluir

Deus quer que seus filhos vivam com alegria. Nos enche de alegria viver à vontade onde estamos presente, no aqui e agora. A alegria é a grande marca dos cristãos. A força de uma vocação se traduz em alegria. Viver a própria vocação com alegria é a força do religioso (Papa Francisco). A alegria leva a um maior prazer de viver. Ela gera atitudes positivas em relação a si mesmo e aos outros. Ela nos ajuda a sair de nós mesmos, nos abre para o encontro. Isso nos move a colocar nossas energias e habilidades a serviço de nosso próprio projeto. Não nos permite cair no pessimismo quando falhamos ou no narcisismo quando somos bem sucedidos. Aqueles que vivem contentes irradiam coisas boas àqueles que o cercam. Se formos felizes, o Deus que transmitimos será bondoso. Nós assumimos a missão de contagiar a humanidade nas pessoas, grupos, instituições, humanizando-nos a nós mesmos. Jesus ensina que Deus está no que é humano: comer juntos, viver como irmãos e irmãs, serviço nos relacionamentos, companheirismo e encorajamento nas dificuldades, misericórdia e perdão. Para crescer na humanidade, antes de nos preocuparmos com nossas fraquezas, nós nos concentramos em espalhar alegria. A melhor maneira de sair de nossos pecados é experimentar a alegria do encontro. Podemos viver do positivo ou do negativo. A parábola do joio oferece duas perspectivas: a dos empregados que veem o joio; a do mestre que percebe a árvore

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frutífera. Amoris Letitia nos desafia ao mudar o princípio do “mal menor” para o “bem possível”. Este último tem o efeito de ser magnetizado pelo bem que atrai, não temendo o mal que paralisa.

Abençoar, falar bem, reconhecer o bem nos outros, e o frágil, sem transformá-lo em um insulto. Aquele que sabe abençoar olha com simpatia, e aquele que olha com simpatia, vive com alegría, sem lembrar o favor que se faz e sem esquecer o favor que se recebe. O importante é focar em ideais fortes e não em defeitos, cultivar forças de bondade, de cuidado, de acolhida, de justiça, e de paz... ecologia do coração. Ecologia significa proteger e ter um ambiente limpo, alegria de paz. A paz tem a ver com a eliminação do desnecessário. Se formos ricos em qualquer área, não há paz no coração. Há paz quando não se depende de nada nem de ninguém, somente de Deus. Não é que a paz venha depois da tempestade; na tempestade Deus é paz, ele acalma a tempestade. As bem-aventuranças são o caminho para a paz. A alegria da paz traz energias de bemaventurança como sementes para fazê-las florescer.

O Ressuscitado pede para fazer discípulos vivendo como discípulos. O discipulado em fraternidade é a construção da Igreja. Às vezes nos esforçamos para construir a Igreja a fim de fazer discípulos. Seguidores do Mestre que buscam tornar-se humanos à imagem da humanidade de Deus, vivida e narrada em Jesus. “Você é o sal, a luz”. Sal e luz que se perdem por darem valor ao que encontram. Movimento de encarnação: Ao se dar a si mesmo, você melhora as coisas dando sabor e iluminando.

Sua vida consagrada... um rebento que se abre, uma semente que se rompe, uma nuvem que derrama seu conteúdo. Sem esquecer que nuvens e pássaros nunca falam de si mesmos, mas do que eles viram de onde vieram. As nuvens não sabem desenhar-se sem transfigurar-se, e os pássaros não sabem como falar sem cantar. Sua vida não vende pão; é fermento, sal que se dissolve e dá sabor. Será para os outrs graça, evangelho, boa nova. Muitas vezes, nossa vida é o único evangelho que é realmente lido pelas pessoas ao nosso redor.

A vida nunca se perde quando se ama. O amor é a energia mais poderosa. O rosto de um amante transmite alegria, a alegria do amor, como a de uma mãe olhando para seu filho recém-nascido. Com a energia do amor, centramos a ascese em moldar em nós os sentimentos de Jesus, sua sensibilidade, seu coração. Sensibilidade implica em energia, impulso, simpatia, sintonia, gosto. Ela expressa atenção, atração, afeto. Sem sensibilidade apaixonada não há santidade. Santidade não significa paixão silenciosa (eunucos); significa paixão. A missão é a paixão por Jesus e seu povo. Não há futuro para a Vida Consagrada sem paixão no amor a Jesus e ao Reino. A missão é sair de si mesmo, apaixonado por Jesus, com o coração ardente.

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ONDE NOS SITUAMOS?

RELIGIOSOS NAS PERIFERIAS –FÍSICAS, ESPIRITUAIS E EXISTENCIAIS

Irmã Juliet Mousseau, RSCJ, concluiu seu doutorado em teologia histórica na Universidade de Saint Louis em 2006. Depois de lecionar na Universidade de Saint Louis e na Escola de Ministério da Universidade de Dallas. Ingressou na Sociedade do Sagrado Coração em 2009. Foi professora de história da Igreja no Aquinas Institute of Theology de 2012 a 2021.

O texto foi apresentado no primeiro Simpósio de Mulheres Teólogas Religiosas, organizado em Roma pela UISG, de 12 a 19 de Junho de 2022.

O Papa Francisco, mesmo antes de seu pontificado, tem chamado a Igreja para realizar sua missão nas periferias, para sair de nossas igrejas e ir ao encontro daqueles que estão afastados da sociedade. Jesus é o modelo para este serviço: ele encontrou aqueles que mais precisavam de seu toque de cura. Aqueles que ele curava ou alimentava eram muitas vezes trazidos de volta para uma sociedade ou comunidade que os havia afastado do centro. Ser curado ou perdoado retirava seu isolamento e, para muitos, significava encontrar uma vida nova, normal, com conexões humanas e proximidade que não haviam experienciado antes. A cura ia além do pessoal: ela restaurava a comunidade como um todo, trazendo os que estavam às margens de volta para o centro.

O Papa Francisco também fala das pessoas que estão na vida consagrada como sendo portadoras de um apelo especial para viver como profetas no mundo de hoje (Francisco, 21 de novembro de 2014). Ser testemunha profética significa seguir o chamado de Deus no mundo que não conhece a Deus para oferecer um modo de vida diferente, portador de alegria e realização de uma forma que o mundo secular não entende. O apelo para ir às periferias é um apelo para ser testemunhas proféticas do mundo que Deus quer que tenhamos, um mundo em que se incluam os excluídos, em que as periferias se tornem o centro. Como religiosas e religiosos, somos chamados a ir até as pessoas e lugares que estão à margem da sociedade e animá-los, com o objetivo de trazê-los novamente para o centro. O reino de Deus será completo quando todos tiverem a plenitude da dignidade humana, quando ninguém for isolado ou excluído. Este é o compromisso profético da nossa consagração: ir sempre ao encontro dos que estão nas periferias, atraindo-os

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nas periferias

para o centro, mantendo a sua dignidade humana, e depois regressando às periferias para fazer tudo de novo. Vivemos em constante tensão, atraindo isolados para o centro apenas para retornar às periferias. O trabalho constante da dignidade humana é um testemunho profético da esperança do Reino de Deus que sabemos que virá e trará alegria ao mundo inteiro.

Este artigo explora primeiro o conceito de periferias através das palavras do Papa Francisco. Ele também articula as áreas onde as periferias são mais carentes hoje. Em seguida, usando exemplos da história da vida religiosa, o movimento das periferias para o centro e de volta para fora será abordado. Por fim, apresentaremos as características da vida religiosa que situam os religiosos consagrados numa postura de prontidão para desafiar a sociedade atual e as periferias existenciais. Sabemos pela história da salvação que não somos salvos sozinhos, mas somos juntos, como um povo: como a inclusão de cada pessoa transformará o mundo?

A palavra “periferias”, e especialmente a expressão “periferias existenciais”, suscita dúvidas e confusões. As periferias são as bordas, os lugares (físicos ou metafóricos) mais distantes do centro. Outras palavras que têm uma conotação semelhante incluem “limites”, “margens” e “fronteiras”. “Fronteiras”, ou linhas de demarcação entre uma coisa e outra, também podem ser consideradas periferias. A vida de Jesus é uma ilustração de periferias. Nascido longe do centro (física e socioeconomicamente) do Império Romano, mas submetido ao seu governo, Jesus entrou no mundo na pobreza, literalmente nasceu onde viviam animais, não pessoas. Socialmente, sua família humana representava uma classe minoritária oprimida. Sua pobreza e falta de recursos apontam para uma periferia existencial. Essa realidade – que Deus escolheu a encarnação nessas circunstâncias –ilustra o amor de toda a humanidade, a santificação até do menor da raça humana.

O cardeal Jorge Bergoglio, no discurso que antecedeu o conclave em que foi eleito papa, exortou a Igreja a ir às periferias, identificando-as como “não apenas geográficas, mas também existenciais: o mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e indiferença à religião, das correntes intelectuais e de toda a miséria” (Henderson 2018). As periferias, então, estão em qualquer lugar onde as pessoas estão sofrendo de alguma forma. Todos os que seguem a Cristo são chamados a ultrapassar fronteiras em favor da inclusão. Francisco disse aos novos cardeais em 2015: “Exorto-vos a servir Jesus crucificado em cada pessoa que é marginalizada, por qualquer motivo, para ver o Senhor em cada pessoa excluída que está com fome, sede, nua; ver o Senhor presente até naqueles que perderam a fé, ou se afastaram da prática da fé, ou se dizem ateus; ver o Senhor preso, doente, desempregado, perseguido; ver o Senhor no leproso - seja no corpo ou na alma - que encontra discriminação! Não encontraremos o Senhor se não aceitarmos verdadeiramente os marginalizados!” (Francisco, 15 de fevereiro de 2015). O chamado de Cristo é inclusão radical, inclusão que incorpora a todos, aconteça o que acontecer.

Ir às periferias é um ato de serviço a exemplo de Jesus, e deve incluir também a disponibilidade para se deixar transformar por aquilo que ali se encontra. A inclusão dos excluídos exige a conversão do coração: o que das minhas ações, das nossas ações, levou a essa separação entre nós? Os cristãos pregam que cada pessoa é salva, mas a salvação não é uma experiência solitária. A salvação vem para a comunidade como um todo, para o “nós” e não apenas para o “eu”. Todos são chamados à conversão e à transformação juntos para levar o único Corpo de Cristo, o Povo de Deus, à nossa realidade mais plena.

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Onde
Religiosos
Ir. Juliet Mousseau, RSCJ
nos situamos?

Nas palavras do Papa Francisco: “A história da salvação tem, portanto, um ‘nós’ no início e um ‘nós’ no final, e no centro o mistério de Cristo, que morreu e ressuscitou para ‘que todos sejam um’ (Jo 17,21). O tempo presente, porém, mostra que este “nós” querido por Deus está quebrado e fragmentado, ferido e desfigurado. Isso se torna ainda mais evidente em momentos de grande crise, como é o caso da atual pandemia. Nosso ‘nós’, tanto no mundo mais amplo quanto dentro da Igreja, está desmoronando e rachando… E o preço mais alto está sendo pago por aqueles que mais facilmente se tornam outros: os estrangeiros, os migrantes, os marginalizados, os que vivem nas periferias existenciais” (Francisco, 26 de setembro de 2021).

De todas as afirmações acima sobre o que são as periferias, podemos ver as necessidades específicas de nosso mundo hoje. Acima de tudo, Francisco afirma as necessidades dos migrantes como uma periferia que exige nossa atenção. Sua primeira excursão como papa foi à ilha de Lampedusa, na Itália, onde muitos migrantes chegam à Europa e centenas se perderam recentemente no mar. Lá ele expressou pesar e a responsabilidade de todos nós de mostrar amor fraterno por aqueles migrantes que buscam vida em outra terra. Francisco continuou a apelar para as necessidades dos migrantes e daqueles que se deslocam pelo mundo. Migrantes e refugiados não são apenas um grupo de seres humanos que vivem à margem, sem suas necessidades físicas atendidas e sem poder para mudar sua situação. Portanto, as periferias incluem todos aqueles em situação de pobreza, doença e opressão que carecem dos elementos necessários da dignidade humana. “Um desenvolvimento que exclui torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Um desenvolvimento real, por outro lado, busca incluir todos os homens e mulheres do mundo, promover seu crescimento integral e mostrar preocupação com as gerações vindouras”. Todos nós sofremos quando alguém entre nós sofre e, portanto, somos chamados a ir ao encontro de todos e de cada um que é “rejeitado pela sociedade globalizada de hoje” (Francisco, 29 de setembro de 2019).

Além daqueles marginalizados pela necessidade física, qualquer um que seja visto como menos que humano porque ele é “outro” precisa da luz de Cristo. Criar uma “cultura do encontro” significa ampliar nossos círculos para incluir aqueles que pensam e adoram de maneira diferente, aqueles que discordam de nós e até aqueles que parecem antipáticos. Uma cultura do encontro não é lugar de proselitismo, mas de busca de maior compreensão e reconhecimento da humanidade no outro que parece tão diferente. É preciso lembrar que existem periferias, também, dentro de nossa Igreja. Muitas pessoas permanecem apenas nominalmente católicas ou abandonam completamente a igreja devido à marginalização por muitas razões diferentes. O cardeal Tobin fala sobre a necessidade da Igreja de ouvir os marginalizados devido à crise dos abusos sexuais. O Corpo de Cristo inclui indivíduos distanciados por todos os motivos: divórcio, abuso, homossexualidade e identidade de gênero, aborto ou controle de natalidade, exclusão do ministério e até mesmo dúvidas pessoais. A dignidade humana é direito de todos. Jesus não veio para salvar os que não têm pecado ou que não têm dúvidas. Também nós devemos reconhecer a dignidade de cada pessoa humana.

Desde o início da vida religiosa, homens e mulheres procuraram seguir Jesus. As primeiras congregações religiosas (principalmente os beneditinos) foram fundadas quando homens e mulheres se reuniam em comunidades para uma vida de oração e dedicação a Deus. Outras congregações foram fundadas com um apostolado particular em mente, que invariavelmente as trouxe para o que hoje chamaríamos de “periferias”.

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Religiosos
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Onde nos situamos?
nas periferias

Congregações femininas, como as ursulinas, começaram escolas para meninas, que muitas vezes não recebiam nenhuma educação. As ordens dos homens, como os dominicanos e os jesuítas, levaram o Evangelho aos cristãos que se separaram da Igreja e também aos não cristãos. Muitas ordens procuravam atender às necessidades físicas das pessoas, incluindo comida e abrigo, proteção contra danos, atenção médica e cuidados com os moribundos. Quer as ordens procurassem atender às necessidades espirituais, intelectuais ou físicas das pessoas, elas abraçavam o serviço a exemplo de Jesus, de uma forma que as levava à margem da sociedade com o propósito de trazer dignidade humana. Esta atenção à dignidade de cada pessoa pretendia, de uma forma ou de outra, reintegrá-la à sociedade, como fez Jesus durante a sua vida terrena.

No entanto, ao longo da história, as ordens que buscavam as margens ganharam riqueza e poder. Os beneditinos são um exemplo primário, pois existem há 1.500 anos.

Ao longo dos séculos, sua presença e ministério no mundo lhes trouxeram seguidores generosos e, por fim, riqueza e poder extraordinários. Os mosteiros, embora fundados longe dos centros das cidades, atraíram pessoas para eles e tornaram-se centros de atividade social e econômica. À medida que os mosteiros ganhavam riqueza, o papel do abade era mais poderoso e os membros da comunidade de alto status procuravam colocar seus filhos nessas funções e o sistema tornou-se corrupto em alguns lugares. No entanto, Jesus continuou a chamar os cristãos e as pessoas consagradas para as periferias. Os beneditinos experimentaram múltiplos esforços para reformar e retornar ao seu propósito original, removendo as camadas de riqueza e poder ao fazê-lo.

Os grandes movimentos de reforma nas comunidades beneditinas aconteceram por volta de 800 com a atuação de Bento de Aniane na corte de Carlos Magno; no século 11 através da criação dos cistercienses sob Bernard de Claraval e a reforma cartuxa. A

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cada movimento de reforma, a comunidade era lembrada e voltava a seguir Jesus mais de perto. Eles se mudaram do centro de poder e privilégio para uma vida de pobreza e seguimento de Jesus.

Nada disso indica que os beneditinos ou qualquer outra ordem deixaram de seguir Jesus, apenas para dizer que o bom trabalho traz naturalmente as margens para o centro. As religiosas e os religiosos, então, devem reconhecer quando seus ministérios e apostolados precisam reconsiderar o chamado de Jesus e retornar às periferias. Os religiosos de hoje enfrentam grandes mudanças. Especialmente no meu contexto dos Estados Unidos, o início e meados do século 20 foi uma época de grande número de religiosos e investimentos em grandes instituições. Essas instituições foram fundamentais para o crescimento do país, pois atendiam às necessidades educacionais, de saúde e sociais das crescentes comunidades de imigrantes sem discriminação. Hoje, a grande população

Ir às periferias é um ato de serviço a exemplo de Jesus, e deve incluir também a disponibilidade para se deixar transformar por aquilo que ali se encontra. A inclusão dos excluídos exige a conversão do coração: o que das minhas ações, das nossas ações, levou a essa separação entre nós?

de religiosos que iniciou essas instituições está diminuindo, e essas instituições são amplamente bem-sucedidas. À medida que os religiosos se afastam de seus grandes ministérios corporativos, temos a oportunidade de examinar nosso compromisso com os que estão à margem, para retornar novamente às periferias.

Este momento de mudança demográfica entre os religiosos no hemisfério norte é uma das principais características que permite às religiosas renovar o compromisso com o ministério nas periferias. Além desse momento de mudança, os votos de pobreza, castidade e obediência demandam das religiosas uma postura que se posicione a realizarem sua missão às margens da sociedade, trazendo toda a criação de Deus de volta ao centro, em direção à dignidade humana e à inclusão na sociedade. Examinaremos cada voto no que se refere ao movimento para as periferias como conclusão deste artigo.

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Enquanto os religiosos fazem voto de pobreza, a pobreza que vivem não é semelhante à pobreza material a que estão sujeitas muitas pessoas no mundo. De fato, a pobreza material é um mal, não algo a desejar, porque nega ao ser humano aquilo de que necessita para viver plenamente. Quando homens e mulheres religiosos fazem voto de pobreza, então, eles estão se comprometendo a viver simplesmente como Jesus viveu de forma simples e a separar seu ser de seu valor monetário. A vida simples sob o voto de pobreza ajuda os religiosos consagrados a trabalhar nas margens, porque por meio dele eles veem o valor profundo da vida humana, independentemente das circunstâncias. O direito de cada ser humano à dignidade é inquestionável. Assim, viver com simplicidade situa os religiosos consagrados fora do caminho materialista dominante que a sociedade parece sustentar. Situa os religiosos à margem onde podem estar em relação e em comunidade com outros que são marginalizados pelas condições econômicas. A simplicidade ajuda os outros a abordarem os religiosos como iguais e permite que relacionamentos profundos cresçam. O voto de pobreza também reconhece que tudo o que recebemos é dom de Deus e, portanto, devemos caminhar suavemente sobre a terra, usando apenas os recursos de que precisamos, sem acumular. Viver de forma simples e compartilhar o que temos uns com os outros e com os outros torna mais recursos disponíveis para outras pessoas, incluindo as gerações futuras. Significa que o que adquirimos pode ser dado gratuitamente àqueles que dele necessitam. Assim, os religiosos e as religiosas, consagrados à pobreza, estão prontos para realizar sua missão nas periferias.

O voto de castidade, também chamado de “celibato”, libera o religioso consagrado dos compromissos da vida familiar para ter liberdade de tempo e espaço para outras relações. Esta liberdade é tanto interna quanto externa: internamente, não ser amarrado pelo amor de uma pessoa de uma forma que impeça alguém de amar os outros; externamente, libertar-se dos constrangimentos das necessidades da família, que naturalmente devem ocupar o primeiro lugar na vida de uma mãe ou de um pai. O amor que alguém normalmente daria ao cônjuge e aos filhos é mais amplamente direcionado ao mundo em geral - amar a todos como Deus ama a todos (Radcliffe 2014, 9). Como Jesus, os religiosos consagrados procuram os que mais precisam da força curativa do seu amor. A liberdade que se tem na vida religiosa também favorece o apoio de uma comunidade religiosa no discernimento e no compromisso com um determinado serviço. Quer se queira ou não, outros membros da congregação fazem parte de uma missão, eles participam e encorajam o indivíduo em seus esforços. O apostolado também pode continuar quando outros assumem o lugar de quem se aposenta ou se muda. Finalmente, o voto de castidade permite aos religiosos chamados às regiões missionárias deixar para trás suas casas e chegar às periferias geográficas e físicas que ainda existem em nosso mundo.

O voto de obediência é de discernimento, ouvindo atentamente o chamado de Deus, tanto como Deus chama a congregação quanto como Deus chama o indivíduo com seus dons e talentos.

Os religiosos consagrados devem escutar o apelo do Espírito Santo através do superior da congregação, na comunidade como um todo e no mundo ao seu redor. Quando as necessidades que vemos correspondem aos nossos dons comunitários ou individuais, encontramos o chamado de Deus. O voto de obediência transmite a confiança de que ouvimos com maior clareza através do discernimento compartilhado uns com os outros e a confiança de que Deus está nos guiando fielmente em nossa missão.

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O Papa Francisco chama todos os cristãos para as periferias e os religiosos consagrados, sobretudo, têm a capacidade e a responsabilidade de seguir esse chamado. No contexto da vida consagrada, a prática da pobreza, da castidade e da obediência prepara-nos e nos dá o apoio de que necessitamos para atrair os que estão distantes, afastados, de volta à sociedade humana, para ajudar a restaurar a dignidade humana onde ela foi negada. Como nos clama o Papa Francisco: “A fé, a esperança e o amor nos impelem necessariamente a esta preferência pelos mais necessitados, que vai além da assistência necessária. Com efeito, implica caminhar juntos, deixando-se evangelizar por eles, que conhecem bem o Cristo sofredor, deixando-se “contagiar” pela sua experiência de salvação, pela sua sabedoria e pela sua criatividade. A partilha com os pobres significa enriquecimento mútuo. E, se existem estruturas sociais doentias que os impedem de sonhar com o futuro, devemos trabalhar juntos para curá-los, para mudá-los. E a isso somos conduzidos pelo amor de Cristo, que nos amou até ao extremo, e chega aos confins, às margens, às fronteiras existenciais. Trazer as periferias para o centro significa centrar a nossa vida em Cristo, que ‘se fez pobre’ por nós, para nos enriquecer ‘com a sua pobreza’ (2 Cor 8, 9), como temos ouvido.” (Francisco, 19-08-2020).

Bibliografia

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Francisco. Rumo a um “Nós” Cada Vez Mais Amplo: Mensagem pelo 107º Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados 2021. 27 de setembro de 2021. Acessado em 7 de maio de 2021. http://www.vatican.va/ content/francesco/en/messages/migration/documents/papa- francesco_20210503_world-migrantsday-2021.html

Henderson, Silas. “O que a Igreja Primitiva nos ensina sobre as ‘periferias’ do Papa Francisco.” .” Aleteia. 5 de maio de 2018. Acessado em 7 de maio de 2021. https://aleteia.org/2018/05/05/what-the- earlychurch-teaches-us-about-pope-francis-peripheries/

Radcliffe, Timothy. “Same God, Different Ways to Love.”/ “Mesmo Deus, Diferentes Formas de Amar.” Horizon 39, no. 4 (Fall 2014): 9–13.

Tobin, Joseph W. “The Power of Listening to the Peripheries: A Traumatized Church Can Truly Embrace the Pope Francis Vision and Offer a Witness that Is More Accountable to the Gospel.”/ “O poder de ouvir as periferias: uma igreja traumatizada pode realmente abraçar a visão do Papa Francisco e oferecer um testemunho mais responsável pelo Evangelho.” Arquidiocese de Newark (20 de Fevereiro de 2019). Acessado em 7 de maio de 2021. https://www.rcan.org/power-listening-peripheriestraumatized-church-can-truly-embrace- pope-francis-vision-and-offer

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ENCARNAÇÃO PROFUNDA

COMO CHAMADO RADICAL: ECOLOGIA, VIDA CONSAGRADA E AMOR

Ann-Maree O’Beirne é uma Irmã da Misericórdia da Austrália e Papua Nova Guiné. Ela concluiu o Mestrado em Divindade e tem Graduação em Direção Espiritual. Ela dirige retiros, é conferencista e ocupa-se com Direção Espiritual.

O texto foi apresentado no primeiro Simpósio de Mulheres Teólogas Religiosas, organizado em Roma pela UISG, de 12 a 19 de Junho de 2022.

Introdução

Considerando duas crises globais atuais – mudança climática e COVID-19, os gritos da Terra e dos pobres da Terra nunca foram tão urgentes. Na Austrália, os incêndios florestais da primavera e verão de 2019/2020, precedidos por uma seca prolongada, seguida de inundações e pandemia mundial, novas inundações generalizadas, mais incêndios e agora uma praga de ratos, nos deram uma experiência visceral do sofrimento de Terra e as pessoas da Terra.1 Como religiosas, nestes tempos, a ação justa, o amor terno e o caminhar humilde com a comunidade sofredora da Terra podem ser considerados uma expressão autêntica dos conselhos evangélicos e uma resposta ao dom da vida e do amor de Deus.

Auxiliado por uma teologia de profunda encarnação e uma aguda consciência de nossa imersão na comunidade das relações ecológicas da criação, este artigo explora o convite a novas formas de viver, amar e responder a encontros agraciados com a Terra sofredora e seu povo. Este apelo radical obriga-nos a ampliar o horizonte das nossas relações, a acolher a vida humana e outra não humana como dom, e responder com generosidade e coragem aos desafios que se nos apresentam.

Contexto Australiano

Na maior parte, a Austrália é um país quente e seco. No entanto, vastas áreas são exuberantes, prolificamente habitadas por uma variedade de vida selvagem exótica e plantas e árvores magníficas. Em circunstâncias normais, essas áreas são bonitas e capazes de suportar muito bem a vida humana e outra não humana. Este cenário é um contexto deslumbrante para viver como uma Irmã da Misericórdia no século XXI.

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Infelizmente, às vezes, essa experiência de beleza e vida produtiva é impactada por incêndios e inundações, o que faz parte da sequência natural de regeneração e é um fato que os australianos esperam. No entanto, a experiência recente dos incêndios florestais extremos na Austrália, chamados de “Verão Negro”, foi inimaginável devido à extensão da área queimada, à intensidade dos incêndios e à duração extensa de oito meses de incêndios.

Andrew Sullivan escreveu: “Ser pego em um incêndio florestal é testemunhar um verdadeiro inferno na terra – condições quentes o suficiente para derreter metal, fluxos de calor que literalmente vaporizam a vegetação e nuvens de fumaça tão densas que transformam o dia em noite” (Sullivan 2015). “Em março de 2020, os incêndios do Verão Negro queimaram quase 19 milhões de hectares, destruíram mais de 3.000 casas e mataram 33 pessoas” (Filkov et al. 2020, 44). Em Queensland, numa costa tipicamente tropical, as florestas tropicais – geralmente úmidas demais para queimar – foram devastadas por incêndios florestais. As áreas metropolitanas não afetadas pelo fogo ficaram cobertas de fumaça por meses. Os efeitos a longo prazo desses níveis nocivos de poluição do ar, não apenas na espécie humana, estão apenas começando a ser compreendidos. A Comissão Real Australiana sobre os incêndios de verão negro relata que mais de 445 pessoas morreram por causa da fumaça dos Fogos de Verão Negro; isso afetou oitenta por cento da população. (Hitch 2020).

O que causou os incêndios? A Austrália experimentou os anos mais secos e quentes antes do evento, levando aos mais altos níveis de evaporação já registrados, criando uma seca prolongada e generalizada. A segurança hídrica era uma realidade em áreas onde não havia problema no passado, com muitas comunidades importando água potável. Os cientistas falam de “clima de fogo”, que possui parâmetros significativos que diferem do clima normal. A Austrália experimentou um aumento sem precedentes nas condições climáticas de incêndio que os cientistas atribuem às mudanças climáticas. (CSIRO 2020). A perda humana de vidas e meios de subsistência, infraestrutura comunitária e sentimento de pertencimento continuam a ser sentidos pelas pessoas afetadas.

Todos nós podemos nos identificar com a perda e o sofrimento humanos, mas e quanto às outras criaturas, flora e fauna, ecossistemas e meio ambiente? Uma estimativa conservadora é de que mais de um bilhão de animais morreram nos incêndios de verão negro. (Dickman e Tein 2020), e o aumento do risco de extinção de centenas de espécies é real. (Filkov et al. 2020). Além disso, habitats inteiros foram destruídos por causa da intensidade dos incêndios, com regeneração mínima até oito meses após o evento em que o calor gerado foi além do extremo. Imagens de compaixão humana por essas pobres criaturas em nossos noticiários e mídia foram de partir o coração. Os bombeiros falam dos gritos de animais - que ainda os assombram - que ouviram enquanto lutavam contra os incêndios. A reabilitação de animais feridos continua dezoito meses depois.

Coincidindo com o final da temporada de incêndios do Verão Negro, estava a compreensão emergente da atual pandemia mundial do COVID-19 e a luta para entender sua origem, natureza e efeitos. Em termos relativos, a experiência da Austrália empalidece em comparação com outros países. Além do sofrimento da perda de vidas e dos efeitos de longo prazo do Covid-19, a crise econômica e a perda de meios de subsistência atingem muito mais pessoas por causa dos lockdowns e restrições – uma crise econômica em muitas comunidades australianas já impactadas pelos incêndios do verão negro e outros eventos ecologicamente devastadores.

Celia Deane-Drummond explica que a causa subjacente da crise climática, COVID-19 e doenças semelhantes que passaram de espécies animais, é a exploração humana de nossos recursos naturais e de outras criaturas para a satisfação dos desejos humanos – desejos que são ecologicamente insustentáveis para toda a comunidade da criação.

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(Deane-Drummond 2020). Eles criam um desequilíbrio nos delicados ecossistemas em que vivemos, impactando a biodiversidade necessária para um ar, solos, plantas, animais e pessoas saudáveis. Assim, o modo como escolhemos viver como humanos tem um impacto enorme na capacidade de existência da criação como um todo.

Reflexão Teológica

O Papa Francisco, ajudando-nos a refletir sobre essas questões, afirma na Laudato Si’ (doravante LS) que:

Como parte do universo, […] todos nós estamos ligados por laços invisíveis e juntos formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos enche de um respeito sagrado, afetuoso e humilde… “Deus nos uniu tão intimamente ao mundo que nos rodeia que podemos sentir a desertificação do solo quase como uma doença física, e a extinção de uma espécie como uma dolorosa desfiguração (LS 89).

Por causa de uma “comunhão sublime” – gerada na relação trinitária de amor compartilhado com todas as criaturas, elementos da vida e ecossistemas do universo – o Papa Francisco vê que “estamos todos ligados por laços invisíveis” de amor. Anteriormente em LS, ele explica que essa conexão é o resultado da Encarnação: “Uma Pessoa da Trindade entrou no cosmos criado, lançando sua sorte com ele, até a cruz” (LS 99). Para Francisco, a Encarnação de Cristo estabelece uma conexão relacional com toda a criação que é tão íntima que coloca Deus em relação dentro daquilo que Deus criou. Dentro do material microcelular do universo, a profunda encarnação de Deus une toda a criação a Deus em comunhão sublime.

Nós, como religiosas, se aspiramos estar em comunhão com Deus, como podemos acolher e promover a comunhão com toda a criação? Francisco reconhece que quando nosso abraço é bastante amplo e profundo, começamos a sentir a dor e o sofrimento de toda a criação – toda a comunidade da Terra – dentro de nós mesmos. O apelo é o de expandir nossa compreensão da comunhão com Deus, a Encarnação de Cristo e nossos relacionamentos como mulheres com votos, para abraçar essa comunhão abrangente e nos permitir sentir com compaixão a dor e o sofrimento da Terra e dos pobres da Terra e buscar respostas apropriadas e eficazes. Contemplar uma teologia da encarnação profunda pode ajudar nossa reflexão como religiosas e o apelo radical que ela nos convida a engajar.

Encarnação Profunda

O conceito de “encarnação profunda” é um termo concebido pela primeira vez por Niels Gregersen, que reflete sobre a dor e o sofrimento na vida humana e da criatura neste mundo e o sentido que a cruz de Cristo traz para os custos da evolução. (Gregersen 2001). A partir de então, os ecoteólogos exploraram esse conceito. Denis Edwards afirma: “Numa teologia completa da encarnação, Deus é entendido como tornando-se para sempre um Deus de matéria e carne... A Palavra se fez carne, e matéria e carne são irrevogavelmente levadas a Deus e incorporadas para sempre na vida da divina Trindade.” (Edwards 2018, 68). Uma teologia da encarnação profunda não é apenas sobre o evento do nascimento de Jesus neste mundo e sua salvação da humanidade. Abrange todo o mistério pascal - o nascimento, a vida, a morte, a ressurreição e a ascensão - do Verbo, Logos - Deus tornando-se carne por meio da ação do Espírito e a experiência de vida de Deus como membro humano da comunidade da criação. Elizabeth Johnson afirma: “A carne que a Palavra de Deus se tornou como um ser humano é parte do vasto corpo do cosmos”. (Johnson 2014, 196). Para Johnson e outros, a encarnação profunda amplia o bem compreendido ensinamento da Igreja sobre a Encarnação para incorporar toda a carne. Ela afirma: “A carne assumida em Jesus Cristo se conecta com toda a humanidade

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e toda a vida biológica, todo o solo, toda a matriz do universo material até suas raízes”. (Johnson 2014, 196).

Francisco, enfatizando o valor intrínseco de todos os elementos da criação, vê todo o universo, incluindo os seres humanos, em caminho para Deus, mas já experimenta a plenitude de Deus por causa de Cristo ressuscitado, que “abrange e ilumina todas as coisas” (LS 83). Ele afirma que “O propósito último de outras criaturas não deve ser encontrado em nós” (LS 83). Eles têm seu valor e propósito específicos em Cristo. Edwards resume essa visão de valor intrínseco em LS, afirmando: “Deus mantém cada criatura em amor; Deus está presente interiormente a cada um deles; e cada um deles deve participar com os seres humanos na transformação final de todas as coisas em Deus. (Edwards 2019, 128).

Em seu livro final, Edwards reflete sobre o trabalho de vários teólogos, cujo foco é a resposta teológica à crise ecológica. Uma citação específica ressoa com o sofrimento que

descrevi no contexto australiano; referindo-se a Christopher Southgate (Southgate 2014), Edwards diz: “Não apenas a criatura não está sozinha em momentos de sofrimento, mas também a criatura, ‘em qualquer sentido, sabe disso e essa consciência faz a diferença.’” (Edwards 2019).15). Johnson ecoa essa confiança dizendo que a certeza da companhia de Deus à criatura sofredora “é uma das coisas mais significativas que a teologia pode dizer. Aparentemente ausente, o Doador da vida está silenciosamente presente com todas as criaturas em sua dor e morte. Eles permanecem conectados ao Deus vivo, apesar do que está acontecendo; na verdade, no fundo do que está acontecendo.” (Johnson 2014, 206). Johnson propõe que uma teologia da encarnação profunda engloba uma teologia da “ressurreição profunda” porque a promessa de Deus não termina com a cruz. (Johnson 2014, 207).

Para aqueles de nós na Austrália que suportaram a seca prolongada, o verão negro de incêndios e os efeitos da pandemia do COVID-19, a consciência do acompanhamento de Deus aos que sofrem e a promessa de ressurreição de Deus fazem a diferença.

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Um Apelo Radical às Religiosas através dos Votos

Proponho que a encarnação profunda, entendida dessa maneira, oferece um convite às religiosas para expandir nossa capacidade de amar para espelhar a de Deus - um amor que envolve toda a comunidade da Terra. O contexto deste convite está, creio eu, contido nos conselhos evangélicos, nos votos que fazemos.

A Lumen Gentium (Concílio Vaticano II, 1964) (doravante LG) denomina os conselhos evangélicos como “castidade dedicada a Deus, pobreza e obediência... Os conselhos são um dom divino, que a Igreja recebeu de [Jesus Cristo] e que sempre preserva com a ajuda da graça [de Deus]”. (LG 43) Os conselhos evangélicos são vistos como votos interpretados com a orientação do Espírito Santo (LG 43-44). Desde o Vaticano II, os religiosos continuaram a interpretar esses três votos considerando seu contexto.

A virada do novo milênio viu Sandra Schneiders, IHM, e Barbara Fiand SNDdeN publicarem suas reflexões sobre a vida religiosa. Fiand desafia tudo o que entendíamos sobre o

A Encarnação de Cristo estabelece uma conexão relacional com toda a criação que é tão íntima que coloca Deus em relação dentro daquilo que Deus criou. Dentro do material microcelular do universo, a profunda encarnação de Deus une toda a criação a Deus em comunhão sublime

que significava ser “pessoas com votos” quando ela apresenta um novo paradigma que deixa de lado o pensamento dualista que nos prende aos limites do que devemos e não devemos fazer. Ela diz que este novo paradigma “nos convida a sondar quem somos e como somos como Pessoas com votos. Pergunta o que significa ser alguém com votos, ser pessoa consagrada. Acentua a vida consagrada como um modo de ser – uma disposição – deixando a dimensão da prescrição ou proibição em segundo plano” (Fiand 2001, 55). Essas questões são relevantes vinte anos depois, estendendo seu contexto para incluir toda a criação. Então, como esse novo contexto muda nossa compreensão dos três conselhos evangélicos?

A exploração de Schneiders do voto de castidade propõe a frase “celibato consagrado” como um termo melhor por muitas razões. Ela diz: “Um voto de amor universal e/ou inclusivo, ou um voto de relacionamento parece ser mais inspirador”. (Schneiders 2001, 119). Ela argumenta que o celibato consagrado é o voto definitivo, aquele que define a escolha de vida e o compromisso de relacionamento com Deus que “é um carisma

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não dado a todos” (Schneiders 2001, 126). E explica que “o traço constitutivo da Vida Religiosa, não como cristãos, mas como religiosos, é o compromisso dos religiosos com Jesus Cristo no celibato consagrado por toda a vida”. (Schneiders 2000, 125). Um foco no relacionamento de amor com Cristo é sobre o que o voto é “para” ao invés do que o voto renuncia. Ela afirma: “O celibato consagrado… é sobre… quem e como alguém escolhe amar.” (Schneiders 2001, 127). Considerando uma teologia da encarnação profunda, viver este voto amplia nosso horizonte de amor por Jesus Cristo, em Deus, para abranger toda a comunidade da Terra e desafia todos os aspectos da maneira como escolhemos viver e amar.

No contexto do voto de pobreza, Schneiders vê que ser sem-teto por Deus e pela Igreja nesta vida (LG 44) representa alguma dificuldade em termos ecológicos. Ela diz: “As pessoas que pensam que estão apenas ‘passando’ por um local não se sentem responsáveis por ele, podem até desprezá-lo ou pelo menos tratá-lo como uma mera mercadoria” (Schneiders 2001, 266). Embora reconheça que os religiosos por vezes percorreram este caminho, o “Regulamento das Ordens Religiosas sempre incentivou a frugalidade e o respeito no uso dos bens materiais, a cuidadosa gestão dos recursos, a partilha comunitária e a reverência pela criação como manifestação e dom de Deus” (Schneiders 2001, 267). Ela afirma que as religiosas viveram uma consciência ecológica, conduzindo a Igreja em sensibilidades ecológicas. Essa liderança ainda é o caso hoje. Mudar o foco de uma perspectiva antropocêntrica sobre viver na pobreza leva em consideração o valor intrínseco de outras criaturas, ecossistemas e habitats além dos humanos. Ampliar nosso alcance do propósito de nossa pobreza a toda a comunidade da Terra, à luz da teologia da encarnação profunda, é uma mudança sutil, mas poderosa. “Fidelidade criativa” é o título que Fiand dá ao seu capítulo sobre o voto de obediência (Fiand 2001). Ela destaca o entendimento de Schneiders de que a obediência religiosa é sobre “o compromisso de buscar a vontade de Deus… e cumpri-la com dedicação total… a fim de estender o reino de Deus neste mundo” (Schneiders 1986, 140). Fidelidade criativa é ouvir o Espírito, tanto individual quanto comunitariamente, sobre as preocupações e questões que Deus quer revelar. Em termos de apelo de profunda encarnação, trata-se de ouvir os pobres sofredores da Terra e responder em obediência ao apelo de Cristo. Viver uma teologia de encarnação profunda nos chama a viver os conselhos evangélicos por meio de ação justa, amor terno e vida humilde (Miquéias 6,8) que reflete nossa consciência da interconectividade e interdependência de toda a vida e da crise ecológica, e a esperança que pode trazer o fato de sermos pessoas ressuscitadas.

A ação justa fala da abertura para ouvir os gritos da Terra e, em espírito de obediência, dar uma resposta adequada. Experimentar Deus em todas as coisas envolve uma “experiência sentida” para o sofrimento da Terra, que é central para “amar com ternura” ou ter “misericórdia amorosa”. Amar com ternura é uma forma de expressar o voto de castidade ou celibato consagrado. Estas experiências recordam-nos a nossa existência humilde e convidam-nos a avaliar a nossa vida quotidiana e as nossas formas de viver com espírito de pobreza.

Em sua explicação sobre o processo de encarnação profunda, Johnson afirma que a “tremenda passagem da forma divina para a forma humana crucificada traça um arco de humildade divina… … a capacidade de se auto esvaziar, se autolimitar, se dar, ser vulnerável, se doar, numa palavra, o Amor criativo em ação. (Johnson 2014, 202). Assim, a vida humilde, numa era de consciência ecológica, envolve a nós, como religiosas, em seguir o exemplo de Jesus, conforme entendido na teologia da encarnação profunda, a vivermos o auto esvaziamento, a autolimitação, a auto oferta, a vulnerabilidade e a auto cobrança. dando em termos de toda a comunidade da criação, não apenas em termos de nossa existência humana.

Eu pondero qual resposta a fundadora das Irmãs da Misericórdia, Catherine McAuley,

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poderia dar nestes tempos difíceis enquanto exploramos nosso carisma de misericórdia para hoje. Seu exemplo de terno amor pelos pobres de Dublin expressa verdadeira pobreza de espírito, humildade e obediência a Deus por meio de ações práticas. A maneira como escolhemos viver nossas vidas comuns dá testemunho de uma vida justa, amorosa e humilde? Ao aceitar, com verdadeira humildade, o amor que Deus dá, podemos abraçar tudo o que podemos fazer para viver um espírito de encarnação profunda em todos os aspectos de nossas vidas como religiosas. Este apelo bíblico do profeta Miquéias é mais apropriado para um amplo abraço dos pobres sofredores da Terra, incorporando toda a criação como uma expressão dos votos perpétuos que fizemos.

Implicações práticas

Esse apelo para viver nossas vidas no espírito de encarnação profunda é radical porque afeta a compreensão essencial da Encarnação e culmina numa transformação e ação abrangentes em nossas vidas diárias. Exige um repensar total sobre como entendemos a humanidade, integralmente, conectada a toda a criação e fazer mudanças convenientes. Esta caminhada radical é algo que as religiosas vêm fazendo há alguns anos e, em muitos aspectos, liderando o caminho para exigir justiça para os povos indígenas, os marginalizados e os milhões afetados pelas crises ecológicas. Ampliar nosso alcance para incluir outras espécies além da humana – animais, plantas, ecossistemas e sistemas de suporte à vida da Terra – é apenas mais um passo. Uma teologia da encarnação profunda nos convida a sentir o sofrimento da Terra sofredora em um nível visceral e encontrar maneiras de responder. Esse tipo de amor terno envolve acompanhar conscientemente o sofrimento em oração e solidariedade por meio dessa experiência sentida como uma resposta. Uma vez sentido, podemos ser levados a encontrar maneiras de viver com mais humildade - mais leveza - na Terra, para que tudo floresça. Como mulher religiosa num país ocidental de “primeiro mundo”, minha vida é muito confortável. Como muitos outros na Austrália, nossa congregação faz escolhas sobre como investir nossos recursos, escolhendo investimentos sustentáveis e desinvestindo em combustíveis fósseis. Sempre que possível, estamos instalando sistemas solares nos telhados, instalando tanques para coleta de água e trocando as luminárias por opções mais sustentáveis. Onde são necessários carros, são adquiridas opções de motores híbridos ou modelos mais sustentáveis. As Irmãs escolhem viver com mais simplicidade, reciclar, compostar, fazer esforços conscientes para usar a energia com sabedoria e consumir, comprar eticamente em nível pessoal. Politicamente, muitas estão ativamente envolvidas em agitar ações contra as mudanças climáticas, carvão e mineração de gás de jazidas de carvão e promover ativamente energias renováveis em suas áreas locais. Há muitos anos temos Irmãs engajadas em eco teologia, eco justiça e eco espiritualidade. Nós, também, estamos refletindo com as Irmãs da Misericórdia internacionalmente no processo da Presença Global da Misericórdia, que presta atenção aos gritos dos pobres da Terra, incorpora as implicações da teologia da encarnação profunda e procura abordar o sofrimento humano e não humano da Terra. Como Irmãs da Misericórdia da Austrália e Papua Nova Guiné, estamos tentando integrar nossa consciência ecológica em todos os aspectos de nossas vidas pessoais e corporativas, ministérios e práticas espirituais de forma que se concentre na regeneração, não apenas na sustentabilidade, promovendo o florescimento de toda a vida neste planeta. Esta ação é uma iniciativa nova e terá continuidade. Fundamental para seu sucesso será nossa compreensão de quem somos como mulheres consagradas, vivendo numa era de crise e consciência ecológica. A encarnação profunda é um dos dons da teologia que pode nos ajudar a viver humildemente, amar a misericórdia e fazer justiça.

35 UISGBollettino n. 180, 2023 Ir. Ann-Maree O’Beirne, RSMEncarnação Profunda
Chamado Radical
como

Conclusão

Considerando as mudanças climáticas globais, a degradação ecológica e a pandemia do COVID-19, nunca houve um momento tão urgente para parar, refletir sobre nossos relacionamentos em toda a comunidade da Terra e fazer as mudanças apropriadas. Como religiosas, esta é uma oportunidade para renovar nossa consagração a Cristo, considerando a encarnação profunda de Deus que une toda a criação a Deus em sublime comunhão. Este apelo radical obriga-nos a ampliar o horizonte das nossas relações, a acolher como dom a vida humana e não-humana, a responder com generosidade e coragem aos desafios que se nos apresentam.

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36 UISGBollettino n. 180, 2023 Ir. Ann-Maree O’Beirne, RSMEncarnação Profunda como Chamado Radical
1 Terra como um nome próprio é uma oposição ecológica intencional à objetificação e aos maus-tratos da humanidade.

O SENTIDO DO EXISTIR

CULTIVAR A ESPERANÇA DE REGENERAR A HUMANIDADE

Marcella Serafini

Marcella Serafini é doutora em Filosofia da Religião pela Universidade de Perugia. Em 2017 obteve seu segundo doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense. Sua dissertação, intitulada “A relação entre intelecto e vontade na filosofia da liberdade de Duns Scoto”, foi a vencedora da edição de 2018 do Prêmio Henri de Lubac. Ela é professora de Filosofia no Liceo ‘A. Pieralli’, em Perugia, e realiza palestras como Docente no Instituto Teológico de Assis (e em outras Universidades).

Em 8 de novembro, a Igreja celebra a memória litúrgica do Beato João Duns Scoto (1265/66-1308), teólogo e filósofo franciscano. O breve mas intenso itinerário de sua vida - dedicado ao estudo e ao ensino nas principais universidades da época - é resumido pelo epitáfio sobre a lápide do túmulo no Minoritenkirche em Colônia – “Scotia me genuit, Anglia me suscepit, Gallia me docuit, Colonia me tenet” - “A Escócia me deu à luz, a Inglaterra me recebeu, a França me ensinou, Colônia me sustenta.”

Cantor do Primado de Cristo, defensor da Imaculada Conceição de Maria, testemunha de fidelidade e obediência ao Sumo Pontífice: estas são as pedras angulares de sua teologia, sustentada por um sólido fundamento filosófico, confiante na razão, mas ciente de seus limites e da necessidade de abrir-se a uma realização sobrenatural.

Gostaríamos de revisitar algumas das intuições deste beato franciscano, para extrair dele estímulos e impulsos, que abrem a mente para um horizonte de esperança. Hoje mais do que nunca, somos chamados a refletir sobre a esperança, a fim de alimentála. ‘Esperar’ significa acreditar que há sentido na vida e na história - mesmo que não o percebamos concretamente - esperar por um futuro de bem, para assumir as próprias responsabilidades e lutar para que a vida possa vencer.

Tendo vivido num período de grande turbulência cultural - a difusão do aristotelismo, uma alternativa de visão de mundo, e em alguns aspectos antitética, à cristã - John Duns Scoto conseguiu enfrentar esta crise cultural com coragem e determinação, trazendo também as novidades de volta ao horizonte de sua própria identidade cristã.

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Ele assim elaborou uma síntese original de filosofia, teologia e espiritualidade; ele não pretendia separar razão e fé, mas distinguir entre as duas perspectivas para integrá-las: o intelecto - aberto à totalidade da realidade mas historicamente limitado - só recebe realização e perfeição se iluminado pela fé.

A teologia amplia os horizontes da metafísica, permite acessar as profundezas da realidade e penetrar no seu significado em termos de liberdade, relação e amor. O universo existe conforme a vontade de Deus (volitum): consequentemente, somos chamados a valorizar o bem que há no outro, antes de qualquer reivindicação individual.

É o olhar expresso de Francisco de Assis no Cântico das Criaturas, que no De primo Principio Duns Scoto resume de modo admirável: «Tu és bom sem limites e comunicas os raios da tua bondade com extrema liberalidade; a Ti, soberanamente amável, as entidades individuais, através do caminho próprio de cada uma, retornam por assim dizer ao seu fim último» (Capítulo IV, Conclusão 10).

Duns Scoto encarna de modo exemplar a intuição fundamental do carisma franciscano, centro da mensagem evangélica: na raiz do ser está o amor gratuito de Deus, fonte de benevolência e fonte de mistério. O universo é a “epifania do amor criativo”: tudo é dom e expressa relação, porque está enraizado numa relação fundante. A pessoa humana é uma unicidade irrepetível (extrema solitude) e relação: a existência é um chamado, vocação, dom.

Esta ontologia essencialmente relacional pode oferecer fundamentos sólidos para uma fraternidade humana, universal e cósmica, como expressou o Papa Francisco nas encíclicas Laudato Si’ e Fratelli Tutti. Da ontologia da relação deriva uma ética da partilha baseada na lógica do dom; Duns Scoto expressa esta abordagem em termos de ‘condelectatio’ e ‘redamatio’: a vocação do homem é desfrutar do amor de Deus juntos uns com os outros (condelectatio), em reciprocidade, retribuindo o amor recebido de Deus (redamatio).

38 UISGBoletim n. 180, 2023 Marcella SerafiniO Sentido do Existir

É uma perspectiva que valoriza o indivíduo único e irrepetível contra todo o totalitarismo e ditadura do pensamento único, que exige responsabilidade e cuidado pela criação, solidariedade social e partilha fraterna, alimentando a confiança no homem e seu potencial para o bem. De fato, na vontade humana não há apenas a atitude de buscar a própria utilidade e a vantagem pessoal (affectio commodi), mas igualmente constitutiva (não alterada pelo pecado original) é a capacidade de amor gratuito e de doação de si (affectio iustitiae).

O fundamento e a raiz de tal ‘otimismo antropológico’ é a Encarnação do Verbo, a humanidade de Cristo, que Scoto, com devoção e carinho, contempla na oração e reflete em seu estudo (segundo o princípio “ora et cogita, cogita et ora”/ “rezar e refletir, refletir e rezar”). A centralidade de Cristo oferece a chave para compreender o sentido da vida e da história: «No louvor devido a Cristo, entre faltar e me exceder, se tivesse que cair em um dos dois excessos, prefiro me exceder do que faltar» (Ordinatio III, d. 13, q. 4, n. 53).

No Comentário ao terceiro livro das Sententiae, introduzindo a seção dedicada à cristologia, o Mestre franciscano inverte a direção habitual da pesquisa: ele não medita sobre o Infinito a partir do finito, mas toma o caminho oposto, convencido de que o significado do finito só pode ser apreendido a partir do Infinito; ali, onde as criaturas se originam é guardada a chave de seu ser. Por esta razão é que ele medita sobre a Encarnação não a partir do pecado, como se a ‘Obra-prima’ de Deus (Summum Opus Dei) estivesse subordinada à culpa do homem, mas, ao contrário, à luz do ‘primado’ de Cristo: Deus sempre quis a Encarnação do Verbo, e, Nele, o homem e o mundo. Pois Deus é ‘essencialmente amor’, tudo é expressão e reflexo de Seu Amor e no amor encontra justificação: a primeira razão para a Encarnação é o desejo de Deus de compartilhar com uma criatura a sua ‘glória’, amor e alegria infinitos. Cristo é Aquele que eminentemente recebe e devolve o Amor do Pai, Ele é o adorador perfeito, que harmoniza prodigiosamente o finito e o infinito. O mundo, criado em vista d’Ele, assume uma sacralidade intrínseca e glorifica a Deus: «A razão última, isto é, a primeira na ordem dos propósitos, é portanto o amor; Deus cria porque (...) Ele quer ter outros co-amantes (condiligentes), o que significa que Ele quer que os outros tenham o Seu amor em si mesmos; isto significa predestiná-los» (Ordinatio III, d. 32, no. 6).

A natureza humana foi concebida, na mente eterna de Deus, como a mais nobre para cumprir o propósito supremo da criação. O Filho de Deus assumiu-o em sua totalidade, sem modificações ou melhorias; ao fazê-lo, Deus demonstrou que ama e aprova plenamente sua obra. Desde que foi assumido pelo Filho de Deus, a natureza humana será glorificada em cada indivíduo.

À luz deste projeto luminoso, até mesmo a escuridão é iluminada com esperança, como nos mostra Bento XVI em Spe Salvi / Salvos pela Esperança: «O homem é de um valor tão grande para Deus que ele mesmo se fez homem para poder com-partilhar com o homem, de maneira muito real, em carne e osso, como nos é mostrado no relato da Paixão de Jesus. A partir daí em todo sofrimento humano entrou alguém que compartilha o sofrimento e a resistência; desde então, difunde-se em cada sofrimento a con-solatio, a consolação do amor compartilhado de Deus e assim surge a estrela da esperança» (nº 39).

A esperança ‘radical’ que vem da Ressurreição de Cristo ilumina e alimenta a vida e as esperanças cotidianas: somente o olhar benevolente de Deus pode curar o coração ferido e o olhar nebuloso sobre o mundo e sobre a história; do momento que tal Olhar benevolente não abandona as criaturas, a vida gozará do triunfo pascal.

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MINISTÉRIO DA PALABRA DA MULHER E SINODALIDADE NA OBRA LUCANA

María Concepción Tzintzún Cruz, FMVD

María Concepción Tzintzún Cruz, mexicana, é Irmã da Fraternidade Missionária Verbum Dei. Foi missionária no México, no Brasil, na Itália e na Espanha. É graduada em Teologia Bíblica e tem doutorado em Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. O conteúdo deste artigo corresponde às conclusões do livro: As Mulheres no Evangelho segundo Lucas. Testemunhas e ministros da Palavra, que serão publicados em breve pelo mesmo autor.

O testemunho e o ministério da Palavra, exercido por homens e mulheres, é uma realidade evidente na obra de Lucas, que ilumina o viver da nossa fé em Jesus Cristo hoje. Experimentei pessoalmente a riqueza do ministério da Palavra, praticado por mulheres e homens, mais fortemente há cerca de 29 anos, quando conheci as Irmãs Missionárias da Fraternidade Missionária Verbum Dei. Elas convidaram-me para participar de um retiro silencioso, pregado por um sacerdote missionário e duas missionárias consagradas, que me introduziram numa profunda experiência de encontro com Deus, através da meditação da Palavra de Deus. Nesse diálogo amoroso com a Palavra, Deus chamou-me para fazer o que vi aquelas pessoas fazerem: consagrar a minha vida à proclamação da Palavra de Deus em toda a sua riqueza, para que muitas pessoas possam experimentar a plenitude da alegria que se experiencia no diálogo vivo com Jesus, através da Sagrada Escritura. Quantas pregações tenho ouvido! Quantas mais tenho pregado! Entrei numa aventura que me colocou em contato com pessoas de muitas línguas, raças, povos e nações que experimentam o poder da Palavra de Deus que transforma radicalmente as suas vidas e as coloca em sintonia com a alegria do Evangelho. À medida que me fui envolvendo neste ambiente eclesial evangelizador, fui ficando cada vez mais interessada pelos fundamentos bíblicos do ministério da Palavra, especialmente o ministério da Palavra realizado por mulheres, que tem sido pouco estudado.

As evidencias na obra lucana mostram a participação sinodal tanto de homens como mulheres, com igual dignidade, no testemunho e ministério da Palavra2. O que experienciaram as primeiras comunidades cristãs, como experienciamos, hoje?

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A Igreja vai, pouco a pouco, identificando e reconhecendo o fato de ter omitido às mulheres espaços e áreas que tanto requerem a sua presença e ação3. Muitas mulheres, que experimentaram a eficácia salvadora da Palavra de Deus nas suas vidas e encontraram os meios que as ajudaram a desenvolver as suas capacidades intelectuais, espirituais e volitivas, vivem ao serviço da Palavra de Deus, proclamando-a, ensinando-a, formando agentes pastorais, catequizando, organizando comunidades evangelizadoras, etc., permitindo assim que a sua feminilidade traga inúmeras nuances positivas para o exercício do ministério da Palavra na Igreja.

A Igreja reconhece a indidpensável contribuição da mulhere na sociedade, com uma sensibilidade, intuição e capacidades particulares que são mais próprias das mulheres do que dos homens. Por exemplo, a atenção especial feminina aos outros, que é expressa de uma maneira peculiar, embora não exclusiva, na maternidade. Reconheço com prazer, as inúmeras mulheres que partilham responsabilidades pastorais juntamente com padres, que contribuem para o acompanhamento de indivíduos, famílias ou grupos e aportam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas é ainda necessário alargar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Pois o «gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social; através dele garante-se a presença da mulher também no ámbito de trabalho» e nos vários lugares onde são tomadas decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais4. Por outro lado, a atual exegese de uma comunidade de estudiosos bíblicos, na qual cada vez mais mulheres participam ativamente, vai colocando em evidência o papel da feminilidade pertencente ao livro do Apocalipse, pelo fato de estar incluída nas Escrituras canônicas, que tem sido, infelizmente, ignorada durante séculos e que tem causado estragos na interpretação teórica e prática da Sagrada Escritura, prejudicando não apenas os membros femininos da Igreja, que não tiveram a permissão de desenvolver plenamente suas capacidades na vivência madura de sua fé, mas também privando a comunidade eclesial universal de tudo o que elas poderiam ter contribuído. As evidências expressas na obra de Lucas, que apresenta as mulheres como testemunhas e ministras da Palavra, revelam aspectos fundamentais que devem ser levados em conta para a realização fiel da missão da Igreja no mundo de hoje.

1. As mulheres testemunhas e ministras da Palavra no Evangelho segundo Lucas Reconhecemos que as mulheres do Evangelho segundo Lucas são apresentadas como testemunhas e ministras da Palavra, lançando assim algumas bases para vários aspectos da proclamação da Palavra pela comunidade do Caminho (hodós) mostrada nos Atos dos Apóstolos, realizando a missão de proclamar a Palavra até os confins da terra.

Todas as mulheres mencionadas no Evangelho segundo Lucas são testemunhas da Salvação que Jesus está realizando: ouvem sua Palavra, a põem em prática e a guardam, o vêem, falam com ele, tocam-no, experimentam sua cura, recebem seu perdão, o amam, o servem, sentem sua libertação, são reconhecidas por ele em sua dignidade, o seguem, percebem seus milagres, o maior dos quais é sua ressurreição5. Algumas delas se tornam ministras6 da Palavra, caminhando com Jesus itinerante durante seu ministério na Galileia e em Jerusalém, estando presentes em sua paixão, morte, sepultamento e ressurreição, transformando-se em proclamadoras constantes do anúncio da ressurreição que será propagado até os confins da terra, como mostra Lucas nos Atos dos Apóstolos.

Maria, a mãe de Jesus, é uma testemunha fiel da sequência de acontecimentos na vida de Jesus desde o momento em que ela aceita o rhêma, que é o acontecimento-Palavra de Deus, para o qual nada é impossível. Maria coloca toda sua vida em função da Palavra, como serva do Senhor, vive como ministra da Palavra concebendo (cf. Lc 1,26-38) e dando à luz a Jesus (cf. Lc 2,1-7), observando e simbolizando todos os acontecimentos da vida de seu filho (cf. Lc 2,8-21; 41-52), ouvindo sua Palavra, pondo-a em prática (cf. Lc 8,19-21) e vigiando sobre ela (cf. Lc 8,19-21). Lc 11,27-28), reconhecendo assim a continuidade

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Cruz, FMVD
Ministério da Palabra da mulher na obra lucana

das promessas feitas de outrora a seu povo Israel (cf. Lc 1,46-55), verificadas na vida de Jesus, o Filho de Deus, descendente de Davi, e prolongadas na primeira comunidade cristã na qual ela está presente (cf. At 1,12-14) como testemunha, mãe e ministra do acontecimento-Palavra de Deus que ela continua a ouvir em oração e a colocar em prática.

Maria, a mãe de Jesus, junto com Isabel e Ana, são testemunhas da realização das promessas de Deus em Jesus. Elas são mostrados por Lucas como anunciadoras da esperança de redenção que estão vendo acontecer na criança gerada no ventre de Maria. Isabel revela características típicas dos profetas do Antigo Testamento (cf. Lc 1,3945) e Ana é chamada de «profetisa» (cf. Lc 1,39-45). Lc 1,36-38). São duas mulheres que revelam o ministério da profecia no início da obra de Lucas, fazendo parte, juntamente com Zacarias e Simeão, da comunidade dos profetas apresentada por Lucas na narrativa da infancia, como ponte entre a profecia do Antigo e do Novo Testamento, manifestando o início do cumprimento da profecia de Joel sobre os filhos e filhas de Deus que profetizarão, que será proclamada por Pedro em Atos 2,16-21 no dia de Pentecostes e que, provavelmente, já era uma realidade histórica na comunidade de Lucas (cf. Atos 21,9).

Várias mulheres são mencionadas por Lucas como testemunhas da ação salvadora de Jesus em suas vidas durante seu ministério na Galileia: a sogra de Simão sendo curada por ele de uma febre (cf. Lc 4,38-39), a viúva de Naim tendo seu filho ressuscitado por Jesus (cf. Lc 7,11-17), a mulher pecadora sendo perdoada por Ele (cf. Lc 7,36-50), a mulher hemorrágica sendo curada e a filha de Jairo sendo ressuscitada por Jesus (cf. Lc 8,40-56).

Maria Madalena, Joana esposa de Cusa, Susana e muitas outras são testemunhas e ministras da Palavra de Jesus, o pregador que proclama o Reino de Deus na Galileia, que em função da qual empenham todos os seus bens (cf. Lc 8,1-3). Elas formam o componente feminino da comunidade itinerante de Jesus, na qual estão incluídas juntamente com os Doze. Lucas as destaca numa lista aberta oficial que inclui três nomes próprios, colocados num resumo dentro do relato do ministério de Jesus na Galileia, como extremo inicial da inclusão que termina no cume do ministério de Jesus, em Jerusalém, dentro da narrativa do evento da ressurreição na qual ele escreve outra lista semelhante, mas com diferenças que denotam significados específicos (cf. Lc 24,1-10). Partindo da tradição sinótica das narrativas da Paixão (que testemunha listas semelhantes, que menciona o seguimento destas mulheres da Galileia e as coloca como sujeito do verbo diakonéō cf. Mc 15,40-47; Mt 27,55-61), Lucas compõe seu próprio relato ampliando a presença destas mulheres, mencionando-as já a partir do ministério na Galileia.

Marta e sua irmã Maria são testemunhas que conheceram Jesus (cf. Lc 10,38-42) e representam os irmãos e irmãs que ouvem a Palavra de Deus e a colocam em prática (cf. At 16,11-15). Lucas mostra, numa cena de fraternidade, diakonia ou ministério em forma de prolexis, transmitindo o significado fundamental da ministerialidade7 como a própria identidade da comunidade dos discípulos do Senhor Jesus, da qual ele é o modelo principal (cf. Lc 22,24-27). Esta diakonia é desenvolvida na segunda parte do trabalho de Lucas, referindo-se a ela mais oito vezes (cf. Atos 1,17,25; 6:1,4; 11,29; 12,25; 20,24; 21,19).

Lucas retrata nas irmãs Marta e Maria a maneira de mostrar as atitudes com as quais o ministério pode ser vivido e as indicações do Senhor sobre a ministerialidade como a essência radical da identidade cristã. A filiação e a irmandade são o ambiente favorável para a vida fora deste ministério. Lc 10,38-42 e At 6,1-6 são duas passagens paralelas, colocadas em ambas as partes da obra, que falam da importância de ouvir a Palavra como a única necessidade verdadeira que não pode ser abandonada para dedicar-se às necessidades que também devem ser atendidas, a fim de permitir que o Reino de Deus se manifeste.

A «Filha de Abraão» é testemunha da libertação trazida pela Palavra e pela ação de Jesus que recria sua dignidade, preparando-a para o louvor de Deus, ao qual se une a multidão

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Palabra da mulher na obra lucana
da

daqueles que escolhem reconhecer e se alegrar na ação de Deus (cf. Lc 13,10-17). No caso da cura da mulher encurvada, numa sinagoga no sábado, Lucas manifesta a Palavra de salvação de Jesus que ensina um discernimento responsável sobre a hermenêutica apropriada à vontade de Deus a respeito das obras que podem ser feitas no sábado, mostrando que o sábado é um dia oportuno para libertar da escravidão de Satanás e recriar a dignidade dos membros do povo de Deus. Jesus continua seu ministério pregando a proclamação da Boa Nova do Reino de Deus, lutando contra tudo o que dificulta seu estabelecimento e incluindo as filhas e filhos de Abraão (cf. Lc 19,1-10) que haviam sido excluídos. A Palavra e a ação de Jesus canalizam, para esta mulher, a plenitude da ação criadora de Deus que se manifesta no descanso do sábado no sétimo dia e a libertação da escravidão do Êxodo de Israel.

A pobre viúva é indicada por Jesus como modelo e testemunho para seus discípulos de doação superlativa, radical e total como consequência da confiança absoluta em Yahweh, no estilo dos Anawim do Antigo Testamento (cf. Lc 21,1-4). Nesta passagem, Lucas mostra

a conotação dos pobres na obra lucana: aqueles que dão tudo o que possuem e o colocam em comum. Ele apresenta o ponto de vista de Jesus o profeta sobre o tema da pobreza, pois é ele quem caracteriza esta viúva como «a pobre», apontando-a como o protótipo do bendito a quem pertence o Reino de Deus (cf. Lc 6,21) no qual ele é o humilde rei. Em Lc 21,3 é a última vez que o termo ptōchós é usado na obra de Lucas, e é a única vez que o autor o escreve no feminino e precedido pelo artigo: hē ptōché. Ou seja, depois de ter apresentado ao longo do Evangelho o significado de ser pobre que Jesus transmite a seus discípulos, ele o conclui destacando «os pobres», e nos Atos dos Apóstolos mostra a experiência da pobreza na primeira comunidade cristã, formada pelos discípulos pobres que colocavam tudo o que possuíam em comum, para que ninguém passasse necessidade (cf. At 2,42-48; 4,32-37).

É o ideal de pobreza da comunidade cristã que vive na fé a comunhão de coração e alma, concretizando-a visivelmente na comunhão dos bens materiais, tornando realidade a recomendação de Dt 15,4: «Certamente não deve haver pobre com você, pois o Senhor

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María Concepción Tzintzún Cruz, FMVDMinistério da Palabra da mulher na obra lucana

lhe dará sua bênção sobre a terra que o Senhor seu Deus lhe está dando como herança para possuí-la».

As «Filhas de Jerusalém», ou seja, as mulheres habitantes daquela cidade, personificada como mãe, são testemunhas do Pacto que Jesus renova derramando seu sangue durante sua caminhada ao Calvário (cf. Lc 23,26-32) e que será consumado no Reino de Deus (cf. Lc 22,14-18). Escutam suas palavras, dando-lhes a interpretação profética dos acontecimentos que o Pai assume dentro de seu plano de salvação e exortando-os a converter a causa de seu pranto na direção certa: não para aquele que é a «árvore verde», que depois de morrer ressuscitará, mas para eles e para seus descendentes que ainda têm muitas vicissitudes a enfrentar. Através da alusão à imagem da gestação e da procriação, típica da fertilidade feminina, presente nesta passagem e em outras ao longo do Evangelho (cf. Lc 11,27-28; 21,23; 23,29), Lucas apresenta o convite de Jesus, dirigido àqueles que o seguem, para acolher e guardar a Palavra com todo o seu ser, como Ele está fazendo naquele momento. Com sua vida totalmente entregue, Jesus proclama que

a alegria do ventre que gera e dos seios que amamentam é superada pela alegria de escutar a Palavra de Deus e observá-la (cf. Lc 11,27-28), e que esta é a bem-aventurança que prevalece para ele durante sua paixão e para seus discípulos na perseguição (cf. Lc 13,31-35; 19,41-44; 21,5-36; At 4,23-31; 8,1-13; 11,19-26; 13,44-52; 16,19-40; 17,10-15; 21,1-28,31).

Maria Madalena e Joana são apresentadas insistentemente como testemunhas e ministras da Palavra, aparecendo pela segunda vez mencionadas numa lista oficial que contém seus nomes junto com o de Maria de Tiago e que se abre a outras que também são testemunhas e ministras da Palavra junto com elas, já que ouviram Jesus quando ele lhes pregou na Galileia (cf. Lc 24,6), seguiram-no de lá (cf. Lc 23,55), viram-no morrer em Jerusalém (cf. Lc 23,49), participaram de seu enterro (cf. Lc 23,55-56), receberam e transmitiram a mensagem da ressurreição, proclamando-a constantemente (cf. Lc 24,112). Lucas as mostra primereando8 a fé na ressurreição no início do proceso comunitário,

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A ação criativa e libertadora da Palavra de Deus mostra sua eficácia através das palavras e obras de Jesus que continua a restaurar integralmente homens e mulheres pobres, marginalizados e oprimidos, injustamente privados de sua dignidade original.

(cf. Lc 24,1-53) proclamando a ressurreição aos Onze e ao resto dos membros da comunidade. Elas marcam a passagem da fé no túmulo vazio para a fé na ressurreição que está sendo realizada pela comunidade lucana. A mensagem da ressurreição as transforma em ministras da Palavra, proclamando constantemente o que elas testemunharam.

2. Um novo modelo de serviço eclesial Nós, certamente, temos observado que o trabalho de Lucas abunda com evidências textuais que revelam a participação qualificada das mulheres na comunidade cristã primitiva de diversas maneiras. Também verificamos a influência de sua feminilidade original na compreensão de como Deus continua a intervir na história da salvação. A partir disto podemos deduzir importantes fundamentos da Teologia do Anúncio presente no Evangelho.

A forma como a Palavra se encarnou mostra a importância da capacidade feminina de conceber e dar à luz como modelo do dinamismo que os discípulos de Jesus hão de imitar ao escutá-la e colocá-la em prática, tornando-se assim um solo fecundo que dá frutos abundantes, através da propagação da Palavra.

O caráter profético dos membros do Povo de Deus é destacado na história da infância, manifestando claramente as ações proféticas de homens e mulheres que dão continuidade às dos profetas e profetisas que os precederam.

O ministério, próprio da comunidade do Caminho, exercido com palavras e obras no caminho do Senhor Jesus9, é mostrado nas atitudes vividas por duas irmãs, como um exemplo de aprendizagem da integração do ministério da Palavra e do ministério da mesa que são os dois aspectos importantes do ministério cristão, sempre regido pela prioridade da oração e do ministério da Palavra do qual os Doze Apóstolos são os guardiães.

A ação criativa e libertadora da Palavra de Deus mostra sua eficácia através das palavras e obras de Jesus que continua a restaurar integralmente homens e mulheres pobres, marginalizados e oprimidos, injustamente privados de sua dignidade original.

A palavra profética de Jesus interpreta constantemente os acontecimentos da história, mesmo os sofrimentos mais cruéis de homens e mulheres que se assemelham aos de sua paixão, reconhecendo-os como parte do plano do Pai que prevalece para além das vicissitudes da história. A capacidade propriamente feminina de gestação e criação de filhos é sublimemente reconhecida como necessária para os discípulos de Jesus que estão envolvidos com todo seu ser na escuta e no cuidado da Palavra de Deus que eles proclamam até os confins da terra.

A eficácia salvadora da Palavra pregada por Jesus também tem um impacto nos homens e mulheres restaurados por ele à sua dignidade humana, tornando-os suas testemunhas e, para muitos deles, transformando-os em ministros que proclamam esta mesma Palavra. Pelo que vimos, a primeira comunidade cristã contava com a participação de homens e mulheres no ministério da Palavra. Como se promove hoje a vivência desta realidade mostrada no Evangelho? A sociedade em nosso tempo está gradualmente reconhecendo a importância da participação tanto de homens quanto de mulheres em todas as áreas do desenvolvimento humano.

Olhando para a sociedade em geral, se voltarmos aos anos 60 do século passado, quando as mulheres começaram a se tornar mais conscientes da importância de ter sua dignidade respeitada, vemos que elas estavam percebendo que a subordinação social não era inevitável, mas era um produto de processos sociais que não só podiam ser examinados e compreendidos, mas que era até possível de contrariá-los e mudá-los10.

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Após meio século, durante o qual foram empreendidos projetos muito concretos para incentivar a participação ativa das mulheres na sociedade, estamos vendo alguns resultados: mulheres envolvidas em trabalhos importantes e em questões científicas atuais, mulheres jornalistas, diretoras de hospitais, de empresas regionais, nacionais e transnacionais, governadoras de regiões e presidentes de nações inteiras, etc.

Também na Igreja, embora com um evidente atraso, estamos agora procurando mais seriamente continuar no caminho iniciado por Jesus de Nazaré, que passou por este mundo fazendo o bem, em palavras e atos, tanto para homens como para mulheres. Temos agora um grande número de agentes de pastoral profética feminina, teólogas e professoras de teologia, presidentes de Famílias Eclesiais Internacionais11, consultoras de Congregações12, Dicastérios e Conselhos Pontifícios, secretárias e membros de Comissões Pontifícias, secretárias de Dicastérios13 e Conselhos 14, membros do Dicastério para Bispos15, etc.

Se passaram pelo menos vinte séculos de cristianismo durante os quais quase toda a sociedade mundial se acomodou confortavelmente a um modo de funcionamento que omitiu a contribuição das mulheres, é compreensível que após meio século de consciência da importância da plenitude do desenvolvimento da mulher e da indispensabilidade de sua colaboração, estamos apenas começando a ver resultados.

Elizabeth Schüssler Fiorenza, na introdução do livro sobre a exegese feminista no século XX, publicado em 2014, descreve a situação como uma mudança de paradigma e uma transformação renovada16. Pensamos que se trata de fato de projetar e realizar um novo modelo baseado nos princípios de comunhão e co-responsabilidade, característicos do Evangelho, que incluem mulheres e homens igualmente. E, definitivamente, a exegese tem muito a ver com esta renovação, devido à sua influência sobre a configuração da Igreja e da cultura.

A figura de Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, foi apresentada abundantemente como o protótipo da mulher que crê, prestativa e silenciosa, virtudes que certamente a caracterizam, mas o Evangelho segundo Lucas reconhece outras virtudes, como a da profecia que ela exerceu junto com Isabel e Ana, mostrando-as ativamente envolvidas na transformação da sociedade de seu tempo e tomando iniciativas que foram revolucionárias em seu tempo, tais como proclamar, com suas vidas e palavras, a transformação da ordem social estabelecida trazida pela força da misericórdia de Deus encarnada em Jesus de Nazaré.

Se nas devoções marianas de piedade popular e na pregação sobre Maria, a mãe de Jesus, seus papéis ativos e eficazes, como evidenciado no Evangelho, fossem cada vez mais apresentados, certamente trariam uma prática muito mais incisiva de fé na sociedade por parte dos que creem e uma implementação muito mais eficiente de habilidades para a transformação das estruturas sociais.

A participação dos membros do povo de Deus no caráter profético de Cristo ainda é desconhecida de forma experimental para a maioria dos cristãos. Embora tenha sido escrito em documentos conciliares, na prática é ignorada por muitos. Devido a esta ignorância experiencial, a presença de cristãos em esferas importantes da sociedade tem pouco significado, pois, não exercendo tal caráter profético, sua participação na evangelização das estruturas da sociedade é reduzida ao mínimo ou então ao exercício de suas práticas de fé somente na esfera do culto. O trabalho de Lucas manifesta abertamente a participação de mulheres e homens no ministério da profecia e deve iluminar a prática cristã nas áreas atuais de nossa sociedade.

Como criativamente os programas educacionais que estão sendo desenvolvidos atualmente podem ser influenciados pelo Evangelho! Assim como projetos políticos que podem promover autenticamente a dignidade da pessoa humana como reconhecida pelo Evangelho, que inclui tanto o aspecto físico quanto o espiritual e transcendente.

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Ministério
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A economia também precisa ser guiada pelos parâmetros do Evangelho proclamado pelos discípulos do Senhor Jesus com propostas inteligentes que incluam os princípios da solidariedade na busca do bem comum para todos. Definitivamente, o reconhecimento da missão profética de cada discípulo de Jesus pode ter um impacto concreto em muitos avanços que irão humanizar ainda mais nosso mundo de hoje. No que diz respeito às mulheres, no imaginário religioso, as características negativas de várias mulheres no Evangelho têm sido muito encorajadas porque nos comentários escritos e na pregação verbal elas são frequentemente mencionadas como mostrando suas deficiências e não seu potencial: Ana é identificada como uma velha viúva e não como uma profetisa, Isabel como uma mulher velha e estéril e não como a mãe do precursor de Cristo, Maria Madalena como possuída por sete demônios (mesmo como uma prostituta! ) em vez de uma mulher totalmente salva por Jesus, a filha de Abraão como encurvada em vez de uma mulher libertada por Jesus no sábado, a viúva do templo como pobre em vez de uma mulher generosa, um modelo de confiança em Deus, as filhas

de Jerusalém como “mulheres que choram” em vez de testemunhas da Nova Aliança de Deus com seu povo, as mulheres testemunhas da paixão, morte e ressurreição de Jesus como “cretinas”, mais que como ministras da Palavra, em fim, pensamos que tudo isso é um reflexo das projeções negativas das capacidades das mulheres existentes na sociedade e na Igreja há tantos séculos, manifestando-se inclusive na linguagem com que são mencionadas em eventos públicos de onde a fé é transmitida.

Nossa esperança é que pouco a pouco vamos evoluindo na interpretação e na linguagem. Interpretações como as feitas do verbo diakonéō, que, sempre que este verbo se refere à mulher no Evangelho, são tomadas como significando serviço doméstico, geraram uma mentalidade submissa em muitas mulheres de boa vontade que desejaram consagrar suas vidas ao Senhor e foram designadas a este papel como única alternativa à santidade. Além disso, a maioria das interpretações de Lc 8,1-3 assume que os destinatários do serviço prestado pelas mulheres são Jesus e os Doze, justificando assim a atribuição

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institucional de papéis subordinados às mulheres a serviço dos homens. No entanto, ao examinarmos mais de perto esta passagem, reconhecemos que as mulheres exercem seu serviço em função de Jesus; ele é o destinatário de sua ação. Elas servem a Jesus que prega, anunciando o Reino de Deus e esta ação é realizada juntamente com os Doze, sendo membros do mesmo grupo itinerante, seguindo Jesus com igual dignidade, como ministros e ministras da Palavra.

Atenção, estamos falando de igual dignidade como ministros da Palavra, nem mais nem menos, porque é isso que vemos refletido na comunidade original que Lucas nos mostra no Evangelho, e isso é a coisa mais surpreendente! No Evangelho vemos refletida a igualdade de dignidade dos discípulos de Jesus, de homens e mulheres, não há espaço para reivindicações de um ou de outro sexo. Lc 24,1-12 é uma passagem que tem sido muitas vezes considerada desfavorável às mulheres porque tem sido interpretada como significando que os Onze consideraram as palavras das mulheres,

A eficácia salvadora da Palavra pregada por Jesus também tem um impacto nos homens e mulheres restaurados por ele à sua dignidade humana, tornando-os suas testemunhas e, para muitos deles, transformando-os em ministros que proclamam esta mesma Palavra

anunciadoras da ressurreição, como sendo insensatas. Entretanto, aprofundando o significado desta passagem, reconhecemos que ela se coloca como a primeira parte da narrativa apresentada no capítulo 24 do Evangelho, que mostra o dinamismo da comunidade dos discípulos de Jesus que assimilaram progressivamente o fato da ressurreição e que algumas mulheres foram as primeiras a acreditar e a anunciá-lo, transmitindo a mensagem aos homens que precisavam compreendê-la pouco a pouco até reconhecerem, todos juntos, o Jesus Ressuscitado no meio de toda a comunidade da qual participavam homens e mulheres que passaram a acreditar n’Ele.

Não se trata de machismo ou feminismo, mas de uma comunidade cristã na qual somos todos um em Cristo para fazer a Palavra de Deus chegar aos confins da terra, exercendo uma diversidade de ministérios, assumindo papéis diferentes sem o critério forçado de que estas distinções tenham de ser masculinas ou femininas. Trata-se, portanto, de um ministério sinodal.

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Creio que estamos num bom momento para continuar avançando nas elaborações teológicas mais fiéis ao Evangelho, que mostram a eficiência da participação de mulheres e homens na evolução da comunidade cristã.

A participação das mulheres no ministério da Palavra, refletida no Evangelho segundo Lucas, ilumina o caminho de nossa atual práxis como Igreja. De fato, na prática, um grande número de mulheres já está envolvido no ministério da Palavra, colaborando com as necessidades pastorais emergentes que surgiram ao longo da história.

Acreditamos que seria de grande benefício para a Igreja e a sociedade de hoje se fosse permitido às mulheres, devidamente preparadas, uma maior participação no ministério da Palavra em nível público e oficial da Igreja, pois sua maneira de ver a realidade e interpretar a Palavra de Deus enriqueceria o ponto de vista masculino que tem sido tão difundido nos espaços públicos de maior incidência na Igreja.

1 Dentro da grande tradição carismática do Novo Testamento, é possível reconhecer a presença activa dos baptizados que exerceram o ministério de transmitir o ensino dos apóstolos e evangelistas de uma forma mais orgânica e permanente, ligada às diferentes circunstâncias da vida (cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, 8). A Igreja tem procurado reconhecer este serviço como uma expressão concreta de um carisma pessoal que tem favorecido grandemente o exercício da sua missão evangelizadora. Um olhar sobre a vida das primeiras comunidades cristãs empenhadas na difusão e desenvolvimento do Evangelho, também hoje exorta a Igreja a compreender que novas expressões podem ser usadas para continuar a ser fiel à Palavra do Senhor, a fim de levar o seu Evangelho a cada criatura». “. Carta Apostólica sob a forma de “Motu Proprio” Antiquum Ministerium, Instituting the Ministry of Catechist, Vatican City 2021, 2.

2 Cf. Carta Apostólica em forma de «Motu Proprio» Spiritus Domini. Sobre a modificação do cânon 230 § 1 do Código de Direito Canónico acerca do acesso das pessoas do sexo feminino ao ministerio instituído do Leitor e do Acólito, Cidade do Vaticano 2021.

3 Exortação apostólica aos Bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, Evangelii Gaudium, Ciudad del Vaticano 2013, 103.

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4 S. Pellegrini («Donne senza nome nei Vangeli Canonici” em M. NAVARRO PUERTO - M. PERRONI, ed. Narrazioni e storia, Trapani 2012, 414. 424) analisa as figuras das mulheres sem nome nos Evangelhos Canônicos e aponta que seu caráter positivo em relação a Jesus é o denominador comum de sua função narrativa. De acordo com o que estudamos sobre as mulheres no Evangelho segundo Lucas, reconhecemos que isto também pode ser considerado um denominador comum das personagens femininas, seja das mencionadas com seu nome próprio ou das anônimas.

5 Ministras com o significado bíblico presente no trabalho de Lucas, que se refere a ser intermediários, realizar uma comissão, ser enviado em nome de outra para realizar uma missão, para servir. Não usamos este termo com a conotação técnica que adquiriu na tradição da Igreja após os Escritos do Novo Testamento.

6 «Desde suas origens, a comunidade cristã experimentou uma ampla forma de ministerialidade que tomou a forma do serviço de homens e mulheres que, obedientes à ação do Espírito Santo, dedicaram suas vidas à edificação da Igreja. Os carismas, que o Espírito nunca deixou de infundir nos batizados, encontraram por vezes uma forma visível e tangível de serviço direto à comunidade cristã em múltiplas expressões, a ponto de serem reconhecidos como uma diaconia indispensável para a comunidade». Carta Apostólica na forma de um «Motu Proprio» Antiquum Ministerium. Instituição do Ministério do Catecismo, Cidade do Vaticano 2021, 2.

7 Usamos o neologismo inventado pelo Papa Francisco quando nos referimos à missão dos cristãos no número 24 da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.

8 Cf. M. GRILLI, una sfIda peR La chIesa, MILano 2022, 62. neste LIvRo, o autoR deIxa cLaRo que, à Luz da obRa de Lucas, o caMInho da IGReja (sínodo) teM coMo únIca RefeRêncIa o caMInho de jesus

9 Cf. J. PLASKOW, “Movimento e inizio della ricerca”, em E. SCHÜSSLER FIORENZA, ed. Bolsa de estudo e Movimento, Atlanta 2014, 31.

10 A Fraternidade Missionária Verbum Dei, que recebeu a aprovação pontifícia em 15 de abril de 2000, alterna sua presidência entre um missionário e uma missionária a cada seis anos. A primeira mulher presidente foi Isabel María Fornari Carbonell (2000-2006) e a segunda foi Lucía Aurora Herrerías Guerra (2012-2018).).

11 Nuria Calduch-Benages, nomeada consultora da Congregação para a Doutrina da Fé em 29 de outubro de 2021, e anteriormente designada secretária da Pontifícia Comissão Bíblica em 9 de março de 2021.

12 Em 23 de abril 2022, Alessandra Smerilli foi nomeada secretária interina do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral.

13 Charlotte Kreuter-Kirchhof número dois do Conselho de Economía do Vaticano, nomeada em 6 de agosto de 2020.

14 Raffaella Petrini, F.S.E., Secretária Geral do Governo do Estado da Cidade do Vaticano, Yvonne Reungoat, F.M.A., Superiora Geral das Filhas de Maria Auxiliadora, e Maria Lia Zervino, Presidente da União Mundial das Organizações Católicas de Mulheres, foram nomeadas membros do Dicastério para os Bispos em 13 de julho de 2022.

15 Cf. e schüssLeR fIoRenza, ed., Estudos Bíblicos Feministas no Século XX. Scolarship and Movement, Atlanta 2014.

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IRMÃS

PELO MEIO AMBIENTE: INTEGRANDO AS VOZES DAS MARGENS

Irmãs pelo Meio Ambiente: integrando as Vozes das Margens é uma declaração da Associação Internacional das Superioras Gerais (UISG).

A UISG é uma organização para as líderes das congregações católicas femininas, representando mais de 600.000 Irmãs católicas em todo o mundo. Contando com mais de 1.900 Superioras Gerais (ou líderes congregacionais), com Generalatos (ou sedes) em 97 países, a rede UISG é estimada como uma das maiores provedoras de apoio direto às comunidades em áreas que incluem saúde, alívio da fome e cuidado de crianças. Ao lado de sua missão central de capacitação, apoio e conexão entre os membros, a UISG atua como uma organização guarda-chuva para as Irmãs engajadas no enfrentamento de alguns dos desafios de desenvolvimento mais urgentes do mundo.

Como Irmãs, estamos convencidas da necessidade de uma abordagem integral, integradora e inclusiva para a realização da Agenda das Nações Unidas 2030 e das Metas da Laudato Sì.

Integral: somos holísticas na abordagem de questões sociais e ambientais, advogando a partir de uma visão que é tanto humana quanto espiritual, à medida que buscamos soluções sustentáveis.

Integrativa: construímos pontes para aproximar as pessoas, concentrando-nos em nossa humanidade compartilhada à medida que caminhamos em direção a um futuro seguro, justo e pacífico para todos.

Inclusiva: não deixamos ninguém para trás, sabendo que as comunidades mais marginalizadas do mundo podem nos ensinar toda a resiliência necessária para enfrentar os desafios do nosso tempo.

Nós, como nossas líderes, reconhecemos cada vez mais a necessidade de soluções de desenvolvimento global enraizadas na justiça e não apenas na caridade. Acreditamos que é vital reconhecer que milhões de pessoas ainda enfrentam obstáculos significativos na afirmação de seu direito de participação. Como Irmãs, construímos nossa missão a partir de evidências de nosso trabalho no chão da vida, inspiradas pela reflexão sobre a mensagem do Evangelho, o ensinamento social da Igreja e a liderança do Papa Francisco.

As Irmãs Católicas e seus aliados estão na vanguarda de um movimento para orientar conversas globais em torno das necessidades de nossas comunidades mais vulneráveis. Neste espírito, a UISG emite a seguinte declaração.

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Ir. Patricia Murray, Secretária Executiva, UISG

DECLARAÇÃO

Irmãs pelo Meio Ambiente: lntegrando as Vozes das Margens é uma declaração Internacional das Superioras Gerais (UISG) com o objetivo de refletir e esclarecer a resposta das Irmãs Católicas aos desafios ambientais do nosso tempo.

Esta declaração, por um lado, aborda a urgência do momento atual, identificando a COP27 sobre as mudanças climáticas e a COP15 sobre biodiversidade como oportunidades cruciais para inverter a maré de destruição que está devastando nossa Terra. Por outro lado, ela expressa uma visão profundamente arraigada e voltada à fé para a conversão ecológica que inspirou a missão das Irmãs por muitas décadas e continua a inspirar todos os dias, em todo o mundo.

A publicação desta declaração visa criar uma plataforma para delinear princípios e orientações para um futuro mais sustentável, com base nos ensinamentos que as Irmãs Católicas adquiriram através de seu excepcional engajamento com as comunidades de base. Como um pilar da advocacia (defesa) do Meio Ambiente da UISG, esta declaração estimulará uma ação descentralizada e diversificada através do envolvimento de grupos religiosos e não religiosos, homens e mulheres, jovens e idosos, agências governamentais e organismos intergovernamentais, organizações internacionais e empresas privadas. Pedimos à comunidade de desenvolvimento global a se engajar com as Irmãs Católicas na promoção e realização de soluções ambientais integrais, para garantir um futuro seguro e promissor para todas as pessoas e para nosso planeta.

I. Integrar as respostas à mudança climática e à perda de biodiversidade

Integrar respostas à mudança climática e à perda da biodiversidade, reconhecendo a natureza interligada dos desafios ecológicos e, em particular, o impacto em cascata das adaptações às mudanças climáticas sobre a biodiversidade e a exploração dos recursos naturais.

Na prática isso significa:

1. Reconhecer que a ação ambiental não pode ser isolada, e que uma abordagem diferenciada e interdisciplinar é vital para salvaguardar o futuro de nosso planeta, embora se abrace as Metas de Desenvolvimento Sustentável como uma estrutura para monitoramento e avaliação.

2. Abordar as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade com uma visão integrada para proteger os ambientes e os ecossistemas, de modo que as transformações climáticas não dependam de práticas de mineração poluentes ou prejudiciais, ou do desenvolvimento da terra que destrói o habitat de espécies ameaçadas de extinção, por exemplo.

3. Agir imediatamente para deter o colapso da biodiversidade – certificando-se que pelo menos metade da Terra e seus oceanos se tornem áreas protegidas até 2030 - assim como restaurando ecossistemas devastados e reduzindo a dependência global dos combustíveis fósseis.

4. Alcançar um consenso global sobre um Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis e estabelecer um novo acordo sobre uma Estrutura Global de Biodiversidade das Nações Unidas.

II. Integrar o cuidado pelas pessoas e por nosso planeta

Integrar o cuidado pelas pessoas e por nosso planeta, rejeitando a visão antropocentrista que está na base dos hábitos de consumo destrutivos e reconhecer a ligação intrínseca entre o meio ambiente e nós mesmos.

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Na prática, isso significa:

1. Garantir, ao agir em prol da Terra, que a dignidade e os direitos das comunidades afetadas pelas mudanças climáticas e pelo colapso da biodiversidade tenham prioridade sobre as considerações nacionais ou privadas de lucro e expansão econômica.

2. Corrigir, urgentemente, a desigualdade global através de uma estrutura integrada de perdas e danos que vincule explicitamente a adaptação climática à justiça social, reconhecendo a dívida ecológica devida pela Região Norte aos países que sofrem o maior impacto de uma degradação ambiental que eles não causaram.

3. Promover o acesso equitativo aos recursos para adaptações ecológicas a fim de aumentar a resiliência agrícola e sustentar a segurança alimentar, proteger o acesso à água potável e responder à elevação do nível do mar prevista e à erosão costeira em áreas povoadas por humanos.

4. Assegurar meios de subsistência seguros e justa compensação aos trabalhadores das indústrias de combustíveis fósseis e de outros setores insustentáveis da economia global, impactados pela transição para alternativas ecológicas.

III. Integrar a vulnerabilidade a partir das margens

Integrar a vulnerabilidade a partir das margens na liderança e tomada de decisões, assegurando que as vozes dos mais afetados pela degradação ambiental estejam no centro das conversas globais sobre resiliência e recuperação.

Na prática, isso significa:

1. Reconhecer que a vulnerabilidade pode ser uma força, e que a integração da vontade de ser vulnerável como um valor central da liderança responsável pode nos ajudar a encontrar soluções colaborativas para o futuro compartilhado da humanidade.

2. Escutar e prestar atenção às vozes das pessoas afetadas pela degradação ambiental, tanto em reconhecimento de sua dignidade humana quanto como uma abordagem pragmática para aprender de sua resiliência.

3. Integrar, além disso, os vulneráveis como atores-chave dentro de nossas estruturas institucionais, garantindo que as vozes das margens sejam apresentadas de forma central no diálogo global para a mudança, e não se restringindo a advogar a partir de fora.

4. Focar, portanto, em soluções ambientais das necessidades dos grupos marginalizados, incluindo mulheres e meninas, pessoas deslocadas e sem teto, crianças e idosos, comunidades indígenas e outras minorias étnicas.

5. Incluir, em especial, sugestões das comunidades indígenas para interromper ou modificar projetos em terras indígenas ou nas proximidades, e garantir que sua experiência seja incluída nos esforços para reduzir a mudança climática e o colapso da biodiversidade.

6. Reconhecer que as religiosas estão num lugar privilegiado para advogar pelas e com as comunidades onde estão inseridas, e têm um papel a desempenhar tanto para trazer as vozes locais às rodas de conversas globais, quanto para assegurar que os compromissos globais sejam implementados localmente.

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Os meses parecem passar rapidamente e as várias reuniões, programas e atividades na UISG aumentam e se multiplicam agora que o pior da Covid já passou. Uma série de reuniões importantes foram realizadas na UISG e em outros lugares patrocinadas pelo Dicastério para o Instituto da Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. As Conferências de Religiosas de certas partes do mundo reuniram-se em grupos linguísticos para refletir sobre a melhor forma de acompanhar as congregações que estão chegando à conclusão de suas atividades. Estas várias reuniões levaram a uma discussão mais ampla sobre os desafios enfrentados pelas líderes religiosas nos EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, Irlanda, França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Luxemburgo, Suíça, Itália, Espanha, Portugal, Polônia e Hungria. Aquelas que participaram expressaram grande apreço pela oportunidade de partilhar entre países e continentes. Cada grupo se reuniu durante um dia e meio com membros do Discastério. As Irmãs apresentaram relatórios e no terceiro dia de cada reunião, foi realizado um encontro no Dicastério, onde houve a continuidade do diálogo. No final de março de 2023, acontecerá uma reunião de dois dias, em Roma, com representantes de todas as participantes. Espera-se, neste encontro, reunir as sugestões concretas e as melhores práticas compartilhadas.

A Comissão de Cuidado e Salvaguarda da UISG/USG esteve particularmente ativa oferecendo seminários sobre uma série de tópicos. Os webinars anteriores foram publicados em forma de livro – Promover uma cultura de Cuidado e Proteção – Novos Desafios para a Vida Consagrada - em italiano, inglês e espanhol. Os membros da UISG podem solicitar cópias destes textos nas várias línguas, escrevendo para o seguinte endereço safeguarding@uisg.org. Os artigos cobrem uma vasta gama de tópicos e são de leitura essencial para as Superioras Gerais e equipes de liderança. Continuamos a solicitar que as Superioras Gerais nomeiem uma Irmã como delegada congregacional para a salvaguarda. O papel da delegada é participar em webinars da UISG-USG e manter-se atualizada com os aspectos canônicos, teológicos e espirituais do cuidado e salvaguarda. Outro papel é o de manter as Superioras Gerais e o Conselho informados sobre os desenvolvimentos na área e assegurar que as políticas, as diretrizes e os procedimentos sejam regularmente atualizados e trabalhados no seio da congregação. Uma delegada, fazendo parte de uma rede intercongregacional, pode aprender através de audiências sobre casos reais e da partilha das melhores práticas. Se a sua congregação ainda não nomeou uma delegada, por gentileza, pedimos que considere essa necessidade e envie o nome à UISG utilizando o e-mail acima. Esta área de Cuidado e Salvaguarda está em contínua evolução à medida que estudos e pesquisas emergem de diferentes partes do mundo. A UISG nomeou a Sra. Tina Campbell como consultora de salvaguarda para a UISG. Ela realizará um trabalho aprofundado com quatro ou cinco congregações. O material produzido será partilhado com todas as congregações membros.

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A VIDA NA UISG
Do escritório da Secretária Executiva

As oportunidades de formação continuam a ser oferecidas na UISG. O programa para Formadores começou no final de janeiro com 46 participantes. A equipe organizadora ampliou-se com a presença de Ir. Cynthia Reyes, SRA (Coordenadora) e Ir. Toni Longo, ASC, à qual se juntou Ir. Shalini Muchtal, PBVM. Irmã Shalini vem da Índia e foi professora de Teologia Sistemática no Vidyajyoti College of Theology, Delhi. Ela também atuou como professora convidada em vários outros Seminários e Institutos Teológicos na Índia e foi Vice-Presidente da Associação Teológica Indiana. Temos o prazer de receber a Irmã Shalini na UISG.

Os cursos on-line continuam e atraem um grande número de participantes. Recentemente a UISG trabalhou com o Programa de Discernimento para Líderes dirigido pelos Jesuítas para oportunizar um curso online, no formato de módulos, às Equipes do Generalato na Ásia e África. Esta experiência foi muito apreciada e contou com a tradução em coreano e japonês. Havia cerca de 124 participantes no total. Outro programa de 6 dias, muito bem sucedido, centrado na interculturalidade, reuniu mais de 220 participantes. A formação sobre vários temas, incluindo Auto-cuidado e Vulnerabilidade; Semeando Esperança para o Planeta; Personalidade e Interculturalidade; Liderança e Vulnerabilidade; SINODALIDADE; Compreender a Liderança; Capacitação em Cuidados Católicos para Crianças, workshop de formação promovidao pela JPIC, etc., foi muito apreciada pelas participantes.

Vários eventos importantes foram realizados de forma presencial e on-line no final de 2022 e início de 2023. A Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, em parceria com as Irmãs Salesianas e Combonianas e as Irmãs de Nossa Senhora da Missão, juntamente com a Vises International e a Misean Cara, desenvolveram um importante projeto de pesquisa Como estão as Meninas, durante a Covid. Trata-se de um projeto de pesquisa que estudou como os direitos das meninas foram afetados durante a pandemia da Covid-19. Elas pesquisaram 3.443 adolescentes e mulheres jovens entre 10-20 anos de idade em 6 países e em 30 localidades, tanto rurais/remotas quanto urbanas. As descobertas são muito úteis para o planejamento futuro. As estatísticas a seguir apontam para um padrão que provavelmente ocorreu em outros lugares:

- 2 de cada 4 meninas teve dificuldade de estudar.

- 13% abandornaram a escola à medida que um grande número de instituições e centros educacionais de informação fechavam.

- 1 em cada 5 meninas não fez uso da internete durante o isolamento social.

- Além disso, 1 em cada 6 teve dificuldade de acesso à alimentação durante o período de isolamento.

- 6 em cada 10 meninas relataram o aumento de responsabilidade em relação aos cuidados de trabalho doméstico durante o período de isolamento.

- 91% esperavam continuar os estudos.

Isto mostra a necessidade urgente de ajudar as meninas que abandonaram a escola a voltar aos estudos e oferecer intervenções para ajudá-las a recuperar a falta de oportunidades durante este período de dois anos.

Irmãs para o Meio Ambiente: Integrando as Vozes a partir das Margens é um relatório publicado pela UISG que foi uma colaboração entre a iniciativa Semeando Esperança para o Planeta do Escritório JPIC da UISG-USG e Irmãs Advogando Globalmente, um projeto financiado pelo Fundo de Solidariedade Global. Outros parceiros importantes foram a UNANIMA Internacional e o CAFOD. Foi lançado em um evento realizado na UISG em 3 de novembro de 2022, através de um painel. A Irmã Sheila Kinsey, coordenadora do Semeando Esperança para o Planeta, e outros palestrantes falaram sobre temas-chave refletidos no relatório.

55 UISGBoletim n. 180, 2023 A Vida na UISG

- Integrar as respostas à mudança climática e à perda de biodiversidade

- Integrar o cuidado com as pessoas e com nosso planeta

- Integrar a vulnerabilidade a partir das margens

O relatório partilha estratégias práticas de ação e advocacia em cada uma dessas áreas. Se vocês tiverem interesse de receber uma cópia do relatório, por favor, contatem a coordenadora Giulia Cirillo, no seguinte email: advocacy.comms.coordinator@uisg.org

Finalmente, a UISG colaborou com a Federação Dominicana das Irmãs, UNANIMA, JCOR e outras em outubro e novembro de 2022, para destacar a presença e a voz das Irmãs na Cop 27. As Irmãs do mundo inteiro foram convidadas a participar antes e durante a COP 27, através de webinars e da partilha de recursos. O webinar de abertura, Descalças no Sinai, convidou as participantes a empreenderem uma peregrinação digital durante a COP. Isto foi seguido por uma série de outros momentos importantes de solidariedade, incluindo o lançamento do projeto Irmãs pelo Meio Ambiente, um encontro virtual de Oração Global pela Terra, um Encontro Informal Inter-Religioso e finalmente uma sequência diária de orações. Agradecimentos especiais são devidos à Teresa Blumenstein - Coordenadora Global do JCOR que é um grupo de 21 congregações, federações ou organizações sem fins lucrativos estabelecido por religiosas e por Ir. Durstyne Farnan, OP, da Conferência Dominicana de Liderança que ajudou a coordenar esta colaboração. Talvez possamos continuar a rezar a Oração da Peregrinação que foi elaborada para essa reunião.

Descalças no Sinai

A Terra, nossa casa comum, está gritando através de fomes, inundações e incêndios, “Tire o calçado da ignorância. Você está pisando em solo sagrado.”

A Terra, nossa comunidade, está sendo forçada a se afastar dos espaços que nutriram nossas famílias por séculos.

“Tire o calçado da apatia. Você está pisando em solo sagrado.”

A Terra, nossa casa comum, nos chama a reconhecer a verdadeira riqueza que estamos desperdiçando na busca de moeda criada pelo homem.

“Tire o calçado da avidez. Você está pisando em solo sagrado.”

A Terra, nossa comunidade, está sendo esmagada em todas as sociedades e ecossistemas por excesso ou privação.

“Tire o calçado do individualismo. Você está pisando em solo sagrado”

A Terra, nossa casa comum, não pode mais esperar por nós para “Tirar nosso calçado e reconhecer que vivemos em solo sagrado”

(Se isso lhe serve, dispense mais um tempo repetindo o mantra “Tiremos o calçado. Estamos em solo sagrado”).

56 UISGBoletim n. 180, 2023 A Vida na UISG

NOTÍCIAS DA UISG

Para ouvir novamente os seminários web da UISG, visite por favor a página web: https:// www.uisg.org/pt/playlist

Para saber mais sobre os projectos da UISG: www.uisg.org/pt/projects

Todas as notícias: www.uisg.org/pt/news

Irmã Patrícia Murray nomeada como consultora do Dicastério da Cultura e Educação

No sábado, 18 de Fevereiro, o Papa Francisco anunciou as nomeações dos membros e consultores para o Dicastério da Cultura e Educação. Entre os consultores nomeados encontra-se a Ir. Patrícia Murray, ibvm, a Secretária Executiva da UISG.

A Irmã Patrícia diz: “É verdadeiramente uma honra ser nomeada como consultora do novo Dicastério da Cultura e da Educação. As escolas, universidades e outros ambientes educacionais são lugares privilegiados na vanguarda do diálogo entre a fé e a cultura”.

Ler mais: http://bit.ly/3mRuwAk

Sair e caminar para a liberdade Entrevista com Ir. Gabriella Bottani, missionária comboniana

De 2015 a 2022, Gabriella foi Coordenadora Internacional de Talitha Kum. Hoje o papel é ocupado pela irmã Abby Avelino, mm.

“Sempre senti forte esta dimensão de irmandade que nasce e se constrói a partir da vida espiritual. Hoje é a Festa da Luz, eu acredito que seja propriamente esta luz da esperança que, mesmo nas trevas mais obscuras, nos momentos de crise, quando falta dinheiro para os projetos, porque também isto acontece, ter acesa a luz da esperança significa que antes da palabra de violência, da brutalidade da violência, existe uma resposta que é aquela do Evangelho, que é aquela da paz, que é aquela da dignidade, da solidariedade.”

Ler mais: http://bit.ly/3JFatho

Nova Secretária Co-Executiva da Justiça, Paz e Integridade da Criação Comissão Depois de mais de sete anos na posição da Secretária Co-Executiva de Justiça, Paz e Integridade da Criação, Ir. Sheila Kinsey, fcjm está concluindo o seu mandato, que está agora a ser assumido pela Ir. Maamalifar M. Poreku.

Ler mais: http://bit.ly/3Lj1yDC

Nós comunicamos o coração da Vida Religiosa: Primeiro Encontro Internacional sobre Comunicação para a Vida Religiosa.

O Encontro será só online de 27 a 30 de Novembro de 2023. O título que escolhemos para o programa é “Comunicar a Vida Religiosa”, enquanto que o nosso lema será “Sobre a Tua palavra, Senhor, lançaremos as nossas redes”. Falaremos de Ti a todo o mundo”.

Ler mais: http://bit.ly/3JdR4Tn

57 UISGBoletim n. 180, 2023 A Vida na UISG

CONSELHO DIRECTIVO DA UISG (2022-2025)

PRESIDENTA

VICE-PRESIDENTA

Sr. Nadia Coppa, ASC (Italia)

Adorers of the Blood of Christ

Sr. Mary Teresa Barron, OLA (Irlanda)

Sisters of Our Lady of the Apostles

Sr. Roxanne Schares, SSND (USA) School Sisters of Notre Dame

Sr. Theodosia Baki, TSSF (Cameroun)

Tertiary Sisters of St. Francis

Sr. Graciela Francovig, FI (Argentina)

Hijas de Jesus

Sr. Theresa Purayidathil, EF (India)

Daughters of the Church

Sr. M. Jose Gay Miguel, CMT (España)

Teresian Missionary Carmelites

Sr. Miriam Altenhofen, SSpS (Germany)

Missionary Servants of the Holy Spirit

Sr. María Rita Calvo Sang, ODN (España)

Order of the Company of Mary Our Lady

Sr. Antonietta Papa, FMM (Italia)

Missionaries Daughters of Mary

SUBSTITUTAS

Sr. Dolores Lahr, CSJ (USA)

Sisters of St. Joseph of Chambéry

Sr. Patricia del Carmen Villaroel Garay, SSCC (Chile)

Sisters of the Sacred Hearts of Jesus and Mary

Sr. Anna Josephina D’Souza, SAC (India)

Missionary Sisters of the Catholic Apostolate (Pallottines)

SECRETARIA EXECUTIVA

Sr. Patricia Murray, IBVM (Irlanda)

Institute of the Blessed Virgin Mary (Loreto Sisters)

58

PESSOAL DA UISG

SECRETARIADO

Ir. Patricia Murray, ibvm Secretária Executiva segretaria.esecutiva@uisg.org - 06 684002 36

Ir. Mary John Kudiyiruppil, SSpS Vice-Secretária Executiva vice.segretaria@uisg.org

Rosalia Armillotta Assistente da Secretária Executiva ufficio.segreteria@uisg.org - 06 684002 38

FINANÇAS

Aileen Montojo Administradora Financeira economato@uisg.org - 0668.400.212

Sr. Sunitha Luscious, zsc Assistente da Administradora Financeira assistente.economato@uisg.org - 0668.400.249

Miriam Coco Assistente da Administradora Financeira amministrazione@uisg.org

Patrizia Balzerani Secretária para os membros da UISG contributi@uisg.org - 06 68.400.248

COMUNICAÇÃO

Patrizia Morgante Responsável de Comunicação comunicazione@uisg.org - 06 684002 34

Sr.  Thérèse Raad, sdc Assistente de Comunicação assistente.comunicazione@uisg.org - 0668.400.233

Miriam Di Bartolo Assistente de Comunicação assistente.comunicazione@uisg.org

Antonietta Rauti Coordinadora do Boletim UISG bollettino@uisg.org - 06 684002 30

59

PESSOAL DA UISG

PROJECTOS

Ir. Abby Avelino, mm Coordinadora Talitha Kum coordinator@talithakum.info - 06 684002 35

Ir. Mayra Cuellar, mb Equipa de Coordenação Internacional Talitha Kum info@talithakum.info

Marion Lugagne Delpon Secretária Talitha Kum secretariat@talithakum.info

Ir.  Mary  Niluka Perera, rgs Catholic Care for Children International ccc@uisg.org - 0668.400.225

Ir.  M.  Cynthia Reyes, sra Programa de Formadoras UISG formators.programme@uisg.org - 0668.400.227

Ir. Paula Jordão, fmvd Coordenadora de Formação formation@uisg.org - 0668.400.245

Sr. Carmen Elisa Bandeo, SSpS Rede Internacional de Migrantes e Refugiados rete.migranti@uisg.org

Giulia Cirillo Irmãs para a Incidência Global (Advocacy) advocacy.comms.coordinator@uisg.org

Conselho de Direito Canónico canoniste@uisg.org - 0668.400.223

SERVIÇOS

Ir. Florence de la Villeon, rscj Coordinadora de Serviços técnicos sicily@uisg.org -  0668.400.231

Svetlana Antonova Assistente Técnica de Serviços Gerais assis.tec@uisg.org - 0668.400.250

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PESSOAL DA UISG

Riccardo Desai

Assistente Técnico para computadores e tecnologia online tecnico@uisg.org - 0668.400.213

CONSULTORA EXTERNA

Nawojka Mocek-Gallina

Assistente de Comunicação assistente.comunicazione@uisg.org

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