Revista UBC #26

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10/UBC : ENTREVISTA

“VIVO A MÚSICA COMO UM DEPENDENTE QUÍMICO VIVE DE SUAS SUBSTÂNCIAS” INQUIETO, CRIATIVO, INCONFORMADO, O GUITARRISTA EDGARD SCANDURRA LANÇA DOIS NOVOS PROJETOS, FERMENTA INCONTÁVEIS OUTROS E CELEBRA A FASE CHEIA DE ENERGIA DO IRA!, DE VOLTA APÓS UM HIATO DE SETE ANOS

Foto: Rui Mendes

Por Alessandro Soler, do Rio Nos últimos meses, o nome do guitarrista Edgard Scandurra apareceu envolvido em, pelo menos, três projetos de repercussão. O lançamento oficial do single “Bici Bike Magrela”, que estimula o transporte sustentável e ganhou voz pela banda infantil Pequeno Cidadão, cocriação do músico; a expectativa pela chegada do álbum “EST”, aguardada parceria com Silvia Tape; e a apresentação bombástica do Ira! ao lado de Tony Tornado e Rappin' Hood no Rock in Rio, no fim de setembro. Sem dúvida, a volta recente da banda lendária liderada por Scandurra e Nasi, depois de sete anos de intervalo, foi uma injeção de gás num cara criativo, sempre ligado, inconformado. Mas a fase particularmente prolífica, ele atesta, não é ponto fora da curva: “O prazer de tocar, criar, compor, arranjar, sugerir, solar, cantar é tão grande que, quando estou sem fazer isso, me sinto solitário e triste. É como passar dias numa praia maravilhosa e, de repente, acordar dentro de um ônibus lotado sentindo alguém tentando roubar a minha carteira”, compara o guitarrista, tido pela crítica como um dos maiores da nossa música, e que já tem a cabeça povoada de novos e inquietos planos. Essa explosão de trabalho parece ter um ímpeto renovado. Estamos assistindo a um Edgard Scandurra versão 2015 parecido com o Scandurra do início do anos 80, ou seja,"imparável"? Eu inventei um hashtag que representa muito bem o que eu sou dentro da música: um operário do rock. Vivo a música como um dependente químico vive de suas substâncias. O prazer de tocar, criar, compor, arranjar, sugerir, solar, cantar é tão grande que, quando estou sem fazer nada disso, me sinto solitário e triste. É como passar dias numa praia maravilhosa e, de repente, acordar dentro de um ônibus lotado sentindo alguém tentando roubar a minha carteira. Isso existe em mim desde os anos 80, quando, por necessidade, tocava em muitos projetos, já que nenhum dava realmente grana suficiente para viver. Com a soma, podia pagar ao menos meu aluguel. Mas depois isso virou uma necessidade vital. Acho que realmente eu sou “imparável” e vou seguir dessa maneira até não poder mais. E isso será lá no finzinho. O que inspirou a parceria com a Silvia? E o que o álbum “EST” lhe permite dizer de diferente? Com Silvia Tape surgiu uma parceria maravilhosa, um encontro das minhas músicas com as suas letras, e o que seria apenas algumas canções se transformou num disco, num conceito que eu vinha buscando havia muito. Sempre quis ouvir minhas

canções em vozes femininas, e a voz e a poesia da Silvia me encantaram. A diferença está na sonoridade que conseguimos nesse trabalho. Muitas cantoras, hoje em dia, se destacam na música brasileira, mas há muitas semelhanças nos timbres, na maneira de gravar, e eu não queria que nosso trabalho fosse mais um álbum para agradar à geração hipster. Nesse disco está a nossa maneira de entender o que seria o pop dos sonhos, a música que gostaríamos de ouvir ao ligar o rádio. A volta do Ira! foi muito celebrada pelos amantes do rock nacional. Mas não há dúvida de que essa cena é hoje muito diferente da que já foi. O rock brasileiro vive uma crise? Mudou muita coisa desde 2007, quando vocês resolveram se separar? O rock perdeu seu lugar como principal música para a juventude expressar tanto suas alegrias quanto suas frustrações. Virou a subcultura da subcultura, enfeitada por bandas de baixa qualidade, comerciais, inventadas por produtores que viam no rock a mesma máquina de fazer dinheiro que viram no pagode, no axé, no samba. Vejo que, agora, artistas que se diziam MPB celebram seus discos de rock, o que é muito bom! O rock sempre sofreu crises de identidade e sofre com entressafras tão duradouras como a seca no Saara. Politicamente falando, com essas crescentes manifestações de direita, beirando o fascismo, e com a desilusão com a esquerda, creio que há um ambiente muito rico para a guitarra voltar a gritar por justiça e liberdade e tomar seu lugar como importante meio de comunicação dos anseios das almas humanas. Esse espírito contestador, inconformado, sempre esteve presente. Basta um olhar rápido sobre a sua obra para saber. Mudaram as causas mas não mudou o Scandurra? Eu me considero um músico canhoto e de esquerda. E, quando falo em esquerda, falo da luta por conquistas sociais. Não consigo entender artistas de rock, vindos dos tempos da ditadura, marchando lado a lado com saudosos dos tempos de chumbo. O socialismo não é feito por simpatizantes da União Soviética ou por barbudos cubanos, mas por pessoas que lutam por coisas claras e básicas para a população. Quando se aprova a união entre pessoas do mesmo sexo, estamos dando conquistas sociais inestimáveis a pessoas que sempre foram alvo de piadas de mau gosto. Quando se discute a liberação da maconha, trata-se de estratégia para combater o tráfico e as mortes que ele causa. São todas lutas da esquerda. Sou a favor de impostos contra as grandes fortunas, das cotas para as minorias, de justiça aos torturados pela ditadura. Não


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